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1. Introdução
Somos partícipes de uma cultura fragmentada e somática. Há um
desenraizamento cultural e religioso contribuindo para as segmentações do próprio
humano. Cria-se pouco ou quase nada de um enraizamento social, cultural ou, ainda,
religioso. Caminha-se assim para uma “insustentável leveza do ser”, pois o sofrimento e
a dor são sempre rechaçados. Contudo, o ser humano é parte deste meio social
carregado de dor e alegria. Sendo assim, perguntamos-nos: como a arte, seja ela
plástica, seja ela literária, pode contribuir na aceitação e superação da dor,
proporcionando uma experiência mística? Poderíamos então dizer que há uma mística
na superação da dor através da arte?
1
Enraizamento e atenção são dois conceitos importantes desenvolvidos por Simone Weil, mas que não serão
tratados porque não é esse o foco.
Essa jovem filósofa que desafiou Trotsky2 e que escreveu muitos artigos em
favor dos operários, desde criança, sente compaixão pelo sofrimento humano. Fazia a
experiência solidária de dividir o que tinha3. Simone Adolphine Weil nasceu no dia 3 de
fevereiro de 1909, em Paris, e faleceu no dia 24 de agosto de 1943, em Ashford, aos 34
anos. Foi professora, escritora, mística e filósofa (WEIL, 1952, 15). E sua vida esteve
pautada na seguinte afirmação: “a filosofia é coisa exclusivamente em ato e prática”
(WEIL, 1950, 335).
Simone Weil era uma mulher de grande estatura e muito vivaz, porém com
saúde frágil. Tinha problemas crônicos de respiração e era acometida frequentemente
por terríveis dores de cabeça. Depois de lecionar numa escola secundária para moças
em Le Puy, decide trabalhar como operária. O calor do forno era quase insuportável, o
corpo quase não suportava o peso das peças, as mãos frágeis machucavam ora pelo
calor, ora pela rudeza do metal. Depois de trabalhar um ano na fábrica da Renault
como operária, afirma sentir a marca da escravidão para sempre em seu corpo. Sentia-
se como os escravos que eram marcados pelos romanos a ferro e fogo (WEIL 1952,
36).
2
Leon Trotsky foi um intelectual marxista e revolucionário bolchevique. Exilado Russo, reagiu diante de um artigo
intitulado “Perspectives. Allons-nous vers la révolution prolétarienne?” em que manifesta sua postura pessimista
sobre o poder de uma classe sobre a outra. Trotsky tachou o artigo de “fórmula de antigo liberalismo revigorado com
uma exaltação anarquista barata”. SW convenceu seus pais a receberem L. Trotsky em sua casa para que pudesse
conversar com ele. E assim aconteceu. O diálogo versou sobre a Rússia, se era ou não um Estado operário, foi
subindo de tom, até o ponto em que Trotsky gritou em diversas ocasiões. Depois da reunião com seus companheiros,
o Russo declara aos pais de SW que eles poderiam dizer que ali se constituiu a Quarta Internacional. Verificamos a
coragem e a ousadia de Simone. Contudo são princípios de uma jovem que conhece a realidade e foi afectada por
ela. OC II, vol I. p. 405. Nota 177 bis. Artigo “Perspectives. Allons-nous vers la révolution prolétarienne?”, p. 260-
281. WEIL, Simone. La gravedad y la gracia, trad., intr. e notas de Carlos Ortega, Madrid, Ed. Trotta, 1994, p. 21.
(tradução livre).
3
Biografia base a partir da obra de sua amiga: PÉTREMENT, Simone. La Vie de Simone Weil. Paris: Fayard, 1973,
p. 18 (tradução livre).
Por essa expressão da captura do ser humano por Deus, Simone Weil reflete a
surpresa de sua experiência sobrenatural que, ao mesmo tempo, excede, e situa fora
dos limites do racional e a conecta fortemente com o mistério do Cristo. Ela jamais
duvidou desse imprevisível contato com o Cristo, nem de como foi decisivo esse
momento sobre ela. Posteriormente descreve o que sentiu nessa súbita descida de
4
Ele relata em seu livro essa experiência de Simone Weil. PERRIN, Joseph-Marie. Mon dialogue avec Simone Weil.
Bruyères-le-Châtel: Nouvelle Cité, 2009, p. 53-6.
5
O poema está em anexo.
Segundo Maria Clara Bingemer, SW “vive assim sua primeira experiência mística
cristã consciente, sente-se tomada por Cristo.[...]. Finalmente, Simone conhece o amor,
percebe-se profundamente querida por um suave e forte amor” (BINGEMER, 2011, 42).
Mesmo assim, ela afirma para seu amigo poeta, Joë Bousquet, que com essa
experiência de dor física nunca deixou de amar. “Assim revela que na recitação do
poema Love de George Herbert, ela teve o sentimento de que o Cristo estaria presente,
‘presença mais pessoal, mais certa, mais real que de um ser humano” (LUSSY, 1999,
74): “inacessível aos sentidos e a imaginação, análoga ao amor que transparece
através do mais terno sorriso de um ser amado” (LUSSY, 1999, 795). Ela vê no sorriso
do rosto amado o amor. E Cristo e Deus se mesclam em sua frente 6. E se pode agir:
Dizer eis-me aqui: “somente atendendo a dimensão ética, social e política da existência
estará o místico em condições de realizar uma experiência mística autêntica”
(VELASCO, 1999, 465). Assim foi a vida desta jovem filósofa. Ela desejou sempre estar
6
Cf.: WEIL, Simone. Attente de Dieu, 37 e 38. WEIL, Simone. Pensées sans ordre concernant l’amour de Dieu.
Paris: Gallimard, 1961, p. 80
Magdalena Carmem Frida Khalo8 gostava de dizer que nasceu em 1910. Filha da
revolução mexicana liderada por Emiliano Zapata e Francisco ‘Pancho’Villa (JAMIS,
1992, 20). Entretanto, nasceu de fato no dia 6 de julho de 1907. Aos seis anos foi vítima
de poliomielite, que deixou sua perna direita deformada. Passou nove meses acamada.
Ainda criança experimenta a dor terrível que iria acompanhá-la por toda a sua vida. Em
1922, Frida ingressou na escola normal. Era uma jovem irreverente de caráter rebelde e
diferenciava-se muito no seu modo de vestir (DEIFELT; MUSSKOPF; STRÖHER, 2006,
18).
Em 1925, aos 18 anos Frida sofre um terrível acidente. O ônibus no qual ela
estava se chocou com um bonde. Esse fato marcou para sempre o corpo e a história
desta jovem. Uma barra de ferro atravessou seu quadril esquerdo, saiu por sua vagina.
Sua perna direita teve onze fraturas, o pé direito amassado, ombro, coluna e pélvis
ficaram lesionados, duas costelas e a bacia fraturaram (JAMIS, 1992, 78). Os médicos
não acreditaram que ela sobreviveria. Frida sentia terríveis dores. Depois de um mês de
hospital retornou para casa, seus estudos foram interrompidos e viveu dura
convalescença. A partir desse acidente passou a usar coletes ortopédicos9 por quase
toda a sua vida e ainda ficou, em alguns momentos, refém de uma cadeira de rodas.
Foi o tempo entre a dor, a imobilidade que lhe presenteou com o início da
pintura. Sua mãe teve a ideia de colocar um espelho no dossel da cama e providenciar
materiais de pintura. No caso de Frida, “a pintura não nasce, portanto, do que do que se
7
Expressão de André Breton.
8
Por muito tempo esteve à sombra de Diego Riviera, o importante muralista mexicano. Embora tenha sido
reconhecida em vida, seja emblemática no México, tenha exposto em Paris em 1953, em Nova York em 1939 e uma
grande exposição no México em 1953, é muito mais conhecida no Brasil e no mundo por sua vida conturbada que
por sua obra. Em 2010 uma grande retrospectiva de sua obra aconteceu em Berlim e Viena. Felizmente hoje começa
a ser mais conhecida por sua obra. É a sua pintura que a torna especial. Recentemente a sua exposição ganhou os
salões pelo mundo com a artista mais original de toda a tradição mexicana. Cf.: JUSTINO, Maria. Mulheres na arte.
Que diferença isso faz? Curitiba: Museu Oscar Niemayer, 2013, p. 22-3.
9
Para conhecer mais detalhes sobre este acidente na vida de Frida Kahlo bem como a utilização e tortura para ela dos
coletes consultar: JAMIS, Rauda. Frida Kahlo. São Paulo: Fontes, 1992, p. 73-80.
Os anos entre 1929 e 1935 foram difícieis para a jovem mexicana. Casou-se com
um famoso muralista da época, Diego Riviera, conhecido por suas pinturas políticas,
engajamento no Partido Comunista e seus inúmeros casos amorosos. Mudou-se para
os Estados Unidos, sofreu dois abortos e Diego a traiu duas vezes, uma delas com sua
própria irmã10. E “novamente a arte foi seu caminho para a sanidade, à medida que ela
pintava quadros de embriões e de seu próprio corpo, estirado na cama, encharcado em
sangue (conforme sua obra Hospital Henry Ford, 1932” (DEIFELT; MUSSKOPF;
STRÖHER, 2006, 24). A contragosto de Diego retornaram para o México. Contudo sua
saúde se deteriorou e sofreu ainda um terceiro aborto. Devido à dor intensa que sentia
no pé direito, os cinco dedos foram amputados.
Em 1935 Frida sintetizou, em uma única obra, a dor física existencial que a
martirizava: Unos quantos piquetitos! (em anexo). A obra retrata um assassinato a partir
de uma notícia de jornal sobre uma mulher assassinada por ciúme, servindo de tema
para este trabalho da artista. O assassino justificava seus atos perante o juiz, dizendo
que foram apenas uns quantos golpes. O ato violento é uma referência simbólica à
situação pessoal de Frida. Nesse momento estava com sua alma e corpo dilacerados.
Seu marido envolvera-se com sua irmã Cristina (KETTENMANN, 1994, 39).
10
Em 1937 Leon Trotsky e sua esposa chegaram ao México para ser exilados, porque foram expulsos da Noruega
por pressão de Mocovo. E foram recebidos na casa de Frida e aí ficaram até 1939. Os dois passaram muitas horas
juntos e assim nasceu um breve romance.
A partir dessa situação conturbada na vida de Frida, esta obra pode ser vista
como uma ilustração do estado psicológico da artista. Os ferimentos causados pela
violência brutal masculina parecem simbolizar os seus próprios danos emocionais
(KETTENMANN, 1994, 39). Essa pintura pode retratar ainda a vontade de seu
automutilar, de matar-se para algumas coisas e nascer para outras. Sentia-se mutilada
em sua dor, em sua tentativa de retomar sua vida, mas, marcada física e moralmente,
pela dor e pela traição, sentia-se esgotada.
“A pintura de Frida é um jogo entre o corpo mutilado, golpeado pela vida, sem
esperanças, e a mente infinita em que todos os monstros são libertados. Trabalhos
como A coluna quebrada (1944) e Sem esperança (1945) testemunham esses
pesadelos. Mas não é uma mulher que se volta aos lamentos. Enfrenta a adversidade”
(JUSTINO, 2013, 32). De 1944 a 1954, Frida Kahlo chegou a usar 28 coletes
ortopédicos diferentes. A sua obra mais famosa dessa época é A coluna partida, 1944.
E em 1950 ela passou por sete cirurgias por causa de sua coluna. Verificamos aqui os
sinais possíveis para uma experiência profunda do mistério.
É extraordinário o caso de Frida, pois de onde exala tanto dor ela extrai sua
energia para sobreviver, viver e, a partir de seu cotidiano, de sua existência, torna-se
uma grande pintora... Uma mulher forte em um corpo frágil. Sua arte é um diálogo com
a vida, com o ser; é ontológica, metafísica e paradoxal. Metafisica aqui entendida na
larga compreensão de Merleau-Ponty como a experiência plena dos paradoxos
(MERLEAU-PONTY, 1966, 166). Sendo assim Kahlo foi capaz de construir uma arte
profundamente intimista e universal. Seu passado é memória cruel que nunca a
A maior parte de sua vida é passada em hospitais. Assim nos ensina que a arte é
uma forma de superar a dor e a morte. Mediante a arte podemos externar a dor. Mais
tarde confessou: “meu corpo é um marasmo. E eu não posso mais escapar dele. [...] sei
que vamos nos aniquilar um ao outro, a luta, portanto não terá vencedor” (JAMIS, 1987,
p, 1). Apesar desta confissão, foi com este corpo que lutaria até o fim e triunfaria em
sua última exposição. Mesmo na cama, não deixou de comparecer ao evento. É com
ele que respira, por meio dele que dialoga com o mundo, é com ele que pinta e dele
que fala.
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O corpo aparece na obra de Frida como violentado pela dor, machucado, ferido, dilacerado. É como se
coagulasse o sofrimento na tela. Em suas obras não aparece apenas o rosto, é todo o seu corpo
retratado e invadido, a dor física e moral, tudo é exposto. Rins, coração, útero, coluna vertebral,
pensamento, tudo é devassado. O corpo é a zona de cruzamento entre arte e mundo (JUSTINO, 2013,
40).
A trajetória dessas duas mulheres de expor a dor, seja em seus escritos, seja
através em suas pinturas, de visibilizar o corpo em dor torna possível e político o mundo
privado. Os sussurros de dor expostos nos apresentam um caminho de resgate da
dignidade em meio à dor. Mais: pode-se viver e avançar diante da dor. As mulheres que
vivem em dor na condição das violências sexuais, morais, psicológicas que se ainda
encontram presente em muitos espaços e cotidianos, podem aprender com Frida a
produzir uma visibilidade para sua dor por meio da pintura. As pessoas que se
encontram em dor por problemas físicos, morais, psicológicos, opressão, podem
aprender com Simone a extrair desse momento a alegria de um encontro por meio da
poesia. Não quero dizer com isso que todas as pessoas devem pegar pincel e tinta e
sair a pintar seus corpos. Muito menos buscar versos e sair recitando. Dizemos apenas
que a criação e a transcendência são fundamentais para o salto, de ser para si um
pouco mais humana. E mesmo assim e apesar de tudo viver em dor, porém expressá-la
por alguma linguagem. Então, neste século XXI, o componente suscetível para
promover a solidariedade pela dor poderia ser a possibilidade de as pessoas serem
mais humanas, fazendo o diferente ser normal.
Foi na recitação do poema Love que Simone Weil pode refugiar-se de sua dor.
Pode ainda fazer a experiência de encontro. A grande experiência mística. Pois ela
sente-se profundamente amada por Deus. Foi no quadro Unos cuantos piquetitos que
DEIFELT, W.; MUSSKOPF, A.; STRÖHER, M. (ORGS) À flor da pele. Ensaios sobre
gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
JUSTINO, Maria. Mulheres na arte. Que diferença isso faz? Curitiba: Museu Oscar
Niemayer, 2013.
VELASCO, Juan Martin. El fenômeno místico: Estúdio comparado. Madri: Trotta, 1999.
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LOVE
O amor me acolheu, porém minha alma se afastou,
Pleno de poeira e de pecado.
Mas atento ao amor, ao observar
Minha entrada vacilante,
Aproximou-se de mim, perguntando com docura o que necessitava.
Um convidado - respondi – digno de estar aquí.
O Amor disse: Serás tu.
Eu, cruel e ingrata? Ah, meu Deus, não posso se quer olhar-te.
O Amor tomou minha mão e sorrindo disse:
Quem fez seus olhos senão eu?
É verdade, Senhor, mas eu o manchei, deixa que minha vergonha vá onde ela merece.
Acaso nao sabe – disse o Amor – quem carregou a culpa?
Meu querido, então o servirei.
Só deve sentar-te – disse o Amor – e provar minha carne.
Então sentei e comi.
Disponível em:
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Simone Weil escreveu sobre sua experiência ao ler este poema de George Herbert em carta a Joë Bousquet e ao Pe.
Perrin. O poema pode ser encontrado em LUSSY, Florence. Simone Weil. Oeuvres. Paris: Gallimard, 1999, p.799-
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