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O TRABALHO COMO PRINCIPIO EDUCATIVO ACACIA ZENEIDA KUENZER do Selor de EducapGo/UFPR RESUMO. Este artigo tem por objetivo discutir uma proposta para © ensino de 2° grau & luz do trabalho tomado como prin- ciplo educative. A partir de pesquisas anteriormente lizadas, que evidenciam ser a apropriacio do ssber_arti- clade a9 mundo do EABSIRD sssenciel para o Tabalhagor ‘iscute-se a possibilidade de organizagio de uma escola de 2* grau que supere tanto 0 academicismo baseado no velho principio educativo classico quanto 2 profissional zagio estreita. Para tanto, propée-se uma organized] Para 0 ensino de 2° grau de tel modo que ele seja nico | lenguanto estrutura, seja politécnico quanto 20 conteido © dialético quanto & metodologia, _ SUMMARY ‘The purpose of the present article is to discuss @ proposal for high school having work as an educational principle. Possession of knowledge about work as shown, in pre- vious research, to be essential to workers. A new organi- zation of high school is thus argued, to overcome both old classic erudition an narrow occupation-minded curricula It is suggested that high school should have an undiversified structure, polytechnic content and @ dialectic methodology. Cad. Pesq., Séo Paulo (68): 21-28, fevereiro 1989 at Apeser das inimeras discussOes que témse de- senvolvido nos ultimos. anos, @ dos estudos e pes- quisas que tém sido realizados, pouco tem-se avance- do na compreenséo da fungo social do ensino de 2° seu, e, em decorréncla, na concepeéo de uma pro- Posta pedagégica que permita sua viabllizacéo. Indiscutivelmente, a falta de vontade polit expressa nos reduzidos recursos destinados a grau de ensino pelas diversas esferas de governo, tem contribuido para a balxa qualidade © para a es. cassez de oferta. Contudo, 0 grande problema nfo reside af, mas na absoluta falta de clareza acerca do que deva ser uma escola de 2° grau no Brasil hoje, considerada a especificidade do estégio de desen- volvimento politico © econdmico que atravessa © a concepgto de sociedade que se pretends, a partir do qué derivar-se-6 sua proposta pedagégica. Neste sentido, um dos grandes entraves para o avango na construgéo histérica desta concepc8o 6 0 fato de que os estudos realizedos, em sua malorie, Partem sempre do interior da escola de 2° grau to- mada em si mesma, sem que se considers como Ponto de partida a relagdo entre escola © trabalho, que 6 a ralz da questio. Enquanto néo se ultrapasser esta perspectiva, passando-se a desenvolver #8 and- lises da perspectiva externa & escole, ou tir des relagées socials de producio, jo encontradss as solupbes para o impasse que hoje ceracteriza o ensino de 2.° grau: como superar, ‘20 mesmo tempo, o academicismo rangoso © 0 pro- {lssionalismo estreito, Na tentativa de avancar a partir desta perspect!- va, este texto, sintese de um estudo (Kuenzor, 1988) recém-publicado, procura analisar os resultados obti- dos om duas pesquisas anteriores — com os operé- rlos (Kuenzer, 1985) e com estudantes da classe tre- balhadora (Kuenzer, 1986) — & luz d Gramsci, mas sem perder de vista a do modelo de desenvolvimento © da escola de 2° ‘rau no Brasil A primeira pesquisa, fetta com os operérios, evi denciou a relevancia, para o trabalhador, da eproprie- ‘¢80 do conteddo do trabalho @ do saber produzido Soclalmente, através da escola, como estratégia de resisténcia & desquelificagio resultante do processo de controle @ distribuigso desigual do saber, em que se articulam escola, empresa e sociedade. O trabs- lhador reconhece que, apesar de suas limitagées, a escola se constitul em espaco indlspensével para a apropriagio do saber socialmente produzido, de modo 2 the permitir superar a parciallzaco e a fragmenta- go do aprendizado que ele desenvolve ne prética cotta ‘A segunda pesquiss, realizada com alunos tra- balhadores, mostrou que, para estes, a preparacio para o mundo do trabalho, oferecida no 2.0 Grau, independentemente de sua quelidede ou natureza, 6 uma mediagio fecilitadora do seu ingresso no mer- cdo de trabalho, 0 que iré visbilizar, a longo ou mé- dio prazo, 0 seu ingresso na universidede. Isto signi- fica que, se no horizonte da asplragio do sluno tra- balhador esté 0 ingresso na universidade, ele tem 22 claro que isto 86 seré possivel através do acesso a lum emprogo, através da mediago do ensino de 2° grau que the permita se apropriar de algum saber ‘sobre o trabalho. Desta forma, apesar dos limites Impostos pela sua origem de classe, ser-lhe-s possi- vel financiar 0 ingresso e permenéncia em algum ‘curso superior, mesmo que noturno e de qualidade discutivel. Mas, pera que isto seja possivel, o aluno traba- Ihador reivindica um ensino de 2° grau de “qualids- de", entendida como preparacéo, so mesmo tempo, ppara o Ingresso no mundo do trabalho e para a con- tinuidade de estudos. Esta concepgéo pareceria con- traditéria, nBo fosse @ percepgfo de que a continul- dade 86 seré possivel através do ingresso no merca- do de trabelho, proporcionada por um 2° grau que tenha caréter terminal. ‘As conclustes destas pesquisas mostram que é preciso avangar na compreenséo da relagdo entre escola ¢ trabalho, e particularmente, na adogo do trabalho como categoria explicativa e principio orga- nizador do ensino de 2.° grau, de modo a atender as cessidades, da classe trabalhadora na construcéo do seu projeté hegeménico. A grande questo perma- rece, contudo, “no entendimento do que seja essa “qualidade” reivindicada, e como ela poderd ser tra- duzida em uma proposta curricular que supere 2s s0- lug6es até agora Implementadss, as quals, ou tém ‘como elxo a educagéo geral ou, na tentativa de se articular com o trabalho, apenas reproduzem a estra- tégla fabril — a pedagogla da fébrica — que se ca- racteriza pela distribulc#o desigual de um saber frag- mentado e parcial, limitado & transmiseéo de modos de fazer, sem a correspondente apropriacSo dos prin- cfplos teéricos e metodolégicos que Ihes déo suporte. Em ambas as pesquisas, fica evidente que a classe trabalhadora reivindica 0 acesso a um saber que Ihe permita, ao mesmo tempo, participer ative: mente do processo politico ¢ do sistema produtivo, enquanto compreende as relagbes socials que deter- minam seu modo de vida, sua concepg8o de mundo © sua conscléncia, Esta constataco exige uma proposta de ensino de 2: grau que permita a0 aluno trabalhador a apro- prlagéo do saber clentifico-tecnol6gico e hist6rico-cl- tico, de modo a participar do processo produtivo & da vida social e politica. Esta ncessidade se impée & medida que se cons- tata que, nes duas citimes décadas, como fruto das pressGes das camadas médias da classe trabalhado- ra — embora nfo tenha havido expansto significativa da oferta de 2.0 Grau, que permanece nos 14% da populacfo de 15 a 19 anos — houve uma mudanga qualitativa fundamental na clientela deste grau de ensino. Cada vez mals a classe trabalhadora tem elto presente na escola de 2° grau, particularmer nas escolas noturnas e nas localizadas nas periferias urbanas. Esta cllentela, fundamentalmente diferente da tradicional, composta por jovens jé inseridos no proceso produtive ou que buscam condicdes pera essa Insergéo, esté a exigir do 2° Grau que se re- defina, Cad. Pesg. (68) fevereiro 1989 Da mesma forma, a escola de 2° grau que esté ai J& n&o dé conta, sequer, de atender os interesa da burguesia e da pequena burguesia, o que significa que alguma coisa na sociedade se modificou, enquan- ‘to @ proposta pedagégica da escola continua a mes- ma. Para pensar uma nova proposta, torne-se necessé- rio compreender esta nova sociedade, uma vez que, a cada estéglo de desenvolvimento da sociedade cor responde um determinado principio educativo, partir do qual a sociedade formaré seus intelectuals, segun- do suas necessidades, através da escola. (© TRABALHO COMO PRINCIPIO EDUCATIVO Os estudos que tém sido realizados sobre o ensino de 2° grau t8m reconhecid no de um, mas de diversos “ensino: Mesmo com a proposta homogeneizante contida na Lei 5692/71, a heterogeneidade do 2° Grau nunca fol superada, uma vez que é determinada, ndo pela escola, mas pela diferenca de classes, que define as condigées de acesso e de permanéncia no sistema de ensino, Assim, existem escolas de 2° grau diferentes para clientelas diferenciadas por sua origem de = ‘se; estas diferencas transparecem em propost dagégicas com diferentes nivel de. quelidede, do contetido, de objetivos. Esta diversidade 6 um fenémeno estrutural_ co- racteristico do ensino de 2.° grau, determinado pelas diferencas socials, ¢ néo pelos diferentes tipos de encola. Manos que ae imposes da lenislectoafo snsinod “de 2 grau, que distribuiréo o saber de forma diferen- “Giada, segundo as necessidades de instrumentalizar ara ocupar distintas fungdes nia hierar- ‘quia do trabalhador coTetivo. —~ Vista desta forma, a diversidede na oferta do ensino de 2° grau, concretizada na dualidade estrutu- ral, expressa 0 velho principio educativo humanista tradicional, que previa a necessidade de formar diri- gentes @ trabalhadores em escolas com objetivos distintos: para formar as geragées de dirigentes, que néo exerceriam fungdes instrumentais, mas sim fungées intelectusis, as escolas de educacto geral, literatura, a cultura univer- para formar as geragées de trebelhadores, profissionais, Esta dualidade estrutural, aparentemente demo- crética por pretender permitir a mobilidade social, conservadora na raiz, por seu conteido de classe, ‘do por sua forma; ou seja, ndo 6 por ser profissiona- lizante ou por conferir saber técnico que uma escola de 2° grau 6 de segunda categoria, m dirigir a uma classe social determinada trabalhadora. Aos trabalhadores deve-se posse dos mecanismos operacionais, o seber pratico, parcial e fragmentado, e no a posse do saber cientf- fico e técnico contemporaneo, socialmente produzido. trabalho como principio educativo E Ingenuidade, portanto, pensar ser possivel, nas atuais condigbes, a superacéo da dualidade a partir da escols, posto que ela fem uss raizas na ivi “e técnica do. trabalho. € necessério, “eontudo, Iniciar 0 processo que culminaré nesta su- eraco, para o qué um passo importante seré asse- gurar a todos o acesso a um saber que até agora fol apropriado por uma minoria, a qual, néo por coincidén- cla, néo 6 a classe trabalhadora, E desnecessério afirmar que o velho principio edticativo humanista tradicional, que justificava pro- postas academicistas, livrescas, para a burguosia, € escolas profissionais para os trabalhadores, fol supe- rado pelo préprio desenvolvimento do capltalismo mo- derno; 0 dirigente literato, bom orador, com sélida cultura geral, mas sem o dominio da dimenséo instru- mental, cientifico-técnica do trabelho, néo tem mals lugar. £ 0 proprio desenvolvimento da cléncla_e_da tecnologia que pos em cr “fivo_que_se fundamentava_na_rigi “fungBes. -2_instramentals. ‘A modernidade, caracterizada pelo avanco clenti- fico @ tecnolégico, ‘panso dos meios de comu- nicaglo, pela generalizacfo do modo de vida urbano, pelas pressGes pela democratizaglo, traz novas for- mas de relacéo entre Giéncia e trabelho. Assim, a socledade moderna cria um novo tipo de intelectual, diretamente produtivo, chamado por Gramsci de “intelectual moderno”, cuja formacdo se baseia em um novo equilfbrio entre o desenvolvimen- to da cepacidade de atuar praticamente (trabalhar tecnicamente) e o desenvolvimento da capacidade de trabalhar intelectualmente. Este novo tipo de intel tual 6 exemplificado pelo téenico da indéstria, que deverd a0 mesmo tempo ter capacidade dirigente e técnica, 0 que exige formacdo néo 86 técnico-cient’- fica, mas também histérico-critica. O que caracteriza esse intelectual 6 a sua capacidede pera transformer @ natureza e as relacdes socials, a partir de uma nova e integral concepgo de mundo, cujo “modo de ser néo pode mais consistir na eloqdéncia, mas num imiscuir-se ativamente na vida prética, como constru- tor. organizador, persuasor permanente, j& que néo apenas orador puro — e superior, todavia, no espiri to matemético; da técnice-trabelho, eleve-se a técnica ciéncia e & concepcao humanista hist6rica, sem a qual se permanece especialista e néo se chega a dirigen- te” (Gramsci, 1968, p. 8). ‘A medida que, na sociedad contempordnes, ciéncia se faz técnica e esta se complexifica, ov, a8 atividades se fazer complexas ¢ a teoria se faz ope- rativa, trabalho e cléncia, antes dissociados, voltam a formar uma nova unidade através da mediagio do rocesso produtivo, exigindo uma nova concep¢éo da histéria © da sociedade que unifique ciéncla, técnica @ cultura. Em decorréncia, exige-se um novo princi- pio educativo para a escola em todos os nivels, que tome o trabalho como ponto de partida, concebido como atividade te6rico/prética, sintese entre ciéncia, técnica © humanismo histérico. ‘Assim, | nfo se sustentam propostas pedagé- ‘que separam as fungdes Intelectuals das fun- gic 23 strutural _| i ai

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