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ANAIS

ELETRÔNICOS
Universidade do Estado da Bahia
Universidade Católica do Salvador
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local (UNEB)
Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e
Desenvolvimento Social (UCSAL)

12 a 15 de setembro de 2016
Cidade da Bahia, Cabeça da América Portuguesa

ANAIS
ELETRÔNICOS

Salvador
EDUNEB
2017
Dinâmicas governativas no Estado do Brasil: comunicação política e provimento de ofí-
cios (1648-1657)

Hugo André Flores Fernandes Araújo


Doutorando em História Social (UFRJ)

Introdução

A governação do Estado do Brasil estava assentada em algumas dinâmicas fun-


damentais, no presente texto analisaremos duas delas: o envio de correspondências dos
governadores-gerais no interior do Estado do Brasil e o provimento de ofícios. Nosso obje-
tivo por ora é tão somente identificar as principais características dessas dinâmicas. Em
trabalhos futuros exploraremos as especificidades dessas ações de governo.
A comunicação política foi um dos instrumentos centrais da governação na Amé-
rica lusa. Na última década diversas pesquisas coletivas se debruçaram sobre esta temática
buscando compreender as particularidades da dinâmica ultramarina da comunicação polí-
tica na monarquia portuguesa1. As principais questões que norteiam estas pesquisas tem
se concentrado na investigação da troca de correspondências em uma dimensão oceânica,
no estabelecimento e no reforço de vínculos políticos e econômicos entre a Coroa e as con-
quistas, assim como na circulação e na conexão de pessoas entre as conquistas dispersas
pelo ultramar lusitano 2. Neste sentido, buscamos analisar uma parcela fundamental da
comunicação política ainda não foi devidamente contemplada por estas pesquisas: a di-
nâmica interna da comunicação política no Estado do Brasil 3.
Desta forma, objetivamos caracterizar a correspondência dos governadores-gerais
do Estado do Brasil a fim de compreender as particularidades que conformavam este nível
da comunicação política. Assim identificaremos os interlocutores da correspondência polí-

1 Estamos nos referimos aos projetos internacionais: “A comunicação política na monarquia pluricontinental
(1580-1808)” coordenado por Nuno Gonçalo Monteiro; e “A monarquia e seus idiomas: corte, governos ul-
tramarino, negociantes, régulos e escravos no mundo português. (séc. XVI-XIX)” coordenado por João Fra-
goso.
2 Outros projetos também se dedicam a analisar as dinâmicas do governo à distancia empreendidas pelas

monarquias ibéricas: “Vencer la distancia: Actores y prácticas del gobierno de los impérios español y portu-
guês.” http://distancia.hypotheses.org/
3 A inspiração por trás desta escolha de pesquisa é proveniente da crítica de John Elliott endereçada a uma

parte dos estudos da chamada Atlantic History: “much of the work thus far published with an explicitly Atlantic
focus has tended to focus upon the connections that tied the many areas of the Atlantic together (...) without much con-
cern about specifying how those connections and transnational relations affected the internal histories of the areas that
they connected”. GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. “Introduction: The presente state of Atlantic Histo-
ry.” In: GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. (Eds.) Atlantic History: A critical appraisal. New York: Oxford
University Press, 2009. p. 6-7
 
tica do governo-geral, os circuitos de comunicação e os temas discutidos. Não iremos ana-
lisar as particularidades da escrita das cartas, tema de grande importância que conta com
uma razoável produção bibliográfica 4.
A análise do volume de correspondências emitidas pelos governadores-gerais nos
permite entender de modo mais detido as nuances conjunturais da América portuguesa,
bem como nos indica quais eram as dificuldades e os obstáculos que desafiavam a gestão
do vasto território do Estado do Brasil, sobretudo no momento em que a ocupação neer-
landesa no nordeste ameaçava o domínio lusitano na América.
O provimento de ofícios na monarquia portuguesa é uma temática que também
recebeu atenção de pesquisas nos últimos anos. Alguns desses estudos têm destacado a
necessidade de analisar as especificidades dessas práticas a fim de construir uma compre-
ensão mais delineada dos mecanismos de recrutamento e provimento dos ofícios. Estes
estudos também têm apontado como vários ofícios possuíam grande importância e impac-
to nas sociedades da América portuguesa 5. Neste sentido, concordamos com a constatação
de Bartolomé Yun Casalilla quando este afirma que “la historia de los impérios está indi-
solublemente unida a la de las élites políticas, económicas y culturales de las áreas que los
forman” 6. Compreendemos, portanto, que a análise dos provimentos nos permite apreen-
der aspectos fundamentais da gestão da monarquia e do funcionamento dos ofícios provi-
dos.

4 Dentre os vários estudos sobre escrita de cartas destacamos o dossiê organizado por um especialista neste
tema: BOUZA, Fernando (Coord.) Cultura epistolar em la alta Edad Moderna: Usos de la carta y de la corres-
pondencia entre el manuscrito y el impreso. Cuadernos de Historia Moderna. Anejo IV, 2005. A escrita de
cartas pelos governadores-gerais também foi objeto de pesquisa: Cf. SANTOS, Marília Nogueira dos Santos.
Escrevendo Cartas, governando o Império: A correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho
no governo-geral do Estado do Brasil (1691-1693). Dissertação (Mestrado em História). Niterói: UFF, 2007;
MENDES, Caroline Garcia. A circulação e a escrita de cartas do governador geral do Estado do Brasil Francisco Bar-
reto. (1657-1663) Dissertação (Mestrado em História). Campinas: Unicamp, 2013.
5 Roberta Stumpf tem analisado as políticas de provimento de ofício do ponto de vista da monarquia, obser-

vando especificamente os casos de propriedades de ofício e discutindo a existência e as formas de venalida-


de de alguns desses ofícios. Cf. STUMPF, Roberta Giannubilo. “Os Provimentos de ofícios: A questão da
propriedade no Antigo Regime Português.” Topoi. n°. 29, v. 15, Jul-Dez, 2014; STUMPF, Roberta Giannubilo.
“Venalidade de Ofícios e Honras na Monarquia Portuguesa: um balanço preliminar”. In: ALMEIDA, Suely.
C.C. de; SILVA, Gian. C. de M.; SILVA, Kalina V; SOUZA, George F. C. (Orgs). Políticas e Estratégias Adminis-
trativas no Mundo Atlântico. Recife: Editoria Universitária UFPE. 2012. Analises mais especificas sobre os ofí-
cios militares também tem ressaltado a importância desses postos para a lógica de serviço imperial e para o
reconhecimento e acrescentamento social. Cf. MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. Os ofícios superiores e
inferiores da tropa paga (ou de 1ª. linha) na capitania do Rio de Janeiro, 1640-1652: Lógica social, circulação e a
governança da terra. Tese (Doutorado em História). Niterói, UFF, 2015; CRUZ, Miguel Dantas da. “A nomea-
ção de militares na América portuguesa: Tendências de um império negociado”. Varia Historia. Belo Hori-
zonte. Vol. 31, n. 57. set/dez 2015.
6 CASALILLA, Bartolomé Yun. “Entre el império colonial y la monarquía compuesta. Élites y territorios en la

Monarquía Hispánica” In: CASALILLA, Bartolomé Yun (Org.). Las Redes del Império: Élites sociales en la arti-
culación de la Monarquía Hispánica, 1492-1714. Madrid:Marcial Pons História. Universidad Pablo Olavide,
2009. p. 11.
 
A Comunicação política no interior do Estado do Brasil (1648-1657)

Nossa principal base documental para analisar dinâmica interna da comunicação


política são as cartas publicadas nos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional 7. A docu-
mentação publicada é em sua grande maioria proveniente dos livros de registro de cartas,
onde eram anotadas as missivas emitidas pelos governadores-gerais. Até o momento não
conseguimos precisar com que rigor as correspondências eram registradas nestes livros, o
que nos impossibilita identificar o quão representativos são esses dados em relação ao to-
tal de cartas escritas pelos governadores-gerais para outros oficiais na América portugue-
sa.
Para o período analisado (1648-1657), contabilizamos um total de 557 8 cartas (Grá-
fico 1). Destas, 23 cartas foram emitidas pelo Conde de Vila Pouca de Aguiar (1647-1650),
número absolutamente discrepante e que explicita a defasagem desta série documental
para este período. Já para o governo do 2º. Conde de Castelo Melhor (1650-1654) encon-
tramos a quantidade mais expressiva de 266 cartas, o que certamente retrata de modo mais
aproximado a rotina da governação, da mesma forma encontramos 268 cartas emitidas
pelo Conde de Atouguia (1654-1657). A título de comparação, Caroline Garcia Mendes
encontrou em sua pesquisa de mestrado um total de 150 cartas do governador-geral Fran-
cisco Barreto, entre os anos de 1657-1663, destinadas a várias autoridades do Estado do
Brasil 9.

7 Utilizamos os seguintes volumes da coleção: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. III. Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. IV. Rio de Janeiro: Augus-
to Porto & Cia. 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. V. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia.
1928. Ao longo do texto utilizaremos a sigla DHBN para nos referir a estas obras.
8 As datas extremas dos recortes se referem à datação encontrada nas cartas. Assim a carta mais antiga de

nossa série é referente à 06/01/1648, mas sabemos que o Conde de Vila Pouca de Aguiar havia tomado pos-
se do governo em 22/12/1647. A data extrema final de nosso recorte é referente à 27/04/1657, de modo que
o governo do conde de Atouguia se encerrou em 18/06/1657 quando Francisco Barreto tomou posse como
governador-geral.
9 Cf. MENDES, Caroline Garcia. A circulação e a escrita de cartas do governador geral do Estado do Brasil Francisco

Barreto (1657-1663). Dissertação (Mestrado em História). Campinas: Unicamp, 2013. p. 50-52. Vale ressaltar
que a autora não lista nesta contagem as correspondências para câmaras municipais, muito embora a autora
as utilize pontualmente ao longo de sua análise. Certamente este total seria significativamente maior com a
inclusão destas.

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Gráfico 1 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, V.

A circulação de ordens e de informações através das correspondências constituía-


se então no “principal instrumento de comunicação e exercício de governo nesse momen-
to” 10. A preocupação em superar as distâncias e os fatores que poderiam interferir na di-
nâmica de comunicação foi expressa em várias cartas e até mesmo nos regimentos, afinal
“os cazos do mar são vários, e se não podem prevenir como convém” 11. Neste sentido,
destacamos que a comunicação com territórios próximos à zona de controle dos neerlan-
deses era uma tarefa significativamente mais difícil. A superioridade naval dos holandeses
obrigava que a maior parte das correspondências seguisse o itinerário do interior dos ser-
tões. Para se comunicar com o mestre de campo general Francisco Barreto, o Conde de
Castelo Melhor teve que recorrer a vários intermediários 12.
As ações de corso e apresamento eram outro grande constrangimento à comunica-
ção pela via náutica 13. Além da captura de embarcações, com cargas e prisioneiros, os ho-
landeses também investiram sobre o recôncavo, saqueando e queimando engenhos 14 .

10 COSENTINO, Francisco Carlos C. “Comunicação entre governadores, capitanias e câmaras: a governação


do Brasil, 1654-1681”. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH. Natal, RN. 2013. p. 7.
11 Capítulo 20. “Regimento que trouxe o senhor Conde de Castelo Melhor sobre a armada da companhia

Geral de Comercio”. (11/10/1649) BNRJ-SM, Códice 9, 2, 20. (1642-1753). N°. 2.


12 Como fica explícito em duas cartas de 1650, que foram enviadas para a Torre de Garcia D’Avilla, que de-

veria remetê-las para Belchior Alves, na capitania de Sergipe Del Rey. A partir dali as cartas seguiriam se
“encaminhando de logar a logar té se entregarem na Varge (sic) ao Mestre de Campo General por ser este o
meio mais prompto para lhe chegarem com a maior antecipação e segurança que sua grande importância
pede” 12/09/1650. DHBN, Vol III, p. 78.
13 Charles Boxer indica que entre 1647-1648 o número de navios apresados pelas ações neerlandesas chegava

à vultosa soma de 220 embarcações. BOXER, Charles. The Dutch in Brazil (1624-1654). Oxford: Clarendon
Press, 1957. p. 280-289.
14 Essas ações são mencionadas pelo Conde de Castelo Melhor ao pedir donativo voluntário aos oficiais da

câmara do Rio de Janeiro em 20 de Março de 1650. DHBN, Vol IV, p.467- 468. - Estima-se que em dezembro
de 1648 as incursões da armada de De With, que contava com cerca de 2000 soldados, conseguiu assolar as
freguesias do recôncavo queimando “vinte e dois engenhos de açúcar, roubando quanto achou no distrito
deles” SANTIAGO, Diogo Lopes. Op. cit. p. 529. – Wanderley Pinho cita as ações de Van dem Brand e Van
 
Com efeito, a alternativa buscada pelo governo-geral para minimizar a efetividade dessas
ações foi o envio de instruções que visavam indicar uma forma segura de navegação até o
porto da Bahia. Em algumas cartas encontramos as medidas tomadas para evitar o encon-
tro com as embarcações neerlandesas. Em uma carta para o Alferes Domingo Pinto, que
servia na Torre de Garcia d’Ávila, o Conde de Vila Pouca de Aguiar ordenava que as em-
barcações que saíssem dali

ao sol posto, e se venha com toda a vigilância sempre encostado a terra metter en-
tre os fortes de São Diogo e Santa Maria, donde achará as lanchas e venha com ad-
vertência de estar o Inimigo nesta Bahia e naus suas no meio della, (...) e dobre a
ponta de Santo Antonio de maneira que ainda que ache vento escasso se possa
metter entre os fortes e não possa perigar se amanhecer no mar para o que convém
que não saia sem tempo tão feito que julgue elle certeza na viagem 15.

A opção por navegar durante a noite, sempre se mantendo próximo à costa, a fim
de buscar a proteção dos fortes foi uma das formas encontradas para escapar ou minimi-
zar as ações de apresamento. As instruções para navegação segura foram enviadas princi-
palmente para Ilhéus 16, mas também encontramos o envio dessas para a capitania do Rio
de Janeiro 17. A circulação deste tipo de informação foi importante ferramenta de governo,
sobretudo se levarmos em consideração que as ações holandesas também buscaram se a-
daptar, utilizando desertores e embarcações luso-brasileiras para realizar saques e apre-
samentos 18.
No Quadro 1 listamos em ordem decrescente a quantidade de correspondências
por capitania. É importante destacar que as capitanias relacionadas não refletem o total
das capitanias existentes no século XVII, mas sim aquelas que foram explicitamente men-
cionadas nas cartas.

Goch, mencionando o saque e a destruição de 23 engenhos entre o final de 1648 e fevereiro de 1649. Cf. PI-
NHO, José Wanderley de Araújo. História de um engenho do Recôncavo: Matoim, Novo Caboto, Freguesia.
(1552-1944). 2ª. Edição, ilustrada e acrescida de um Apêndice. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982.
p. 122.; Cf. MELLO, Evaldo Cabral de (Org). O Brasil holandês. (1630-1654). Seleção, introdução e notas de
Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: Penguin Classics, 2010. p. 446 – 447. Evaldo Cabral de Mello estima que
os neerlandeses apreenderam 1500 caixas de açúcar durante essas ações. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda
restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 3ª edição. São Paulo: Editora 34, 2007. p. 68.
15 13 de Dezembro de 1648. DHBN, Vol. III, p. 26.
16 Em 1652 esse tema foi recorrente, indicando que as ações de corso vinham causando grandes prejuízos.

Neste ano encontramos cartas para Antônio de Couros Carneiro, capitão mor de Ilhéus, para Gaspar de Sou-
za Uchoa, tenente de Mestre de Campo na fortaleza de Morro de São Paulo e também para Antônio da Sil-
veira, mestre de Navio. Cf. 12/04/1652. DHBN, Vol. III, p.161-162; 12/04/1652. DHBN, Vol. III, p.162-163;
04/05/1652. DHBN, Vol. III, p. 164-165; 07/05/1652. DHBN, Vol. III, p.166; 07/05/1652. DHBN, Vol. III, p.
166-167.
17 Antônio Teles de Menezes envia para Salvador Correia de Sá e Benavides as mesmas instruções, recomen-

dando as medidas para a navegação segura e a busca de informações em Ilhéus sobre a atividade do inimigo
naquelas águas. 31/03/1648. DHBN, Vol. IV, p. 432-434.
18 Duas cartas mencionam que os holandeses utilizavam o navio de João de Souza Borges para ações de corso

(22/01/1652. DHBN,Vol. III, p. 144-145). Outras duas cartas mencionam que o capitão Dom Pedro de Bíve-
ros teria desertado e se unido aos holandeses, se valendo de ser muito conhecido no recôncavo para saquear
freguesias e capturar pequenas embarcações. As cartas são enviadas a fim de que a notícia fosse divulgada
por todo o recôncavo a fim de inibir essas incursões. (07/03/1652. DHBN, Vol. III, p. 152-154).
 -
Quadro 1 – Correspondências por Capitania (1648-1657) 19
Ilhéus Rio de Bahia São Sergipe Espírito Não Porto Pernambuco Itanhanhém Total
Janeiro Vicente del Rei Santo informado Seguro
Valor % 28,74 19,19 13,33 11,63 11,63 8,56 2,98 1,90 1,72 0,32 100
Valor 159 106 79 64 64 47 16 10 9 1 555
Absoluto

Cabe ressaltar que não encontramos correspondências enviadas para as capitanias


anexas a Pernambuco (Itamaracá, Rio Grande, Paraíba e Ceará 20), com a exceção de Sergi-
pe del Rey. Em parte o número reduzido de cartas para Pernambuco e suas anexas pode
ser explicado pela conjuntura de guerra contra os holandeses, que dificultava a comunica-
ção em áreas de conflito. Por outro lado, Francisco Barreto que detinha a patente de Mestre
de Campo General e Governador de Pernambuco, possuía poderes e jurisdição que lhe
conferiam relativa autonomia em relação ao governo-geral 21. A comunicação com outras
partes da América22 até onde percebemos está alocada em outros fundos documentais,
mas certamente esta foi menos freqüente, principalmente com os territórios da América
Espanhola em função da guerra contra a coroa de Castela que se estenderia até 1668 23.
O principal destino das correspondências foi a capitania de Ilhéus seguida pela
capitania do Rio de Janeiro. O destaque de Ilhéus se deve à sua reconhecida importância
para o abastecimento do recôncavo. Do total de 159 cartas enviadas a capitania de Ilhéus,
63 tratam de temas relacionados ao abastecimento do recôncavo, de Salvador, e do apresto
das armadas, problemas constantes que o governo-geral buscava solucionar. Sendo que
destas 54 tratavam da produção e envio de farinha de mandioca, 5 sobre o sustento do
presídio da Bahia e 4 sobre pedidos de mantimentos 24.

19 DHBN, Vol. III, IV, V. Não incluímos neste quadro 2 cartas enviadas para expedições.
20 Seguimos aqui as referências apontadas em: “Relatório sobre o Estado das Capitanias conquistadas no
Brasil, apresentado pelo Senhor Adriaen van der Dussen ao Conselho dos XIX na Câmara de Amsterdã, em 4
de Abril de 1640.” In: MELLO, José Antônio Gonsalves de. (Org). Fontes para a história do Brasil Holandês. Vol.
1- A Economia Açucareira. 2ª. Ed. Recife: CEPE, 2004. p. 137.
21 Isso fica evidente principalmente em parte da documentação que compõe a Coleção Conde dos Arcos do

Arquivo da Universidade de Coimbra. Como observamos em levantamento preliminar no Códice: Disposi-


ções dos Governadores de Pernambuco (1648-1696). AUC. CA. Cod. 31.
22 Referimo-nos à comunicação com o Estado do Maranhão, que gozava de jurisdição independente do Esta-

do do Brasil. António Teles da Silva afirmava ter ajudado os moradores daquele território nas lutas contras
os holandeses. Cf. ARAÚJO, Hugo André. F. F. Governação em tempo de guerra: Governo geral do Estado do
Brasil e a gestão da defesa (1642-1654). Dissertação (Mestrado em História). Juiz de Fora: UFJF, 2014, p. 83-84.
23 Sabemos que apesar da guerra contra os espanhóis houve tentativas de restabelecer relações comerciais

com o Rio da Prata, como a iniciativa malsucedida de António Teles da Silva em 1643. Ibidem. p. 73.
24 O papel das vilas de Ilhéus no abastecimento do recôncavo foi indicado por Francisco Carlos Teixeira da

Silva. O autor indica que a “vocação” para o mercado interno foi algo percebido e incentivado pelo governo-
geral, mesmo que de modo coercitivo, com proibições e restrições ao desenvolvimento de outras atividades.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crises de subsistência e política econômica no
Brasil colônia. (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese (Doutorado em História). UFF: Niterói, 1990. p.
130.
. /
O governo-geral enviou 106 cartas para a capitania do Rio de Janeiro, o que repre-
senta 19,19% do total de correspondências emitidas. Esse dado é um dos indicativos da
crescente importância política e econômica que capitanias do sul conquistaram ao longo
do século XVII, sobretudo a capitania do Rio de Janeiro. Outro indício foi apontado por
Marcello Loureiro, através da análise da comunicação política da capitania do Rio de Ja-
neiro com o Conselho Ultramarino. O autor indica que durante a década de 1640 o volume
de cartas enviadas pela capitania fluminense foi superior ao emitido pela “cabeça do Esta-
do do Brasil” 25. Precisamos ressaltar que não consideramos o aumento do fluxo da comu-
nicação por si só como catalisador do aumento de importância desta capitania no cenário
imperial. Esses dados são importantes para ressaltar a inserção da capitania na dinâmica
imperial de comunicação, contudo, essas informações ganham maior dimensão quando
aliados com as conclusões apresentadas por Antônio Carlos Jucá de Sampaio. De acordo
com o autor, durante a ocupação holandesa no nordeste a capitania fluminense alcançou o
patamar de terceira maior região açucareira, atrás de Pernambuco e Bahia. Encontramos 22
cartas que tratam especificamente das temáticas relativas à produção de alimentos, fiscali-
dade e do comércio do açúcar da capitania fluminense. Antônio Carlos Jucá também des-
taca que durante este período a economia da capitania se favoreceu de um sistema agrário
próspero, produzindo alimentos em fartura, colaborando com o excedente para o abaste-
cimento das capitanias do Norte 26, sobretudo da Bahia que sofria com a constante escassez
de alimentos 27, como indicamos anteriormente.
Para analisar quantitativamente os temas abordados na comunicação política do
governo-geral apresentamos no Gráfico 2 as tipologias de assunto, bem como a represen-
tatividade destas no fluxo de comunicação no Estado do Brasil. Organizamos os assuntos
de acordo com os principais poderes e competências que eram delegados ao governo-
geral. Buscamos utilizar classificações que se aproximassem do vocabulário político coevo,
neste sentido utilizamos os seguintes termos: Governação, Fazenda, Milícia, Justiça, Outros.

25 LOUREIRO, Marcello José Gomes. “O Conselho Ultramarino e a sua pauta: aspectos da comunicação polí-

tica da monarquia pluricontinental (1640-1668) – notas de pesquisa.” Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Collo-
ques, mis en ligne le 14 octobre 2013. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/65830. Acessado em:
23/05/2015.
26 Essa questão também foi sinalizada por Luís Felipe de Alencastro: ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato

dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 361-363.
27 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômi-

cas no Rio de Janeiro (c.1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 65.
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Z ^ W Y _ Z
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Z
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X U
i f h g

5 6 4

Gráfico 2 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, V.

As correspondências classificadas como Governação englobam instruções e ordens


encaminhadas aos oficiais de governo. Destacam-se os envios e os pedidos de noticias so-
bre diversos assuntos; a mediação política, tanto em situações de tensões como no estabe-
lecimento de novos acordos; o envio de instruções específicas, que variavam de acordo
com o receptor e com a conjuntura; e o provimento de serventias da alçada do governo-
geral. O destaque do volume de correspondências associadas a esta tipologia (46% ou 257
cartas) é um forte indicativo de que as funções dos governadores-gerais estavam concen-
tradas na supervisão dos oficiais e na constante troca de informações.
A tipologia Fazenda agrega temas relativos ao comércio, a fiscalidade, produção de
alimentos e mercadorias, bem como discussões sobre os valores e os pagamentos de sol-
dos. Também incluímos nessa categoria instruções remetidas aos provedores da fazenda, e
ainda os pedidos de envio de mantimentos para sanar os problemas de abastecimento na
Bahia. A representatividade destes assuntos atesta que estas eram questões centrais para o
governo-geral, sobretudo quando levamos em consideração as dificuldades conjunturais
de abastecimento de gêneros, a retração no comércio e os elevados custos de defesa.
A gestão da defesa é observada através das correspondências que classificamos
como Milícia. Composta por cartas com instruções de reforço defensivo, ordens de envio
de soldados e oficiais militares, discussões sobre sustento de soldados e do presídio de
Salvador, assim como noticias sobre o envio de navios para defesa e comboio, e ainda di-
versas instruções específicas transmitidas aos oficiais militares. É importante ressaltar co-
mo esses assuntos se enquadram dentro das prioridades do governo-geral, uma vez que a
maioria esmagadora das ordens destinava-se a cuidados e preparativos de defesa, prati-
camente não há menção a ofensivas.
As cartas relacionadas à temática da Justiça apresentavam ordens para a execução
de devassas e para prisões; discussões sobre a delimitação jurisdicional de ofícios e de ter-
ritórios; e ainda instruções específicas encaminhadas aos oficiais responsáveis pela justi-

. 1
ça28. Deste modo, as correspondências corroboram a percepção de que os poderes e prer-
rogativas de justiça do governo-geral primavam pela conservação da ordem. Assim, cabia
ao governador-geral “como representante do rei, agir como árbitro, mantendo a harmonia
e evitando a intromissão de funções e competências entre os diversos órgãos e poderes” 29.
A partir do restabelecimento do Tribunal da Relação em 1653 30 os assuntos de justiça con-
vergiriam para esta instituição, fato este que pode ter influenciado o volume desta temáti-
ca nas correspondências.
A tipologia que genericamente denominamos de Outros agrupa um grupo diminu-
to de cartas que destoam significativamente das demais tipologias. Ao todo são 16 cartas,
sendo que destas 3 se referem à execução de obras em localidades, 4 tratam do envio de
clérigos, 1 sobre escravidão, 5 sobre assuntos particulares, 2 sobre arrecadação de esmolas
e 1 sobre envio de gêneros específicos.
Em suma, entendemos que as tipologias nos indicam como o governo-geral distri-
buía seu tempo no processo decisório, o que não significa, por exemplo, que as questões
relativas à governação fossem mais importantes do que as questões de fazenda ou milícia. O
que estas tipologias nos revelam é a freqüência com que os assuntos figuravam na pauta
da comunicação política. Certamente havia uma demanda maior pela troca de informações
e pela gestão de ofícios, o que entendemos como sendo despachos cotidianos e, portanto,
fundamentais ao funcionamento do governo. Por outro lado, isto não diminui a atenção e
o cuidado dispensado aos assuntos como a resolução de conflitos de jurisdição, a organi-
zação da produção e do abastecimento do recôncavo da Bahia ou a gestão da defesa lito-
rânea. Estes temas figuravam na comunicação política com uma apresentação textual que
refletia um senso de urgência que não se observa nas demais tipologias. Portanto, o que
buscamos aqui foi distinguir e compreender os assuntos abordados na comunicação políti-
ca a luz do contexto dinâmico do Estado do Brasil, sem com isso hierarquizá-los por sua
importância.

28 Entendemos que as instruções específicas podiam ser cartas como as que tratavam de repreensões e adver-
tências sobre condutas indesejáveis de oficiais que lesavam jurisdições e prerrogativas, tal como as encami-
nhadas ao governador do Rio de Janeiro (23/05/1650. DHBN, Vol. V. p. 7-9) e ao sargento-mor Gaspar Car-
rilho de Matos (17/10/1651. DHBN, Vol. V, p. 35-36.). Mas também consideramos estas pudessem ser ordens
como um pedido de informação sobre presos remetidos, a fim de que fossem julgados de modo justo
(12/06/1652. DHBN, Vol. III. p. 171-172), ou como a ordem para que o regimento do Tribunal da Relação
fosse registrado na câmara do Rio de Janeiro para ser observado e praticado. 12/08/1653. DHBN, Vol. V. p.
53.
29 COSENTINO, Francisco Carlos C. “Governo-Geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos

(séculos XVI e XVII)”. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.) Na Trama das Redes: política e
negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2010. p. 412.
30 Os governadores-gerais tinham assento no tribunal como “regedores”. O regimento da Relação do Estado

do Brasil determina funções e prerrogativas que os governadores-gerais dispunham ao atuar no tribunal, tal
como o provimento das serventias dos ofícios de justiça e fazenda e o poder de ordenar a tomada de residên-
cia de oficiais quer serviam por triênios, entre outras funções. Cf.“Regimento da Relação do Estado do Bra-
sil” In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Tomo II. IHGB. Conse-
lho Federal de Cultura. 1972. p. 659-670.
. 
Provimento de ofícios do governo-geral: características gerais (1648-1657)

A documentação que utilizamos para analisar o provimento de ofícios também faz


parte da coleção dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional 31. Utilizamos em nossa
análise especificamente os tipos documentais pelos quais o governo-geral nomeava e pro-
via os oficiais subordinados, mais especificamente utilizamos patentes, provisões, alvarás de
reformação, portarias e vias de sucessão (Gráfico 3).

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Gráfico3 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI

Devemos chamar atenção para o fato de que existiam outros instrumentos de go-
verno como bandos, sesmarias e regimentos, contudo tratam-se de documentos específicos
que auxiliam a compreensão de outras dinâmicas de governo. Identificamos 172 provi-
mentos de ofícios feitos pelo governo-geral, cifra esta que atesta o grau lacunar desta série
de dados. Não dispomos de meios para identificar a representatividade destes dados, mas
entendemos que a própria dispersão destes documentos reflita as lacunas. No Gráfico 432,
onde relacionamos o número de provimentos por ano encontramos valores bastante dis-
crepantes, contudo é preciso notar que a curva do gráfico em certa medida se assemelha
aquela apresenta no Gráfico 1, pois os anos iniciais apresentam dados muito defasados ao
passo que o ano de 1656 aparece nos dois gráficos como o ponto mais alto. A título de
comparação, em um levantamento preliminar no Códice 31 da coleção Conde dos Arcos,
encontramos 65 disposições de governo feitas por Francisco Barreto como governador da

31 Utilizamos os seguintes volumes da coleção: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. III. Rio de
Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. IV. Rio de Janeiro: Augus-
to Porto & Cia. 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Typographia
Monroe, 1930; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Typographia Monroe,
1930; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XXXI. Rio de Janeiro: Typ. Arch. De Hist. Bras., 1936.
32 A data extrema inicial que encontramos é de 15/06/1648 ao passo que a data extrema final de nosso recor-

te é referente à 06/06/1657, poucos dias antes de Francisco Barreto assumir o governo.


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capitania de Pernambuco entre 1648-1657, destas 18 eram provimentos de postos militares
e de ofícios civis 33.

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Gráfico 4 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI

No Quadro 2 analisamos a dispersão geográfica dos provimentos. Primeiramente,


esses dados nos indicam a abrangência jurisdicional 34 do governo-geral uma vez que en-
contramos nomeações e provimentos para 12 capitanias. Contudo, é evidente que o prota-
gonismo da capitania da Bahia representasse 58,85% dos provimentos que, afinal se trata-
va da sede do governo-geral e “cabeça” do Estado do Brasil. Este dado está diretamente
relacionado com os tipos de ofícios providos (Gráfico 5), uma vez que Salvador detinha
um grande número de oficiais militares, o principal tipo de ofício existente no Estado do
Brasil.

Provimentos por Capitania (1648-1657) 35


Ilhéus Rio de Bahia São Sergipe Espírito Pernambuco Porto Capitanias Não Infor- Total
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Valor % 13,07 0,65 58,85 3,26 8,49 2,61 2,61 1,93 3,96 4,57 100
Valor 20 1 90 5 13 4 4 3 6 7 153
Absoluto

33 Disposições dos Governadores de Pernambuco (1648-1696). AUC. CA. Cod. 31.


34 Neste sentido entendemos jurisdição não apenas como o conjunto de poderes e prerrogativas, mas tam-
bém como uma circunscrição espacial. Cf. SILVA, Ana Cristina Nogueira; HESPANHA, António Manuel. “O
quadro espacial.” In: HESPANHA, António Manuel. (coord.) História de Portugal. Vol. 4. Lisboa: Editorial
Estampa, 1998. p. 35-41.
35 DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI. Não incluímos neste quadro 19 provimentos para expedições.
36 Estamos nos referindo especificamente a: Cabo Frio – 1; Alagoas –1; Itanhanhém – 1; Rio de São Francisco

–2 ; Rio Grande – 1.
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Contudo, estes dados também nos sugerem outras linhas de percepção. Sobre o
número baixíssimo de provimentos para a capitania do Rio de Janeiro entendemos que
isto se deva a alguns outros fatores, além da já mencionada lacuna na série documental: o
status de capitania real, o que significava que a grande parte dos postos de governo, milí-
cia, fazenda e justiça fossem prerrogativas reais, ainda que o regimento do governo-geral
tivesse a prerrogativa de prover a serventia dos ofícios pelo período de um ano ou até que
o provimento régio fosse efetuado. No caso de Pernambuco, como afirmamos anterior-
mente, o baixo número de provimentos do governo-geral estava relacionado às prerroga-
tivas concedidas a Francisco Barreto como mestre de campo general e governador de Per-
nambuco.
Após a capitulação dos holandeses o monarca concedeu a Francisco Barreto, por
uma provisão datada de 29 de Abril de 165437, as prerrogativas para prover “os officios da
Justiça e Fazenda destas capitanias [de Pernambuco] e cargos da guerra e mais pessoas
que me parecessem das que se acharão na Recuperação de Pernambuco” 38. Este gesto, que
teve profunda influência sobre a governação nos anos seguintes, estava assentado em dois
pontos centrais que marcaram a governação nesta conjuntura: a remuneração régia dos
serviços, “se não como elles merecem, ao menos como he possivel, e permitte o aperto em
que as guerras deste Reino tem posto tas cousas em todas as partes” 39; e a necessidade
administrativa de suprir os postos vagos a fim de que o controle efetivo da capitania fosse
estabelecido e viabilizado pela governação.
Pouco tempo depois os efeitos dessa atitude começavam a produzir descontenta-
mento. Por um lado, o Conde de Atouguia a frente do governo-geral queixava-se dos re-
sultados decorrentes e questionava a eficiência da medida afirmando: “se o intento de
Vossa Majestade é querer honrar este Governo, com se restituir a sua antiga autoridade em
nenhuma ação a tem mais perdida, que na forma em que hoje provê os postos militares”
40. A crítica do governador-geral incidia sobre aquele que era um dos pontos fundamen-

tais da prática governativa e também alvo de controvérsias: o provimento dos postos mili-
tares. As mudanças introduzidas promoveram a descentralização dos provimentos milita-
res e podiam dar margem a provimentos indevidos e, por conseqüência, a conflitos de ju-
risdição.
Este caso em questão nos auxilia a compreender a centralidade dos provimentos
no quadro geral da governação. Nos anos seguintes o Conde de Atouguia insistentemente
escreveu para a Coroa explicitando suas queixas e atestando que a concessão feita a Fran-
cisco Barreto havia extrapolado o caráter único e provisório, e que, portanto passavam a

37 Varnhagen publicou a provisão no apêndice de seu livro. Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História
das lutas com os hollandezes no Brazil: Desde 1624 até 1654. Viena d’Austria, 1871. p. 345-346. Esta provisão foi
discutida no Conselho Ultramarino antes de chegar a sua forma final, como percebemos na consulta de
31/03/1654. AHU_ACL_CU_015, Cx.6 , D. 467.
38 Francisco Barreto cita a provisão de 29 de Abril de 1654 em todos os provimentos que encontramos neste

códice. 23/03/1655. AUC, CA, Cod. 31, f. 21v.


39 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. p. 345.
40 DHBN, Vol. IV, p. 257.

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lesar a autoridade do governo-geral. Nestas cartas o governador-geral criticava a postura
da coroa, enfatizando que os ministros do rei faltavam com a obrigação de lhe advertir a
gravidade da situação, pois não explicitavam “a diferença que há de Mestre de Campo
General ao Capitão General, de quem é súbdito” 41. O Conde de Atouguia também refor-
çava seu argumento lembrando que “semelhante estilo, nunca praticado em Reino, ou E-
xército que o Capitão General governasse” e que tal ação acabava por “privá-lo da maior
autoridade que tinha, que é prover os postos militares” 42. O governador-geral alegava que a
quebra de hierarquia enfraquecia sua autoridade.
Neste sentido é possível entender melhor a centralidade do provimento de ofícios
para o governo-geral, mais especificamente dos postos militares, pois estes representavam
a maioria esmagadora dos provimentos43 (isto é, 79% ou 136 provimentos) como vemos no
Gráfico 5.

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Gráfico 5 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI

Os ofícios militares aparecem em destaque, como afirmamos anteriormente, em


razão da quantidade de postos e patentes existentes na estrutura do Estado do Brasil. No
Gráfico 5 apresentamos estes dados com as subdivisões existentes, de modo que os ofícios
de Tropa paga se referem a soldados profissionais que recebem soldo real e que na grande
maioria dos caso estavam inseridos nas principais unidades de defesa, os terços.

41 Cf. DHBN, Vol. IV, p. 266; DHBN, Vol. IV, p. 265.


42 Grifo nosso. DHBN, Vol. IV, p. 265.
43 No gráfico apresentamos a distinção entre os tipos de postos militares, mas para chegar a essa cifra os tra-

tamos aqui os ofícios militares de modo agregado, utilizando os seguintes dados: Tropa paga (55 provimen-
tos ou 33%); Milícia e Ordenança (49 provimentos ou 28%); Expedição (21 provimentos ou 12%) e Fortifica-
ção (11 provimentos ou 6%).
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Milícia e Ordenança se referem aos corpos não profissionais que exerciam funções
militares. Os oficiais de Milícia eram de modo geral “vassalos em tempo parcial, não assa-
lariados e arregimentados segundo seu lugar de origem” e estavam “organizadas em ter-
ços de base territorial – comarcas, freguesias – não remuneradas, a não ser quando em ser-
viço ativo” 44. No caso das ordenanças a composição da tropa eram feita por “homens que
não possuíam instrução militar sistemática nem recebiam soldos”, eram arregimentados
entre os “moradores locais não arrolados na milícia, que permaneciam em suas atividades
particulares e somente eram mobilizados em caso de perturbação da ordem pública” 45.
Os oficiais que alocamos na categoria Expedição eram aqueles que foram enviados
para expedições punitivas de negros e de indígenas, iniciativas que se tornaram freqüentes
na segunda metade do século XVII. A composição destas tropas era muito diversa e em
algumas ocasiões incluíam inclusive companhias de estrangeiros46. Os oficiais da categoria
Fortificação eram aqueles designados especificamente para guarnecer fortes, fortalezas e
plataformas. Possuíam grande importância no sistema defensivo, e até onde podemos per-
ceber sua composição também era bastante diversa, com oficiais que recebiam soldo e ou-
tros que nada recebiam além da distinção do ofício, “as honras e preeminências, que lhe
tocam” 47 e possíveis emolumentos 48.
Entre os demais ofícios listamos aqueles relacionados ao Governo, isto é, as paten-
tes que os governadores-gerais concediam aos capitães-mores de capitania para o governo
político e militar. Os ofícios de Fazenda e Justiça são relativos aos níveis inferiores e auxilia-
res da administração49, uma vez que cargos superiores como o de Provedor-mor, Prove-
dor, Ouvidor e Desembargador da Relação eram de provimento régio. Também encon-
tramos ofícios muito específicos como os de Mestre da Ribeira e Mestre dos Calafates dos
Galeões incluídos na categoria Construção Naval. Os provimentos relacionados na categoria
Indígenas se referem a provimentos de Capitães de Aldeia.
O provimento de ofício nos fornece um panorama geral sobre a gama de ofícios
existentes nos Estado do Brasil e de que modo o governo-geral se relacionava com a gestão

44 IZECKSOHN, Vitor. “Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares luso-
brasileiros”. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs) O Brasil Colonial. Vol. 3. (1720-1821). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 493. “Seus oficiais inferiores também eram eleitos entre os civis,
com apenas algumas patentes superiores” sendo providas pelo governo-geral e eram organizados “por cate-
gorias da população: brancos, ricos, comerciantes, pretos, forros, pardos, em corpos separados”. Loc. cit.
45 Loc. cit.
46 “Ordem que se passou ao Capitão João Pedy para ser Cabo de uma das tropas dos extrangeiros que vão á

mesma jornada do Sertão.” 03/09/1651. DHBN, Vol.XXXI, 103-104.


47 “Registro da patente do Alferes reformado Agostinho do Valle Capitão da plataforma da Gamboa do dis-

tricto da Patatiba.”. 30/04/1654. DHBN,Vol.XVIII, 304-306


48 Luiz Guilherme Scaldaferri analisa mais detidamente o perfil e as funções dos capitães de fortaleza do Rio

de Janeiro e indica como estas funções eram permeadas por significados e distinções importantes em nível
local. Cf. MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. Navegar, lutar, pedir e ... receber: O perfil e as concorrências
dos capitães das fortalezas de Santa Cruz e de São João nas consultas ao Conselho Ultramarino, na segunda
metade do XVII, no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História). PPFHIS/UFRJ, Rio de Janeiro. 2010.
49 Referimos-nos mais especificamente aos cargos de Almoxarife, Meirinho da Fazenda, Meirinho da Correi-

ção e Escrivão.
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dos mais variados níveis desta hierarquia. Se a predominância dos ofícios militares reflete
quantidade de cargos e a centralidade destes para o cotidiano da governação, por outro
lado percebemos que a jurisdição dos governadores-gerais poderia se estender até os ní-
veis mais inferiores e locais, refletindo na escolha de oficias para aldeias, vilas e freguesias.

Considerações finais

O governo-geral possuía uma ampla jurisdição sobre o Estado do Brasil, o que


permitia que sua influência na governação pudesse ser exercida a distância através da co-
municação política, obtendo informações e enviando ordens necessárias a condução do
governo. O provimento de ofícios também permitia ao governo-geral interferir na gestão
do cotidiano através da nomeação de oficiais e da delegação de determinadas funções.
As duas dinâmicas governativas que apresentamos neste texto nos revelam o pro-
tagonismo do governo-geral. Neste sentido, nosso objetivo foi caracterizar essas dinâmicas
e apresentar o potencial analítico que estas análises permitem. No caso da comunicação
política é possível reconstruir trocas de cartas recorrentes e identificar e acompanhar o de-
senvolvimento de determinados assuntos, assim como as relações estabelecidas entre os
interlocutores. Os provimentos, por outro lado, nos permitem identificar os critérios de
recrutamento e provimento de ofícios, possibilitando, de modo inicial, vislumbrar alguns
traços do perfil de alguns cargos, bem como as trajetórias de serviços. Além disso, pode-
mos identificar a dimensão e a importância que alguns ofícios detinham.
Nos trabalhos seguintes analisaremos estas questões de modo mais vertical a fim
de construir uma percepção mais profunda sobre as dinâmicas administrativas do gover-
no-geral do Estado do Brasil ao longo do século XVII.

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