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I Seminário de História: Caminhos da Historiografia Brasileira Contemporânea

Universidade Federal de Ouro Preto


http://www.ichs.ufop.br/seminariodehistoria

A Historiografia Contemporânea, do papel à era digital.

Lívia de Azevedo Silveira Rangel – UFV

- As Escolas Históricas do século XIX e XX e a noção de documento.

O século XIX trouxe para a historiografia uma mudança extremamente considerável, a


partir da substituição dos interesses que delimitavam o objeto e a análise do conteúdo
histórico. A nova corrente historicista inaugurava a importância da reflexão e do saber
humanos em detrimento das concepções teológicas e dos aspectos metafísicos. A teologia
jamais aplicou método algum para explicar ou corroborar suas afirmativas históricas, para
esta concepção bastava a revelação dos fatos. Já o Iluminismo do século XVIII considerava a
ciência como um conhecimento que deve ser submetido ao método empírico e isso apenas
cabia a ciência natural estando a história distante de tais elementos, por isso, segundo seus
critérios, a história somente poderia ser apreendida através de considerações extra-empíricas,
ou seja, através de uma inspiração sobrenatural1, sendo assim, este pensamento não
relacionava passado e presente, articulação essencial aos parâmetros históricos. A História
reduzia-se a um “repositório de informações para reflexões ulteriores”2, a preocupação em
analisar outras sociedades mantinha-se fechada aos interesses intelectuais de reafirmação de
sua superioridade racional.
Embora no século XIX tenha havido uma deslocação, uma reestruturação frente às
visões históricas, comparativamente ao século XX a noção de documento ainda era restrita.
Pensaremos, primeiramente, sobre às dimensões históricas oitocentistas.
A ruptura anunciada pelos eruditos do século XIX remeteu a categoria histórica
condições de análise mais condizentes ao plano científico, através de uma aplicação
metodológica ao objeto pertencente à disciplina. Os Românticos falaram de “cultura”,
valorizando o tempo histórico e os aspectos intrínsecos às sociedades. Alargaram o plano da
História que havia se estreitado com os iluministas, exaltando a criação, o pensamento
fantástico, relacionando homem e natureza. Negaram a superioridade da razão pela vontade
humana, desenvolvendo um método (empático) que ajudou a compreender uma sociedade

1
HADDOCK, B.A. Uma Introdução ao Pensamento Histórico. Trad. De Maria Branco. Lisboa:
Gradiva, 1989, p- 109.
2
Ibidem; p- 107.

1
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diferente da sua3. No entanto, a principal escola que se apoderou da idéia de um método foi a
escola positivista, também alcunhada escola metódica. Segundo os positivistas, os métodos da
ciência da natureza poderiam ser aplicados à interpretação histórica. Tal assimilação devia-se
a incessante busca pela verdade, a qual somente poderia ser alcançada caso houvesse uma
confluência entre a investigação documental, o poder da indução, da crença nos fatos
históricos e da narrativa, autorizados pelo método.
A objetividade almejada nas pesquisas históricas encetadas pelos positivistas foi sendo
lapidada a partir do desprezo pela história universal e pela elevação da história
particularizada, como única possibilidade de verdade, já que o universalismo era considerado
um ideal inatingível. Esta história dita factual acabou por exaltar os grandes acontecimentos e
as grandes personalidades. A historiografia positivista tinha um domínio sem precedentes
sobre pequenos problemas e, “uma fraqueza sem precedentes no tratamento dos grandes
problemas.”4
A noção de documento característico das visões tradicionalistas limita-se a eleger
fontes que possam oferecer maior credibilidade e segurança quanto ao seu conteúdo e
posteriormente na sua corroboração, essa seria a principal função da História, recolher dados
a partir de um grau hierarquizado de importância, seria o princípio da “história rankeana”. O
método de Ranke, historiador alemão, consiste em estabelecer critérios de conduta frente os
documentos. Para ele a fonte oficial, escrita, sempre deve se antepor a qualquer fonte e, caso
não se encontrem disponíveis documentos escritos deve-se então apelar e suportar outras
formas e outros objetos de pesquisa, sejam eles artefatos ou dados orais5. A metodologia de
Leopold Von Ranke foi, pela Nova história, superada. Insurgir contra esse método
representava negar a premissa de Ranke, sustentada sobre a égide da objetividade. Segundo
ele, "o objectivo da história é dar os acontecimentos do passado como eles na realidade se
passaram"6
O sentido progressista, o desejo de verdade, a ânsia pela exatidão, levaram os
metódicos a se posicionarem como meros observadores de suas próprias práticas. Suas fontes
históricas não passavam de objetos passíveis à apreensão sensível, empírica, como se a
complexidade documental pudesse ser denunciada a partir da aplicação de um método

3
Ibidem; p- 135.
4
COLLINGWOOD, R. G. A idéia de História. Trad. De Alberto Freire. Lisboa. Abril, 2001, p-149.
5
PRINS, Gwyn. “História oral”. In: Peter Burke (org.). A Escrita da história: novas perspectivas.
Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,1992.

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confiável e inabalável por qualquer eventualidade e, portanto, delimitado, restrito.


Conseqüentemente, os conceitos positivistas sobre História foram duramente criticados,
principalmente a partir de 1929, com o advento da Escola dos Annales. Membros da primeira
geração como Lucien Febvre e Marc Bloch procuraram distanciar-se da história basicamente
factual, narrativa, política, para agregar significado a outros campos de estudo, bem como a
economia, a psicologia coletiva e o social. Para solidificar uma História mais profunda e
universalizante tornava-se imprescindível à ampliação da noção de documento, assim
pretendia-se reformular a metodologia para que os fatos históricos não fossem tão somente
analisados imparcialmente como se fossem fatores isolados e imutáveis, mas sim fatores
suscetíveis a interpretações.
No Brasil, uma visão posteriormente denominada tradicionalista, inaugurava uma
nova fase historiográfica voltada para os estudos que partiam do ponto de vista cultural,
evitando a discussão racial ou de cunho apenas econômico ou apenas político. Gilberto Freyre
com sua obra Casa Grande & Senzala, conquistou lugar de destaque por ser pioneiro dessa
reestruturação temática e metodológica. Embora a análise de Freyre tenha inovado ao trazer à
tona a discussão sobre a formação do povo brasileiro, suas origens e mudanças (ou melhor,
suas continuidades), elevando a característica híbrida da sociedade colonial ao epicentro da
originalidade brasileira, ou seja, a herança cultural como sendo a maior contribuição frente ao
que delinearia, séculos mais tarde, a nacionalidade brasileira, houve em suas considerações
um caráter que superestimava a participação portuguesa, “exaltando a superioridade dos
portugueses como colonizadores”7. Mas o presente trabalho nos limita a enfatizar somente sua
colaboração histórica diante da ampliação documental, temática e metodológica.
A pesquisa ao universo do Brasil colonial por Freyre, introduziu na historiografia
nacional o uso de fontes consideradas heterodoxas, chamadas assim por não serem fontes
denominadas como oficias. Esse novo conjunto documental era composto por “anúncios de
jornais, os diários e a correspondência familiar, os escritos de viajantes estrangeiros, os livros
de receitas, as fotografias, as cantigas de roda e toda tradição oral”8, enfim, tudo aquilo que
fazia parte do cotidiano colonial entrou como recurso que deveria estar disponível para
compor um trabalho histórico.

6
AS CONCEPÇÕES de história e os cursos de licenciatura. Revista de História Regional. [citado em 17
abril 2006]. Disponível na World Wide Web: <http://www.uepg.br/rhr/v2n2/cerri.htm>.
7
SOUZA, Laura de Mello. “Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil colonial”. In: Marcos
Cezar de Freitas (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2003.
8
Ibdem; p- 20.

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A dilatação do conceito de fonte histórica, a partir do início do século XX, surgiu no


Brasil, como já foi esclarecido, a partir da obra de Gilberto Freyre, encontrando outros tantos
historiadores posteriores que caminharam sobre a mesma corrente cultural, diante da análise
de formação da nacionalidade brasileira. A ampliação da noção de fonte aliciou para junto de
suas perspectivas documentais uma série de resquícios humanos. Assim, no âmbito
internacional, a Escola dos Analles, no que diz respeito as suas três gerações, possibilitou uma
nova visão histórica reconstruída através de uma aplicação renovada, seja das mesmas fontes
utilizadas pelos tradicionais ou àquelas ignoradas pelos mesmos. A geração que atravessou o
pós-guerra e chegou na segunda metade da década de 1960, cuidou de ampliar não somente a
noção de fonte, como já havia sido iniciado na geração anterior, como também estendeu o
conceito de tempo. Fernand Braudel foi um dos grandes historiadores da longa duração, ao
afastar-se do tempo histórico curto. A nova História, portanto, preocupava-se em entender as
estruturas, tentando explicar sempre as continuidades e as mudanças e não somente os
acontecimentos. A interdisciplinaridade proposta pela Escola dos Analles aumenta seu campo
de domínio sobre a História demográfica, serial e das mentalidades.
Ainda na alçada da longa duração e voltando ao final do século XIX, encontramos
uma outra ruptura, anterior a qualquer uma das citadas acima. Trata-se da teoria de Marx.
Tributário da filosofia dialética hegeliana, Marx estabeleceu um diálogo com seu tempo, no
qual a história deixava de ser pensada unicamente pelo ângulo da política para adentrar
também nos aspectos econômicos. A metodologia marxista fundou-se na concepção
materialista da história, pretendeu um estudo empírico distinguindo-se do idealismo de Hegel.
Para Marx o motor da História era o homem e sua ação como indivíduo ou coletivamente. Sua
teoria muito influenciou e ainda influencia a produção historiográfica, no entanto sua real
contribuição ainda vem sendo discutida. A noção de documento construída através da teoria
marxista é muito restrita, segundo Pierre Villar.9 Marx somente voltou-se para a investigação
do passado para ilustrar os seus paradigmas, que ao final não sofreram qualquer interferência
promovida por essa pesquisa. O modelo marxista já estava concluído antes mesmo de uma
investigação sistemática ao passado.
A contribuição da teoria de Marx é também pensada sobre o ângulo do revisionismo,
corrente historiográfica ocupada em reavaliar os propósitos marxistas incutindo novo ânimo e
novas perspectivas aos seus argumentos. Edward Palmer Thompson, foi um dos principais

9
VILLAR, Pierre. “História marxista, história em construção”. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre
(orgs.). História: Novos Problemas. Trad. De Theo Santiago. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

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expoentes da história revisionista, destacando sua preocupação em retocar o conceito de luta


de classes de maneira a compreender a classe trabalhadora da Inglaterra industrializada e os
movimentos sociais provenientes da ofensiva industrial, do excesso de exploração, da carga
sobrehumana atirada sobre os trabalhadores. Thompson entenderá a história da classe
trabalhadora como uma luta constante pela sobrevivência, pela “defesa de sua humanidade” e
pela busca do bem comum, do bem coletivo.“O objetivo geral de sua iniciativa era o de
substituir o “homem econômico”(...)pelo “homem socialista””10.
A inclinação de Thompson para a História Social leva-o a resgatar o tema do costume,
focalizado por ele como uma condição pré-existente ao capitalismo industrial. O costume,
pensado também sobre o aspecto de cultura, estava inserido no cotidiano dos trabalhadores
como uma forma tradicional de se exigir alguns direitos que estavam consolidados por
gerações passadas acerca de sua condição vital, era uma forma de reivindicar e resistir à
exploração. A transição entre uma forma rudimentar de mercado para outra forma mais
complexa é a conjuntura na qual detém-se Thompson, “por isso, podemos entender boa parte
da história social do século XVIII como uma série de confrontos entre uma economia de
mercado inovadora e a economia moral da plebe, baseada no costume.”11
O revisionismo marxista adotou a história social e assim procurou desvencilhar a luta
de classes do seu aspecto meramente econômico, analisando com maior profundidade a
categoria social dessas classes, o motor cultural que os movia, a influência do costume como
regra geral de sobrevivência. A revisão da teoria marxista se fez necessária a partir da crise
dos grandes paradigmas por ela formulados. Tal reanalise, como já foi dito, forneceu a
historiografia novas abordagens sobre o mesmo objeto. A abertura de possibilidades deu-se
igualmente através da nova história cultural ou microhistória, emergida de uma discussão
sobre as diferentes direções que a Escola dos Analles deveria considerar como novas
perspectivas. O interesse por fatores micros em detrimento dos macros suscitou uma abertura
no panorama documental. O empenho historiográfico voltou-se para as minorias, para a
história “vista de baixo”, restituindo importância à cultura popular. Embora a microhistória
insinue temas isolados, na verdade, todo micro-historiador deve relacionar seus recortes
temáticos a uma consideração mais ampla.

10
RAZÃO e utopia: Thompson e a História. Publicações de História.[citado em 17 abril 2006].
Disponível na World Wide Web: <http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol6_rsm5.htm>.
11
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.

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Ao expandir a noção de documento o historiador da microhistória remete a si o papel


de investigador e produtor de suas próprias fontes, já que seu objeto de estudo, por fazer parte
dos grupos até então excluídos, revelam uma precariedade imensa de material investigativo.
Assim, no decorrer do século XIX e XX, vimos às noções de documento ganharem
gradualmente amplitudes maiores, favorecendo o enriquecimento temático com as novas
abordagens, novos questionamentos e novas fontes em detrimento de uma noção tradicional
que adotava o conceito de documento histórico como sendo sinônimo de texto escrito
produzido pelos detentores do poder político, garantindo para as gerações futuras
possibilidades de escolha e criticidade para criarem tantas outras possibilidades.

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- Revolução tecnológica do século XX e o ofício do historiador.

A intensa evolução que a tecnologia apresentou no século XX redefiniu as formas de


pensar e agir em sociedade e individualmente. No domínio acadêmico e profissional a
revolução tecnológica modificou igualmente as relações, sejam elas de proximidade com seu
objeto de estudo ou na velocidade e facilidade de se coletar dados e verificá-los. As vantagens
reunidas ao redor do aparato eletrônico, movido a acessos constantes de renovação
tecnológica, entranham-se ao trabalho do historiador e outros estudiosos, determinando os
novos suportes de pesquisa que antes ficavam restritos a lugares específicos e imóveis,
exigindo um deslocamento contínuo.
A era da informatização generalizada nos parece, senão uma realidade pelo menos um
processo em rápida emergência, o que faz com que o particular se interligue ao universal,
diminuindo as fronteiras e os limites de comunicação humana. Frente à busca incessante pela
concentração do maior número de informações, pela redução do espaço geográfico e pela
conquista do instantâneo, virtualmente falando, vemos um conjunto de profissionais
envolvidos nessa rede que absorvem de maneira produtiva os resultados dispostos na teia
tecnológica. Dentre tais profissionais encontramos o historiador, obrigado desde sempre a
confrontar-se com reduzidas possibilidades de pesquisa devido à dificuldade de se apreender
fontes incompletas, inalcançáveis e ou até mesmo inexistentes. Os obstáculos postos ao
estudioso da História jamais podem ser sanados integralmente, já que seu objeto situa-se em
tempos remotos e não pode garantir-lhe qualquer segurança de verdade e totalidade.
A História, bem como outras ciências, sofreu mudanças e intervenções do tempo. A
história-narrativa, factual, esvaiu-se dos meios acadêmicos para dar vazão a um outro tipo de
produção histórica, caracterizada pela ampliação do conceito de documento em conseqüência
de suas novas abordagens temáticas e de seus novos questionamentos. A história-problema
pôde romper com a estrutura tradicional para adentrar na contemporaneidade, transformando
o trabalho intelectual numa ferramenta ampla de aprendizagem. A interdisciplinaridade, ou
seja, a descoberta das relações internas que cada campo de estudo traça entre si,
redimensionou as considerações da história, sendo assim, a economia, a demografia e a
antropologia, por exemplo, puderam ser associadas ao objetivo historiográfico sem perder
suas características insolúveis.
As novas aspirações da História puderam dispor a seu favor os meios eletrônicos
capazes de comprazer suas necessidades investigativas. O computador passou a ser a principal

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ferramenta, pois ao passo que a informática foi se consolidando na sociedade, o pesquisador


foi se permitindo investir nessa estrutura, alargando suas perspectivas e irrompendo
construções históricas melhor elaboradas.12
O desenvolvimento da computação passou a permitir uma maior confrontação de
dados, sejam eles de origem econômica, demográfica, política ou social. As inconstâncias na
história passam então a serem avaliadas mais sistematicamente, o que favorece de maneira
distintiva a prática da história serial, quantitativa. As diversas fontes numéricas que antes
protelavam a conclusão de uma pesquisa agora são rapidamente postas a prova e conferidas a
análise por um sistema computadorizado, bem como Furet aponta: “o impacte da informática,
permite cálculos até aqui inimagináveis.”13
A destreza eletrônica em realizar cálculos, quantificar, enfim, em operar
matematicamente, é apenas uma das utilidades da tecnologia aplicada em computadores, pois
o impacto realmente significativo e revolucionário está compreendido na criação da World
Wide Web, mais conhecida como Internet. As redes interligadas alteraram mais uma vez o
campo de ação historiográfica, a começar pela ampliação e maior acesso a documentações,
teses, bibliotecas e museus, mas as transformações referentes ao ofício do historiador não se
restringem à abertura por novas possibilidades, a discussão adentra o âmbito da produção
textual, dos resultados dos estudos, das publicações em geral.
A Internet é o reflexo da total ausência de fronteiras entre o escritor ou autor de um
certo conteúdo e o leitor, que se torna parte integrante e agente interventor das obras
digitais14. O autor teme, portanto, pela autenticidade de seu trabalho, já que a Internet o torna
público e sondável por qualquer navegador: “Para os autores de hoje, o perigo de perder seus
direitos é, de fato, mais difundido que o de perder sua liberdade.”15. Assim nos postamos
frente a uma problemática bastante atual. Ao mesmo tempo em que o profissional da História
encontra fissuras suficientes para embrenhar-se no mundo informatizado, a vulnerabilidade
também o ataca, a partir do momento em que seu texto torna-se um texto eletrônico
possibilitando “reescrituras múltiplas” e apropriações desmedidas. Roger Chartier considera o
que chamamos de problemática, de um procedimento corrente iniciado no século XVIII,
quando passou a haver uma preocupação em “desmaterializar a propriedade” textual, ou seja,

12
FURET, François. “Da história-narrativa à história-problema”. In: FURET, François. A Oficina da
História. Tradução de Adriano Duarte Rodrigues. Lisboa: Gradiva.
13
Ibdem; p- 85.
14
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo de Moraes. São
Paulo: Editora UNESP/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 1999.

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“fazer com que ela se exercesse não sobre um objeto no qual se encontra um texto, mas sobre
o próprio texto.”16. Dessa maneira, o computador e a Internet seriam os dois principais
agentes da modernidade incumbidos de retirar a materialidade do texto e transformá-lo em
algo virtual e impalpável. Assim, Chartier localiza há três séculos atrás o precedente de tal
intenção.
A tecnologia da informação, como já foi ressaltado, modificou as relações tradicionais
entre estudiosos e seus objetos de estudo, entre o escritor e o leitor, entre um texto e seu
suporte, entre o possível e o impossível. A revolução tecnológica propiciou uma ruptura em
vários aspectos, dentre eles o aspecto espacial. A memória de um computador ou as
informações que viajam pelas ondas, fios e satélites comportam em si um arsenal infinito de
conhecimento e informações, transferindo do mundo sensível para o mundo virtual conteúdos
e formas, prescindindo de qualquer espaço físico, a não ser o espaço que separa o indivíduo
do aparelho eletrônico em questão.

15
Ibdem; p- 45.
16
Ibdem; p- 67.

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– A História na era digital.

A historiografia contemporânea tem presenciado as mudanças estabelecidas pela


tecnologia no que diz respeito a sua concepção material de fonte e pesquisa histórica. Quando
dizemos que a história está saindo da era do papel e entrando no circuito digital, queremos
dizer que seu campo de visão está se ampliando concomitantemente. Mas de que maneira? A
informática e o sistema que interliga computadores mundialmente nos remete a uma cadeia de
informações infinitas que são recolhidas de vários acervos, museus, bibliotecas e arquivos,
sendo assim, a noção de documento amplia-se para além do espaço físico e adentra num corpo
virtual capaz de localizar dados de qualquer natureza, o que nos implica a concluir que as
fontes alteram-se quantitativamente e qualitativamente.
A internet, usada como agente agregador, motiva a democratização de acesso a fontes
documentais que anteriormente eram de difícil apreensão. A busca por documentos no meio
eletrônico tornou-se a forma mais eficaz e rápida de ter acesso a um material investigativo.
Grandes acervos encontram-se disponíveis. A Biblioteca Nacional, uma das instituições de
afluência à memória mais importantes do país, tomou a iniciativa de disponibilizar sua
documentação em páginas eletrônicas, trazendo enormes benefícios aos diversos campos das
ciências humanas.
Alguns projetos de digitalização de documentos estão, da mesma maneira, diretamente
ligados com a questão atual no que se refere a preocupação em democratizar e facilitar o
trabalho das diferentes áreas de atuação do conhecimento. Um dos exemplos relevantes que se
pode destacar é o do Projeto Resgate, idealizado pela Universidade de Brasília e o Ministério
da Cultura. O projeto “tem como objetivo principal disponibilizar documentos históricos
relativos à História do Brasil existentes em arquivos de outros países”17. Através do método
da microfilmagem foi possível recriar em cds os documentos e divulgá-los aos pesquisadores.
Muitos outros exemplos podem ser ilustrados aqui, como é o caso do site scielo, uma
biblioteca eletrônica que dispõe de um vasto conjunto de periódicos científicos, ensaios,
artigos e relatórios. Frequentemente atualizado, é um ótimo caminho de descobertas e rumos
de pesquisa.
O espaço virtual precisa de poucos atributos para inserir comunidades inteiras dentro
de sua “geometria”, já não é o caso de um espaço fisicamente composto. A maioria dos

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arquivos, museus e bibliotecas estão concentrados nos grandes centros urbanos ou culturais,
restringindo sua área de acesso a este espaço delimitado. Cidades que não representam um
sítio histórico relevante, e por isso não sustentam qualquer instituição de apoio ao seu
patrimônio, encontram na internet e nos multimeios eletrônicos, como microfilmes, cds, dvds,
etc., uma saída para os limites geográficos que se impõem sobre o objeto de estudo e o
pesquisador. O Laboratório Multimídia de Pesquisa Histórica (LAMPEH), da Universidade
Federal de Viçosa, funciona como um centro de pesquisa para os estudantes. Seu acervo é
composto por microfilmes relativos a imprensa do século XIX e início do XX, principalmente
do Estado de Minas Gerais, periódicos, relatórios, teses condensadas em cds, fotografias, e
consultas a sites que disponibilizam conteúdo de pesquisa. A intenção é permitir que o
historiador, ou outro profissional, tenha acesso a documentos sem precisar estar de corpo
presente na instituição que o guarda. Isso é democratizar os meios.
Mas tal revolução ainda não se consolidou por completo, ela é um processo em
corrente construção. Muitas questões devem ainda ser levantadas sobre as vantagens e
desvantagens que a tecnologia nos aponta a experimentar e incluir no cotidiano. Sabemos
apenas que sua inserção na historiografia trouxe enormes benefícios e possibilitou a
ampliação da noção de documento, a democratização da informação e o acesso irrestrito a
conteúdos de pesquisa, fatores que só tendem a fortalecer a construção do conhecimento
histórico.

17
HISTÓRICO do Projeto Resgate. Centro de Memória digital. [citado em 17 abril 2006]. Disponível na
World Wide Web: <http://www.resgate.unb.br/rhistorico.html>.

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