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POLÍTICA EDUCACIONAL E REPRODUÇÃO DO RACISMO NO COTIDIANO ESCOLAR1

Maria Valéria Barbosa Veríssimo


Júlio Costa
Cláudio dos Reis
Neide Filgueira Marino
Camila de Lima Vedovello

1. INTRODUÇÃO
O trabalho apresentado é fruto de uma pesquisa desenvolvida pelo Núcleo de
Ensino de Marília, por um grupo de pesquisadores (professores e alunos) da Faculdade de
Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, Campus de Marília.

O Núcleo de Ensino é um espaço interdisciplinar da UNESP que articula as


atividades de pesquisa, ensino e extensão na Rede Pública de Ensino do Estado de São
Paulo. Na Faculdade de Filosofia e Ciências uma grande equipe de trabalho vem
implementando diversos projetos baseados nas necessidades apresentadas pelas escolas e a
disponibilidade da equipe de trabalho.

Esses projetos têm proporcionado um avanço significativo na compreensão dos


problemas educacionais decorrentes tanto das práticas pedagógicas, quanto pela
implementação das políticas públicas. A compreensão dessa realidade nos permite abordar
problemáticas que consigam apreender tanto questões mais específicas como gerais, ao
mesmo tempo em que proporciona vislumbrar o encaminhamento de possíveis saídas na
superação dos problemas apresentados no dia-a-dia. Todavia, quanto se apreende o espaço
de construção do processo de conhecimento, denominado escola, percebe-se a força que têm
os desdobramentos da política educacional. Essa é uma dimensão que nem sempre é
valorizado como ponto constitutivo desse universo.

Nesse sentido, vê-se que a política implementada pela Secretaria Estadual de


Educação, nos últimos oito anos, modificou muito a escola, pois teve como uma de suas metas
prioritárias a ampliação quantitativa de crianças com a possibilidade concreta de permanência
em virtude da progressão continuada.

No entanto, a escola quantitativamente ampliada permanece excludente. Ao


desenvolver um ensino aligeirado e em condições freqüentemente precárias,
dificultou ainda mais a inserção social das crianças e dos jovens que integram
os segmentos economicamente desfavorecidos, acentuando a exclusão.
Parece que, a partir dos anos noventa, está se reeditando essa história:
ampliar os índices de crianças e jovens que concluam a escolarização. Será
isso sinônimo de inclusão? Ou um refinamento da exclusão? (FUSARI, 2002,
p.4).

A questão central da pesquisa foi perceber se a realidade educacional reproduz


ou não o racismo, e como a prática pedagógica e apolítica educacional, presentes no processo

1. Instituição Financiadora: PROGRAD/FUNDUNESP

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de ensino e aprendizagem, contribuiu para a manutenção ou superação dos mecanismos
racistas. Tomamos como ponto de partida as relações sociais e pedagógicas de uma escola
estadual, localizada na cidade de Marília.

O município de Marília está localizado a oeste do estado de São Paulo; possui


cerca de 200 mil habitantes e uma rede de ensino fundamental bastante significativa no que
tange ao atendimento às crianças. Essa rede é formada por escolas estaduais, municipais e
particulares. Desde a municipalização, a prefeitura optou por estabelecer uma rede física
própria, e vem, paulatinamente, aumentando a clientela atendida nessa modalidade de ensino.

A escola escolhida para ser analisada está localizada em um distrito distante de


Marília cerca de 15 quilômetros, e que possui uma população economicamente pobre. Uma
parcela significativa dessa população está envolvida com atividade agro-pecuária e reside na
zona rural, sendo que os alunos da escola têm origem nesse ambiente.

Dentro desse contexto, os alunos avaliados pelo SARESP, de 2001, tiveram um


desempenho ruim conforme as habilidades exigidas por essa forma avaliativa. Assim,
constituíram-se turmas de aceleração, recuperação de ciclo e classe multisseriada. Dessas
crianças, 80% eram negras (pardas e pretas)2. Esse conjunto de questões explicita elementos
pertinentes para análise e revela que a pobreza e o racismo estabelecem um círculo vicioso.

As análises preliminares permitem compreender que a escola é acima de tudo


um elemento de reprodução do racismo e não de superação, mesmo utilizando-se de
mecanismos mais sutis, continuam submetendo as crianças negras à difícil tarefa de superar a
discriminação de forma individualizada. A compreensão da reprodução do racismo na
sociedade é uma luz para desvendar a sua reprodução no cotidiano escolar.

2. RACISMO E REALIDADE BRASILEIRA


Outras pesquisas têm sido desenvolvidas na busca de compreender se o
racismo é um fator que interfere no desempenho dos alunos ou não. Porém, esta não tem sido
uma temática privilegiada de estudo, por isso julgamos ser de extrema importância o seu
desenvolvimento; conhecer a realidade das escolas no que tange às relações entre negros e
brancos, permite a reflexão e compreensão da realidade educacional brasileira em uma
dimensão mais ampla.

As observações realizadas na escola constataram um grande despreparo da


comunidade escolar para enfrentar o racismo. Isso se revelou na postura dos adultos e das
crianças, pois eles enxergam o racismo como fenômeno natural das relações sociais. Essa
naturalização não permite aferir as feridas sociais dessa reprodução. Os profissionais da
educação não conseguem elaborar um conjunto de conceitos que permita às crianças

2
Denominaremos de negra a parcela da população considerada preta e parda.

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dialogarem com o senso comum diferenciadamente, inclusive na percepção de serem, muitas
vezes, vítimas do racismo, e em outras, os próprios algozes.

As crianças negras têm sofrido sistematicamente uma opressão racial muito


silenciosa, mas as conseqüências desse silêncio se expressam no mau aproveitamento, na
dificuldade de superar a desigualdade, de resgatar a auto-estima; enfim, o racismo se revela
um obstáculo no processo de ensino e aprendizagem.

Percebeu-se que nas salas de aceleração, recuperação de ciclo e multisseriada


a grande maioria das crianças é negra, e com muita dificuldade de se apropriar do conjunto de
códigos da sociedade letrada. Elas são crianças que introjetaram o elemento da incapacidade
como uma barreira intransponível e natural dos negros e pobres. Essa constatação, já
registrada em pesquisas empíricas, demonstra ser necessária a análise das relações
estabelecidas nas escolas a partir de um prisma muito mais complexo e amplo.

Portanto, se queremos aprender a realidade educacional desse prisma, temos


de adequar a discussão específica à realidade geral de reprodução do racismo na sociedade
brasileira. Um país formado por grande contingente populacional de negros tem na discussão e
superação do racismo um dos seus tabus. No entanto, é nos índices socioeconômicos que se
registram a desigualdade racial, que muitas vezes é velada, mas presente no cotidiano dos
brasileiros e se revela nos mais estreitos espaços da convivência social, política e econômica.

O imaginário coletivo, de democracia racial, presente nesses espaços sociais,


não consegue ser desmascarado, nem mesmo dentro da escola, onde as pesquisas têm
constatado uma reprodução, com muita freqüência, das estruturas do racismo. O modelo de
sociedade brasileira vem favorecendo a construção de uma forma muito peculiar de olhar as
desigualdades, tornando-as elementos intrínsecos e naturais das condições de vida.

Os últimos debates sobre a questão racial têm sido pontuados por questões
importantes, tendo destaque o melhor entendimento das políticas segregacionistas em curso
na sociedade contemporânea brasileiro. Alguns autores chegam a classificar esta nova fase de
neo-racismo, em que está sendo possível rearticular sofisticadamente, e com a marca da
democracia, as bases da exclusão e da dominação.

A sofisticação pode ser percebida pela readequação de dois elementos: “(1) a


manutenção dos privilégios dos segmentos brancos com uma profunda exclusão dos afro-
brasileiros,3 fundada na crença da inexistência do racismo e da desigualdade racial e (2) a
consolidação externa da imagem de um paraíso racial democrático e estável.” (ALBERTO,

3
Os termos afro-brasileiro e afro-descendente têm sido utilizados pelos diferentes intelectuais brasileiros e
estrangeiros para designar a população brasileira de origem racial negra. As citações colocadas nos textos ficaram
com os termos originalmente escritos pelos pesquisadores, porém estou ainda utilizando o termo negro para
designar o mesmo conjunto da população. Entendo não ser o momento oportuno para substituir o termo, tendo em
vista a construção político-ideológica que envolveu sua elaboração e a falta de discussão que tem envolvido essa
substituição.

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2000, p.123). Estes dois elementos, a cada tempo histórico, têm sido revisitados e
reorganizados na consolidação e manutenção dos mecanismos de dominação.

Porém, o desenvolvimento global da sociedade capitalista tem interposto ao


racismo dois grandes desafios; ao mesmo tempo em que sofística seu controle vem,
contraditoriamente, desorganizando este mesmo controle, a partir do aumento dos conflitos em
nível local.

O racismo, como fenômeno social, passa por adaptações teóricas e políticas a


fim de cumprir a sua função de instrumento de dominação e exclusão.
Atualmente, pode-se afirmar que há o ascenso de um ‘neo-racismo’, que
conserva as bases teóricas da supremacia branca formulada por teorias dos
séculos XVII e XVIII, recriando-as em discurso e estratégias de exclusão
étnico-racial na perspectiva de adaptá-lo às demandas de uma sociedade
globalizada como a atual. Este ‘neo-racismo’ se expressa no recrudescimento
das discriminações contra os estrangeiros na França, Alemanha, Espanha, na
reorganização dos neonazistas na Europa na década de 1990, nas lutas de
povos por reconhecimento étnico e autonomia cultural e por território:
palestinos, curdos, dos tuaregs na África, o povo do Timor Leste, os chiapas no
México, os remanescentes de quilombos e índios no Brasil. O neo-racismo está
expresso nos protestos dos negros americanos em Los Angeles de 1994, no
crescimento das discriminações contra os latinos nos EUA, na reorganização
da direita branca sul-africana, na exclusão dos afro-brasileiros da igualdade de
oportunidade à educação, à saúde, ao emprego e na reorganização produtiva
mundial, (na qual os desempregados, no caso do Brasil, a maioria não-branca -
pretos e pardos -, passam a ser estrangeiros em seu próprio país). (ALBERTO,
2000, p.124).

Na realidade brasileira, percebe-se que os indicadores sociais apresentados pelo


IBGE, do final da década passada demonstram uma certa eficiência na manutenção da
bipolarização e hierarquização entre branco/negro. Podemos, assim, constatar que, pelo
menos, até agora, o “neo-racismo” conseguiu manter os controles de dominação e exclusão.

3. EXCLUSÃO E ESCOLARIDADE
O debate em torno da inclusão e exclusão na escola pública tem oportunizado
inserir como questão central a possibilidade de ultrapassar os limites da defesa da escola
pública para todos, como bandeira e letra morta da lei, que projetam direitos sociais de
cidadania, para indagar o papel e os limites do processo pedagógico de ensino e
aprendizagem.

No Brasil, este debate, carregado de ideologia, tem aflorado como disputa de


projetos políticos, mas tem possibilitado a apresentação de propostas educacionais
preocupadas com a superação do fracasso escolar. Esta preocupação já estava presente em
1918, quando Dirigentes do Ensino do Estado de São Paulo, apresentavam como solução para
o fim da repetência “a promoção em massa” devido aos problemas do fracasso escolar aliado à
falta de vagas para todos.

Os dirigentes Oscar Thompson e Sampaio Dória enfatizavam que era melhor


“dar um pouco de educação a muitos do que reservar muita educação a poucos”. Naquele

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momento, em que a sociedade brasileira buscava constituir-se como sociedade capitalista e
republicana, vislumbrar um patamar de desenvolvimento educacional para um espectro maior
da sociedade, saindo do âmbito da elite, se colocava como condição necessária e fundamental
de construção da nova ordem econômica e social.

De outra forma, essa proposta não teve o eco necessário para implementar
grandes mudanças; no entanto, o problema da repetência persistiu e, na década de 1950,
surge, pela primeira vez, a expressão promoção automática, como alternativa às denúncias dos
educadores que comprovavam que a repetência não exercia nenhum aspecto positivo nos
educandos, resultando, muitas vezes, em abandono da escola e expulsão pura e simples do
processo formal de aprendizado.

O debate tinha como pano de fundo a constatação de que não bastava apenas
eliminar a repetência; era necessário, também, implementar uma série de mudanças na
organização escolar, na concepção de avaliação, no material didático, e, principalmente, na
concepção e papel da escola no processo formativo dos alunos.

Dante Moreira Leite, professor da USP na área de psicologia escolar, afirmava “a


introdução da promoção automática implica uma transformação radical da escola, na medida
em que se transformam os seus objetivos básicos, vez que professores e alunos passarão a
viver em torno de outros valores e aspirações” (LEITE, 19 p.29).

Do ponto de vista da legislação, essas discussões se apresentaram desde a Lei


nº 4.024, de 1961, quando, no artigo 104, era prevista a possibilidade de “organização de
cursos ou escolas experimentais, com currículos, métodos e períodos escolares próprios”.

No que tange às experiências concretas, em 1968, no Estado de São Paulo, foi


instituído o primário de quatro anos, subdividido em dois níveis. O primeiro denominado de
Nível I, correspondia às duas primeiras séries e, o Nível II equivalente aos terceiro e quarto
anos. Os alunos eram retidos apenas nos últimos anos de cada nível. Várias outras
experiências foram implementadas, mas como as mudanças não ocorreram de forma ampla,
quase sempre as propostas fracassaram e foram substituídas pelo modelo tradicional de
seriação. Um outro aspecto a ser considerado é a limitação imposta pelo período da gestão
administrativa de um governo e a descontinuidade das propostas identificadas com outra
perspectiva política.

Essa situação foi vivenciada na administração municipal, no período de 1989-


1992, na cidade de São Paulo, quando foi possível introduzir mudanças significativas na
organização escolar e na concepção pedagógica em que a progressão continuada se
encaixava como peça de uma outra forma de conceber o processo de ensino aprendizagem.
Infelizmente, todas as mudanças implementadas tiveram a efêmera existência de apenas uma
administração.

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Nos anos 80, em alguns estados, como Minas Gerais, São Paulo e Paraná,
foram instituídos o Ciclo Básico de Alfabetização com o objetivo de diminuir os índices de
reprovação das séries iniciais do ensino fundamental e assegurar a permanência das crianças
na escola. Essa iniciativa eliminava a avaliação para efeito de aprovação da 1ª para a 2ª série
e previa uma maior flexibilização no conteúdo ministrado para os alunos na fase da
alfabetização em consonância com o grau de desenvolvimento de cada turma.

Buscava com isso proporcionar um ensino adequado a clientelas grandemente


diversificadas do ponto de vista social, cultural e econômico. Ela questionava a
segmentação artificial do currículo em séries, tratadas de modo estanque, e
procurava assegurar a progressão dos alunos que, tendo avançado no
processo de alfabetização ao longo da 1ª série, eram, até então, obrigados a
retornar à estaca zero, com a repetência.
O ciclo básico não previa uma redução dos conteúdos trabalhados nos dois
primeiros anos de escolarização. Possibilitava uma maior flexibilização na
organização curricular quanto ao agrupamento dos alunos, à revisão dos
conteúdos programáticos e à utilização de estratégias de ensino-aprendizagem
mais condizentes com a heterogeneidade da clientela, bem como quanto à
adoção de critérios de avaliação. A proposta do ciclo básico por vezes
acompanhada de atendimento paralelo – em grupos menores – dos alunos
com maiores dificuldades, de incentivo à permanência dos professores mais
experientes nas séries iniciais e de suprimento de material pedagógico
específico, muito embora tais medidas nem sempre tivessem perdurado nas
redes de ensino (BARRETO, 1995 p. 15).

Para além dessas iniciativas, durante os anos 1990, outras foram sendo
implantadas e se destacam: o Projeto da Escola Plural desenvolvido em Belo Horizonte, em
1994, com a organização dos ciclos adequados a estágios de desenvolvimento psicossocial
das crianças e adolescentes, em três etapas de aprendizagem e de forma contínua. A primeira
fase abrangia a etapa da infância – crianças na faixa etária de seis a oito anos. A segunda, na
fase da pré-adolescência entre nove e onze anos. A última fase correspondia à adolescência
na faixa etária de 12 a 14 anos.

No Rio de Janeiro foi implementada, no período de 1993 a 1995, uma


reorganização curricular denominada de Bloco Único, inserida na proposta de Multieducação.
Era prevista também uma etapa única para o ensino fundamental de cinco anos ininterruptos,
abrangendo dos seis aos 12 anos. Nessa proposta, a alfabetização ocorria com as crianças de
seis anos, acrescida das quatro séries iniciais compondo um conjunto com progressão da 1ª a
5ª série. Posteriormente, os alunos concluíam a formação do Ensino Fundamental da 6ª a 9ª
série.

Atualmente, a LDB, ao tratar dos ciclos, inclui nos seus dispositivos diferentes
possibilidades de organização da educação básica podendo ser em ciclos ou outras formas
alternativas. “A educação poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos,
alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na
competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização sempre que o
interesse do processo de aprendizagem assim recomendar” (Art. 23, da Lei 9.394/96).

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Considerando as várias opções apresentadas pela legislação, mesmo assim
ainda é possível constatar que a grande maioria dos sistemas de ensino está ancorada na
forma tradicional de seriação. Todavia, mais recentemente, sob a égide da concepção
neoliberal, foi sendo reintroduzida a necessidade de reter as crianças no interior das escolas.
Porém, nessa nova conjuntura, a proposta assumiu um caráter, prioritariamente, quantitativista,
sendo que o fundamental é equacionar economia de investimento em políticas públicas com
aumento dos números de matrículas na educação básica. O próprio Conselho Estadual de
Educação – CEE considerava a retenção dos alunos um grande desperdício de recurso
financeiro.

A repetência constitui um pernicioso “ralo” por onde são desperdiçados


preciosos recursos financeiros da educação. O custo correspondente a um ano
de escolaridade de um aluno reprovado é simplesmente dinheiro perdido.
Desperdício financeiro que, sem dúvida, afeta os investimentos em educação,
seja na base física (prédios, salas de aula e equipamentos), seja,
principalmente, nos salários dos trabalhadores do ensino. Sem falar do custo
material e psicológico por parte do próprio aluno e de sua família. (Indicação
CEE/SP nº 08/97).

4. POLÍTICA EDUCACIONAL NO ESTADO DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 1990

No estado de São Paulo, através da Secretaria Estadual de Educação, a


experiência de progressão continuada e a de organização curricular em ciclos se articulam a
um conjunto mais amplo de reorganização da Rede Estadual de Ensino. Em Comunicado SE,
de 22.03.1995, foram apresentadas as diretrizes educacionais para a Rede no período de
janeiro de 95 a dezembro de 98. Nesse documento já era possível antever o conjunto de
reformas que seria imposto à educação pública estadual. Cabe ressaltar que as diretrizes não
embasaram apenas a primeira gestão administrativa do governo Covas/Alckmin, mas também
o segundo período, possibilitando assegurar continuidade e solidez ao conjunto de reformas
implementado.

Nesse comunicado, é elaborada uma análise minuciosa da situação educacional


no estado com a qual se justificaram todas as medidas. Um novo papel para o Estado é
delineado, visto, a partir de então, como articulador e integrador de um projeto de educação
para São Paulo, deixando de ser mero gestor de uma máquina administrativa gigantesca e
inoperante. “À Secretaria da Educação cabe, nesse processo, um papel de liderança: deverá
formular uma política de educação que integre os mais diferentes aspectos aí envolvidos,
desde os recursos humanos, físicos e materiais, até o estabelecimento de parcerias profícuas
para o Estado, em sua função de formar de maneira adequada a geração de amanhã” (SEE,
1995 p. 298).

No bojo dessa mesma discussão é possível, ainda, perceber que a repetência se


torna pedra angular na superação da ineficácia do sistema.

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Os índices de desempenho do sistema mostram claramente o quanto ele é
ineficaz. Em 1992, no ensino fundamental e médio, as perdas por evasão e
repetência alcançaram 1.476.000 alunos, o que representa cerca de 25% do
total de alunos matriculados na rede. Se lembrarmos que cada aluno custa em
média US$ 220 para o Estado, o número acima representa um desperdício da
ordem de US$ 324.720.000.
Por detrás da repetência e mais grave do que o desperdício material de
recursos advindos do trabalho duro da população, está a desilusão de milhares
de famílias que valorizam uma escola que expulsa seus filhos, a destruição do
sentimento de competência de um sem número de crianças e adolescentes, a
formação de gerações e gerações que incorporam, com sofrimento e sem
necessidade, a certeza de que são incompetentes. Este é o preço que
pagamos pela ineficácia do ensino: deixamos de formar, para este Estado, uma
população bem informada e apta intelectualmente a analisar criticamente sua
situação de vida e buscar soluções para seus problemas.
Mas a ineficiência do sistema não se manifesta apenas nas elevadas taxas de
repetência e evasão. Há de se considerar, ainda, a precária qualidade do
ensino recebido por aqueles que conseguem permanecer no sistema de ensino
público (SEE, 1995, p. 301).

Após essas considerações, foram apresentadas duas diretrizes complementares


e fundamentais para nortear o novo papel do Estado: reforma e racionalização da estrutura
administrativa e mudanças nos padrões de gestão. Na reforma e racionalização da estrutura
administrativa se objetivava a instituição de um sistema eficaz de informatização dos dados
educacionais e a desconcentração e descentralização de recursos e competências. Todo esse
empenho era para construir na “Secretaria uma máquina leve, ágil, flexível, eficiente e
moderna, capaz de ser um instrumento eficaz na implantação de nova política educacional”
(SEE, 1995, p. 301).

Na mudança dos padrões de gestão almejava-se a “racionalização do fluxo


escolar, instituição de mecanismos de avaliação dos resultados, aumento da autonomia
administrativa, financeira e pedagógica das escolas”. Nesse sentido, era imprescindível que na
“proposta de abertura institucional de parcerias com outros setores, dentro e fora do Estado, a
flexibilidade para adotar soluções alternativas e diferenciadas para ampliar as oportunidades de
escolarização e melhorar a qualidade de aprendizagem, a capacidade de coordenar a iniciativa
e a atuação de diversos parceiros em torno de determinadas prioridades” torna-se uma
realidade (SEE, 1995, p. 301).

A partir de 1996, visando reorganizar toda a rede pública estadual de ensino, a


Secretaria implementou um conjunto de medidas, tais como: “enxugamento” do quadro
funcional e da estrutura física das escolas, fim da retenção de alunos, constituição de classes
de aceleração e salas ambientes, aumento do número de alunos por turma e separação das
escolas, de acordo com a faixa etária dos alunos. Assim, se instituiu a criação do regime de
progressão continuada no ensino fundamental, a criação dos ciclos e a flexibilização curricular.
Junto às grandes propostas foram articulados vários mecanismos para possibilitar o sucesso
das medidas. No âmbito dessa reorganização, teve-se, ainda, a implementação da

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municipalização do Ensino Fundamental de 1ª a 4ª séries, antes mesmo dainstitucionalização
do FUNDEF.

Além de todas essas medidas, a Secretaria estabeleceu diretrizes para a


organização curricular dos cursos de Ensino Fundamental e Médio da rede estadual de ensino,
instituindo-se novos percentuais na composição da grade curricular, para as disciplinas dos
períodos diurno e noturno, enquanto as diretrizes estabelecidas na LDB n. 9.394/96 não
estivessem regulamentadas. Reforçou-se a formação em Português e Matemática, reduzindo-
se a carga horária de Biologia, História, Geografia, Educação Artística e Educação Física, o
que, além de comprometer a formação geral dos alunos, gerou um clima de disputa entre os
professores, agravando a tensão existente nas escolas.

A Secretaria buscou, também, estabelecer mecanismos de superação da


repetência e evasão, resolução dos problemas de aprendizagem dos alunos e regularização da
defasagem idade/série.
A atual administração considera a perda, por repetência e evasão, de 30% de
todos os alunos que cada ano freqüentam a escola estadual de primeiro e
segundo graus, inexplicável do ponto de vista pedagógico, inaceitável do ponto
de vista social e improdutivo do ponto de vista econômico. Assim várias
estratégias serão estimuladas visando à diminuição dos índices de perda do
sistema. Estas estratégias estimularão, entre outras ações, a organização das
séries em ciclos, a composição das classes basicamente por faixas etárias e a
instrumentalização do professor da escola, para trabalhar com grupos
heterogêneos (SEE, 1995, p. 309).

Através da Deliberação do CEE nº 09/97, aprovada em 30.07.97, implementou-


se na rede estadual de ensino o regime de progressão continuada no ensino fundamental, com
duração de oito anos, podendo ser organizado em um ou mais ciclos.

No caso da opção por mais de um ciclo, devem ser adotadas providências para
que a transição de um ciclo para o outro se faça de forma a garantir a
progressão continuada. O regime de progressão continuada deve garantir a
avaliação de processo de ensino-aprendizagem, o qual deve ser objeto de
recuperação continuada e paralela a partir de resultados periódicos parciais e,
se necessário, no final de cada período letivo (CEE 09/97, p. 148).

Nessa Deliberação, os ciclos devem garantir a realização da avaliação institucional


interna e externa.
(...) os resultados do desempenho das escolas deverão ser amplamente
divulgados, de forma que tanto a equipe escolar como a comunidade usuária
seja capaz de identificar a posição da sua escola no conjunto das escolas de
sua Delegacia, de seu bairro e de seu município. Isso possibilitará à escola a
busca de forma diversificadas de atuação, com o objetivo de implementar a
melhoria dos resultados escolares. Por outro lado, permitirá também à
população acesso às informações, de modo que possa fiscalizar, participar e
cobrar a qualidade do serviço que lhe deve ser prestado (SEE, 1995, p.310).

Contraditoriamente, na concepção presente na progressão continuada, o


processo avaliativo, visto por esse viés, tem primado por conceber que bom desempenho é
sinônimo de bons resultados no rendimento escolar. É dentro dessa lógica que opera a

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avaliação externa, pois não se considera a aprendizagem enquanto processo e sim como
resultados terminais. Os exames realizados pelo SARESP operam dentro dessa lógica.

Nessa perspectiva, a Secretaria ainda criou um sistema de gratificação, através


de bônus, para premiar individualmente os educadores e coletivamente as escolas, instaurando
definitivamente, no sistema escolar, a competitividade como mola mestra do processo
avaliativo.

Foi previsto, ainda, na Deliberação CEE 9/97, um conjunto de medidas que


delineia a preocupação com o desenvolvimento educacional, porém a realidade vem trazendo
elementos que questionam se a implantação da progressão continuada não tem atendido muito
mais interesses políticos e econômicos que pedagógicos. Parte dos alunos que antes estava
fora da escola agora está dentro, no entanto, os professores continuam utilizando os mesmos
métodos no processo de ensino e aprendizagem sem levarem em consideração as mudanças
ocorridas no perfil desses novos alunos que, insistem em permanecer nas escolas. A
modificação necessária no aspecto pedagógico também não foi privilegiada, muito menos a
formação dos professores para que pudessem entender a aprendizagem como a incorporação
de novos conhecimentos, que articula a continuidade e o sentido no processo educativo,
deixando de concebê-lo apenas como o esforço de tirar notas e passar de ano.

O desafio é de superar a exclusão na progressão continuada e a organização


curricular em ciclos, antes consubstanciado na reprovação e conseqüente expulsão dos alunos
dos bancos escolares, e de que com tem-se sofisticado novas formas de exclusão que não
permitem ao aluno com problemas de aprendizagem apreender o conjunto de conhecimento
historicamente acumulado, mesmo permanecendo na escola e sendo promovido nos níveis
escolares. Portanto, se constituiu um processo de exclusão sutil e perverso, pois exclui a partir
da inclusão.

Nesse contexto, além dos problemas específicos de aprendizagem é possível


verificar que se encontra uma maioria de crianças negras que se deparam com uma nova
barreira a ser superada dentro de uma lógica de exclusão.

Na escola, então, não se tem colocado a tarefa de apresentar alternativas para


superar o racismo no interior do seu próprio espaço, muito pelo contrário, tem se tornado locus
privilegiado de sua reprodução. Por outro lado, é nesse cotidiano escolar que está a chave
para a construção de um outro patamar de percepção, onde o racismo não terá condições de
se reproduzir com tanta naturalidade: se a escola é o espaço de reprodução das relações
sociais também pode ser o de transformação, basta que se coloque a tarefa de pensar
criticamente a sociedade de forma a estabelecer uma mediação entre os homens e o mundo
que os cerca, na perspectiva da não conformidade.

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Os agentes educativos devem construir mecanismo de acesso e permanência
das crianças na escola, mas deve vir acompanhada da apropriação de um saber que deveria
permitir estabelecer um diálogo crítico com o senso comum, possibilitando estabelecer uma
mediação com a realidade social. Ter como meta a superação da incapacidade dessas
crianças de aprender a ler e compreender o mundo, com suas vicissitudes, torna-se um dos
grandes desafios da educação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando que a pesquisa pretendia apreender como se desdobra, no
interior da escola, as diretrizes de uma política educacional, com um grupo de crianças
consideradas incapazes pelos parâmetros estabelecidos pela própria escola, buscou-se
perceber e aprofundar a compreensão das diversas dimensões da política educacional
desenvolvida no estado de São Paulo na gestão Mário Covas/Alckmin, e o cotidiano das
relações sociais e raciais dentro de um determinado espaço educacional.

Almejava-se, enfim, conhecer e compreender o processo de exclusão de


crianças negras, que estão nesse momento incluídas, como resultado do mecanismo da
política de progressão continuada. Porém, as análises preliminares permitem aferir que a
escola tem desempenhado muito mais a função de elemento de reprodução do racismo e não
de superação, colocando às crianças negras a difícil tarefa de superar a discriminação de
forma individualizada.

Portanto, a escola entendida como espaço de mediação com a realidade social,


desempenha papel fundamental neste processo, pois o conhecimento desenvolvido na escola
poderá servir como desestruturador ou edificador das formas de reprodução do racismo e do
processo de exclusão.

Constata-se, também, que as estruturas de reprodução do racismo já não


operam com os mesmos elementos, tendo em vista as modificações que a sociedade brasileira
vem implementado nas últimas três décadas. Também, não se descarta que a combinação
entre mito da democracia e processo de assimilação - branqueamento - ainda está presente na
manutenção das estruturas racista, mas quais são as novas articulações, como foram
incorporadas novas estratégias, quais são as eficácias desses novos e velhos mecanismos em
tempo de implementação de políticas sociais compensatórias e neoliberais.

Outro grande questionamento que se coloca para o campo educacional é, se ele


pode ser considerado elemento importante na construção do racismo brasileiro. Neste sentido,
qual o papel e o lugar que ocupa o saber crítico produzido pela escola. Se é possível modificar
a compreensão das crianças sobre as relações raciais e de poder no Brasil, como, então,
superar a exclusão colocada pela progressão continuada? Pois não se pode deixar de

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considerar que a permanência das crianças na escola já significa um avanço, mas o salto
precisa ser, sobretudo qualitativo.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTO, L. As relações raciais no Brasil e as perspectivas para o próximo século. In:
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