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Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

Licenciado sob uma Licença


Creative Commons

A MÍSTICA VELADA DE FRIDA KHALO - DES-VELADA EM SIMONE


WEIL

Andreia Cristina Serrato


Mestre em teologia pela FAJE.
Doutoranda em teologia pela PUCRJ.
Professora na PUCPR
andreia.serrato@pucpr.br

ST 13: RELIGIÃO, MÍSTICA E POÉTICA

Resumo: Apresentaremos a expressão de superação da dor a partir da arte na obra de Simone


Weil e de Frida Khalo. Uma viveu na Europa e a outra na América Latina. Ambas lutaram contra
a dor, sentiram em seu próprio corpo as dores do mundo. Foram militantes e estiveram ao lado
de seu povo. Sendo assim, para nós a dor representa a superação do dualismo mente e corpo,
porque envolve a totalidade do ser. E a arte, em contrapartida, significa a capacidade
terapêutica de dizer-se, de enunciar a sua palavra, de manifestar-se e de se deixar afectar pelo
mistério. A arte então poderá sinalizar alguns caminhos para uma abertura de encontro,
contribuindo assim para que o ser humano seja tocado pelo outro em seu próprio corpo e ao
fazer a experiência, inserido no mundo, enraíza e se abre a atenção. No primeiro momento
apresentaremos a experiência mística de Simone Weil através da recitação do poema Love de
George Herbert. O que aconteceu em momentos de crises intensas de dores de cabeça. Em
seguida, exporemos as intensas experiências de dor de Frida Khalo, especialmente o acidente
que sofreu, como as supera através das pinturas e retrata sua dor através da tela Unos cuantos
piquetitos. E finalmente, sinalizaremos a experiência corporal como ponto de partida para
possíveis aberturas para uma experiência de encontro com o transcendente. Entretanto que
proporcione ao ser humano um comprometimento com sua realidade concreta, afectando-se
pelo outro que sofre.

Palavras-chave: Corpo, Arte, Sofrimento, Mística.

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Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais
ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o
ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da
terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos
sejam tão livres quanto insignificantes (KUNDERA, 2007, 10).

1. Introdução
Somos partícipes de uma cultura fragmentada e somática. Há um
desenraizamento cultural e religioso contribuindo para as segmentações do próprio
humano. Cria-se pouco ou quase nada de um enraizamento social, cultural ou, ainda,
religioso. Caminha-se assim para uma “insustentável leveza do ser”, pois o sofrimento e
a dor são sempre rechaçados. Contudo, o ser humano é parte deste meio social
carregado de dor e alegria. Sendo assim, perguntamos-nos: como a arte, seja ela
plástica, seja ela literária, pode contribuir na aceitação e superação da dor,
proporcionando uma experiência mística? Poderíamos então dizer que há uma mística
na superação da dor através da arte?

Nessa perspectiva apresentaremos algumas contribuições a partir de duas


mulheres contemporâneas que fizeram história, Simone Weil e Frida Khalo. Uma viveu
na Europa e a outra na América Latina. Ambas lutaram contra a dor e afectadas pelo
outro que sofre sentiram em seu próprio corpo as dores do mundo. Para nós, a dor
representa a superação do dualismo mente e corpo, porque envolve a totalidade do ser.
E a arte, em contrapartida, significa a capacidade terapêutica de dizer-se, de enunciar a
sua palavra, de manifestar-se e de se deixar afectar pelo mistério. A arte então poderá
sinalizar alguns caminhos para uma abertura de encontro, contribuindo assim para que
o ser humano seja tocado pelo outro em seu próprio corpo e ao fazer a experiência,
inserido no mundo, enraíza e se abre a atenção1.

Nosso itinerário percorre três momentos. Apresentamos a experiência mística de


Simone Weil com a recitação do poema Love, de George Herbert. Ato que ela repetia
em momentos de crises intensas de dores de cabeça. Em seguida, expomos as
intensas experiências de dor de Frida Khalo, especialmente o acidente que sofreu,
como as supera por meio das pinturas e retrata sua dor. Focamos a tela Unos cuantos

1
Enraizamento e atenção são dois conceitos importantes desenvolvidos por Simone Weil, mas que não serão
tratados porque não é esse o foco.

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piquetitos. E finalmente, mediante essas experiências, sinalizamos a experiência
corporal como ponto de partida para possíveis aberturas para uma experiência de
encontro com o transcendente. Trancendência, entretanto, que proporcione ao ser
humano um comprometimento com sua realidade concreta, afectando-se pelo outro que
sofre.

2. Simone Weil – Um coração que bate no ritmo das dores do mundo

Essa jovem filósofa que desafiou Trotsky2 e que escreveu muitos artigos em
favor dos operários, desde criança, sente compaixão pelo sofrimento humano. Fazia a
experiência solidária de dividir o que tinha3. Simone Adolphine Weil nasceu no dia 3 de
fevereiro de 1909, em Paris, e faleceu no dia 24 de agosto de 1943, em Ashford, aos 34
anos. Foi professora, escritora, mística e filósofa (WEIL, 1952, 15). E sua vida esteve
pautada na seguinte afirmação: “a filosofia é coisa exclusivamente em ato e prática”
(WEIL, 1950, 335).

Simone Weil era uma mulher de grande estatura e muito vivaz, porém com
saúde frágil. Tinha problemas crônicos de respiração e era acometida frequentemente
por terríveis dores de cabeça. Depois de lecionar numa escola secundária para moças
em Le Puy, decide trabalhar como operária. O calor do forno era quase insuportável, o
corpo quase não suportava o peso das peças, as mãos frágeis machucavam ora pelo
calor, ora pela rudeza do metal. Depois de trabalhar um ano na fábrica da Renault
como operária, afirma sentir a marca da escravidão para sempre em seu corpo. Sentia-
se como os escravos que eram marcados pelos romanos a ferro e fogo (WEIL 1952,
36).

2
Leon Trotsky foi um intelectual marxista e revolucionário bolchevique. Exilado Russo, reagiu diante de um artigo
intitulado “Perspectives. Allons-nous vers la révolution prolétarienne?” em que manifesta sua postura pessimista
sobre o poder de uma classe sobre a outra. Trotsky tachou o artigo de “fórmula de antigo liberalismo revigorado com
uma exaltação anarquista barata”. SW convenceu seus pais a receberem L. Trotsky em sua casa para que pudesse
conversar com ele. E assim aconteceu. O diálogo versou sobre a Rússia, se era ou não um Estado operário, foi
subindo de tom, até o ponto em que Trotsky gritou em diversas ocasiões. Depois da reunião com seus companheiros,
o Russo declara aos pais de SW que eles poderiam dizer que ali se constituiu a Quarta Internacional. Verificamos a
coragem e a ousadia de Simone. Contudo são princípios de uma jovem que conhece a realidade e foi afectada por
ela. OC II, vol I. p. 405. Nota 177 bis. Artigo “Perspectives. Allons-nous vers la révolution prolétarienne?”, p. 260-
281. WEIL, Simone. La gravedad y la gracia, trad., intr. e notas de Carlos Ortega, Madrid, Ed. Trotta, 1994, p. 21.
(tradução livre).
3
Biografia base a partir da obra de sua amiga: PÉTREMENT, Simone. La Vie de Simone Weil. Paris: Fayard, 1973,
p. 18 (tradução livre).

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Mais tarde assume um trabalho manual no campo, na época da colheita, e nos
vinhedos, na época da safra. Todavia não parou na vida operária, na vida camponesa e
muito menos nos escritos e nas discussões. Queria escrever sobre a guerra, mas não
sem experimentá-la. Assim em 1936, no início de agosto, vai para Barcelona. Participou
durante muitas semanas, no fronte de Catalunha, vivendo da agonia do exército
republicano e sentiu no fundo de seu ser os desastres da guerra.
Em suas cartas de despedida, enviadas ao Pe. Perrin4, intituladas posteriormente
“autobiografia espiritual”, escrita por volta de 15 de maio de 1942, ela descreve seus
três contatos com a fé católica. O primeiro aconteceu em 1935 em Portugal. O segundo
em 1937 em Assis. E o terceiro contato, aconteceu em 1938, durante a Semana Santa,
em Solesmes, onde seguia todos os ofícios. As dores de cabeça eram intensas. Ela
relatou que em meio à dor e alegria, por analogia, “no curso daqueles ofícios, o
pensamento da Paixão de Cristo entrou em mim de uma vez para sempre” (WEIL,
1952, 37).
Nessa mesma capela recebeu de um jovem católico inglês, que ela diz ter sido
um mensageiro, o poema Love 5 do século XVII do inglês George Herbert, que Simone
recitava de memória quando sentia em seu corpo as violentas dores de cabeça. É no
momento de uma das recitações que faz sua grande experiência mística de ser tomada
pelo Cristo:

Exercitei-me em recitá-lo aplicando-lhe toda a minha atenção e aderindo com


toda minha alma à ternura que ele encerra. Acreditava estar recitando apenas
como um belo poema, mas, sem que eu o soubesse, esta recitação possuía a
virtude de uma prece. Foi durante uma destas recitações que, como lhe escrevi,
Cristo mesmo desceu e tomou-me (WEIL, 1952, 80).

Por essa expressão da captura do ser humano por Deus, Simone Weil reflete a
surpresa de sua experiência sobrenatural que, ao mesmo tempo, excede, e situa fora
dos limites do racional e a conecta fortemente com o mistério do Cristo. Ela jamais
duvidou desse imprevisível contato com o Cristo, nem de como foi decisivo esse
momento sobre ela. Posteriormente descreve o que sentiu nessa súbita descida de

4
Ele relata em seu livro essa experiência de Simone Weil. PERRIN, Joseph-Marie. Mon dialogue avec Simone Weil.
Bruyères-le-Châtel: Nouvelle Cité, 2009, p. 53-6.
5
O poema está em anexo.

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Cristo: “nem os sentidos, nem a imaginação tomaram parte; somente senti, através do
sofrimento, a presença de um amor análogo àquele que se lê no sorriso de um rosto
amado” (WEIL, 1952, 38).

Segundo Maria Clara Bingemer, SW “vive assim sua primeira experiência mística
cristã consciente, sente-se tomada por Cristo.[...]. Finalmente, Simone conhece o amor,
percebe-se profundamente querida por um suave e forte amor” (BINGEMER, 2011, 42).

Inicia também aqui uma unidade de pensamento, uma coerência de vida e de


entrega de seu próprio corpo até as últimas consequências. Isso porque o sofrimento
bem sofrido leva para fora do tempo, se transporta fora de si na direção de uma coisa
perfeita, então, está purificado, transformado. Ela testemunha na sua carta
autobiográfica ou durante as dores de cabeça que ela se concentra na recitação do
poema Love, que considera ser uma obra perfeita (WEIL, 1952, p. 44), trabalho
modelado pela dor como tem sido durante a sua experiência no domínio social, na sua
vida operária, ela pergunta: "Por que passar pela dor faz com que seja mais sensível à
beleza?” (WEIL, 1950, 154). Além disso, ela observa: “As dor nos cola no tempo, mas a
aceitação da dor nos leva ao fim dos tempos” (Weil, 1952, 41). O sentimento de alegria
experimentado por esse momento de apreensão da dor é semelhante ao sentimento do
belo, da experiência do eterno. O equilíbrio adquirido pela passagem da dor é um
momento propício para a criação (Weil, 1952, 41).

Mesmo assim, ela afirma para seu amigo poeta, Joë Bousquet, que com essa
experiência de dor física nunca deixou de amar. “Assim revela que na recitação do
poema Love de George Herbert, ela teve o sentimento de que o Cristo estaria presente,
‘presença mais pessoal, mais certa, mais real que de um ser humano” (LUSSY, 1999,
74): “inacessível aos sentidos e a imaginação, análoga ao amor que transparece
através do mais terno sorriso de um ser amado” (LUSSY, 1999, 795). Ela vê no sorriso
do rosto amado o amor. E Cristo e Deus se mesclam em sua frente 6. E se pode agir:
Dizer eis-me aqui: “somente atendendo a dimensão ética, social e política da existência
estará o místico em condições de realizar uma experiência mística autêntica”
(VELASCO, 1999, 465). Assim foi a vida desta jovem filósofa. Ela desejou sempre estar
6
Cf.: WEIL, Simone. Attente de Dieu, 37 e 38. WEIL, Simone. Pensées sans ordre concernant l’amour de Dieu.
Paris: Gallimard, 1961, p. 80

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ao lado daquele que sofre, assim como Cristo esteve e foi até as últimas
consequências, doando-se inteiramente, em seu corpo, para o operário, camponês,
desempregado...

3. Frida Kahlo – um laço de fita em torno de uma bomba7

Magdalena Carmem Frida Khalo8 gostava de dizer que nasceu em 1910. Filha da
revolução mexicana liderada por Emiliano Zapata e Francisco ‘Pancho’Villa (JAMIS,
1992, 20). Entretanto, nasceu de fato no dia 6 de julho de 1907. Aos seis anos foi vítima
de poliomielite, que deixou sua perna direita deformada. Passou nove meses acamada.
Ainda criança experimenta a dor terrível que iria acompanhá-la por toda a sua vida. Em
1922, Frida ingressou na escola normal. Era uma jovem irreverente de caráter rebelde e
diferenciava-se muito no seu modo de vestir (DEIFELT; MUSSKOPF; STRÖHER, 2006,
18).

Em 1925, aos 18 anos Frida sofre um terrível acidente. O ônibus no qual ela
estava se chocou com um bonde. Esse fato marcou para sempre o corpo e a história
desta jovem. Uma barra de ferro atravessou seu quadril esquerdo, saiu por sua vagina.
Sua perna direita teve onze fraturas, o pé direito amassado, ombro, coluna e pélvis
ficaram lesionados, duas costelas e a bacia fraturaram (JAMIS, 1992, 78). Os médicos
não acreditaram que ela sobreviveria. Frida sentia terríveis dores. Depois de um mês de
hospital retornou para casa, seus estudos foram interrompidos e viveu dura
convalescença. A partir desse acidente passou a usar coletes ortopédicos9 por quase
toda a sua vida e ainda ficou, em alguns momentos, refém de uma cadeira de rodas.

Foi o tempo entre a dor, a imobilidade que lhe presenteou com o início da
pintura. Sua mãe teve a ideia de colocar um espelho no dossel da cama e providenciar
materiais de pintura. No caso de Frida, “a pintura não nasce, portanto, do que do que se

7
Expressão de André Breton.
8
Por muito tempo esteve à sombra de Diego Riviera, o importante muralista mexicano. Embora tenha sido
reconhecida em vida, seja emblemática no México, tenha exposto em Paris em 1953, em Nova York em 1939 e uma
grande exposição no México em 1953, é muito mais conhecida no Brasil e no mundo por sua vida conturbada que
por sua obra. Em 2010 uma grande retrospectiva de sua obra aconteceu em Berlim e Viena. Felizmente hoje começa
a ser mais conhecida por sua obra. É a sua pintura que a torna especial. Recentemente a sua exposição ganhou os
salões pelo mundo com a artista mais original de toda a tradição mexicana. Cf.: JUSTINO, Maria. Mulheres na arte.
Que diferença isso faz? Curitiba: Museu Oscar Niemayer, 2013, p. 22-3.
9
Para conhecer mais detalhes sobre este acidente na vida de Frida Kahlo bem como a utilização e tortura para ela dos
coletes consultar: JAMIS, Rauda. Frida Kahlo. São Paulo: Fontes, 1992, p. 73-80.

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chama uma ‘vocação precoce’. Surge sob uma dupla pressão: um espelho que, acima
de sua cabeça, a importuna, e, bem no fundo de si mesma, a dor que vem à tona. Dois
elementos essenciais conjugados... e vem a pintura, laboriosamente, docemente, ela
aflora” (JAMIS, 1992, 97). Assim, sua atividade como pintora se iniciou justamente no
período em que mais sentia dor, ficava imobilizada em coletes ortopédicos. Que para
ela eram verdadeiros instrumentos de tortura. Foi um momento em que se sentia só.
Assim, em toda a sua dor, a arte representou um novo caminho. Frida descobre que a
pintura é realmente sua vida.

Os anos entre 1929 e 1935 foram difícieis para a jovem mexicana. Casou-se com
um famoso muralista da época, Diego Riviera, conhecido por suas pinturas políticas,
engajamento no Partido Comunista e seus inúmeros casos amorosos. Mudou-se para
os Estados Unidos, sofreu dois abortos e Diego a traiu duas vezes, uma delas com sua
própria irmã10. E “novamente a arte foi seu caminho para a sanidade, à medida que ela
pintava quadros de embriões e de seu próprio corpo, estirado na cama, encharcado em
sangue (conforme sua obra Hospital Henry Ford, 1932” (DEIFELT; MUSSKOPF;
STRÖHER, 2006, 24). A contragosto de Diego retornaram para o México. Contudo sua
saúde se deteriorou e sofreu ainda um terceiro aborto. Devido à dor intensa que sentia
no pé direito, os cinco dedos foram amputados.

Em 1935 Frida sintetizou, em uma única obra, a dor física existencial que a
martirizava: Unos quantos piquetitos! (em anexo). A obra retrata um assassinato a partir
de uma notícia de jornal sobre uma mulher assassinada por ciúme, servindo de tema
para este trabalho da artista. O assassino justificava seus atos perante o juiz, dizendo
que foram apenas uns quantos golpes. O ato violento é uma referência simbólica à
situação pessoal de Frida. Nesse momento estava com sua alma e corpo dilacerados.
Seu marido envolvera-se com sua irmã Cristina (KETTENMANN, 1994, 39).

Na pintura da tela, os pombos que carregam a fita com o texto, um branco e


outro preto, trazem uma conotação entre bem e mal, amor e ódio, sentimentos

10
Em 1937 Leon Trotsky e sua esposa chegaram ao México para ser exilados, porque foram expulsos da Noruega
por pressão de Mocovo. E foram recebidos na casa de Frida e aí ficaram até 1939. Os dois passaram muitas horas
juntos e assim nasceu um breve romance.

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ambivalentes. Em um corpo e alma feridos, com uma deformação na perna, uma
sequela na coluna, uma relação conturbada com Diego, tudo nela clama tragédia.
Neste quadro, o sangue jorra e salta da tela invadindo a moldura, como se esvaindo da
própria Frida e se alastrando no mundo. As fisionomias do homem e da mulher são os
rostos de Frida e de Diego. Lembra as tragédias do dia a dia de algumas pessoas, pois
pintou a partir de uma notícia que ouviu, entretanto recorda a tragédia pessoal
(JUSTINO, 2013, 29-30).

A partir dessa situação conturbada na vida de Frida, esta obra pode ser vista
como uma ilustração do estado psicológico da artista. Os ferimentos causados pela
violência brutal masculina parecem simbolizar os seus próprios danos emocionais
(KETTENMANN, 1994, 39). Essa pintura pode retratar ainda a vontade de seu
automutilar, de matar-se para algumas coisas e nascer para outras. Sentia-se mutilada
em sua dor, em sua tentativa de retomar sua vida, mas, marcada física e moralmente,
pela dor e pela traição, sentia-se esgotada.

“A pintura de Frida é um jogo entre o corpo mutilado, golpeado pela vida, sem
esperanças, e a mente infinita em que todos os monstros são libertados. Trabalhos
como A coluna quebrada (1944) e Sem esperança (1945) testemunham esses
pesadelos. Mas não é uma mulher que se volta aos lamentos. Enfrenta a adversidade”
(JUSTINO, 2013, 32). De 1944 a 1954, Frida Kahlo chegou a usar 28 coletes
ortopédicos diferentes. A sua obra mais famosa dessa época é A coluna partida, 1944.
E em 1950 ela passou por sete cirurgias por causa de sua coluna. Verificamos aqui os
sinais possíveis para uma experiência profunda do mistério.

É extraordinário o caso de Frida, pois de onde exala tanto dor ela extrai sua
energia para sobreviver, viver e, a partir de seu cotidiano, de sua existência, torna-se
uma grande pintora... Uma mulher forte em um corpo frágil. Sua arte é um diálogo com
a vida, com o ser; é ontológica, metafísica e paradoxal. Metafisica aqui entendida na
larga compreensão de Merleau-Ponty como a experiência plena dos paradoxos
(MERLEAU-PONTY, 1966, 166). Sendo assim Kahlo foi capaz de construir uma arte
profundamente intimista e universal. Seu passado é memória cruel que nunca a

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abandona. As cicatrizes estão presentes em seu corpo11. Suas obras não são frutos de
sonhos, mas fragmentos de sua própria realidade.

A maior parte de sua vida é passada em hospitais. Assim nos ensina que a arte é
uma forma de superar a dor e a morte. Mediante a arte podemos externar a dor. Mais
tarde confessou: “meu corpo é um marasmo. E eu não posso mais escapar dele. [...] sei
que vamos nos aniquilar um ao outro, a luta, portanto não terá vencedor” (JAMIS, 1987,
p, 1). Apesar desta confissão, foi com este corpo que lutaria até o fim e triunfaria em
sua última exposição. Mesmo na cama, não deixou de comparecer ao evento. É com
ele que respira, por meio dele que dialoga com o mundo, é com ele que pinta e dele
que fala.

4. A arte como expressão da própria dor manifestada na dor do outro

Como poderemos avançar nas diferenças e aproximações entre Simone Weil e


Frida Kahlo? O que teriam em comum além de terem nascido em épocas iguais (1909,
1907), mesmo que em países diferentes (França, México), terem conhecido Trotsky. A
francesa o desafia politicamente. A mexicana torna-se amante. Ele foi hóspede nas
duas famílias. As duas tiveram engajamento político, um grande patriotismo, grande
inteligência, foram professora. Mobilizaram as pessoas e foram amantes da arte. Frida
utilizou as artes plásticas, Simone preferiu escrever. Como então as experiências
dessas duas mulheres na arte e a experiência corporal de dor podem sinalizar
possíveis aberturas para uma experiência de trancendência? Mais: proporcionar ao ser
humano um comprometimento com sua realidade concreta, afectando-se pelo outro que
sofre?

O caminho de Frida: “Brota de dentro, saído da intimidade e da solidão”


(JUSTINO, 2013, 37). “Sua obra é visceral, um parto sempre. Uma conquista sobre sua
vida. Uma ressurreição ritual, como também um sacrifício. Em todo o seu ser há algo de
embrionário, de ruptura sangrenta, de terreno e fisiológico” (CORDOZA y ARAGÓN,

11
O corpo aparece na obra de Frida como violentado pela dor, machucado, ferido, dilacerado. É como se
coagulasse o sofrimento na tela. Em suas obras não aparece apenas o rosto, é todo o seu corpo
retratado e invadido, a dor física e moral, tudo é exposto. Rins, coração, útero, coluna vertebral,
pensamento, tudo é devassado. O corpo é a zona de cruzamento entre arte e mundo (JUSTINO, 2013,
40).

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1988, p. 38). Quando ela teve de amputar seu pé, todos estavam muito apreensivos
para dar a notícia para a pintora, qual foi a surpresa quando contaram: “Por que haveria
eu de querer pés para andar, se tenho asas para voar?!” (JAMIS, 1992, 80).

Simone Weil relata um pouco do que aprendeu com os camponeses. Quando um


aprendiz se queixa da fadiga, os camponeses falam: “É o oficio que penetra no corpo”
(WEIL, 1952, 94). Assim, para ela, cada vez que sofremos uma dor, podemos nos dizer
que a ordem do mundo, a beleza do mundo, a obediência da criação de Deus, é que
penetram em nosso corpo, pois “a alegria e a dor são dons igualmente preciosos, que é
preciso saborear, tanto um como outro, integralmente, cada um em sua pureza, sem
misturá-los. Pela alegria a beleza do mundo penetra em nossa alma. Pela dor, ela
penetra em nosso corpo” (WEIL, 1952, 94). Conclui, então, que a desgraça não é a dor,
é algo totalmente diverso de um proceder pedagógico de Deus (WEIL, 1952, 95).

A trajetória dessas duas mulheres de expor a dor, seja em seus escritos, seja
através em suas pinturas, de visibilizar o corpo em dor torna possível e político o mundo
privado. Os sussurros de dor expostos nos apresentam um caminho de resgate da
dignidade em meio à dor. Mais: pode-se viver e avançar diante da dor. As mulheres que
vivem em dor na condição das violências sexuais, morais, psicológicas que se ainda
encontram presente em muitos espaços e cotidianos, podem aprender com Frida a
produzir uma visibilidade para sua dor por meio da pintura. As pessoas que se
encontram em dor por problemas físicos, morais, psicológicos, opressão, podem
aprender com Simone a extrair desse momento a alegria de um encontro por meio da
poesia. Não quero dizer com isso que todas as pessoas devem pegar pincel e tinta e
sair a pintar seus corpos. Muito menos buscar versos e sair recitando. Dizemos apenas
que a criação e a transcendência são fundamentais para o salto, de ser para si um
pouco mais humana. E mesmo assim e apesar de tudo viver em dor, porém expressá-la
por alguma linguagem. Então, neste século XXI, o componente suscetível para
promover a solidariedade pela dor poderia ser a possibilidade de as pessoas serem
mais humanas, fazendo o diferente ser normal.
Foi na recitação do poema Love que Simone Weil pode refugiar-se de sua dor.
Pode ainda fazer a experiência de encontro. A grande experiência mística. Pois ela
sente-se profundamente amada por Deus. Foi no quadro Unos cuantos piquetitos que

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Frida Kahlo cria espaço para gritar e denunciar a injustiça e a dor. Denuncia para si e
para outras mulheres também. Des-velando a dor latente.
A arte testemunha, assim, a voz de muitos outros rostos que clamam. Imagens
que inauguram um tempo em que a alteridade irrompe, se diz e nos interpela. A arte
apresenta-se então como um lugar teológico na medida em que gera um lugar onde
acontece a revelação, um espaço de epifania, ou melhor, de diafania e de
manifestação da alteridade. A arte explora assim nossos sentidos, toca nossa
sensibilidade, deixando que o rosto humano que se faz corpo apareça e se torne lugar
sagrado, território onde a epifania do rosto acontece, lugar onde o rosto de outro
humano pode interpelar-nos. Isso porque somos sensibilidade, temos capacidade de
sentir empatia e compaixão, de afectarmos pelo outro, por suas alegrias, sofrimentos e
esperanças etc.
Falamos de um corpo que sofre, que toma a expressão de um rosto que
encontra espaço e expressão na arte para velar sua dor e desvelar a sua mística.
Essas duas mulheres nos fazem volver o olhar para a dor, a injustiça, a humilhação.
Não para cerrar-nos neste círculo, ao contrário, convidam-nos a restaurar a beleza
desfigurada pelos gemidos da dor e ultrapassá-la, pois, mesmo em meio à dor,
encontraram lugar para responder. A dor nos coloca no tempo e em solidariedade com
o outro, em relação com o outro que sofre. Isso nos concede uma espécie de acesso à
relação com Deus, que sempre atravessa as relações humanas. Supera assim os
dualismos, as dicotomias sujeito e objeto, a distância entre o ser humano e seu próprio
corpo. Se ambas as autoras imprimem a sensação de dor em suas obras, vemos aqui
que o sofrimento encontra na arte uma expressão mística em que a dor é superada não
em si mesma, no sentido de paralização, mas as mobilizou na direção de
trancendência. Foram além de si, regressaram ao seu cotidiano com outro
conhecimento de si mesmas, mais elaborado, mais complexo, ressignificado pela
própria existência.

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Referências
BINGEMER, M.C. Simone Weil. Una Mística en los limites. Argentina: Ciudad Nueva,
2011.

BRETON, A. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Morais editores, 1969.

DEIFELT, W.; MUSSKOPF, A.; STRÖHER, M. (ORGS) À flor da pele. Ensaios sobre
gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal, 2006.

JAMIS, Rauda. Frida Kahlo. São Paulo: Fontes, 1992.

JUSTINO, Maria. Mulheres na arte. Que diferença isso faz? Curitiba: Museu Oscar
Niemayer, 2013.

KETTENMANN, Andrea. Kahlo. Dor e Paixão. Alemanha: Taschen, 1994.

KUNDERA, Milan. A Insustentável leveza do ser. São Paulo: Fronteira, 2007.

LUSSY, Florence. Simone Weil. Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999, p. 74.

MERLEAU-PONTY, M. Sens et non-sens. Paris: Nagel, 1966.

VELASCO, Juan Martin. El fenômeno místico: Estúdio comparado. Madri: Trotta, 1999.

WEIL, Simone. Attente de Dieu, Paris: Fayard, 1952.

WEIL, Simone. La Connaissance Surnaturelle (Cahiers d’Amérique), Gallimard, 1950.

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Anexos

12
LOVE
O amor me acolheu, porém minha alma se afastou,
Pleno de poeira e de pecado.
Mas atento ao amor, ao observar
Minha entrada vacilante,
Aproximou-se de mim, perguntando com docura o que necessitava.
Um convidado - respondi – digno de estar aquí.
O Amor disse: Serás tu.
Eu, cruel e ingrata? Ah, meu Deus, não posso se quer olhar-te.
O Amor tomou minha mão e sorrindo disse:
Quem fez seus olhos senão eu?
É verdade, Senhor, mas eu o manchei, deixa que minha vergonha vá onde ela merece.
Acaso nao sabe – disse o Amor – quem carregou a culpa?
Meu querido, então o servirei.
Só deve sentar-te – disse o Amor – e provar minha carne.
Então sentei e comi.

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b&imgrefurl=http://www.panamaamerica.com.pa/content/frida-khaloante-el-espejo-del-
dolor&h=381&w=500&tbnid=fTzAllYNq_xBWM:&zoom=1&docid=J0fEK9BcsbmDiM&ei=NdGFVdfaLe7ds
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Simone Weil escreveu sobre sua experiência ao ler este poema de George Herbert em carta a Joë Bousquet e ao Pe.
Perrin. O poema pode ser encontrado em LUSSY, Florence. Simone Weil. Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999, p.799-
780

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1309


Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1309

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