Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Peter Drucker
O melhor de Peter Drucker
A Sociedade
Tradução
Edite Sciulli
Apresentação
A série de três volumes de “O melhor de Peter Drucker” visa oferecer aos leitores uma
visão geral do mundo de Drucker. Com mais de 90 anos de idade, o autor ainda tem a
mente jovem e continua escrevendo, ensinando e prestando serviços de consultoria
ativamente. O melhor de Peter Drucker mostra o que ler entre suas várias obras.
O Capítulo 2 é um excerto de “The despair of the masses” (Capítulo 2), “The return of
the demons” (Capítulo 3), “The totalitarian miracle” (Capítulo 5), “Fascist noneconomic
society” (Capítulo 6), e “Miracle or mirage” (Capítulo 7), de The end ofeconomic man
— the origins oftotalitarianism (1939), obra inicial de Drucker, que chegou a ser revisto
por Winston Churchill, e depois determinou que exemplares dela fossem distribuídas
aos graduandos da British Officer’s Candidate School.
Aqui Drucker afirma que o fim da crença no Homem Econômico que prometia
liberdade e igualdade originou o totalitarismo fascista nos países sem experiência e
tradição democráticas. Sabemos hoje que o totalitarismo que nega a liberdade não era a
resposta, mas teremos encontrado a resposta correta para uma sociedade não-
econômica em que as pessoas não vivem e morrem pela economia?
A Parte 3 versa sobre Política. Tendo iniciado sua carreira como cientista político,
Drucker percebe e concebe a política e o Estado com familiaridade. O Capítulo 9 e 10
são excertos de “From Rousseau to Hitler” (Capítulo 7), e de “The conservative
counterrevolution of 1776” (Capítulo 8), de Thefrture ofindustrial man, seu segundo
livro. Os leitores considerarão o Capítulo 9 chocante e o 10, indispensável. Altos
executivos da General Motors, então a maior, mais bem-sucedida e poderosa empresa
do mundo, que leram o livro convidaram Drucker para analisar sua organização. O
resultado foi Concept ofthe coporation (1946), que se tornou o livro-texto de muitas
empresas, incluindo a Ford Motor Company e a General Electric que se empenhavam
em sua reorganização. Essa análise também fez com que Drucker continuasse a estudar
as organizações e acabasse sendo chamado de o criador da administração de empresas.
O Capítulo 11 é um excerto de “The divide” (Capítulo 1), e de “No more salvation by
society” (Capítulo 2), de The new realities (1989), tão conhecido por nos mostrar a
futura queda do império russo. O Capítulo 12 é um excerto do Capítulo 3, “The end of
FDR’S America”, do mesmo livro. Em todos os países desenvolvidos está claro, hoje,
que nem a “salvação pela sociedade”, nem a integração de “blocos de interesse”
funcionam. O Capítulo 12 é um excerto do Capítulo 6, “From nationstate to megastate”,
de Post-capitalist society.
Drucker e eu trocamos mais de 100 cartas, principalmente por fax, para a produção
desta série. Nessa troca de informações, divergimos sobre a colocação desse artigo. Ele
não queria incluí-lo no início do volume “A Sociedade”. Estava certo. Tinha de ser o
artigo final de toda a série, porque ratifica a esperança e nós precisamos dela nesse
início do novo século. Alguns assuntos que o editor não pode incluir: sobre tecnologia e
instrumentos, sobre EUA, Europa, América Latina e Ásia. E um assunto dos mais
interessantes foi excluído: o próprio Drucker. Nesse particular, o editor recomenda,
Afterword:reflections of a social ecologist’, de The ecological vision, e os vários livros
escritos sobre o autor. E se você tiver interesse sobre o início de sua carreira, seu livro
Adventures of a bystander (1979) é extremamente útil.
Atsuo Ueda*
Nota de rodapé: * Atsuo Ueda, editor da obra de Peter Drucker no Japão, é responsável
pela compilaçáo que resultou em O melhor de Peter Drucker, cujo terceiro volume é
este.
Introdução
Atualmente fala-se muito sobre a nova economia, mas a nova sociedade, sobre
a qual ninguém fala, pode ser muito mais importante. Também é provável que ela
seja muito mais “nova” do que a economia do futuro.
Quais são as raízes da nova sociedade? Que tendências históricas do século XIX
fundamentam e orientam seu surgimento? Quais são as forças que a moldam? Estes são
os principais temas deste volume: O melhor de Peter Drucker — A Sociedade.
Sou mais conhecido por meus textos sobre administração, mas metade dos mais de
trinta livros que escrevi não trata desse tema, mas sim de sociedade e comunidade. E,
naturalmente, meu interesse em administração resultou de minha preocupação e
interesse pela sociedade e comunidade. Meu primeiro livro, escrito e publicado antes
mesmo da Segunda Guerra Mundial (The end ofeconomic man, 1938-39), procurava
entender e explicar o fracasso e a desintegração da sociedade européia, que levou ao
surgimento de Hitler, ao totalitarismo e, finalmente, à Segunda Guerra. E o seguinte,
alguns anos depois (Thefuture of industrial man, 1943), escrito nos primeiros anos da
Segunda Guerra Mundial, procurou desenvolver as instituições e conceitos básicos que
criariam novamente uma sociedade estável e atuante (trechos de ambos os livros estão
incluídos neste volume). Quando esses livros foram lançados, eles eram totalmente
“politicamente incorretos”. A opinião dominante naqueles dias, por exemplo, e
especialmente nos EUA, aceitava o marxismo como a base da teoria social e política, e
via no comunismo a sociedade do futuro. Ambos os livros, contudo, mostravam o
marxismo como já fracassado e esse fracasso como a principal razão para a queda da
Europa no abismo do totalitarismo. Na verdade, esses livros, escritos há cerca de
sessenta anos, esboçavam o que, depois de 1950, tornou-se de fato a socieda de que,
durante cinqüenta anos, proporcionou aos países desenvolvidos estabilidade social,
continuidade, previsibilidade e bom senso.
Mas logo percebi que essa sociedade da década de 1950 transformava-se rapidamente.
Cada capítulo selecionado para o presente volume prevê e discute uma dessas mudanças
fundamentais: o surgimento dos modernos empreendimentos comerciais como nova
organização de integração social (daí meu interesse por administração), que eu comecei
a identificar e questionar no início dos anos 1940; o surgimento do trabalhador de
conhecimento* e da sociedade do conhecimento (primeiro num livro publicado em 1959
e, então, com maior profundidade, em Age ofdiscontinuity, de 1969; o surgimento de
novas tecnologias, especialmente de informação, e com elas a sociedade empresarial. O
sucesso e fracasso do “Megaestado”, a profunda mudança demográfica com o rápido
aumento da população idosa, mas com taxas de nascimento caindo drasticamente; a
globalização da informação e da moeda, e assim por diante.
Já está claro que a Nova Sociedade será tão diversa da sociedade da segunda metade do
século XX quanto esta se diferenciou da sociedade da primeira metade do mesmo
século. E também já está claro quais são suas raízes históricas, suas realidades, seus
novos desafios e oportunidades, as forças que irão moldá-la. Esses são os temas de
discussão e de análise deste volume: as novas tendências, as novas realidades, os
desafios e oportunidades, as influências atuantes. Em outras palavras, este é um livro
sobre a Nova Sociedade, e não um livro sobre a sociedade a partir da qual estamos
rapidamente nos transformando. Mas não se trata de um livro de previsões. É um livro
de análise e descrição cujo objetivo é proporcionar idéias, conhecimento e opiniões.
Dos três volumes de O melhor de Peter Drucker, este foi o mais difícil para selecionar e
editar, devido ao grande número de material disponível. Mas este volume também
exigiu o difícil equilíbrio entre a percepção e a análise das tendências sociais, de fatos e
realidades, e uma sustentação conceitual e teórica sem a qual tendências e realidades
seriam apenas “dados estatísticos”. Portanto, realizá-lo representou um desafio
extraordinário para o editor de O melhor de Peter Drucker, meu velho amigo Atsuo
Ueda, tradutor e editor japonês. Tenho certeza de que qualquer leitor compartilhará
comigo a opinião de que o sr. Ueda solucionou esse desafio magistralmente. Sei que
falo em nome de todos os leitores deste livro ao lhe expressar todo meu
reconhecimento, gratidão e profunda admiração e espero que ele me permita expressar
pessoalmente minha carinhosa gratidão por quase trinta anos de amizade e cooperação
felizes, harmoniosas e produtivas.
Peter F. Drucker
Claremont, Califórnia
Outono, 2000
Dados biográficos
Publicou 31 livros que têm sido traduzidos em mais de vinte línguas. Treze deles tratam
de Sociedade, Economia e Política. São eles: The end of economic man (1939, 1995);
The future of industrial man (1942, 1994); The new society (1949, 1992); America ‘s
next twenty years (1957); Landmarks of tomorrow (1959, 1996); The age of
discontinuity (1969, 1992); Men, ideas and politics (Entails) (1971); The unseen
revolution (1976; publicado novamente sob o título Thepensionfund revolution, 1995);
Toward the next economics (Ensaios) (1981); The new realities (1989); The ecological
vision (Ensaios) (1992); Post capitalist society (1993); Drucker ou Asia: the
DruckerNakauchi dialogue (1996). Quinze livros tratam de Administração. São eles:
Concept of the corporation (1946, 1992); Thepractice of management(1954, 1992);
Managing for results(1964, 1992; Theeffectiveexecutive(1996, 1992); Technology,
management, and society (Ensaios) (1970); Management: tasks, responsibilities,
practices (1974, 1992); Managing in turbulent times (1980, 1992); The changing world
of the executive (Ensaios) (1982); Innovation and entrep reneurshz (1985, 1992);
Thefrontiers ofmanagement (Ensaios) (1986, 1997); Managing the nonprofit
organization (1990); Managing for thefuture (Ensaios) (1992); Managing in a time
ofgreat change (Ensaios) (1995); Peter Drucker on theprofession ofmanagement (1998);
e Management challenges for the 2lst century (1999). Dois livros são romances: The
last ofailpossible worlds (1982), e The temptation to so good (1984). Um livro é
autobiográfico: Adventures ofa bystander (1979; 1991;1994). Drucker também é co-
autor deAdventures ofthe brush;japanese paintings (1979). Ele fez quatro séries de
filmes educativos baseados em seus livros de administração. Drucker é colaborador
freqüente de revistas, e foi colunista de The WallStreetJournalde 1975 a 1995.
PARTE 1 – SOCIEDADE
Em sua vida social e política, o homem precisa dispor de uma sociedade funcional da
mesma forma que precisa do ar para respirar em sua vida biológica. Entretanto, o fato
de que o homem precisa da sociedade não significa necessariamente que ele a tem.
Ninguém chama a massa humana desorganizada, aterrorizada e tresmalhada em um
navio naufragado de “sociedade”. Isso não é sociedade, embora sejam seres humanos
reunidos num grupo. Na verdade, o pânico é resultado direto do colapso da sociedade; e
a única maneira de superá-lo é restabelecendo uma sociedade com valores, disciplina,
poder e organização sociais.
A vida social não pode funcionar sem uma sociedade, mas é concebível que não
funcione de fato. As evidências dos últimos vinte e cinco anos de civilização ocidental
dificilmente nos habilitam a dizer que nossa vida social funcionou tão bem a ponto de
produzir uma situação evidente para a existência de uma sociedade funcional.
Definir uma sociedade é tão impossível quanto definir a vida. Estamos tão próximos a
ela que as características simples e básicas desaparecem sob uma massa complexa e
atordoante de detalhes. Fazemos também parte integrante dela de tal maneira que é
impossível ver o todo. E, finalmente, não existe uma linha bem definida, nenhum ponto
em que a ausência de vida se transforma definitivamente em vida, a
Nota de rodapé: * * Este capítulo foi extraído de Thefrture of industrial man, publicado
em 1942.
Página 17
ausência de sociedade definitivamente em sociedade. Mas, embora não saibamos o que
é a vida, todos sabemos quando um corpo vivo deixa de sê-lo e se transforma num
cadáver. Sabemos que o corpo humano não pode funcionar como um corpo vivo se o
coração pára de bater ou os pulmões param de respirar. Enquanto houver um batimento
cardíaco ou uma respiração, há vida nesse corpo; sem eles há somente um cadáver. Da
mesma forma, a impossibilidade de não podermos dar uma definição normativa para
sociedade não nos impede de compreendê-la funcionalmente. Nenhuma sociedade pode
operar como sociedade a menos que conceda ao seus membros posição e função social,
e a menos que o poder social decisivo seja um poder legítimo. O primeiro estabelece a
estrutura básica da vida social: o objetivo e o significado de sociedade. O último molda
o espaço dentro da estrutura: torna a sociedade concreta e cria suas instituições. Se o
indivíduo não tem posição ou função social, não pode haver sociedade, mas somente
uma massa de átomos sociais percorrendo o espaço sem objetivo ou propósito. E, a
menos que o poder seja legítimo, não pode haver material social, mas apenas uma vácuo
social que se mantém unido por mera submissão ou inércia.
Nada mais natural do que questionar quais desses critérios é mais importante ou quais
desses princípios de vida social vêm em primeiro lugar. Essa questão é tão antiga quanto
o próprio pensamento político, originando a primeira divergência significativa da teoria
política, a de Platão e Aristóteles, entre a prioridade do objetivo da sociedade e de sua
organização institucional. Mas essa é uma questão insignificante, embora consagrada
pela antigüidade e por nomes famosos. Não pode haver questão de primazia — nem no
espaço de tempo, tampouco em importância — entre conceitos e instituições políticos
básicos. Realmente, o fato de terem sempre um pólo na esfera conceitual de crenças,
metas, desejos e valores e outro na esfera pragmática dos fatos, instituições e
organizações constitui a verdadeira essência da ação e do pensamento políticos. Sem
esses dois não existe política. O pólo puramente conceitual pode representar uma boa
filosofia ou ética; o exclusivamente pragmático, um bom jornalismo ou uma boa
antropologia. Sozinhos, nenhum dos dois pode resultar numa boa política ou, sequer, em
alguma política.
Não há sociedade para o indivíduo a menos que ele desfrute de posição e função sociais.
A sociedade é significativa apenas se seus objetivos, suas metas, suas idéias e ideais
Página 18
fizerem sentido em termos dos objetivos, das metas, das idéias e ideais do indivíduo.
Deve existir um relacionamento funcional definido entre a vida do indivíduo e a do
grupo.
O fato de o indivíduo precisar desfrutar de posição e função social é tão importante para
a sociedade quanto para ele. A menos que o objetivo, as metas, as ações e os motivos do
indivíduo estejam integrados ao objetivo, às metas, às ações e aos motivos da sociedade,
essa sociedade não pode compreendê-lo ou incluí-lo.
Poder legítimo
O poder legítimo origina-se da mesma crença básica da sociedade que diz respeito à
natureza e à realização do homem sobre a qual repousam a função e a posição sociais do
indivíduo. Na verdade, o poder legítimo pode ser definido como a soberania que
encontra sua justificativa no etos básico da sociedade. Em toda sociedade há vários
poderes que nada têm a ver com esse princípio básico, e instituições que não
Página 19
Isso não significa que seja irrelevante o fato de poderes e instituições não-determinantes
da sociedade estarem em contradição com seus princípios básicos. Pelo contrário, os
problemas mais sérios na política originam-se nesses conflitos. E uma sociedade pode
muito bem sentir que uma instituição ou poder não-determinantes contrastam de
maneira tão flagrante com suas crenças básicas que põe em perigo a vida social, apesar
de seu caráter não-determinante. O melhor exemplo é o da Guerra Civil Americana
quando percebia-se que a escravidão no Sul punha em risco toda a estrutura de uma
sociedade livre. Antes da Guerra Civil, no entanto, a força decisiva dos EUA era,
indubitavelmente, um poder legítimo baseado no princípio de liberdade, e exercido
através de instituições organizadas e voltadas para a liberdade. Portanto, a sociedade
americana funcionava como uma sociedade livre. Naturalmente, foi somente por
funcionar dessa maneira que sentia a escravidão como uma ameaça.
Nada pode ser mais inútil do que medir uma sociedade contando cabeças, e recebimento
de impostos ou comparando níveis de renda. Determinante é um termo político, e isso
significa que é puramente qualitativo. A aristocracia inglesa nunca constituiu mais do
que uma pequena fração da população; além disso, após a ascensão dos mercadores e
fabricantes ela possuía apenas uma parcela muito modesta da riqueza e renda nacionais.
Todavia, conservou o poder social decisivo até nossos tempos. Suas instituições eram
fundamentais na sociedade inglesa. Suas crenças formaram a base da vida social; seus
padrões, os padrões representativos; seu modo de vida, o padrão social. E seu ideal
pessoal, os cavalheiros, continuaram a ser o tipo ideal de toda a sociedade. Seu poder
não era apenas determinante, era legítimo.
Da mesma forma, leis e constituições raramente dizem, se é que o dizem, onde reside o
poder determinante. Em outras palavras, a soberania não é idêntica ao controle político.
A soberania é um controle social e político, integralmente uma categoria legitimada.
Entre 1874 e 1914, o Exército Prussiano era, por exemplo, raramente mencionado na
Constituição Imperial Alemã; no entanto, não há dúvidas de que detinha poder decisivo
e, provavelmente, legitimidade. O governo era realmente subordinado ao exército,
apesar do parlamento civil e normalmente antimilitarista.
Página 20
simples questões policiais destinadas a apoiar e a manter a organização social das tribos
dentro da estrutura puramente normativa de “lei e ordem”. No entanto,
constitucionalmente, o governador e a assembléia administrativa detêm poder absoluto.
Pelo mesmo motivo, ele não pode ser limitado. Limitar o exercício do poder é fixar
linhas além das quais o poder deixa de ser legítimo, isto é, deixa de realizar o objetivo
social básico. E se, para começar, o poder não é legítimo, não há limites além dos quais
ele deixa de ser legítimo.
Ninguém que detenha o poder de forma ilegítima pode exercê-lo de forma satisfatória e
sensata. O poder ilegítimo corrompe invariavelmente; pois ele pode ser apenas “força”,
jamais autoridade. Ele não pode ser um poder controlado, limitado, responsável ou
racionalmente determinável. É um axioma da política — desde que, Tácito em sua
história sobre os imperadores romanos nos mostrou inúmeros casos e que nenhum ser
humano, por melhor, mais sensato ou criterioso que seja, pode controlar o poder
incontrolado, irresponsável, ilimitado ou racionalmente não-determinado sem se tornar
prontamente arbitrário, cruel, desumano e caprichoso — em outras palavras, um tirano.
O que provamos até agora? RESPOSTA.Que a sociedade não pode ser funcional a
menos que confira posição e função sociais ao indivíduo, e a menos que seu poder
socialmente determinante seja legítimo. A isso podemos chamar de “pura teoria da
sociedade” e, como em todas as “teorias puras”, é exclusivamente formal. Ela nada diz
sobre o conteúdo de uma sociedade, sobre liberdade, religião, igualdade, justiça, direitos
individuais, progresso, paz e todos os outros valores da vida social. E pensar, como
pensam atualmente muitos engenheiros de eficiência social, que ser funcional é tudo
que importa na vida social, é compreender de modo totalmente equivocado os limites e
a importância da simples eficiência. A eficiência funcional em si nada representa, a
menos que tenhamos a resposta à pergunta: eficiência a que preço e para que objetivo?
Pagina 21
Talvez a falácia maior de nossa era seja o mito das massas que glorifica a multidão
amorfa, desintegrada e sem sociedade. Na verdade, as massas são produto da
decomposição social e perturbam a ordem social.
O perigo não reside numa “revolta das massas”, como pensava Ortega y Gasset. A
revolta ainda é, afinal, uma forma de participação na vida social, mesmo que apenas sob
forma de protesto. As massas são completamente incapazes de qualquer participação
social ativa que pressuponha valores sociais e uma organização da sociedade. O perigo
das massas reside precisamente em sua incapacidade de participar, em sua apatia,
indiferença cínica e completo desespero. Como não dispõem de posição e função
sociais, sociedade para elas nada é além de uma ameaça demoníaca, irracional e
incompreensível. Como não têm crenças básicas que poderiam servir de base a um
poder legítimo, qualquer autoridade legítima lhes parece tirânica e arbitrária. As massas,
portanto, estão sempre dispostas a seguir um apelo irracional ou a submeter-se a um
tirano arbitrário, bastando que este prometa uma mudança. Como párias da sociedade,
as massas nada têm a perder — nem mesmo seus grilhões. Sendo amorfas, não possuem
estrutura própria que possa resistir a uma tentativa tirânica arbitrária de moldá-las.
Pagina 22
Pagina 23
Pagina 24
Todos sabemos que essa promessa era ilusória, O progresso econômico não traz
igualdade, nem mesmo a igualdade formal da “oportunidade igual”. Em vez disso, ele
produz as novas desigualdades de classes e classes extremamente rígidas. E tão difícil
para o proletariado — pelo menos na Europa — ascender à pequena burguesia quanto é
para a pequena burguesia chegar à classe dos empresários. Se as classes da moderna
sociedade industrial não são hereditárias por lei, na prática o são. Provavelmente, era
mais fácil chegar ao topo na sociedade dos séculos XVII e XVIII, uma vez dado o
primeiro passo para ascender da camada inferior da massa amorfa, do que é para a
sociedade européia do século XX ascender da classe em que nasceu para uma classe
mais alta.
Pagina 25
O capitalismo provou ser um falso deus por conduzir inevitavelmente a uma luta de
classes, classes essas rigidamente definidas. O socialismo provou ser ilusório pois
tornou evidente que não pode abolir essas classes. A sociedade de classes da realidade
Pagina 26
capitalista é incompatível com a ideologia capitalista a qual, conseqüentemente, deixa
de fazer sentido. A luta de classes marxista, por outro lado, embora reconheça e
explique a verdadeira realidade, deixa de ter qualquer significado porque não leva a
nenhum lugar. Ambas as doutrinas e ordens sociais fracassaram porque o conceito de
que o exercício da liberdade econômica pelo indivíduo gera conseqüências automáticas
era ilusório.
Esse fracasso exerce repercussões muito diretas sobre a esfera econômica e torna sem
sentido ou, pelo menos, duvidosas, todas as instituições da vida política. Mas um efeito
mais profundo atinge o conceito fundamental sobre o qual toda a sociedade se baseia: o
conceito que o homem tem de sua própria natureza, de sua função e de seu lugar na
sociedade. A prova de que a liberdade econômica do indivíduo não conduz automática
ou dialeticamente à igualdade destruiu o conceito da natureza do homem no qual tanto o
capitalismo quanto o socialismo se baseavam: o Homem Econômico.
À primeira vista pode parecer que a ciência econômica nunca foi mais importante do
que agora e que, conseqüentemente, o mesmo estaria acontecendo com a crença na
sociedade do homem econômico. Uma nação após outra vem confiando a administração
de seus negócios ao economista habilitado. Ele é procurado para ocupar posições de
executivo e de líder político, como conferencista e comentarista de rádio. Mas essa
aparência superficial é enganosa. Supervalorizamos o economista num último esforço
desesperado para salvar a sociedade do homem econômico, como no século XVIII foi
supervalorizado o filósofo — o racionalista, “iluminado”, o sábio historicamente
treinado — e os colocamos em tronos instáveis. E falharam igualmente, o filósofo-rei
no século XVIII e o economista primeiro-ministro do século XX.
Pagina 27
Quando essa ordem ruiu, a liberdade e a igualdade passaram a ser projetadas numa
esfera intelectual. A doutrina luterana, que fez o homem decidir seu destino usando o
intelecto livre e igualitário na interpretação das Escrituras, é a metamorfose suprema —
embora não a única, tampouco a última — da ordem do Homem Intelectual. Após seu
colapso, a liberdade e a igualdade passaram a ser numa esfera social: o homem tornou-
se primeiro o Homem Político e depois o Homem Econômico. A liberdade e a igualdade
tornaram-se a liberdade e a igualdade sociais e econômicas. A natureza do homem
tornou-se o exercício de seu lugar na ordem social e econômica na qual sua existência
encontrou explicação e razão.
O marxismo deve sua tremenda força religiosa à subordinação à liberdade. Essa força
conferiu à doutrina sua inevitabilidade, sua certeza do sucesso final e sua fascinante
finalidade intelectual. Sem ela, a necessidade de acreditar que a sociedade sem classes
chegaria, porque a sociedade sempre fora uma sociedade de luta de classes, ou que a
maior desigualdade traria a verdadeira igualdade, teria parecido absurda — e não apenas
numa era “racional”. Mas o marxismo deve a ela também sua natureza dogmática e
inflexível. Sua força intelectual é tão rigorosa que todo o edifício ameaça ruir se uma
pedra for tocada. Nada pode ser mudado no marxismo sem que se abandone a meta de
liberdade ou a promessa de sua obtenção. Isso explica a extrema vulnerabilidade da
crença no marxismo e a rapidez com que ele se desintegrou, tão logo questionou-se se a
sociedade socialista livre e igualitária seria uma meta atingível.
Em 1848, na Europa, o capitalismo como meio de se obter a liberdade e a igualdade
mostrou-se ilusório; no entanto, até ontem uma minoria bastante significativa ainda
acreditava nele. O socialismo, por outro lado, não alcançou a posição de doutrina
Pagina 28
representativa até o final do século XIX. Menos de vinte e cinco anos separam a
primeira grande vitória eleitoral dos trabalhadores alemães de sua derrota em 1932
quando, com o apoio de metade da população, sofreram sem protestar a expulsão física
de seu governo legalmente eleito pelo governo pré-Hitler de von Papen, completamente
impotente, que não recebeu apoio do exército, da polícia ou de qualquer outro grupo. E
menos de doze meses depois eles aceitaram com resignação a destruição de todas as
conquistas realizadas em décadas de duras lutas. Com o colapso da doutrina marxista,
qualquer sociedade baseada na soberania e autonomia da esfera econômica torna-se
inválida e irracional, porque a liberdade e a igualdade não podem ser conseguidas nela e
por meio dela. Mas enquanto os antigos sistemas capitalista e socialista se
desintegravam sem chances de recuperação e futuro desenvolvimento, não surgiu
nenhum sistema novo. Como vimos anteriormente, é um aspecto característico de
nossos tempos que nenhum novo conceito da natureza do homem tenha sido elaborado
para tomar o lugar do Homem Econômico. Nenhuma esfera da atividade humana
propõe a liberdade e a igualdade. Embora a Europa se torne, portanto, incapaz de
explicar e justificar suas antigas ordens sociais com e a partir de seus velhos conceitos,
ela ainda não adquiriu ou desenvolveu um novo conceito que possa originar novos
valores sociais válidos, uma nova razão para uma nova ordem e uma explicação para o
lugar do homem.
Com o colapso do homem econômico, o indivíduo é privado de sua ordem social, e seu
mundo, da existência racional. Ele não pode mais explicar ou compreender sua
existência como racionalmente correlacionada e coordenada ao mundo em que vive;
tampouco pode coordenar o mundo e a realidade social à sua existência, O papel do
indivíduo na sociedade se tornou totalmente irracional e sem sentido. O homem está
isolado dentro de uma tremenda máquina, cujo objetivo e significado ele não aceita e
não pode traduzir em termos de sua experiência. A sociedade deixa de ser uma
comunidade de indivíduos unidos por um objetivo comum e se torna um tumulto
caótico de mônadas isoladas e sem objetivo.
Pagina 29
tola e ingênua nos milagres do passado, pareça raciocínio perspicaz e crítico.
Estamos convencidos hoje de que todos os alquimistas que alegaram ter encontrado a
pedra filosofal eram charlatães, e de que todos os príncipes, filósofos e eruditos
enganados eram somente campônios iletrados. Da mesma forma, um tempo futuro
provavelmente julgará que as pessoas deviam ser tolas ou tratantes por acreditar
firmemente hoje que todos os nossos males poderiam se curar, bastando encontrar a
cada dia a fórmula para o preço certo do ouro ou aumentar a velocidade da circulação de
dinheiro. Semelhante espera por um milagre inspira as teorias de que se pode criar ou
aumentar a riqueza destruindo-se bens ou reduzindo a produção, ou distribuindo a
riqueza existente de outra maneira. No entanto, todas essas sugestões e crenças são
sérias e sinceras, e se originam de uma tentativa pateticamente racional de encontrar a
alavanca pela qual a máquina tornada irracional e caótica pode ser novamente obrigada
a servir aos propósitos para as quais foi projetada.
A opinião de que os demônios econômicos devem ser banidos, mesmo que se tenha de
desistir de tudo o mais, tem triunfado no campo da economia. As massas não podem
resistir a um mundo governado por forças demoníacas. Em toda a Europa, as crenças e
dogmas da sociedade do homem econômico foram julgadas considerando-se apenas se
ameaçam incitar os demônios ou prometem afastá-los ou expulsá-los. A tendência de
subordinar todos os fatos a essa nova e importantíssima meta reverteu nossa posição
quanto a considerarmos o progresso econômico desejável.
Pagina 30
A partir dessa rejeição ao progresso econômico em áreas restritas, nos últimos anos
avançamos para a rejeição total do progresso. Nem mesmo os discursos louvam o deus
do progresso. Em seu lugar, a segurança — segurança em relação às crenças
econômicas, ao desemprego, ao progresso — tornou-se a meta universal suprema. Se o
progresso impede a segurança, então o progresso deve ser repudiado. E, no caso de
ocorrer uma nova crise, nenhum país europeu hesitará em introduzir medidas que,
embora impeçam o progresso e representem retrocesso econômico e empobrecimento
duradouro, possam talvez expulsar os demônios ou, pelo menos, mitigar sua investida
violenta. Em relação à democracia, tem-se instalado a mesma subordinação às antigas
crenças e instituições. Os antigos objetivos e conquistas da democracia: proteção das
minorias dissidentes, esclarecimento de questões por meio da livre discussão, solução
conciliatória entre iguais não ajudam na nova tarefa de expulsar os demônios.
Conseqüentemente, as instituições projetadas para concretizar esses objetivos tornaram-
se inexpressivas e irreais. Elas já não são boas, elas não são más; elas apenas são
totalmente insignificantes e ininteligíveis para o homem comum. Este é incapaz de
compreender que a cidadania e o direito ao voto para as mulheres foram questões
políticas de primeira ordem há apenas vinte anos. Os otimistas podem enganar a si
mesmos acreditando que essa apatia deve-se a simples “erros técnicos”. A representação
proporcional é anunciada como uma panacéia na Inglaterra, assim como sua extinção
foi pregada na Alemanha pré-Hitler. Mas a essência da democracia enfraquecida não
pode ser salva por uma fórmula mecânica. A democracia ainda pode exercer uma forte
atração sentimental enquanto estiver profundamente enraizada e presente na consciência
histórica e na tradição do povo como algo pelo qual ele lutou e sofreu. Mas essa atração
cai por terra assim que ela é confrontada com uma realidade que exij a como preço a ser
pago pela expulsão dos demônios o abandono da democracia.
Finalmente, o próprio conceito de liberdade foi rebaixado e desvalorizado. Foi provado
que a liberdade econômica não leva à igualdade. Agir para obter maior vantagem
econômica — a essência da liberdade econômica — perdeu o valor social que lhe era
atribuído. Independentemente do fato de ter passado a fazer parte da verdadeira natureza
do homem colocar seus interesses econômicos em primeiro lugar, as massas deixaram
de considerar o comportamento econômico como socialmente benéfico em si, visto que
é incapaz de gerar igualdade. Portanto, restringir ou abandonar a liberdade econômica é
uma atitude aceita ou mesmo bem-vinda se, dessa forma, a ameaça de desemprego, o
perigo de uma crise econômica ou os riscos de sacrifícios econômicos puderem ser
menos iminentes.
Pagina 31
Fascismo
Podemos encontrar a mesma peculiaridade na forma pela qual a Europa esvazia a
substância de outros objetos de reverência dos sistemas capitalista e socialista. A
economia de livre empresa, o reconhecimento da motivação de lucro como uma força
socialmente construtiva e a autonomia do progresso devem ser deixados de lado quando
as massas ficam convencidas de que elas evocam as formas demonfacas da crise. No
entanto, a fachada da administração, das finanças, dos preços, dos cálculos, da
contabilidade, da produção e da distribuição da indústria manufatureira deve ser
mantida. Isso é chamado de “verdadeiro capitalismo” ou “verdadeiro socialismo”. No
campo político, a liberdade política individual, os direitos dos grupos socialmente mais
fracos — isto é, das minorias — a crença na sabedoria da “volontégénérale”, na
soberania do povo e nos princípios da representação popular — perderam sua validade e
estão sendo abandonados. No entanto, a forma aparente da democracia formal — a
Pagina 32
As formas de democracia
Para responder à questão sobre o que teria causado o colapso da democracia na Itália e
na Alemanha precisamos descobrir características sociais e políticas comuns a esses
dois países que não são partilhadas pelo resto da Europa. Existe apenas uma, e ela pode
ser descrita de várias maneiras. Pode-se dizer que nesses dois países a ordem burguesa
foi estabelecida de cima para baixo e não por meio de uma revolução das camadas
inferiores. Ou pode-se dizer que, embora a Itália e a Alemanha dispusessem de
instituições democráticas e uma burguesia e um proletariado numericamente fortes,
essas classes nunca obtiveram o controle ativo do governo; o “professor político” na
Alemanha e o “advogado político” na Itália tiveram um desempenho social
insignificante, mesmo quando admitidos a cargos governamentais. Ou, finalmente,
pode- se dizer que a Itália, a Alemanha e as regiões ocidentais da antiga monarquia
austrohúngara limitaram o ocidente à democracia européia — um tipo de fronteira
militar em que o domínio da democracia nunca esteve completamente seguro. Todas
essas formulações têm um único significado: o grande acontecimento importante do
século XIX na Itália e na Alemanha que teve forte apelo junto às massas, emocional e
sentimentalmente, não foi a vitória da ordem burguesa, mas a unificação nacional. Os
movimentos revolucionários eram antes de mais nada nacionais e, em segundo lugar,
democráticos. Travaram-se guerras e corria sangue em nome da unidade nacional. A
ordem burguesa foi aceita primeiramente como um meio de alcançar a unificação
nacional. Os dogmas e lemas da burguesia não dispunham de atrativo sentimental; sua
força residia em sua promessa e em seu conteúdo sociais. Não tinham portanto uma
existência emocional e sentimental própria para conquistar a adesão das massas. Assim
que se percebeu que o conteúdo havia se tornado inválido, os dogmas burgueses
deixaram de existir de todo. Por outro lado, na Inglaterra, na França, na Holanda e nos
países escandinavos, a vivência e a tradição que estão arraigadas no povo são a luta pela
democracia. A unidade nacional havia sido alcançada muito antes e, portanto, a própria
doutrina democrática adquiriu um valor emocional.
Pagina 34
fascismo e o nazismo são revoluções sociais, mas não são socialistas; mantêm o sistema
industrial, mas não são capitalistas.
Mussolini e Hitler, como tantos líderes revolucionários antes deles, provavelmente não
entendiam a natureza de suas revoluções, tampouco tencionavam ir além da denúncia
dos “abusos” de ambas as partes. Mas, como já explicamos, a necessidade social os
obrigou a inventar novas satisfações e distinções não-econômicas e, finalmente, iniciar
uma política social com o objetivo de construir uma sociedade não- econômica
abrangente lado a lado e dentro de um sistema industrial de produção.
O primeiro passo nessa direção foi oferecer às classes mais baixas e desprivilegiadas
parte da parafernália não-econômica do privilégio econômico. Essas tentativas estão
amplamente desenvolvidas nas organizações fascistas das horas de lazer dos
trabalhadores: “Dopo lavoro” (“Após o trabalho”) na Itália, “Kraft durch Freude”
(“Força através da alegria”), na Alemanha. É claro que essas organizações compulsórias
são projetadas principalmente como um meio de controlar politicamente uma classe
potencialmente perigosa e hostil. Elas são infiltradas por propagandistas e espiões da
polícia cujo dever é evitar a realização de quaisquer reuniões de trabalhadores, a menos
que adequadamente supervisionadas. As atrações oferecidas por essas organizações
funcionam como subornos para os trabalhadores. Mas — e essa é sua característica
importante — elas não procuram oferecer recompensas financeiras como suborno,
embora essa seja a forma tradicional que provou ser eficiente, dos romanos ao regime
comunista na Rússia. Embora subornos em dinheiro provavelmente fossem mais
baratos, as organizações fascistas de lazer para os trabalhadores oferecem, além da
propaganda e do habitual programa de educação política e técnica, prazeres em forma
de entradas de teatro, ópera e concertos, viagens para os Alpes e países estrangeiros,
cruzeiros pelo Mediterrâneo e pela África no inverno, cruzeiros para Cabo Norte no
verão, etc. Em outras palavras, elas oferecem o típico “desperdício notável” de uma
classe rica e privilegiada. Essas atividades prazerosas não têm nenhum valor econômico
em si, mas são poderosos símbolos de posição social. Têm o propósito de indicar certa
igualdade social que compensaria a contínua desigualdade econômica.
Pagina 35
Elas são aceitas como tal por uma grande parte da classe trabalhadora, especialmente na
Alemanha, onde mesmo os marxistas mais inveterados consideravam os prazeres
culturais mais elevados, importantes e valiosos do que muitas recompensas econômicas.
As organizações voltadas para o lazer desempenham, portanto, uma função definida e
altamente importante na implementação do fascismo. Elas fazem com que a
desigualdade econômica existente pareça muito menos intolerável do que antes.
Contudo, elas não justificam nem tornam razoável a desigualdade. Podem aliviar o
problema, mas não solucionam ou o fazem desaparecer, pois as diferentes classes ainda
ocupam papéis e posições sociais desiguais na comunidade. Esta é a razão para o
ressurgimento da teoria orgânica da sociedade, que proclama a harmonia social das
classes economicamente desiguais e antagônicas. A comparação do corpo político a um
corpo humano sempre serviu para enfatizar a igualdade entre as várias classes em
termos de função econômica e importância econômica a fim de justificar uma existente
desigualdade social não-econômica, O fascismo, por outro lado, usa a teoria orgânica
para criar uma igualdade de importância, status, e papel social não-econômicos a fim de
equilibrar a desigualdade econômica das classes.
Tudo isso é ainda mais surpreendente considerando-se que o fascismo original- mente
pretendia assumir, sem alterações, a antiga teoria como prova da verdadeira existência
de harmonia econômica. Os “estados” econômicos em que a teoria totalitária divide a
sociedade foram concebidos como unidades econômicas que deveriam complementar-se
umas às outras na forma tradicional. Na realidade social e política dos estados
totalitários, contudo, os “estados” tornaram-se unidades sociais que reivindicam
diferença social, papel social e igualdade social próprias, inteiramente independentes de
suas funções e contribuições econômicas e de ser ou não indispensáveis.
Pagina 36
status econômico pelo controle compulsório da safra. Sua posição social, contudo,
tornou-se supostamente independente do status econômico. E é, segundo a teoria
fascista, a posição social que realmente determina a posição e o papel do camponês na
sociedade. Tentativas semelhantes foram feitas para desfazer a ligação entre o status
social e econômico das outras classes e para basear sua posição social em considerações
fora da esfera econômica. À importância, indispensabilidade e igualdade sociais da
classe trabalhadora é conferida expressão simbólica na conversão do 1” de Maio
socialista em um festival do Trabalho e em sua elevação ao mais importante feriado do
nazismo. Se o camponês é a espinha dorsal biológica da nação, o trabalhador é a
espiritual. Ele corporifica o novo conceito humano que o fascismo procura desenvolver
— o Homem Heróico, com sua disposição para o auto-sacrifício, sua autodisciplina, sua
auto-abnegação, e sua “igualdade interior” — tudo isso independente de seu status
econômico. Assim como o trabalho agrícola compulsório é o símbolo da superioridade
social do camponês em relação à população urbana, o serviço operário que todos os
adolescentes, independentemente de sua posição econômica, são obrigados a realizar,
simboliza a superioridade social do operário em relação às classes ricas.
Já a classe média é distinguida por outra característica não-econômica que lhe garante
uma posição social igualitária. Ela é declarada o “padrão da cultura nacional”. O
“Fuehrer Prinzip”, o princípio heróico de liderança pessoal, confirma a classe de
empreendedores da indústria em sua posição social. Esse princípio é supostamente
desvinculado de questões econômicas. O líder não deve seu papel e posição social a seu
papel e riqueza econômicos. A tese de que um líder precisa se qualificar no campo
espiritual e se despojar de sua posição econômica se falhar naquele aspecto, é levada
totalmente a sério por seus criadores — e por muitos outros.
Pagina 37
Militarização totalitária
À primeira vista pode parecer que, como afirmam os marxistas, a Wehrwirtschafi nada
mais é do que um disfarce para a total escravização do trabalhador sob o domínio do
expropriador capitalista. Ela destrói todas as suas liberdades e reprime seus sindicatos.
Não é permitido ao trabalhador entrar em greve. Deve cumprir a jornada de trabalho que
lhe é imposta. Não pode demitir-se ou mudar de emprego. Não tem permissão de mudar
de cidade sem autorização, tampouco de deixar o país. Empregados assalariados são
tratados de maneira semelhante dando a impressão de que sua proletarização social e
política atende ao projeto que a teoria marxista propõe para o capitalismo. Traduzido em
termos econômicos, isso significa que o empregado não dispõe mais de nenhum
controle ou liberdade. Ele também deve obedecer ordens sem retrucar, mesmo quando
Pagina 38
O que quer que seja esse sistema, certamente não é capitalista. Trata-se de um sistema
industrial de produção em que a base econômica foi substancialmente eliminada.
Pagina 39
A continuidade da história
Pagina 40
Mas o caráter dinâmico de nossa história, representa toda nossa força e, também, nossa
fraqueza, pois torna inevitáveis períodos de transição como o presente. E se hoje as
massas européias preferem a magia negra do totalitarismo a um mundo sem ordem e
uma sociedade sem sentido, isso demonstra apenas que a energia da Europa é ainda
vibrante.
Pagina 41
Pagina em branco
Pagina 42
Pagina 43
Pagina 44
Em 1883, ano da morte de Marx, os “proletários” ainda eram o contingente menor dos
trabalhadores da indústria. A maior parte desses trabalhadores eram operários
qualificados, empregados em pequenas oficinas com cerca de vinte ou trinta
empregados, no máximo. Por volta de 1900, trabalhador industrial havia se tornado
sinônimo de operador de máquinas em uma fábrica que empregava centenas, quando
não milhares, de pessoas. Esses trabalhadores de fábricas eram, realmente, os
proletários de Marx, sem posição social, poder político, econômico ou de compra.
Os trabalhadores de 1900 — e mesmo de 1913 — não recebiam aposentadoria, férias
pagas, horas extras, adicional por trabalho noturno ou no domingo, seguro-saúde
(exceto na Alemanha), seguro-desemprego e tampouco tinham garantia de emprego.
Uma das primeiras leis a limitar a jornada de trabalho para adultos do sexo masculino
— promulgada na Austria em 1884 — estabeleceu a jornada de onze horas por dia, seis
dias por semana. Os trabalhadores industriais, em 1913, trabalhavam um mínimo de
3.000 horas por ano, em todos os lugares. Seus sindicatos ainda eram oficialmente
proibidos ou, na melhor das hipóteses, apenas tolerados. Mas os operários mostraram a
habilidade de se organizar e de agir como uma “classe”.
Pagina 45
Em outros países desenvolvidos de livre mercado a queda foi inicialmente mais lenta,
mas após 1980 começou a acelerar em todos os lugares. No ano de 2000 ou 2010, os
operários de indústrias não representarão mais de 1/10 ou, no máximo, 1/8 de toda a
força de trabalho em todos os países desenvolvidos de livre mercado. O poder dos
sindicatos tem decrescido com a mesma rapidez. Enquanto nas décadas de 1950 e de
1960 o Sindicato Nacional dos Mineiros do Reino Unido derrubou ministros com
facilidade, nos anos 1980 Margaret Thatcher venceu eleição após eleição por desdenhar
abertamente a mão-de-obra organizada e por reduzir gradativamente seu poder político
e seus privilégios. O operário da indústria manufatureira e seu sindicato seguem o
mesmo caminho do fazendeiro.
Seu lugar foi tomado pelo “tecnólogo”, isto é, pessoas que trabalham com as mãos e
com conhecimento teórico. (Como exemplo, temos os técnicos de computação, ou na
área médica, os técnicos de raios X, fisioterapeutas, técnicos de laboratório, e assim por
diante, que pertencem ao grupo de maior crescimento na força de trabalho nos EUA
desde 1980.) E, em vez de uma classe, isto é, um grupo coerente, reconhecível, definido
e autoconsciente, o operário da indústria manufatureira pode logo se tornar apenas
um “grupo de pressão”
Pagina 46
A única explicação para esse fato é que para a comunidade operária branca o
desenvolvimento não representou surpresa, por mais indesejável, doloroso e ameaçador
que fosse para o trabalhador e para as famílias. Os operários americanos devem ter sido
preparados psicologicamente — talvez em termos de valores, e não em termos de
emoções — para aceitar como correta e adequada a mudança para empregos que exigem
educação formal e que remunerem pelo conhecimento e não pelo trabalho manual,
qualificado ou não.
Uma possível explicação pode ser a Declaração de Direitos proclamada após a Segunda
Guerra Mundial que, ao oferecer educação superior a todo veterano de guerra americano
que retornava ao país definiu ensino superior como “norma” e os demais como “abaixo
do padrão”. Outro fator pode ter sido o recrutamento adotado nos EUA na Segunda
Guerra Mundial e mantido nos trinta e cinco anos seguintes, que levou a grande maioria
de adultos americanos do sexo masculino nascida entre 1920 e 1950 — e isso significa a
maioria dos adultos americanos vivos hoje — a prestar o serviço militar onde eram
obrigados a completar o curso secundário, se já não o tivessem feito. Mas, qualquer que
seja a explicação, a mudança do trabalho manual operário para o de conhecimento foi
amplamente aceita nos EUA (exceto na comunidade negra) como apropriada ou, pelo
menos, inevitável. Nos EUA, por volta de 1990, a mudança já tinha sido realizada em
grande parte, mas até então apenas naquele país. Em outros países desenvolvidos de
livre mercado, no oeste e no norte da Europa e no Japão, ela começou somente na
década de 1990, porém é certo que avançará rapidamente nesses países e talvez mais
rapidamente do que nos EUA no início. Será que essa mudança ocorrerá com um
mínimo de revolta, perturbação e agitação social, como aconteceu nos EUA? Ou o
desenvolvimento americano irá se tornar outro exemplo de “excepcionalidade” (como
ocorreu com grande parte da história social e, especialmente, a história das classes
trabalhadoras americanas)? No Japão, a valorização da instrução formal e das pessoas
formalmente educadas é geralmente aceita de modo que o declínio do trabalhador da
indústria — ainda uma classe bastante recente nesse país e que se tornou mais numerosa
que fazendeiros e empregados domésticos apenas bem depois da Segunda Guerra
Mundial — pode ser considerado adequado, talvez mais ainda do que ocorreu nos EUA.
Mas o que dizer sobre a Europa industrializada — o Reino Unido, a Alemanha, a
França, a Bélgica, o norte da Itália, e assim por diante — em que, por mais de um
século, existe uma “cultura da classe operária” e “uma classe operária que respeita a si
própria” e onde, apesar de todas as provas ao contrário, ainda está profundamente
enraizada a crença de que o trabalho operário, industrial, e não o conhecimento, é
gerador de riqueza? Irá a Europa reagir como o negro americano? Essa certamente é
uma questão importante, cuja resposta irá, em grande parte, determinar o futuro social e
econômico dos países desenvolvidos de livre mercado da Europa. E a resposta será dada
dentro de aproximadamente uma década.
Pagina 47
Pagina 49
A sociedade do empregado
Pagina 50
Pagina 51
Salário diferido = renda cujo pagamento principia a partir de um certo prazo (N. do T.).
Trabalhadores de conhecimento em quantidade adequada e de qualidade supe.nor. Há
um crescente relacionamento de interdependência em que o trabalhador de
conhecimento precisa aprender quais são as necessidades da organização, e a
organização também deve aprender quais são as necessidades, exigências e expectativas
do trabalhador de conhecimento.
Pagina 52
O setor social
Pagina 53
resolvidos pelo governo. E provavelmente ainda a resposta aceita pela maioria das
pessoas, especialmente nos países desenvolvidos do Ocidente embora as próprias
pessoas realmente não acreditem nela. Esta solução foi completamente desaprovada.
Os governos modernos, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial,
transformaram-se numa grande burocracia do bem-estar em todos os lugares. E hoje, a
maior parte do orçamento de todos os países desenvolvidos é destinado a “direitos
adquiridos”, ou seja, o pagamento de todos os tipos de serviços sociais. E, no entanto,
em todos os países desenvolvidos, em vez de mais saudável, a sociedade está ficando
mais enferma, e os problemas sociais se multiplicam. O governo tem um importante
papel a desempenhar nas tarefas sociais — o papel de legislador, de criador de padrões
e, até um ponto significativo, de tesoureiro. Mas como órgão que executa serviços
sociais, ele se mostrou quase que totalmente incompetente — e hoje sabemos porquê.
A segunda opinião, divergente, foi primeiramente formulada por mim em meu livro de
1942, Thefuture of industrial man. Argumentei então que a nova organização e
cinqüenta anos atrás isso representava a grande empresa — teria de ser a comunidade na
qual o indivíduo encontraria status e função, e que a comunidade industrial se tornaria o
local em que, e por intermédio do qual, as tarefas sociais seriam organizadas. No Japão
(embora de forma bastante independente e sem nada me dever) o grande empregador —
órgão do governo ou empresa — de fato procurou tornar-se o “grupo comunitário” de
referência para seus empregados. O “emprego vitalício” foi apenas uma das
confirmações disso. Moradia, planos de saúde, férias e outros benefícios oferecidos pela
empresa indicam para o empregado que o empregador, e principalmente a grande
empresa, é ao grupo comunitário o sucessor da antiga vila e da antiga família. Mas isso
também não funcionou.
Há, de fato, a necessidade, principalmente no Ocidente, de levar o empregado ao
controle, cada vez maior, da comunidade industrial. O que hoje chamamos de
“delegação de poder” é muito semelhante às que me referi há mais de cinqüenta anos,
mas essa delegação não cria uma comunidade, tampouco a estrutura pela qual as tarefas
sociais da sociedade do conhecimento podem ser realizadas. Na verdade, praticamente
todas essas tarefas, seja a de proporcionar educação ou atendimento médico, tratar de
anomalias e enfermidades de uma sociedade desenvolvida e especialmente rica, como o
uso excessivo de álcool e drogas, ou solucionar problemas de incompetência e
irresponsabilidade como os que ocorrem nas “subclasses” das cidades americanas —
estão fora do âmbito da instituição empregadora.
Pagina 54
Nenhum conceito foi descartado tão depressa quanto o do “homem organizacional”, que
há quarenta anos era aceito quase em toda a parte. De fato, quanto mais satisfatório é o
trabalho qualificado de uma pessoa, mais ela precisa de uma esfera de atividade
comunitária independente.
O novo pluralismo
Pagina 55
O exemplo oferecido pelo ensino nos EUA deixa extremamente claro que esse fato
poderia ameaçar seriamente o funcionamento das novas organizações.
O novo pluralismo conserva o antigo problema — quem cuida do bem comum quando
as instituições dominantes da sociedade atendem apenas a seu próprio objetivo? Mas
apresenta também uma nova dificuldade: como manter o desempenho das novas
instituições e conservar, ao mesmo tempo, a sociedade coesa? Esse fato torna o
surgimento de um setor social forte e atuante duplamente importante e é outra razão
para que este setor seja cada vez mais essencial ao desempenho, se não à coesão, da
sociedade do conhecimento.
Pagina 56
Trata do ambiente. Trata de conquistar igualdade para grupos que se dizem oprimidos e
discriminados. Nenhuma dessas questões é econômica. Todas são fundamentalmente
morais.
Isso faz surgir a pergunta de como formar o governo de modo que ele funcione
novamente. Em países que detêm uma tradição de sólida burocracia independente,
notadamente o Japão, a Alemanha e a França, o serviço público ainda procura manter o
governo unido. Mas mesmo nesses países a coesão do governo está sendo
progressivamente enfraquecida por interesses específicos e, acima de tudo, por
interesses não-econômicos, morais e especiais.
Pagina 57
Pagina 58
Pagina 59
1. As organizações não existem para benefício próprio. Elas são meios: cada uma é um
órgão da sociedade destinado ao desempenho de uma tarefa social. A sobrevivência não
é a meta de uma organização, como o é para as espécies biológicas. A meta da
organização é contribuir de maneira específica para o indivíduo e a sociedade e,
portanto, ao contrário do que ocorre com um organismo biológico, o sucesso de seu
desempenho está sempre fora dela. Conseqüentemente, a área das metas é a primeira em
que precisamos de uma teoria de organização. Como uma organização decide quais
devem ser seus objetivos? Como mobiliza suas energias para apresentar desempenho?
Como avalia esse desempenho? É impossível ser eficiente, sem decidir antes o que se
pretende realizar. Em outras palavras, é impossível administrar sem antes definir uma
meta. Nem mesmo é possível definir a estrutura de uma organização, a menos que se
saiba a que propósito deve atender e como medir seu desempenho.
Qualquer pessoa que tente responder à pergunta, “O que é a nossa empresa”?, vai
considerar a tarefa difícil, controversa e ardilosa. Na verdade, nunca é possível
apresentar uma resposta definitiva a essa pergunta. Qualquer resposta torna-se obsoleta
num período muito curto e a pergunta precisa ser repensada repetidamente.
Mas se não há meios de se chegar a uma resposta e se os objetivos não forem
claramente definidos, os recursos serão pulverizados e desperdiçados e não haverá como
medir os resultados. Se a organização não definiu seus objetivos, não pode determinar
sua eficiência e se está obtendo resultados ou não.
Não há um método “científico” para estabelecer objetivos para uma organização, pois
eles são julgamentos de valor, ou seja, questões genuinamente políticas. O fato de que
as decisões estão cercadas por uma contínua incerteza é um dos motivos para que isso
ocorra. Elas estão relacionadas com o futuro e não dispomos de “fatos” referentes a ele.
Por esse motivo, nessa área há sempre um conflito de programas e de valores políticos.
No entanto, o cientista político do século XX não foi totalmente irresponsável quando
deixou de se preocupar com valores, programas políticos e ideologias e se concentrou
no processo de tomada de decisão. As decisões mais difíceis e importantes sobre
objetivos não se referem ao que fazer. Elas concernem, primeiro, ao que renunciar por
não ter mais valia e, segundo, ao que dar prioridade e no que se concentrar. Como
norma, essas não são decisões ideológicas, mas julgamentos que devem ser baseados em
informações.
Pagina 60
Além disso, devem ser fundamentadas numa definição de alternativas e não em opiniões
e emoções.A decisão sobre o que abandonar é, sem dúvida, a mais importante e a mais
negligenciada. Grandes organizações não podem ser versáteis. Uma grande organização
é eficiente por seu volume e não por sua agilidade. As pulgas podem saltar várias vezes
a própria altura, mas o mesmo não ocorre com os elefantes, O volume possibilita a
organização a colocar em prática um número muito maior de conhecimentos e
habilidades do que seria possível uma única pessoa ou pequeno grupo reunir. Mas o
volume também é limitador. Uma organização, não importa como, pode realizar apenas
uma pequena parcela de tarefas de cada vez e isso não pode ser solucionado por uma
organização melhor ou “comunicação mais eficiente”. A lei da organização é a
concentração. Separar os que decidem dos que executam também é básico para a
organização.
2. Todas as organizações importantes diferem quanto aos seus objetivos e cada qual
atende a um propósito diferente da comunidade. Na área administrativa, contudo,
elas são essencialmente parecidas. Como todas as organizações exigem a reunião de um
grande número de pessoas para um desempenho conjunto e integrado em um
empreendimento comum, todas enfrentam o problema de equilibrar os objetivos da
instituição e as necessidades e desejos do indivíduo. Cada organização recebe a tarefa
de equilibrar a necessidade de ordem e a necessidade de flexibilidade e interesse dos
indivíduos. Cada uma requer uma estrutura determinada pela tarefa e suas exigências.
Cada uma também requer uma estrutura determinada por “princípios de organização”
genéricos, isto é, basicamente por normas constitucionais. A menos que cada uma
reconheça a autoridade inerente à “lógica da situação” e ao grau de conhecimento dos
indivíduos, não haverá desempenho. A menos que cada uma disponha de uma
autoridade para tomar decisões que não admitem apelação, não haverá decisões. E as
duas diferentes estruturas, cada qual com uma lógica própria, devem coexistir em um
equilíbrio dinâmico dentro da mesma organização.
É neste campo da administração que realizamos a maior parte do trabalho durante os
últimos cinqüenta anos. Nunca antes nos vimos diante da tarefa de organizar e liderar
grandes organizações de cultura técnica. Tivemos de aprender rapidamente e ninguém
que conheça o ramo afirmaria que sabemos muito. De fato, se houver qualquer consenso
nessa área intensamente controvertida, é quanto ao fato de que as estruturas da
organização do futuro serão diferentes de qualquer outra que conhecemos hoje. No
entanto, o trabalho de administração não é mais pioneiro. 90% do que se ensina sob esse
nome em nossas universidades podem ser consideradas histórias da carochinha
— e o restante pode ser considerados procedimentos e não administração. Ainda assim,
os principais desafios na área são suficientemente conhecidos.
Pagina 61
A eficiência dos executivos não é automática. Não se trata de “como ser bem- sucedido
com pouco esforço” nem mesmo de “como ser bem-sucedido com algum esforço”. A
organização é um ambiente novo e diferente e faz novas e diferentes exigências ao
executivo, oferecendo-lhe novas e diferentes oportunidades. Ela cobra uma nova
compreensão e, em menor grau, um novo comportamento.
Por fim, ela requer que o indivíduo seja capaz de tomar decisões que produzam os
resultados corretos, O camponês sabe, por tradição, o que e como fazer as coisas, O
artesão tinha sua associação que lhe ensinava o trabalho, sua seqüência e seus padrões.
Mas o executivo de uma organização não recebe informações de seu ambiente. Ele
precisa tomar decisões sozinho e, se não o fizer, não poderá atingir resultados e está
fadado a ser mal-sucedido e não-realizado.
Até agora, a teoria da administração deu pouca atenção a essa área. Demos ênfase às
habilidades do executivo, seu treinamento e seu conhecimento, mas não a um atributo
específico que é a eficiência. Isso é o que se espera dele, embora não saibamos, de
modo geral, o que significa. Tudo o que sabemos é que poucos executivos atingem um
décimo da eficiência que suas habilidades, seu conhecimento e sua empresa prometem.
A eficiência do executivo acabará ocupando, na teoria das instituições, o lugar que, em
toda a história da teoria política, tem sido ocupado pela discussão sobre a educação do
Pagina 62
Pagina 63
A questão, portanto, não é saber quais são as “responsabilidades sociais” das
organizações, mas sim qual é a autoridade apropriada. Que impactos as organizações
exercem devido a sua função?
Pagina 64
Pagina 65
comuns. O maior desafio para todas as instituições é fazer melhor o que já está sendo
feito. As oportunidades para tentar lidar com coisas novas e diferentes, seja nos
negócios, na assistência médica ou na educação, eram raras.
Mas nem sempre foi assim. Há cem anos as grandes oportunidades empresariais
residiam, como as de hoje, na satisfação das necessidades e carências sociais.
Atualmente, tornar a educação ou a habitação urbana um negócio grande e lucrativo,
pode parecer um tanto estranho para as pessoas — homens de negócios e também quem
os criticam. Mas essas oportunidades não são tão diferentes das que levaram ao
desenvolvimento da moderna indústria elétrica, da telefonia, dos jornais e editoras das
grandes cidades, das lojas de departamentos ou do trânsito urbano. Todas representavam
desejos da comunidade há cem anos, todas exigiam visão e coragem empresarial. Todas
exigiam uma considerável quantidade de novas tecnologias e também uma boa porção
de inovação social. Todas eram necessidades do indivíduo que somente poderiam ser
atendidas em termos de massa.
Essas necessidades não foram satisfeitas por terem sido vistas como um “fardo”,
isto é, como “responsabilidades”, mas sim porque foram vistas como oportunidades.
Em outras palavras, explorar oportunidades é a ética da organização.
Resumindo, as organizações não agem de forma “socialmente responsável” quando se
preocupam com “problemas sociais” fora de sua própria esfera de competência e ação.
Elas agem de forma “socialmente responsável” quando satisfazem as necessidades da
sociedade concentrando-se em seu trabalho específico. Elas agem de maneira ainda
mais responsável quando transformam as necessidades do público em suas próprias
realizações. Consciência social é do interesse da organização. As necessidades da
sociedade, se não atendidas, transformam-se em doenças sociais. Nenhuma instituição,
quer se trate de uma empresa ou um hospital, uma universidade ou órgão do governo,
terá probabilidade de prosperar em uma sociedade enferma.
Pagina 66
própria realização, mas hoje a organização não apresenta nenhuma meta dentro de si
mesma, tampouco resultados. Tudo que tem dentro de si mesma são custos.
A comparação de administração, quer seja nos negócios, na universidade, órgão do
governo ou hospital, com um verdadeiro “governo”, apresentada de maneira tão
divertida em Management & Machiaveii é, portanto, uma meia-verdade. As
administrações de instituições sociais modernas (incluindo o órgão do governo que
administra, por exemplo, os correios) não são “governos”. Sua tarefa é antes funcional
que política. Elas exercem o poder e a autoridade que possuem a fim de satisfazer uma
necessidade parcial da sociedade. Ao contrário de poderes pluralistas antigos, sua esfera
não é a totalidade dos recursos e necessidades sociais e comunitárias. Sua esfera se
limita a uma necessidade e exigência social específica. Seu comando se restringe aos
recursos alocados a uma tarefa, específica e limitada, embora vital. Qualquer que seja a
capacidade de desempenho dessas instituições, elas a devem a sua especialização, a sua
limitação a uma tarefa restrita e ao seu investimento de recursos em um propósito
específico, definível e limitado.
Isso significa, acima de tudo, que seus líderes, os chefes dessas organizações, não
podem basear sua posição, seu cargo e sua autoridade em qualquer princípio de
legitimidade tradicional. Eles não podem, por exemplo, basear sua autoridade na
“aprovação dos governados”. Pois os “governados” não são e não podem ser, como uma
verdadeira sociedade política, os beneficiários e o objetivo do “governo”.
Uma grande empresa não existe por causa dos empregados. Seus resultados estão em
outra dimensão e são apenas tangencialmente afetados pelo consentimento, aprovação e
atitude dos funcionários. Da mesma forma, a “clientela” do hospital não são as pessoas
que nele trabalham, mas os pacientes. E isso se aplica a cada uma das instituições da
sociedade pluralista, incluindo órgãos do governo. Se as políticas financeiras que elas
adotam atendem aos interesses dos empregados do Departamento do Tesouro não é
muito importante.
Naturalmente, a velha reação da esquerda diante disso é exigir que essas instituições
sejam “legitimadas” por meio do controle do “político soberano”, o Estado. Seus
administradores iriam, então, ser indicados por uma autoridade política legítima e
extrair seu poder do verdadeiro soberano. A experiência tem mostrado que isso não
passa de um sofisma ingênuo. O que realmente acontece são os mesmos esforços inúteis
anteriormente criticados por serem terríveis exemplos de má administração,
Pagina 67
Naturalmente, uma instituição cujos membros rejeitam sua legitimidade não pode
funcionar. A instituição precisa possibilitar aos seus membros atingirem seus próprios
objetivos. Sabemos há muito que a organização moderna deve conferir status e função
aos seus membros, mas eles também devem servir e realizar os propósitos da
instituição, que nunca poderão ser os próprios. Satisfazer seus membros não é e nunca
pode ser a primeira tarefa ou o teste das organizações pluralistas de nossa sociedade.
Elas precisam satisfazer as pessoas de fora, servir a um propósito independente e atingir
resultados externos. Na melhor das hipóteses, podem integrar e harmonizar os objetivos,
valores e desejos de seus membros com as exigências de sua missão. Mas a missão vem
em primeiro lugar. Ela é dada, é objetiva e é impessoal. E ao mesmo tempo, é
específica, limitada e dirigida a apenas uma das muitas necessidades e carências da
sociedade, da comunidade e do indivíduo.
É essa dedicação a um propósito limitado de uma sociedade mais ampla que
torna nossa moderna organização eficiente. Existe apenas um fundamento para a
autoridade que nossas organizações e suas administrações devem ter: desempenho. Esta
é a única razão pela qual nós as mantemos, toleramos seu exercício de poder e sua
exigência de autoridade. Especificamente, isso significa que precisamos saber o que
“desempenho” representa para esta ou aquela instituição. Precisamos ser capazes de
avaliar, se uma instituição está se desincumbindo de sua responsabilidade e se sua
administração está sendo competente. Precisamos exigir que as instituições e suas
administrações restrinjamse a tarefas específicas cujo desempenho justifique sua
existência e seu poder. Qualquer coisa além disso significa usurpação.
A concentração na tarefa específica é a chave da força, desempenho e legitimidade da
organização na sociedade pluralista. As opiniões quanto à tarefa específica de uma
organização podem e devem diferir. A definição mudará à medida que as circunstâncias,
as necessidades sociais, os valores comunitários e as tecnologias mudarem. De fato,
diferentes instituições do mesmo tipo, por exemplo, diferentes universidades em um
país, podem definir seus objetivos de modo totalmente diverso, assim como diferentes
empresas pertencentes a um setor, ou mesmo diferentes hospitais. Mas, quanto mais
claramente cada uma delas definir seus objetivos, mais forte ficará. Quanto mais
específicos forem os padrões de avaliação e medidas usados para aquilatar o
desempenho, mais eficiente ela se tornará. Quanto mais sua autoridade se basear no
desempenho, mais legítima ela será.“Por seus frutos vocês a conhecerão —“ este pode
muito bem ser o princípio essencial fundamental da nova sociedade pluralista.
Pagina 68
Pagina 69
são válidos — como, por exemplo, ocorreu com os dados demográficos que serviram
de base para os planos de assistência médica e sistemas de aposentadoria em todos os
países desenvolvidos nos últimos 100 anos. Então, de fato, a razão se transforma em
contra-senso e os privilégios, em angústias.
Porém, “revoluções”, como havíamos aprendido com Jeiferson, não são a solução. Elas
não podem ser previstas, dirigidas ou controladas, conduzem as pessoas erradas ao
poder e, o que é pior, seus resultados — previsivelmente — são justamente o oposto de
suas promessas. Poucos anos após a morte de Jefferson, em 1826, o grande escritor
político, Alexis de Tocqueville, ressaltou que as revoluções não destroem os grilhões do
antigo regime, elas os ampliam. Tocqueville provou que o legado mais duradouro da
Revolução Francesa foi apertar os mesmos grilhões da França pré-revolucionária — a
sujeição de todo o país a uma burocracia descontrolável e incontrolada, e a centralização
de toda a vida política, intelectual, artística e econômica em Paris. A Revolução Russa
teve como principais conseqüências uma nova servidão para os camponeses, uma
polícia secreta onipotente e uma burocracia rígida, corrupta e asfixiante — as mesmas
características do regime czarista contra o qual os liberais e revolucionários russos
protestaram ruidosa e justificadamente. E o mesmo se pode dizer sobre a macabra
“Grande Revolução Cultural” de Mao.
De fato, sabemos que “revolução” não passa de ilusão, uma ilusão ubíqua do século
XIX, mas talvez hoje o mais desacreditado dos mitos. Sabemos agora que “revolução”
não significa realização e um novo alvorecer. Ela é resultado da decadência senil, da
falência de idéias e instituições, do fracasso da auto-renovação.
E agora também sabemos que teorias, valores e todos os produtos de mentes e mãos
humanas envelhecem e tornam-se rígidos e obsoletos, transformam-se em “angústias”.
Assim sendo, a inovação e o espírito empreendedor são necessários tanto na sociedade
quanto na economia, nas instituições públicas tanto quanto nas empresas. E
precisamente porque a inovação e o espírito empreendedor não são fenômenos que
ocorrem como um todo, mas avançam “passo a passo”, um produto aqui, uma política
ali, um serviço público acolá; porque não são planejados, mas voltados para
oportunidades e necessidades específicas; porque são experimentos e desaparecerão se
não produzirem os resultados esperados e necessários; porque, em outras palavras, são
pragmáticos em vez de dogmáticos, e modestos em vez de grandiosos — que eles
prometem manter qualquer sociedade, economia, indústria, serviço público ou empresa
flexível e em contínua renovação. Eles conquistam o que Jefferson esperava conseguir
por meio da revolução em todas as gerações, e o fazem sem derramamento de sangue,
guerra civil ou campos de concentração, sem catástrofes econômicas, mas com objetivo,
rumo e controle.
Pagina 70
Desistência sistemática
Uma das mudanças fundamentais na visão e percepção do mundo nos últimos vinte
anos — uma reviravolta verdadeiramente monumental — é a compreensão de que os
órgãos e políticas governamentais têm origem humana, e não divina e que, portanto,
certamente serão obsoletos com bastante rapidez. No entanto, a política ainda se baseia
na antiga suposição de que tudo que o governo faz está fundamentado na natureza da
sociedade humana e, assim, “dura para sempre”. Como resultado, até agora não surgiu
um mecanismo político que descarte no governo o que é antigo, gasto, que já não
produz.
Ou, para sermos exatos, o que temos ainda não está funcionando. Nos EUA,
ultimamente tem surgido uma série de “leis do ocaso”, que determinam que um órgão
governamental ou uma lei pública prescreva após um certo período de tempo, a menos
que seja especificamente determinado que voltem a atuar. Essas leis, porém, não
funcionaram, em parte porque não há critérios objetivos que determinem quando um
órgão ou lei deixou de ser funcional, e em parte porque até agora não existe um
processo de desistência organizado; mas, talvez, principalmente porque ainda não
aprendemos a desenvolver métodos novos ou alternativos para realizar o que um
Pagina 71
Pagina 72
Pagina 73
alto grau de instrução. Sem um “plano mestre”, sem uma “filosofia educacional” e,
claro, sem muito apoio do sistema educacional, a educação contínua e o
desenvolvimento profissional de pessoas com alto grau de instrução e de adultos muito
bem- sucedidos tornou-se uma verdadeira “indústria em crescimento” nos EUA nos
últimos vinte anos.
Pagina 74
Esses serviços serão necessários com urgência ainda maior nas próximas décadas. Um
dos motivos é o rápido aumento no número de idosos em todos os países
* Este capitulo foi extraído de Post-capitalistsociety, publicado em 1993 desenvolvidos,
que em sua maioria mora e quer viver sozinha. Um segundo motivo é a crescente
sofisticação dos serviços de assistência médica e de saúde que exigem pesquisas e
ensino na área e cada vez mais clínicas e hospitais. Há também a crescente necessidade
de aprendizado contínuo para adultos, e a necessidade criada pelo crescente número de
famílias de pais solteiros. O setor de serviços para a comunidade provavelmente será um
dos “setores de crescimento” real nas economias desenvolvidas, embora possamos
esperar que a necessidade por caridade acabará por diminuir outra vez.
Um “terceiro setor”
Nos últimos quarenta anos nenhum programa que tentou lidar com problema social por
intermédio da ação do governo apresentou resultados significativos nos EUA. Órgãos
independentes sem fins lucrativos apresentaram resultados impressionantes. Escolas
públicas nas partes pobres de certas cidades — por exemplo, Nova York, Detroit e
Chicago — têm se deteriorado a um ritmo alarmante. Escolas dirigidas pela Igreja
(especialmente nas escolas pertencentes a dioceses católicas) têm obtido êxitos
surpreendentes nas mesmas comunidades e com crianças vindas de lares desfeitos e de
grupos raciais e étnicos semelhantes. Os únicos resultados na luta contra o alcoolismo
euso de drogas bem-sucedido (muito significativos) foram conseguidos por
organizações independentes como os Alcoólicos Anônimos, o Exército da Salvação e os
Samaritanos. Os únicos êxitos na reintegração de “mães sustentadas pelo Estado” —
mães solteiras, muitas vezes negras ou hispânicas — no mercado de trabalho e em
famílias estáveis têm sido obtidos por organizações autônomas e sem fins lucrativos
como o Judson Center, em Royal Oak, Michigan. Melhorias em importantes áreas do
atendimento médico como prevenção e tratamento de doenças cardíacas e mentais têm
sido, em grande parte, resultado do trabalho de organizações independentes sem fins
lucrativos. A American Heart Association e a American Mental Health Association, por
exemplo, patrocinaram as pesquisas necessárias e iniciaram campanhas educativas de
prevenção e tratamento para a comunidade médica e o público.
Incentivar a criação de organizações comunitárias autônomas no setor social é,
portanto, um passo importante para fazer com que o governo passe a ter um bom
desempenho.
Pagina 76
Mas os indivíduos não podem assumir responsabilidades, tampouco começar a agir para
participar de forma significativa. Contudo, sem cidadania, o Estado fica vazio. Pode
haver nacionalismo, mas sem cidadania, é provável que ele degenere do patriotismo
para o chauvinismo. Sem cidadania, não pode existir o compromisso responsável que
cria o cidadão e que, em última análise, consolida o Estado, tampouco o senso de
satisfação e orgulho que advém da participação. Sem cidadania, a unidade política, quer
seja chamada de “estado” ou de “império”, não pode ser outra coisa senão poder. O
poder é então a única força que mantém a união. A fim de poder agir em um mundo
perigoso e que muda rapidamente, o Estado pós-capitalista precisa recriar a cidadania.
A família tradicional era uma necessidade. Na literatura do século )UX, quase todas as
famílias pertenciam ao que poderíamos hoje chamar de “lares desfeitos”, mas tinham de
se manter unidas, não importa quão intenso fosse o ódio, a aversão e o temor que
nutrissem uns pelos outros. “A família é o lugar em que a gente se sente em casa”, dizia
um ditado do século XIX. Até o século XX a família proporcionava praticamente todos
os serviços sociais disponíveis.Ficar com a família era uma necessidade; ser repudiado
por ela, uma catástrofe. Um personagem comum nas peças e filmes da década de 1920
era o pai cruel que expulsava a filha quando esta aparecia em casa com um filho
ilegítimo. Ela, então, tinha apenas duas opções: cometer suicídio ou tornar-se prostituta.
Hoje, a família está realmente se tornando mais importante para as pessoas, mas como
um vínculo voluntário, um elo de afeição, união, respeito mútuo e não por necessidade.
Os jovens de hoje, passada a fase de rebeldia da adolescência, sentem uma necessidade
muito maior de estar perto dos pais e dos irmãos do que os integrantes de minha
geração. Ainda assim, a família não mais constitui a comunidade. As pessoas precisam
da comunidade, especialmente nas grandes cidades e nos subúrbios onde vivem com
Pagina 77
freqüência cada vez maior. Não se pode mais contar — como ocorria nas aldeias rurais
— com vizinhos que partilham os mesmos interesses, as mesmas ocupações, a mesma
ignorância e que vivem juntos no mesmo mundo. Mesmo que haja uma forte ligação,
não se pode contar com a família. A mobilidade geográfica e ocupacional indica que as
pessoas não ficam mais no mesmo lugar, classe ou cultura em que nasceram, em que
vivem os pais, em que moram irmãos e primos. A comunidade que é necessária para a
sociedade pós-capitalista — principalmente para o trabalhador qualificado — deve se
basear em compromisso e compaixão, e não ser imposta pela proximidade e pelo
isolamento.
Há quarenta anos, imaginei que essa comunidade iria surgir no local de trabalho. Em
Thefuture of industrial man (1942), The new society (1949) e Thepractice of
management (1954), falei sobre a comunidade fabril como o lugar que conferiria
posição e função ao indivíduo, além da responsabilidade de se autogovernar. Mas nem
mesmo no Japão a comunidade fabril funciona por muito tempo. Está se tornando cada
vez mais claro que a comunidade fabril japonesa está mais baseada no temor do que
num sentimento de participação. O operário de uma grande empresa japonesa que adota
um sistema salarial baseado em tempo de serviço e que perde o emprego após os trinta
anos de idade fica praticamente impossibilitado de arrumar uma colocação pelo resto de
sua vida. No Ocidente, a comunidade fabril nunca criou raízes. Eu ainda acredito
firmemente que se deve conferir o máximo de responsabilidade e autogoverno ao
empregado — a idéia que fundamenta minha defesa da comunidade fabril. A
organização baseada em especialização deve tornar-se uma organização baseada em
responsabilidade. Mas os indivíduos, e especialmente os trabalhadores de
conhecimento, precisam de uma esfera adicional de vida social, de relacionamentos
pessoais e de contribuição externa e alheia à organização e, de fato, a sua própria área
especializada de conhecimento.
O setor social é uma das áreas em que essa necessidade pode ser satisfeita. Ali os
indivíduos podem contribuir, ter responsabilidade, participar significativamente, ser
“voluntários”. E isso já está ocorrendo nos EUA. A diversidade de credos das igrejas
americanas; a forte ênfase colocada na autonomia regional dos estados, municípios e
cidades; e a tradição comunitária de povoamentos isolados desaceleraram a politização
e a centralização das atividades sociais nos EUA. Como resultado, os EUA hoje
possuem quase um milhão de organizações sem fins lucrativos ativas no setor social.
Elas representam 1/10 de produto nacional bruto — sendo 1/4 dessa soma arrecadado
através de doações, 1/4 pago pelo governo para trabalhos específicos (por exemplo, a
administração de programas de reembolso de atendimento médico), e o restante auferido
com taxas pagas por serviços prestados
Pagina 78
(por exemplo, ensino pago por alunos universitários, ou dinheiro arrecadado nas lojas de
arte encontradas hoje em todos os museus americanos). As empresas sem fins
lucrativos tornaram-se o maior empregador dos EUA. Metade dos americanos adultos
(90 milhões de pessoas) trabalha três horas por semana como “funcionário não-pago”,
ou seja, como voluntário em organizações sem fins lucrativos, igrejas e hospitais,
clínicas/órgãos de assistência médica, serviços comunitários como a Cruz Vermelha,
escoteiras, serviços de reabilitação como o Exército da Salvação e os Alcóolicos
Anônimos, entidades de defesa de mulheres, e em serviços de aulas particulares em
escolas de áreas pobres da cidade. Até o ano de 2000 ou 2010, a quantidade de
voluntários deverá ter aumentado para 120 milhões, com uma média de trabalho de
cinco horas semanais.
Esses voluntários não são mais “ajudantes”; eles tornaram-se “parceiros”. Cada vez
mais, as organizações sem fins lucrativos nos EUA empregam um executivo pago em
tempo integral, e o restante da equipe administrativa é formada por voluntários. Cada
vez mais, eles dão andamento à organização. A mudança mais significativa ocorreu na
Igreja Católica Americana. Atualmente, em uma das maiores dioceses, mulheres leigas
realmente dirigem todas as paróquias como suas “administradoras”, Os padres rezam
missa e ministram os sacramentos. Tudo o mais, inclusive o trabalho social e
comunitário das paróquias, é realizado por “funcionários não-pagos” e dirigido por um
administrador. A principal razão para esse repentino crescimento da participação
voluntária nos EUA não é o aumento da necessidade, mas sim a busca por parte dos
voluntários da comunidade, de compromisso e contribuição. A grande maioria dos
novos voluntários não é de aposentados; ela é formada por maridos e esposas vindos de
famílias de profissionais liberais em que ambos trabalham, pessoas de 30 ou 40 anos,
instruídas, ricas, ocupadas. Elas apreciam seus empregos, mas sentem a necessidade de
fazer algo em que possam “participar significativamente”, para usar a frase que se ouve
repeti- das vezes — quer isso signifique dar aulas sobre a Bíblia na igreja local, ensinar
a tabuada a crianças excepcionais, ou visitar idosos que voltam para casa após uma
longa estada no hospital e ajudá-los com exercícios de reabilitação.
O que as empresas sem fins lucrativos americanas fazem por seus voluntários pode ser
tão importante quanto o que estes fazem por quem recebe seus serviços.
A Giri Scouts ofAmerica (Bandeirantes) é uma das poucas organizações do país que
teve uma integração racial completa. Em suas divisões, as garotas trabalham e brincam
juntas, independentemente da cor ou nação de origem. Mas a maior contribuição do
movimento de integração iniciado na década de 1970 é o fato de ter recrutado um
grande número de mães — negras, asiáticas, hispânicas — em posições de liderança
como voluntárias no trabalho comunitário integrado. A cidadania no setor social e
exercida por seu intermédio não é uma panacéia para os males da sociedade e do Estado
pós-capitalistas, mas pode ser um pré-requisito para lidar com eles. Ela restaura a
responsabilidade que é a sua marca e o orgulho cívico que é a marca da comunidade.
Pagina 79
Pagina 80
PARTE 2 – ECONOMIA
7 - 0 fim da continuidade
A expansão econômica nos últimos vinte anos foi muito rápida, mas ocorreu
principalmente em setores que já eram “prósperos” antes da Primeira Guerra Mundial.
Foi baseada em tecnologias que por volta de 1913 já estavam bem-estabelecidas e que
tinham o intuito de explorar invenções feitas nos cinqüenta anos anteriores.
Tecnologicamente, esses últimos cinqüenta anos representaram a realização das
promessas que nos foram legadas por nossos avós vitorianos e não pelos anos de
mudanças revolucionárias sobre os quais falam os suplementos de domingo. * Este
capítulo foi extraído de The age ofdiscontinuity, publicado em 969.
Pagina 81
Nos cinqüenta anos que precederam 1913, o mapa econômico mundial mudou tão
rápida e drasticamente quanto o mapa físico durante a era dos descobrimentos nos
séculos XV e XVI. Entre 1860 e 1870, os Estados Unidos e a Alemanha surgiram como
novas e grandes potências industriais e rapidamente ultrapassaram a antiga grande
potência, a Grã-Bretanha. Vinte anos depois, a Rússia, o Japão, a atual Checoslováquia
e a atual Áustria também decolaram, seguidos de perto pela Itália setentrional.
Pagina 82
hum Rip Van Winlde — um vagabundo, personagem de Irving Washington, que dorme
durante vinte anos e acorda assombrado com as mudanças ocorridas no mundo (N. do
T.) um contraste econômico importante entre nossa época e a dos vitorianos e do Rei
Eduardo, mas também a maior ameaça política da atualidade — comparável somente à
ameaça da luta de classes na sociedade industrial antes de 1913.
Se nosso economista Rip Van Winkie observasse a tecnologia e estrutura industrial,
estaria igualmente (e inesperadamente) em terreno conhecido. Naturalmente, há
centenas de produtos ao seu redor que lhe seriam desconhecidos: aparelhos elétricos e
de televisão, aviões, antibióticos, computadores. Mas em termos de estrutura e
crescimento econômico, o ritmo de produção ainda ocorre por conta das mesmas
indústrias e, em grande parte, das mesmas tecnologias que existiam em 1913.
Pagina 83
As novas indústrias e suas novas tecnologias parecem muito maiores aos nossos olhos
do que as antigas e conhecidas siderúrgicas e montadoras de automóveis. Elas seduzem
nossa imaginação e oferecem ações atraentes para nossas carteiras de investimentos.
Mas se todas elas (exceto a de plásticos), com toda sua produção e seus empregos,
fossem retiradas das estimativas da economia pública, a diferença mal seria notada na
renda nacional ou na taxa total de emprego, isto é, nos números pelos quais os
economistas medem poder e crescimento econômico.
Um economista de 1913 poderia, portanto, ter feito uma previsão sobre a estrutura
industrial da década de 1960 com razoável precisão. Porém, nenhum economista
sensato da época teria sonhado em prever uma continuidade. A relativa estabilidade nas
tecnologias e nas indústrias durante os últimos cinqüenta anos contrasta fortemente com
a turbulência do meio século anterior. Os cinqüenta anos que terminaram com a
Primeira Guerra Mundial produziram a maioria das invenções que sustentam nossa
moderna civilização industrial. Tintas sintéticas (e com elas a indústria química
orgânica), o método Bessemer de fabricação de aço e o gerador elétrico Siemens
surgiram no final das décadas de 1850 e 1860. A lâmpada elétrica e o fonógrafo foram
inventados (ambos por Edison) no final da década de 1870. Na mesma década surgiram
a máquina de escrever e o telefone que, juntos, tiraram um número considerável de
mulheres de casa, levando-as para os escritórios, conduzindo-as, assim, no meio século
que se seguiu, à emancipação e ao direito devoto femininos. Na década de 1880 surgiu o
automóvel. Na mesma década, descobriu-se o alumínio — juntamente com a borracha
vulcanizada, um pouco mais antiga, o primeiro material realmente novo desde que os
chineses fizeram o papel, aproximadamente na época de Cristo. O telégrafo sem fio de
Marconi e a aspirina (a primeira droga sintética eficaz e o início da indústria
farmacêutica) foram desenvolvidos na década de 1890, o avião dos irmãos Wright em
1903, e a válvula eletrônica (de Forrest e Armstrong) em 1912.
Quase toda a tecnologia industrial moderna é uma extensão e modificação das
invenções e tecnologias daquele notável meio século que antecedeu a Primeira Guerra
Mundial. Essa continuidade, por sua vez, contribuiu para a criação de uma estrutura
industrial estável. Todas as grandes invenções do século XIX originaram, quase que
imediatamente, uma nova e importante indústria e novas grandes empresas que ainda
hoje ocupam lugar de destaque.
Pagina 85
Medido pelos instrumentos dos economistas, o último meio século pertenceu à Era da
Continuidade — o período que menos apresentou mudanças em cerca de trezentos anos,
isto é, desde que o comércio mundial e a agricultura planejada se tornaram fatores
econômicos dominantes, nas décadas finais do século XVII. O crescimento durante esse
período de continuidade foi notável, especialmente nos países que eram já bastante
desenvolvidos antes de 1913. Mas o crescimento se deu ao longo do caminho aberto
naqueles dias longínquos por nossos avós e bisavós. O fato de que tenha se passado
meio século até que o trabalho e as idéias das gerações anteriores produzissem frutos
não representa surpresa. A geração de 1900, que hoje costumamos encarar como
retrógrada, criou bases econômicas de tal força e excelência a ponto de prevalecerem
sobre toda a crueldade, insanidade criminosa e violência suicida dos últimos cinqüenta
anos. As grandes realizações econômicas da atualidade, as economias opulentas de
consumo em massa dos países desenvolvidos, sua produtividade e suas habilidades
tecnológicas, estão solidamente construídas sobre alicerces vitorianos e da época de
Eduardo VII e com matéria-prima daquela época. Elas são, acima de tudo, a realização
das promessas econômicas e tecnológicas da era vitoriana e da época de Eduardo VII e
um testemunho de sua visão econômica. Hoje, contudo, enfrentamos uma Era da
Descontinuidade na economia e tecnologia mundiais. Poderemos ter êxito em também
torná-la uma era de grande crescimento econômico, mas a única certeza que até agora
temos é de que será um período de mudanças — na tecnologia e na política econômica,
nas estruturas das indústrias e na teoria econômica, no conhecimento necessário para
governar e administrar, e nas questões econômicas. Enquanto estávamos ocupados em
concluir o grande edifício econômico do século )UX, seus alicerces abalaram-se sob
nossos pés.
Pagina 86
(Alterações irreversíveis)
E, então, quanto mais suas ações forem baseadas nas novas realidades de uma economia
mundial transformada, maior será a probabilidade de serem bem-sucedidas. * Este
capítulo foi extraído de Thefrontiers ofmanagement where tomorrow’s decisions are
betng shaped today, publicado em 1986.
Pagina 87
A queda dos preços de produtos não-petrolíferos começou em 1977. A queda dos preços
de matérias-primas e a redução na sua demanda contrastou surpreendente- mente com as
previsões. O Report ofthe Club ofRome previu que certamente haveria uma enorme
escassez de todas as matérias-primas no ano de 1985. Ainda mais recentemente, em
1980, o Global 2000 Report da administração do presidente Carter concluiu que a
demanda mundial por alimentos aumentaria regularmente durante pelo menos vinte
anos; que a produção de alimentos em todo o mundo decresceria, exceto nos países
desenvolvidos; e que os preços reais dos alimentos seriam duplicados.
Porém, contrariando todas essas previsões, a produção agrícola no mundo aumentou, na
realidade, quase 1/3 entre 1972 e 1985, atingindo uma alta ainda não superada, e
cresceu ainda mais em países menos desenvolvidos. Da mesma forma, a produção de
praticamente todos os produtos silvícolas, metais e minerais cresceu entre 20 e 30% nos
últimos dez anos, novamente aumentando mais nos países menos desenvolvidos. E não
há o menor motivo para acreditar que essas taxas de crescimento passam a diminuir,
apesar da queda dos preços. De fato, no que se refere a produtos agrícolas, o
crescimento maior, a uma taxa quase exponencial, pode ainda não ter acontecido.
Entretanto, talvez ainda mais surpreendente que o contraste entre o que todos esperavam
e o que ocorreu, seja o fato de que a queda de preços de matérias-primas não tenha
exercido quase nenhum impacto na economia industrial do mundo. No entanto, se havia
um fato indubitavelmente “conhecido” e “comprovado” na teoria do ciclo empresarial,
era o de que uma queda brusca e prolongada nos preços de matérias-primas
inevitavelmente, e no período de dezoito a trinta meses, acarretaria uma crise mundial
na economia industrial. A economia industrial certamente não está normal segundo
qualquer definição do termo, mas é certo também que não passa por uma depressão
mundial. De fato, a produção industrial em países não- comunistas desenvolvidos tem
apresentado um crescimento regular e contínuo, embora a um ritmo menos acelerado,
especialmente na Europa Ocidental.
Pagina 88
Uma das implicações dessa brusca mudança relativa ao comércio de produtos primários
diz respeito aos países desenvolvidos, quer se trate de importantes exportadores de
matérias-primas como os EUA, ou grandes importadores como o Japão. Durante dois
séculos, os EUA vêm considerando a abertura dos mercados para seus produtos
agrícolas e suas matérias-primas como essencial para sua política comercial
internacional. De fato, isso é o que significa nos EUA uma “economia mundial aberta ’
e de “livre comércio”. Isso ainda faz sentido? Ou os EUA precisam aceitar que os
mercados estrangeiros para seus alimentos e matérias-primas encontram-se num longo e
irreversível declínio? Mas, também, faz sentido para o Japão basear sua política
econômica internacional na necessidade de captar divisas suficientes para pagar as
importações de matéria-prima e alimentos? Desde que o Japão abriu as portas para o
exterior há 120 anos, a preocupação, que chega quase a uma obsessão nacional, com sua
dependência nas importações de matérias-primas e alimentos tem sido a força
propulsora da política, e não só da economia japonesa. Mas hoje o Japão pode muito
bem partir do princípio, muito mais realista no mundo atual, de que há oferta excessiva
de alimentos e matérias-primas.
Chegando a uma conclusão lógica, esses acontecimentos podem significar que uma
variante da tradicional política japonesa — altamente “mercantilista”, com forte
diminuição na ênfase no consumo doméstico e formação de capital, e com proteção de
indústrias “incipientes” — pode servir melhor aos EUA do que as suas próprias
tradições. Inversamente, os japoneses podem ser mais bem atendidos por alguma
variante das políticas tradicionais americanas e, especialmente, passar a favorecer o
consumo e não mais a poupança e a formação de capital. Mas será provável ocorrer um
rompimento de convicções políticas e comprometimentos de mais de cem anos? A partir
de agora os fundamentos da política econômica certamente serão criticados com
freqüência cada vez maior nesses dois países, e também em todos os demais países
desenvolvidos.
Contudo, eles também serão cada vez mais fiscalizados pelos principais países do
Terceiro Mundo. Pois se produtos primários estão assumindo uma posição de menor
importância na economia do mundo desenvolvido, as teorias e políticas tradicionais de
desenvolvimento estão perdendo suas bases. Todas são fundamentadas na hipótese
‘historicamente válida’ de que os países em desenvolvimento pagam pela importação de
bens de capital com a exportação de produtos primários — produtos agrícolas e
silvícolas, minerais, metais. Todas essas teorias de desenvolvimento, por mais que se
diferenciem sob outros aspectos, ainda pressupõem que a aquisição de matérias-primas
por parte de países industrialmente desenvolvidos precisam crescer pelo menos tão
depressa quanto a produção industrial desses países. Isso implica que, durante um amplo
período de tempo, qualquer produtor de matérias-primas torna-se um investimento de
menor risco e apresenta uma balança comercial mais favorável. Mas isso tornou-se
altamente questionável. Em que base, então, pode-se fundamentar o desenvolvimento
econômico, especialmente em países que não possuem uma população grande o bastante
para desenvolver uma economia industrial
Pagina 89
Fala-se muito hoje em dia sobre a “desindustrialização” dos EUA mas, na verdade, a
produção fabril tem crescido regularmente em volumes absolutos e não caiu, de forma
alguma, como percentagem da economia como um todo. Desde o final da guerra da
Coréia, ou seja, há mais de trinta anos, ela manteve uma taxa estável de
aproximadamente 23-24% do PNB total dos EUA. Da mesma forma, ela se manteve no
nível costumeiro em todos os maiores países industrializados. Assim, não é a economia
americana que está sendo “desindustrializada”, mas sim a sua força de trabalho.
Essa tendência não é nova. Na década de 1920 um em cada três americanos
ativos era operário. Na década de 1950, a proporção ainda era de um em cada quatro.
Hoje é de um em cada seis e está caindo. Mas, embora a tendência esteja se
desenvolvendo há muito tempo, ultimamente acelerou-se a ponto de, pelo menos em
tempos de paz, nenhum aumento da produção &bril, não importa quão grande seja,
poder reverter a longo prazo o declínio da quantidade de empregos operários nas
fábricas ou em sua proporção na força de trabalho. A tendência é a mesma em todos os
países desenvolvidos e é, naturalmente, mais pronunciada no Japão. É, portanto,
altamente provável que países desenvolvidos como os EUA ou Japão empreguem, até o
ano 2010, uma parcela da força de trabalho no setor fabril inferior à que os países
desenvolvidos empregam agora na agricultura — 1/10, no máximo.
Se uma empresa, indústria ou país não conseguir, nos próximos vinte e cinco anos,
aumentar expressivamente a produção fabril e, ao mesmo tempo, reduzir a força de
trabalho operária, não poderá esperar continuar competitivo, ou mesmo “desenvolvido”,
e irá regredir com relativa rapidez. A Grã-Bretanha apresentou um declínio industrial
nos últimos 25 anos, principalmente porque o número de operários por unidade de
produção fabril diminuiu com muito mais lentidão do que em todos os outros países
não-comunistas desenvolvidos. Esta, porém, não é uma conclusão que políticos, líderes
trabalhistas ou mesmo o público em geral possa compreender ou aceitar facilmente.
A escolha entre uma política industrial favorável àprodução e outra ao emprego
será uma questão política singularmente controversa durante o restante deste século
Pagina 90
Finalmente, é provável que os custos de mão-de-obra representem cada vez menos uma
vantagem no comércio internacional, simplesmente porque nos países desenvolvidos
eles corresponderão a uma parcela cada vez menor dos custos totais. Porém, os custos
totais dos processos automatizados são ainda menores dos que os das fábricas
tradicionais com baixos custos de mão-de-obra, principalmente porque a automação
elimina os custos ocultos, mas muito elevados da ociosidade, como os custos da má
qualidade e dos resíduos, e os custos de paralisar um maquinário para passar de um
modelo de produto para outro. A depreciação regular dos custos de mão-de-obra, como
um fator importante de concorrência, poderia ser uma circunstância positiva para os
países desenvolvidos, especialmente os EUA. Entretanto, para o Terceiro Mundo e,
principalmente, para os países de rápida industrialização o Brasil, por exemplo, ou a
Coréia do Sul e o México — ela representa um impacto negativo. Dos países que se
industrializaram rapidamente no século XIX, um deles, o Japão, desenvolveu-se
exportando matérias- primas, principalmente seda e chá, a preços que subiam de modo
estável e gradativo. Outro, a Alemanha, desenvolveu-se seguindo os avanços das
indústrias high-tech de sua época, principalmente de produtos elétricos, químicos e
ópticos. O terceiro país de rápida industrialização do século XIX, os EUA, seguiu
ambos os processos. Os dois caminhos estão bloqueados para os países que estão se
industrializando rapidamente na atualidade: o primeiro devido à deterioração das
relações de troca para produtos primários, o segundo porque exige uma “infra-estrutura”
de conhecimento e instrução longe do alcance de um país pobre (embora a Coréia do
Sul esteja se esforçando para atingi-la). A concorrência baseada em baixos custos de
mão-de-obra parecia ser a solução. Será que esse caminho também será bloqueado?
Pagina 91
Pagina 92
A liderança da economia mundial
É muito cedo mesmo para imaginar como será a economia do futuro. Será que países
importantes, por exemplo, sucumbirão diante da tradicional reação ao medo
— isto é, o recuo para o protecionismo — ou enfrentarão a mudança na economia
mundial como uma oportunidade? Alguns dos principais planos, porém, já estão muito
claros.
Pagina 93
Pagina em branco
Pagina 94
PARTE 3 – POLITICA
9 - 0 destino do liberalismo
É tido quase como um axioma na literatura política e histórica nossa liberdade ter raízes
no Iluminismo e na Revolução Francesa. Essa crença é de tal modo generalizada, sua
aceitação tão completa, que os descendentes do racionalismo do século XVIII
apropriaram-se da palavra Liberdade, denominando-se liberais. Não se pode negar que o
Iluminismo e a Revolução Francesa contribuíram para a liberdade no século XIX, mas
essa contribuição foi totalmente negativa, dinamitando e varrendo para longe o entulho
da antiga estrutura. Em nada contribuíram para os fundamentos da nova estrutura de
liberdade sobre os quais foi construída a ordem social no século XIX. Ao contrário: o
Iluminismo, a Revolução Francesa e os movimentos que se sucederam, até o liberalismo
racional de nossos dias, são incompatíveis com a liberdade. Fundamentalmente, o
liberalismo racional é totalitário.
Pagina 95
A descoberta
Constatar que a razão humana é absoluta foi a grande descoberta do Iluminismo. Nela
basearam-se não só as doutrinas liberais subseqüentes, mas também todas as doutrinas
totalitárias que se seguiram a Rousseau. Não foi por acaso que Robespierre criou a
Deusa da Razão; seu simbolismo era mais imperfeito do que o dos revolucionários que
se seguiram mas, na realidade, não muito diferente. Tampouco foi casual o fato de a
Revolução Francesa ter escolhido uma pessoa viva para desempenhar o papel da Deusa
da Razão. Toda a filosofia racionalista é baseada no fato de que ela atribui a perfeição
da razão absoluta a homens vivos, Os símbolos e lemas mudaram. A posição de ser
supremo ocupado pelo “filósofo cientista” em 1750, cem anos depois foi ocupada pelo
sociólogo e seu utilitarismo econômico e o “cálculo prazer-dor”. Hoje, foi substituído
pelo “psicobiólogo científico” e seu determinismo quanto à raça e à propaganda. Hoje,
porém, lutamos basicamente contra o mesmo absolutismo totalitário que foi formulado
pelos iluministas e enciclopedistas — os racionalistas de 1750 — e que primeiramente
nos conduziram à tirania revolucionária do Terror de 1793.
Pagina 96
Pagina 97
Por um lado, o racionalista acredita na razão absoluta. Ontem, o progresso ou a
harmonia nacional entre interesse pessoal e o bem comum eram inevitáveis. Hoje há a
crença de que a libido, a frustração e as glândulas explicam todos os conflitos pessoais
ou do grupo. Por outro lado, o liberalismo racionalista acredita que seus princípios
absolutos são resultado de uma dedução racional, são prováveis e racional- mente
incontestáveis. Faz parte da essência do liberalismo racionalista proclamar que, seus
princípios absolutos são racionalmente evidentes.
Entretanto, a razão absoluta nunca pode ser racional, e não pode ser provada ou refutada
pela lógica. A razão absoluta está, por sua própria natureza, acima e além do argumento
racional. A dedução lógica pode e deve ser baseada na razão absoluta, mas nunca pode
prová-la. Conscienciosamente, um princípio absoluto é mais que racional — um
princípio metafísico genuíno que confere uma base válida à lógica racional. Se
formulada e proclamada pelo homem, a razão absoluta deve ser irracional e estar em
conflito insolúvel com a lógica e os meios racionais.
Pagina 98
e o zelo educacional para com os mal-informados. Ele sempre sabe o que é certo,
necessário e bom — o que é sempre simples e fácil. Mas ele não pode colocar nada em
prática, pois não pode fazer concessões ao poder e tampouco lutar por ele. Ele está
sempre politicamente imobilizado: extremamente audacioso na teoria e tímido na ação,
forte na oposição e indefeso no poder, certo no papel mas incapaz na política.
De Rousseau a Hitier
Pagina 99
Eles tentaram definir o homem de acordo com as leis da física, mas Rousseau viu o
homem como um ser político que age sob impulso e emoção. Onde eles viram a
gradativa melhoria racionalista, ele acreditou no milênio que poderia ser e seria criado
pela mais irracional das forças: a revolução. Sem dúvida ele conhecia mais política e
sociedade que todos os iluministas juntos. Sua visão sobre o homem na sociedade era
realista, enquanto os iluministas racionalistas foram irremediável e pateticamente
românticos.
De fato, Rousseau pode ser contestado apenas se atacarem sua base: a crença na
razão absoluta feita pelo homem, no fato de que ele mesmo a possuía e que quem
quer que possua a razão absoluta tem o direito e o dever de impô-la.
Por ter desprezado o racionalismo defendido pelo Iluminismo, Rousseau tornou-se uma
grande força política até hoje. Por ter mantido a crença dos iluministas no
aperfeiçoamento do ser humano, ele repudiou a liberdade e tornou-se o grande
totalitário e revolucionário que acendeu o estopim de um incêndio universal somente
equiparável ao de nossa geração.
Opapel de Marx
Pagina 100
Marx deu um passo a mais que Rousseau. Para este, a revolução era necessária, como
deve realmente ser para todo totalitarista, mas não inevitável. Rousseau deixou um
elemento de dúvida; Marx não deixou nenhum. Em uma visão verdadeiramente
apocalíptica, ele enxergou a inevitabilidade da revolução que precederia o milênio.
Racional- mente, a crença marxista de que o ftituro inevitavelmente pertencerá à
sociedade perfeita sem classes porque todo o passado é feito de sociedades de classes é
um contra-senso implacável, notório e místico. Politicamente, foi a falta de
racionalidade desse item de fé que lhe conferiu força. Ele não só proporcionou uma
crença, mas também possibilitou o surgimento do mentor, do tirano-filósofo
revolucionário que, versado na dialética do inevitável, poderia alegar total sabedoria em
todos os momentos.
Porém, embora o marxismo tenha fracassado como doutrina revolucionária nos países
industrializados, ele exerceu um impacto duradouro nas crenças políticas no continente
europeu. Ele preparou as grandes massas para o totalitarismo, deixou- as prontas para
aceitar a lógica das idéias absolutistas e apocalípticas criadas pelo homem. Só esse fato
é suficiente para que Marx mereça ser chamado de pai do hitlerismo. Ele também legou
para o totalitarismo de nosso tempo o molde e a estrutura das idéias e do pensamento
político. O que Marx fez com o fracassado liberalismo racional de sua época — o
liberalismo dos economistas clássicos e dos utilitaristas — Hitler fez com o
racionalismo abalado de nossa época — o dos cientistas e psicólogos naturalistas.
A conversão de Hitier
Pagina 101
Não é a teoria da evolução ou a das neuroses que nos interessam nessa relação, mas sim
a filosofia desenvolvida a partir delas que se manifesta em frases populares como “O
homem é produto de suas glândulas” ou “O homem é produto de suas frustrações
infantis”. Sem dúvida, as duas frases são literalmente verdadeiras, tanto quanto as
declarações de que o homem é produto dos interesses econômicos, educação, digestão,
condição social, religião ou força física e conformação. Cada uma dessas afirmativas é
incontestável; no entanto, cada uma, por si só, é insignificante. Mas nos sessenta anos
transcorridos entre A origem das espécies e a Grande Guerra de 19 14-18, a explicação
do homem como ser biopsicológico foi gradativamente adotada como base para o
liberalismo racional europeu. Os eugenistas, por um lado, e os behavioristas, de outro
— para mencionar apenas os extremistas — desenvolveram a teoria de que o homem é
aperfeiçoável, seja biológica ou psicologicamente.
A Primeira Guerra Mundial derrubou esse novo racionalismo mesmo antes de ele ter
tempo de transformar-se em uma força política totalmente desenvolvida. A guerra não
podia ser compreendida por meio da “racionalidade” do psicobiólogo ou, na verdade,
por qualquer racionalismo liberal. A guerra era real, real demais, assim como foi a
década que a seguiu. Nessa crise do novo racionalismo, o nazismo deu o passo decisivo
na direção de um totalitarismo completo e politicamente eficiente que poderia explicar
as realidades. Ele tomou o determinismo biológico e a explicação psicológica do
homem e os apresentou como princípios absolutos irracionais. Ao mesmo tempo,
declarou perfeito aqueles que entendiam a “raça” e a “propaganda” e lhes conferiu
direito à liderança política e ao controle absoluto e incontestável.
Uma das grandes diferenças entre a conversão de Hitler do liberalismo racional
ao totalitarismo e o trabalho de seus predecessores, Rousseau e Marx, encontra-se na
exaltação pública de um mestre em relação sociedade organizada. Naturalmente,
Pagina 103
Pagina em branco
Pagina 104
(Princípios do conservadorismo)
Tão popular e tão enganosa quanto a crença de que o Iluminismo teria dado origem à
liberdade no século XIX é a crença de que a Guerra da Independência dos EUA se
baseou nos mesmos princípios da Revolução Francesa, e que esta foi sua predecessora.
Todos os livros de história nos EUA ou na Europa afirmam o mesmo, e não são poucos
os principais protagonistas de ambas as revoluções que partilham dessa crença. No
entanto, é uma completa distorção dos fatos.
Pagina 105
Não é novidade afirmar que a base de toda a liberdade no século XIX reside no
movimento conservador que dominou a Revolução Francesa. Tampouco é nova a
descoberta de que, no que se refere à Europa, esse movimento estabeleceu-se na
Inglaterra. Antes de 1850, era lugar-comum no pensamento político da Europa a
Inglaterra ter encontrado “a saída” — assim como mais tarde tornou-se lugar-comum
buscar as origens de liberdade do século XIX na Revolução Francesa. Mas como a
Inglaterra superou a Revolução Francesa? O que lhe permitiu opor-se a ela e, ao mesmo
tempo desenvolver, sem uma guerra civil ou crise social, uma sociedade livre e
mercantil como alternativa ao despotismo da Revolução Francesa e de Napoleão? Uma
resposta simplista a essas perguntas atribuiria o feito inglês ao gênio da raça inglesa, ao
canal da Mancha ou à Constituição inglesa. Mas nenhuma das três respostas é plausível.
Em 1770, tudo na Inglaterra caminhava rapidamente em direção ao Despotismo
Esclarecido. Em 1780, as forças antitotalitárias encontravam-se no poder. O rei havia
sido derrotado para nunca mais recuperar o poder absoluto. Eos rivais revolucionários
do rei, os totalitaristas seguidores de Rousseau, que queriam instalar sua própria tirania,
seu absolutismo, seu governo centralizado no lugar da tirania real e do governo central
do rei, também fracassaram. Não sobreviveu o absolutismo do rei, tampouco o das
massas. Após a bem-sucedida resistência das colônias, o antitotalitarismo voltou ao
poder nas mãos de Pitt e Burke e sob essa nova forma se apoiou sobre o princípio básico
de liberdade. Todas as instituições livres do sistema político inglês do século XIX
remontam, de fato, às origens do curto domínio dos “old whigs” que chegaram ao poder
porque se opuseram à guerra com as treze colônias, que constituiriam os EUA. Eles
introduziram responsabilidade ministerial no Parlamento e o sistema de Conselho de
Ministros, fundaram o moderno sistema de partidos e o serviço público e definiram o
relacionamento entre a Coroa e o Parlamento. A Inglaterra de 1790 não era uma
sociedade muito saudável e muito menos ideal, mas encontrou a estrutura básica
para uma nova sociedade livre. E essa estrutura consistia nos princípios dos “old whigs”
Pagina 106
que praticamente haviam sido destruídos antes da Guerra da Independência dos EUA, e
que não foram apenas restaurados, mas colocados no poder devido à vitoriosa
resistência dos colonos.
O conservadorismo americano
As constituições são uma estrutura; elas formam um esqueleto legal, e nada mais.
Elas estabelecem os limites para os poderes políticos e as normas de procedimento para
seu exercício, mas não podem organizar a sociedade. Os FoundingFathers* nunca ten
Founding Fathers (Pais peregrinos) — delegados da Convençáo da Constituição na
Filadélfia, em 1787 (N. doT.)
Pagina 107
taram fazer por meios legais e constitucionais o que somente se podia fazer por meio de
instituições sociais. Eles nunca tentaram fabricar instituições, recusaram-se a impor uma
camisa de força institucional à posteridade. Mas, ao solucionar os problemas do dia-a-
dia, eles desenvolveram os princípios de uma sociedade e de um governo livres tão
sólidos que foi possível às gerações posteriores construir sobre suas fundações.
Nos EUA há, em primeiro lugar, o sistema bipartidário baseado não em programas
ideológicos e perfeccionistas, mas em tradições e organizações locais e mecanismos
permanentes. Ao contrário de toda organização partidária na Europa, um partido político
americano não é um organismo central e centralizado cuja preocupação principal é
conquistar o governo central. Apesar do tremendo alvoroço ao redor das eleições
presidenciais e do congresso, o principal interesse dos políticos dos partidos está
concentrado nos acontecimentos da própria cidade, do próprio condado e do próprio
estado. Um partido nacional é, na verdade, uma holding que visa objetivos muito
limitados, O chefe político da cidade, do condado e do estado está interessado nos
acontecimentos nacionais e nas eleições nacionais somente na medida em que afetam
seu próprio campo de atividades, mas o centro de seu poder e interesse continua sendo
local.
Centrado nas questões locais e sendo a “linha partidária” uma conciliação entre vários
pontos de vista locais e regionais conflitantes, um partido americano nunca se
comprometeu com um programa do tipo “tudo ou nada”. Isento de uma ideologia, ele
pode abranger qualquer convicção política, por mais extremada que seja. Assim, o
crescimento de movimentos extremistas fora das fileiras partidárias tornou-se
desnecessário e quase impossível. No entanto, estando livre de compromissos
ideológicos, o partido pode incorporar — e é o que tem feito — qualquer exigência
popular, uma vez que tenha reunido suficiente apoio do povo. Assim sendo, ele evita —
ou pelo menos atenua — mudanças radicais e súbitas na política, mas oferece um
veículo para todos e quaisquer programas que se tornem relevantes.
Concluindo, o partido, nos EUA, não só tem sido uma instituição extremamente
conservadora — anticentralização, anti-autoritária, regional e não-dogmática, mas
também um dos meios mais eficientes para evitar que o governo se torne absoluto. O
partido faz parte do estado, mas não é o estado.
Outra salvaguarda importante para a liberdade nos EUA, embora totalmente extralegal,
tem sido a separação das posições e dos poderes socioeconômico e político. E possível
que a corrupção de políticos profissionais tenha sido a principal razão para que pessoas
“respeitáveis” se afastassem da vida política. É mais provável que a corrupção seja um
efeito, e não a causa, da retirada de pessoas distintas da arena política para o “escritório
de contabilidade”. Seja como for, a resultante falta de respeito e reputação da profissão
política levou à cisão entre as classes política e social governantes, impedindo que
qualquer uma delas se tornasse a classe dominante.
Pagina 108
O conservadorismo inglês
No que diz respeito à liberdade inglesa durante o século XIX, dois lemas
freqüentemente ouvidos são “soberania parlamentar” e “governo da maioria”. Na
verdade, o sistema político inglês do século XIX consistiu principalmente em limitações
da soberania do parlamento e do governo da maioria. A Inglaterra realmente teve o
governo da minoria limitado pela anuência da maioria.
As instituições políticas reais através das quais esses objetivos foram atingidos
eram: um sistema bipartidário que tornou a oposição parte integrante do governo, o
surgimento do Conselho de Ministros e do serviço público independente.
Pode-se dizer — embora não sem exagero — que a Constituição inglesa durante o
século XIX poderia ter funcionado sem o governo, mas não sem a oposição. A
possibilidade sempre presente de um governo alternativo foi, na verdade, um fator
decisivo na vida política inglesa. A vontade da maioria nunca poderia ser final ou
absoluta, pois a vontade divergente da minoria na oposição era tanto a vontade do povo
britânico e do governo, quanto a vontade da maioria no poder.
Os sistemas inglês e americano têm sido criticados como sendo “não-democráticos”.
Dizem que eles impedem o domínio absoluto da maioria, mas essa não só é
Pagina 109
sua função como também sua maior justificativa. Evitando o domínio absoluto, eles
protegem a liberdade. Igualmente, estamos elogiando e não criticando o sistema
bipartidário quando dizemos que ele evita que pequenos grupos se tornem influentes.
Nada é mais salutar que o fato de a compulsão para novas idéias e novos líderes tenha
de lutar para abrir caminho em grandes partidos existentes e atuantes. Isso obriga o
novo a provar que é melhor e mais eficaz do que o antigo antes que lhe seja permitido
suplantá-lo. Facilitar a atuação de pequenos partidos e facções destrói o governo
parlamentar e conduz a uma inútil subdivisão de unidades políticas, o que torna quase
impossível a existência de um governo disciplinado. Além disso, confere a grupos muito
pequenos, que não representam ninguém além de si mesmos, uma posição decisiva, uma
capacidade de barganha, um poder e uma liberdade de acesso aos bolsos públicos
totalmente fora de proporção com sua real representatividade junto à população. O
sistema bipartidário não só é uma defesa contra a tirania da maioria, mas também da
minoria.
Restringir o domínio da maioria por meio de um sistema bipartidário foi apenas um dos
fatores no mecanismo institucional que dividiu e limitou o governo da Inglaterra. Um
segundo fator foi o Conselho de Ministros, ou, mais precisamente, o surgimento do
primeiro-ministro. Na verdade, embora sem ser de direito, o cargo de primeiro-ministro
que surgiu na época do antigo Pitt, e se manteve inalterado desde Peel, extrai seu poder
não do Parlamento, mas do povo, O primeiro-ministro é eleito pelo povo; o fato de o
eleitor votar no seu representante local para o Parlamento e não em Disraeli, Gladstone
ou Asquith tem significado pouco mais do que o eleitor americano legalmente votar em
um membro do Colégio Eleitoral, e não diretamente no candidato presidencial. Embora
eleito indiretamente, o primeiro-ministro é, de fato, diretamente autorizado a assumir o
poder executivo, mas limitado pelo requisito da confiança parlamentar. Ele está sujeito à
confirmação de mandato a cada cinco anos, quando não antes, mas seu poder é, na
verdade, original e não derivado.
Esse fato, do qual todo primeiro-ministro está ciente, embora não conste de nenhum
texto de lei constitucional inglesa, representou uma divisão efetiva de poderes e funções
— um sistema eficiente de “controle mútuo”. Em primeiro lugar, limitou rigidamente o
alcance e o poder do Parlamento. Opor-se à política de um primeiro- ministro não era
tão fácil quanto na França ou na Alemanha, onde os primeiros- ministros eram
instrumentos do Parlamento. Tratava-se também de uma questão muito mais difícil e
perigosa do que a oposição feita ao presidente, pelo Congresso americano e que não lhe
impõe a responsabilidade de encontrar uma alternativa. A oposição a um primeiro-
ministro que, efetivamente, foi eleito pelo povo impôs a responsabilidade ao Parlamento
de encontrar uma alternativa no mínimo aceitável para o povo. Um primeiro-ministro
derrotado no Parlamento pode sempre convocar o apoio do eleitorado, ou pode voltar-se
para o líder da oposição e obrigá-lo a conseguir o endosso direto do povo.
O serviço público, contudo, é totalmente independente do Parlamento. Ele clara e
indiscutivelmente criou uma limitação externa ao poder parlamentar.
Pagina 110
Pagina 111
desenvolver uma sociedade mercantilista livre. No entanto, por mais que fossem
diferentes, eles tomaram como ponto de partida o fato de que nenhum homem ou grupo
de homens é perfeito ou possui a Verdade e a Razão absolutas. E os Founding Fathers
americanos e os radicais conservadores na Inglaterra acreditaram num governo misto;
no consentimento dos governados por um lado, e nos direitos de propriedade individual
por outro, como a limitação do governo; na separação do governo entre a esfera política
e a social.
O método do conservadorismo
O método da contra-revolução conservadora é tão importante para nós hoje quanto seus
princípios — talvez até mais. Muitos escritores e pensadores políticos acreditam que os
princípios são tudo e que o método é algo irrelevante. Esse é um equívoco básico sobre
a natureza política e ação política que a geração de 1776 jamais teria cometido. Essa
geração sabia que princípios sem realização institucional são tão ineficazes
politicamente — e tão daninhos para a ordem social — quanto instituições sem
princípios. Conseqüentemente, o método era tão importante para ela quanto os
princípios, e seu sucesso deve-se a ambos. Em última análise, seu método consistia em
três partes:
Em primeiro lugar, enquanto conservadores, eles não renovaram e tampouco pretendiam
renovar. Eles nunca idealizaram o passado e não alimentavam ilusões sobre o presente
em que viviam. Eles sabiam que a realidade social havia mudado. Eles nunca teriam
concebido seu trabalho como algo além da integração de uma nova sociedade baseada
em velhos princípios; eles jamais teriam apoiado qualquer tentativa de desfazer o que
havia sido feito. Foi sua recusa incondicional em renovar que fez com que os Founding
Fathers parecessem radicais, e que obscureceu o caráter essencialmente conservador de
seu trabalho. A análise social que realizaram era, de fato, radical ao extremo. Eles nunca
aceitaram a polidez das convenções sociais ou os esperançosos sonhos de renovação
baseados na hipótese de que a antiga sociedade ainda estava atuando embora, na
verdade, já tivesse desaparecido. E as gerações de 1776 e 1787 consideravam a essência
de seu conservadorismo o fato de que não tinham intenção de restaurar. Pois a
restauração é tão violenta e absolutista quanto a revolução. Os Founding Fathers nos
EUA e os radicais conservadores na Inglaterra eram, portanto, conservadores do
presente e do futuro, e não conservadores do passado. Eles sabiam que sua realidade
social era a de um sistema mercantilista, enquanto suas instituições sociais eram pré-
mercantilistas. Seu método consistia em partir desse fato e
Pagina 112
desenvolver uma sociedade mercantil livre e atuante. Eles queriam uma solução para o
futuro, não para o passado, a fim de superar a próxima e não a última revolução. A
segunda característica básica de seu método é o fato de não acreditarem em projetos ou
panacéias. Eles acreditavam em uma ampla estrutura de princípios gerais na qual não
admitiam concessões. Eles sabiam, porém, que uma solução institucional somente é
aceitável se funcionar, isto é, se solucionar um verdadeiro problema social. Eles também
sabiam que praticamente qualquer instrumento institucional real pode ser criado de
modo a atender a praticamente todos os objetivos ideais. Eles eram doutrinários em seus
dogmas, mas extremamente pragmáticos na política do dia-adia. Eles não tentaram
erigir um ideal ou uma estrutura completa, e estavam até dispostos a contradizer-se em
detalhes de soluções reais. Tudo que queriam era encontrar a solução para a tarefa que
tinham em mãos — contanto que esta pudesse encaixar-se na ampla estrutura de
princípios.
Quanto aos EUA, no entanto, pode-se argumentar que os Founding Fathers realmente
engendraram um projeto: a Constituição. Mas o mérito da Constituição reside não no
alcance das normas que estabelece, mas nas limitações. Ela contém alguns princípios
fundamentais, cria algumas instituições básicas e estabelece algumas normas de
procedimento simples. Os membros da Convenção de Filadélfia opuseram-se à inclusão
da Carta de Direitos na Constituição não tanto por serem contrários às suas disposições,
mas por não quererem comprometer o futuro. No entanto, as disposições da Carta de
Direitos têm caráter amplamente negativo e estabelecem não o que deve, mas apenas o
que não deve ser feito. O objetivo final no método da contra-revolução conservadora é o
que Burke chamava de “preceito” e que nada tem a ver com a “sacralização da
tradição”. O próprio Burke rejeitou tradições e precedentes de modo implacável quando
estes não funcionavam. No campo do método político, preceito é a expressão do
princípio da imperfeição humana e diz simplesmente que o homem não pode prever o
futuro e que não sabe para onde vai. A única coisa que ele possivelmente pode saber e
compreender é a sociedade real que se desenvolveu historicamente. Portanto, deve
tomar a realidade social e política existente, e não a sociedade ideal, como base para
suas atividades políticas e sociais. O homem nunca pode inventar instrumentos
institucionais perfeitos. Portanto, é melhor contar com os instrumentos antigos do que
tentar inventar novos para realizar uma tarefa ideal. Sabemos como funciona um antigo
instrumento, o que pode ou não fazer, como usá-lo e até que ponto podemos confiar
nele. E não só nada sabemos sobre novos instrumentos; mesmo que eles sejam
apregoados como perfeitos, como podemos estar bastante certos de que seu
funcionamento será menos satisfatório do que o dos antigos, que ninguém esperava ou
alegava serem perfeitos. Preceito não é apenas a expressão da crença na imperfeição
humana ou da consciência de que toda a sociedade é resultado de um longo
desenvolvimento histórico que distingue estadistas de meros políticos.
Pagina 113
Eles sabiam que podiam usar apenas do que dispunham; sabiam também que o futuro
sempre começou no passado e que é tarefa do estadista decidir que parte de um passado
imperfeito transformar em um futuro melhor, em vez de tentar encontrar o segredo da
mudança política perpétua — ou da perpétua imobilidade política. O surgimento de um
sistema industrial que não pôde ser organizado socialmente pela sociedade mercantilista
do século XIX destruiu — ou pelo menos debilitou consideravelmente — muitos dos
aspectos mais importantes das conquistas de 1776 e 1787. Grande parte da verdadeira
sociedade que a geração de 1776 construiu foi destruída e hoje precisamos desenvolver
uma nova sociedade industrial. Mas tantos os princípios quanto os métodos da contra-
revolução conservadora ainda são válidos. Se quisermos uma sociedade livre, podemos
conquistá-la somente adotando os mesmos princípios básicos. As instituições sociais
reais do futuro serão tão diferentes das criadas em 1776 e 1787 quanto estas, por sua
vez, diferiam das instituições dos séculos XVII e XIX. Se, porém, quisermos que elas
sejam instituições de uma sociedade livre e atuante, devemos desenvolvê-las usando o
mesmo método da geração de 1776: a consciência de que não podemos restaurar e de
que temos de aceitar a nova realidade industrial em vez de tentar voltar ao antigo
sistema mercantilista pré-industrial: ter a disposição de privar-se de projetos e panacéias
e satisfazer-se com a tarefa humilde e menos brilhante de encontrar soluções viáveis —
gradativas e imperfeitas — para problemas imediatos; e conhecimento de que podemos
usar somente o que temos, e que precisamos começar do ponto em que nos
encontramos, não do ponto que queremos atingir. Nossa tarefa hoje pode parecer maior
e mais difícil do que a da geração de 1776 — embora provavelmente estejamos
inclinados a subestimar suas dificuldades, já que conhecemos as respostas, e a
superestimar as nossas, já que não sabemos o que vai acontecer. Porém, é certo que só
podemos esperar completar nossa tarefa se nos basearmos nos princípios e dependermos
dos métodos que a geração de 1776 nos legou.
Pagina 104
11 - Os divisores
Mesmo na paisagem mais plana há desfiladeiros em que a estrada sobe até um pico e
então desce para um novo vale. A maioria desses desfiladeiros é apenas variação
topográfica, com pouca ou nenhuma diferença de clima, língua ou cultura entre os vales
em cada lado. Mas alguns são diferentes, formam verdadeiros divisores e muitas vezes
nem são altos nem grandiosos. Dos desfiladeiros que cruzam os Alpes, Brenner é o mais
baixo e suave; no entanto, há muito tempo ele marca a fronteira entre as culturas
mediterrânea e nórdica. O Delaware Water Gap, a cerca de 100 quilômetros da cidade
de Nova York, nem é de fato um desfiladeiro; no entanto, divide a costa leste e o centro
dos EUA.
A história também conhece esses divisores e esses também costumam ser poucos
grandiosos e raramente são notados na época em que aparecem. Mas depois que são
cruzados, a paisagem social e política muda, O clima social e político é diferente e o
mesmo ocorre com a linguagem política e social. Há novas realidades.
Em alguma época entre 1965 e 1973, cruzamos um desses divisores e entramos no
“próximo século”. Deixamos doutrinas, compromissos e acordos que moldaram a
política por um ou dois séculos. Encontramo-nos em uma terra política incógnita com
poucos pontos de referência para nos guiar. Ninguém, exceto uns poucos stalinistas,
acredita mais em salvação pela sociedade — a crença que, desde o Iluminismo do
século XIX, tem sido a força dominante e o principal mecanismo político. Mas a única
força política contrária eficaz também está esgotada: a integração política em e por meio
de coligações partidárias. Ela foi a contribuição dos EUA à arte e à prática
Pagina 115
É possível que Gorbatchev na Rússia, Deng e seus sucessores, na China, consigam obter
êxito em manter o monopólio do poder de seu partido ou mesmo reavivar a economia,
mas não serão capazes de restaurar a crença na salvação pela sociedade, seja por meio
do comunismo ou de qualquer outra doutrina. Ela se foi para sempre. A crença na
salvação pela sociedade também acabou nos países comunistas. Ninguém — exceto,
talvez, os “teólogos da libertação” na América do Sul — acredita mais no poder da ação
social para criar a sociedade perfeita, ou mesmo para aproximá-la de tal ideal, ou para
mudar fundamentalmente o indivíduo a fim de produzir o “novo Adão”.
Há cinqüenta anos, essas crenças eram lugar-comum. Não só os socialistas, mas a
grande maioria de pensadores políticos em todo o mundo acreditava que a ação social
— e principalmente o fim da propriedade privada — mudaria fundamentalmente o ser
humano. Haveria o Homem Socialista, o Homem Nazista, o Homem Comunista, e
assim por diante. As diferenças não se referiam à doutrina básica em si, mas à rapidez
com que se processaria a melhoria e a eficácia de cada ação em particular. Discutiam-se
principalmente os meios. A função do governo e das políticas seria remover os
obstáculos para atingir o aperfeiçoamento social — o que hoje chamaríamos de
“neoconservadorismo” e, há sessenta anos, era chamado de “liberal”?
Ou deveria o governo ativamente criar novas instituições e condições? E agora
isso acabou.
Pagina 117
O governo não vai “definhar”; há poucos sinais disso. Mas qualquer pessoa que
apregoasse hoje a “Great Society* , como Lyndon Baines Johnson fez há apenas vinte
anos, seria ridicularizada. Nós debatemos medidas específicas e questionamos se o
governo deve subsidiar ou proibir essa ou aquela atividade. Cada política será discutida
de acordo com sua própria relação custo/benefício. Suas chances de sucesso serão
debatidas: é provável que o consumo de drogas diminua com sua proibição ou
legalização? É provável que essa ou aquela medida atraia votos, mantenha um partido
no poder, ou afaste os políticos da situação? naturalmente ainda há pessoas — e
provavelmente haverá por muito tempo — que se denominam “socialistas” ou
“trabalhistas”, mas o que isso significa atualmente é exemplificado na pessoa de
François Mitterand, presidente da França desde 1981. Quando chegou ao poder,
Mitterand era o último social-democrata verdadeiramente engajado da Europa, herdeiro
dos programas, das esperanças, das promessas da década de 1930. Em 108 dias, a
realidade — sob a forma de evasão de divisas da França — obrigou-o a reverter sua
rota, O governo socialista de Mitterand tornou-se praticamente o governo mais pró-
capitalista no mundo ocidental, quase do dia para a noite. Desde 1982, o socialismo na
França de Mitterand significava colocar amigos e partidários do governo na presidência
de indústrias nacionalizadas. Atualmente, na França, socialismo é tudo que favorece o
Partido Socialista a se manter no poder. Comparemos esses fatos com o que ocorreu há
cinqüenta anos, em 1931, durante a severa crise econômica na Grã-Bretanha, quando o
primeiro-ministro socialista, Ramsay MacDonald, colocou necessidades econômicas de
curto prazo à frente dos princípios socialistas. MacDonald foi cabalmente
ridicularizado, e considerado traidor e imediatamente perdeu todo o respeito. Mitterand
tornou-se um herói.
John F. Kennedy foi o primeiro presidente americano do século que nem ao menos
fingiu ter um “programa” salvo a conquista do poder. Até hoje é considerado um herói e
uma figura admirada, embora pouco tenha realizado em seus três anos de mandato. E
Lyndon B. Johnson, talvez o último presidente americano que ainda acreditava na
salvação pela sociedade, tornou-se alvo de zombaria por causa dc sua Great Society. Sua
guerra contra a pobreza tornou-se o lema do fracasso. O malogro da salvação pela
sociedade foi maior onde mais ela prometia, nos países comunistas. Ela, porém, também
fracassou no Ocidente. Praticamente nenhum programa de governo aprovado desde a
década de 1950 no mundo ocidental — ou nos países comunistas — foi bem-sucedido.
O último a exercer um efeito positivo talvez tenha sido o Serviço Nacional de Saúde
Britânico, aprovado em 1946-47 e que continua sendo extremamente popular no Reino
Unido, mas que passa por uma crise grave e cada vez mais profunda.
* Great Society — (Grande Sociedade) meta do programa doméstico do governo
Johnson (N. do T.).
Pagina 117
Igualmente importante é o fato de duvidarmos cada vez mais de que haja uma “resposta
correta” para qualquer problema social. Há respostas erradas, com.certeza, mas sabemos
hoje que as situações, o comportamento e os problemas sociais são complexos demais
para que aceitemos uma simples “resposta correta”. Se eles puderem ser solucionados
de alguma maneira, sempre haverá várias soluções — e nenhuma é a mais conveniente.
Agora sabemos que não há uma forma correta de ensinar ou aprender. Há uma forma
correta para um aluno e uma forma correta diferente para outro. Não há um meio
satisfatório de proteger o ambiente contra poluentes e resíduos industriais. Em algumas
situações, proibições e interdições são apropriadas; em outras, multas. Em outras, ainda,
a não-poluição precisa se tornar lucrativa. Para ter apelo popular, contudo, qualquer
promessa de “salvação pela sociedade” precisa ser capaz de dizer, “Esta é a única
forma”, ou pelo menos, “Até agora, este é o melhor caminho”. E assim, encontramo-nos
no final de dois séculos de história ocidental.
O fim da crença na salvação pela sociedade tem como conseqüência o fim da ilusão
mais difundida dos últimos duzentos anos: a mística da revolução. Ela foi esquecida
quando Mikhail Gorbatchev ousou chamar a Revolução de Outubro de Lenin de “evento
histórico” — ela sempre havia significado, no dicionário comunista,
Pagina 118
o “fim dos tempos”. Não há dúvidas de que continuará a haver revoluções assim como
as houve no passado: golpes de estado, tomadas de poder, rebeliões contra governos
tirânicos e, acima de tudo, as “crises internas” que, em toda a história, têm sido as
causas mais freqüentes de derrubadas violentas de governos. Algumas dessas revoluções
trarão melhorias, outras simplesmente substituirão o Rei Tolo pelo Rei Bobo. Mas a
revolução foi algo totalmente diferente. Tratou-se de um acontecimento messiânico, um
segundo advento secular, que poderia devolver à sociedade e ao ser humano sua pureza
original. Não há duvidas de que revolução seria violenta, mas depois que o
“proletariado oprimido” tivesse se libertado de seus grilhões — ou os virtuosos arianos
tivessem expulsado os judeus — o novo alvorecer anunciaria a utopia. Os “radicais”
derrotados da Revolução Francesa foram os primeiros a ter essa visão messiânica em
1794, quando a sociedade ideal ruiu ao seu redor, conduzindo ao terror e, depois, à
contra-revolução do Directoire. Essa visão reviveu após o fracasso das revoluções de
1848 na Europa continental e se tornou essencial a Marx e ao marxismo quando a
Comuna de Paris, de 1871, terminou em um massacre sangrento e em repressão militar.
Essa mesma visão ainda serviu de estímulo aos seguidores de Mao na “Grande
Revolução Cultural” na China, há apenas quinze anos. Porém, mesmo os terroristas que
matam e incendeiam em nome da revolução — o pequeno bando de maoistas, por
exemplo, que aterroriza os Andes peruanos — não acreditam mais na promessa
messiânica. Eles destroem não porque têm esperança, mas porque se desesperam.
Pagina 119
menos remédios e menos médicos; ele significou muito mais remédios e um número
muito maior de médicos. Da mesma forma, a mudança na política não precisa significar
menos governo e menos medidas governamentais, mas significa que o papel e a função
do governo são encarados de modo diferente — assim como seu objetivo final.
Um vazio
O fim da crença na salvação pela sociedade, que durante duzentos anos tem sido a
influência mais dinâmica na política ocidental e, cada vez mais, na mundial, cria um
vazio, O surgimento do islamismo fundamentalista é uma tentativa de preenchê-lo. É o
resultado do desencantamento com o estado do bem-estar social do Ocidente
“democrático” e com a utopia comunista. O vigoroso ressurgimento da religião como
um elemento da vida pública nos EUA, o ressurgimento das igrejas evangélicas e
pastorais é, de certa forma, uma reação contra o desaparecimento da secular fé na
salvação pela sociedade. A campanha eleitoral de 1988 nos EUA provou decisivamente,
porém, que não vamos retornar ‘a crença da salvação pela fé como fator político
importante, apesar de toda a publicidade destinada à “MoralMajority”*. Tampouco é
provável que haja uma volta à política do laissez-faire praticada no início do século
XIX, pois ela também prometeu a salvação pela sociedade: remover todos os obstáculos
para a busca do ganho individual produziria, no final, uma sociedade perfeita — ou pelo
menos a melhor possível.
O último político de destaque a acreditar na salvação pela sociedade foi Willy Brandt, o
chanceler socialista alemão do início da década de 1970. Seu sucessor como líder dos
socialistas alemães, Helmut Schmidt, era um “estóico”, e não um “crente” e seguia
apenas uma ideologia política, a saber, a decência. Quanto ao mais, acreditava — e
praticava com sucesso — uma política pragmática, que tratava de solucionar problemas
adhoc de curto prazo e não em debatê-los. Os princípios que o orientavam não eram
princípios de modo nenhum, mas sim eficiência, competência e relação custo/benefício.
Da mesma forma, seu sucessor, o cristão-democrata Helmut Kohl, não segue nenhum
princípio a não ser o de não ter princípio. O importante para ele é ver as coisas
funcionarem. Em política, a pedra de toque cada vez mais é adotar o que tem
probabilidade de manter ou ajudar o partido a chegar ao poder.
Será suficiente promover a integração de facções, de grupos de interesse, da
diversidade de pressões de curto prazo que caracterizam a complexa sociedade
moderna? Será suficiente proporcionar governo, liderança, política? * MoralMajority__
grupo político formado principalmente por protestantes fundamentalistas cujo objetivo é
promover medidas conservadoras (N. do T.).
Pagina 120
12 - O fim da integração “de blocos de interesses”
Longe de ideologias
Esse conceito remonta à República romana e tornou-se uma realidade política somente
no final do século XIX, e apenas nos EUA. Naquela época, o estado de bem-estar social
de Bismarck começava a triunfar sobre a luta de classes — objetivo para o qual
Bismarck expressamente o planejou. Os socialistas marxistas na Europa Ocidental e
Central estavam aderindo rapidamente ao socialismo-democrático “revisionista” e
tornando-se burgueses. Nos EUA, porém, surgia um novo e ruidoso populismo que, de
muitas formas, era mais “anti” e mais “radical” que a esquerda européia. Para combater
essa ameaça de uma luta de classes dissidente — a ocasião foi a eleição presidencial de
1896 — um político americano, Mark Hanna, criou uma nova integração política na
qual importantes interesses econômicos (os Estados
Pagina 121
Tantos sucessos
Pagina 122
mesma forma, Roosevelt aumentou o apoio ao agricultor, mas, enquanto no governo de
seu antecessor a política agrícola fora protecionista, em seu governo ela visava — numa
consciente continuidade das idéias de Mark Hanna — um aumento de produtividade
cada vez maior nos EUA. E ao somar “reforma” e “recuperação”, isto é, somando a
promessa de justiça social à prosperidade de Mark Hanna, Roosevelt gerou esperança.
Economicamente, os EUA só começaram a se recuperar quando entraram numa
economia de guerra em 1940 e 1941. Social e politicamente, contudo, os EUA, foram os
únicos, entre os maiores países ocidentais, que se recuperaram totalmente, e retomaram
o impulso após cerca de dezoito meses da posse de Roosevelt. Apesar do fechamento
dos bancos, dos níveis catastróficos de desemprego, das secas e tempestades de poeira
que devastavam a economia e a sociedade rurais, em 1935 os americanos passaram a se
considerar vencedores e líderes
Nesse século, nenhum outro governo mostrou-se mais bem-sucedido. Nenhum outro
governo nesse século de rupturas ideológicas e guerras civis foi capaz de criar maior
coesão nacional. Isso explica por que os EUA de Roosevelt tornaram a luz que orientava
e inspirava a todo o globo — a ponto de se tornarem o “inimigo” para os
verdadeiramente radicais. Esse fato, também, é a explicação mais plausível para o que,
de outra forma, seria inexplicável: a declaração de guerra completamente desnecessária
de Hitler contra os EUA após o ataque jappnês a Pearl Harbor (que, em última análise,
condenou aAlemanha nazista). E também explica por que, imediatamente após a
Segunda Guerra Mundial, a União Soviética teve de transformar os EUA em seu
“inimigo” real, mesmo que o governo e o povo americano estivessem mais do que
dispostos a apoiar, subsidiar e manter relações de amizade com seu aliado de guerra.
A tradição de Roosevelt continuou durante a administração de Harry Truman que,
talvez, estivesse mais consciente do que seu antecessor dos conceitos que
fundamentavam o New Deal. A tradição de Roosevelt atingiu seu apogeu no governo de
Dwight Eisenhower, que sabia ser sua a missão histórica coordenar o New Deal, mas
também recuperar para o Partido Republicano o poder integrador idealizado por Mark
Hanna.
De modo geral, acredita-se que a integração política gerada pela promessa econômica
de prosperidade — e não pela ideologia política — funciona “somente nos EUA”, mas
isso simplesmente não é verdade. Ela obteve resultado tão positivo em solo estrangeiro
quanto no país natal de Mark Hanna e Roosevelt. Desde a Segunda Guerra Mundial, o
governo japonês — a administração mais eficiente dos últimos 35 anos — baseou-se na
integração de interesses econômicos de Mark Hanna. Naturalmente, não há nada no
sistema político americano que remotamente se assemelhe à singular posição e poder do
serviço público japonês, tampouco há alguma coisa no sistema japonês que
remotamente se assemelhe ao poder e à posição da singular
Pagina 123
Pagina 124
ainda vencem todas as eleições no Japão, mas apenas porque os partidos de oposição
acreditam na ideologia da salvação pela sociedade, o que os torna ainda menos
interessantes. Um dos motivos pelo qual a integração de blocos de interesse não
funciona mais é que os “grupos de interesse” econômicos, como entidades distintas e
conscientes de si mesmas, estão desaparecendo. Nem “agricultores” nem
“trabalhadores” possuem ainda força numérica ou importância política para representar
uma “classe econômica” em qualquer país desenvolvido. Nos EUA de Mark Hanna, os
agricultores representavam metade da população. Quando Roosevelt iniciou a vida
política, o operariado somava cerca de 2/5 da população. Atualmente, os agricultores
não representam mais que 3% da população e a tradicional mão-de-obra operária chega
a 1/5, na melhor das hipóteses. Também as “empresas” já não são uma categoria
econômica dominante, O “interesse empresarial” que Mark Hanna mobilizou em busca
de poder econômico não foi o da General Motors ou Citibank. Foi o do sapateiro, do
dono de bar, do marceneiro da cidade pequena. E ainda há muitos deles por aí, mas eles
não se vêem como “empresas” ou como um grupo de interesse independente.
Em segundo lugar, e mais importante, nenhum desses grupos se distingue mais
socialmente. Na verdade, o que conferiu unidade e identificação política a cada um não
foi um interesse econômico em comum. Criadores de gado são “agricultores”, mas
sempre alimentaram interesses econômicos diferentes dos agricultores produtores de
laticínios ou produtores de tabaco. Profissionais especializados têm interesses
econômicos totalmente diversos do trabalhador não-qualificado que atua na produção
em massa, que se tornou a maioria da “mão-de-obra” americana durante a década de
1920. O que tornava esses grupos distintos e capazes de uma ação conjunta era o que
hoje chamamos de cultura. Eles se identificavam muito mais socialmente do que
economicamente. Havia o “trabalhador com amor-próprio” e a “sociedade rural”. E
havia também o “empresário” nas grandes e pequenas cidades. Cada um desses grupos
lia diferentes jornais, em geral freqüentava diferentes igrejas e normalmente vivia em
diferentes partes da cidade. Cada um defendia valores diversos e levava um estilo de
vida diferente. Acima de tudo, cada grupo tinha uma opinião clara e distinta de si
mesmo. Eles não tinham uma “consciência de classe”, na linguagem marxista,
tampouco acreditavam necessariamente que eram explorados pelos outros grupos e
classes da sociedade — pelo menos não depois da teoria de Mark Hanna de que todos
partilhavam um interesse comum em prosperar. Cada qual, porém, estava plenamente
consciente de que a vida que levava, o papel que desempenhava e o lugar que ocupava
na sociedade eram diferentes.
Tanto Mark Hanna quanto Roosevelt usavam o termo “interesses econômicos” como
um código. Na realidade, queriam dizer — e ambos provavelmente tinham consciência
disso valores e estilos sociais e culturais. Eles falavam sobre quantidade, mas se
referiam a qualidade. Hoje, pouco resta desses valores e estilos. Os que os mantêm,
como o operário do norte da Inglaterra e da Escócia, são hoje considerados
“retrógrados”. O mesmo ocorre com os agricultores da Sicília. O criador de gado
americano ou o criador de galinhas numa granja automatizada ainda se consideram
Pagina 125
agricultores, mas eles provavelmente são mais versados em informática do que qualquer
outro grupo profissional existente no mundo. Está claro que os operários de Detroit são
trabalhadores, mas há poucos vestígios da classe operária em seu estilo de vida, exceto o
fato de preferirem cerveja a vinho.
Quanto ao mais, como me lembrou há pouco tempo o representante sindical de uma das
fábricas de automóveis, dos mais militantes dos EUA, as preocupações dos membros do
sindicato são suas casas motorizadas, suas cabanas de pesca nas florestas do norte e suas
pensões de aposentadoria. Eles assistem exatamente aos mesmos programas de televisão
que todos os outros integrantes da sociedade americana, adquirem os mesmos bens de
consumo nos mesmos supermercados e viajam para os mesmos lugares nas férias.
Eles realizam diferentes tipos de trabalho, mas não levam vidas diferentes. Eles
determinam sua posição social não por meio de seus interesses econômicos, mas pelo
poder aquisitivo.
Pagina 126
I3 - Do Estado-nação ao Megaestado*
Pagina 127
senhores de terra de todos os portes, cada qual com seus próprios servos armados
devendo lealdade somente a eles, e cada qual com sua própria jurisdição e seus próprios
poderes de tributação; cidades livres e associações de comércio independentes; e vários
outros. Mas a tentativa da Espanha de dominar a Europa não deixou alternativa: a opção
era submeter-se ao soberano nacional ou ser dominado por um soberano estrangeiro. A
partir de então, praticamente todas as mudanças na estrutura política do Estado-nação
europeu foram causadas — ou, pelo menos, desencadeadas — por tentativas
semelhantes de dominar a Europa e substituir o Estado-nação por um superestado
controlado, por sua vez, pela França, Alemanha ou Rússia.
Pagina 129
Do Estado-nação ao Megaestado
Em 1870, o Estado-nação triunfou em toda parte: até mesmo a Áustria havia se tornado
a Áustro-Hungria, uma federação de dois Estados-nação. E os Estados-nação de 1870
ainda se pareciam com o Estado-nação criado por Bodin trezentos anos antes e
funcionavam da mesma forma.
O estado nacional foi planejado para ser o guardião da sociedade civil e o Megaestado
tornou-se seu líder, e em sua forma extremada e totalitária, substituiu totalmente a
sociedade civil. No totalitarismo, todas as sociedades tornaram-se políticas.
O estado nacional foi planejado para proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos
cidadãos contra atos arbitrários do soberano, O Megaestado, mesmo sob sua forma
anglo-americana menos extremada, julga que a propriedade do cidadão pode ser
confiscada por uma simples decisão do coletor de impostos. Como Joseph Schumpeter
primeiramente ressaltou em seu ensaio Der Steuerstaat (O Estado Fiscal, 1918), o
Megaestado afirma que os cidadãos possuem apenas o que o Estado, expressa ou
tacitamente, permitir que conservem.
pagina 130
pagina 132
Pagina 133
àquilo que o governo está disposto a lhes conceder. Antes de 1914 — na verdade, antes
de 1946 — não se falava de “brecha fiscal” (para escapar ao pagamento de impostos).
Antigamente, partia-se do princípio de que tudo pertencia ao indivíduo, a menos que
tivesse sido expressamente transferido ao governo — absolutista ou parlamentar —
pelos representantes políticos dos contribuintes.
Entretanto, o termo “brecha fiscal” implica que tudo pertence ao governo, a menos que
haja uma determinação específica para que seja conservado pelo contribuinte. E, seja o
que for que ele conserve, ele o faz apenas porque o governo, em sua sabedoria e
generosidade, está disposto em permitir que o faça. Naturalmente, esse quadro tornou-se
explícito somente nos países comunistas. Mas mesmo nos EUA, principalmente na era
Kennedy, acreditava-se em Washington, especialmente entre os burocratas, que toda a
renda pertencia ao governo, exceto o que ele expressa e explicitamente permitia ao
contribuinte manter.
A defesa, dizia o principal argumento dos alemães, não significava mais manter as
operações militares longe da sociedade civil e da economia pública. Com a moderna
tecnologia, defesa significa uma sociedade e uma economia permanentemente voltadas
para a guerra; significa “Estado de guerra fria”.
Porém, mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, durante alguns anos os EUA
tentaram retornar a um Estado “normal” de tempos de paz. Eles procuraram proceder a
uma desmilitarização o mais rápida e completa possível. A chegada da “guerra fria” nos
anos de Truman e Eisenhower mudou todo esse quadro. Desde então, o
Estado da “guerra fria” foi a organização dominante na política internacional.
Em 1960, o Megaestado tornou-se uma realidade política em países desenvolvidos sob
todos os aspectos: como órgão social, como soberano da economia, como
Estado fiscal e, na maioria dos países, como Estado da “guerra
Pagina 134
fria”.
O mais grave nessa situação é o fato de o estado fiscal ter se tornado um “Estado de
demagogia”. Não há disciplina fiscal se a preparação do orçamento começa com gastos;
as despesas do governo tornam-se um meio para a compra de votos pelos políticos. O
fato de o rei usar o dinheiro público para enriquecer seus súditos favoritos foi o mais
sólido argumento contra o ancien régime, a monarquia absoluta do século XVIII. A
necessidade de prestar contas, principalmente a de prestar contas orçamentárias para
com um legislativo eleito, foi estabelecida para criar responsabilidade fiscal dentro do
governo e evitar que os súditos saqueassem a nação. No Estado fiscal, o saque é feito
por políticos para garantir a própria eleição.
Pagina 135
comprar seus votos. Esta é uma forma de negação do conceito de cidadania — e está
começando a ser vista como tal, O fato que está desestabilizando os alicerces de um
governo representativo fica evidente no número cada vez menor de cidadãos que
participam das eleições e também, em todos os países, pela contínua diminuição do
interesse na função do governo, nos problemas, na política. Em vez disso, cada vez mais
os eleitores votam tendo em mente “o que eu vou ganhar com isso”
Em 1918, Joseph Schumpeter preveniu que o Estado fiscal terminaria por abalar a
capacidade administrativa do governo. Quinze anos mais tarde, Keynes anunciou o
Estado fiscal como o grande libertador, O governo do Estado fiscal, não mais limitado a
restrições de gastos, poderia governar com eficiência, defendeu ele. Sabemos hoje que
Schumpeter estava certo.
Pagina 136
Sob a ótica da teoria socialista, os trabalhadores dos EUA são os únicos verdadeiros
“proprietários” dos meios de produção. Apenas nos EUA os trabalhadores possuem e
obtêm os lucros, na forma de pensões, como parte da renda salarial. Apenas nos EUAos
trabalhadores, por intermédio de seus fundos de pensão, também se tornam os
proprietários legais, investidores e a força controladora no mercado de capitais.
Em outras palavras, mesmo inconscientemente, os EUA “socializou” a economia, sem
“nacionalizá-la”. O socialismo não chegou aos EUA através das urnas ou pela luta de
classes, muito menos por meio de uma insurreição, tampouco como resultado da
“desapropriação dos desapropriadores” ou por uma “crise” provocada pelas
“contradições do capitalismo”. De fato, ele foi introduzido pelo mais improvável dos
revolucionários,
Pagina 137
Pagina 138
mente para as “minorias desprivilegiadas”. O igualitarismo tornou-se uma paixão
motivadora nos países desenvolvidos. Apenas o nacionalismo possui capacidade de
exercer impacto maior na atmosfera política das sociedades modernas. Porém, de todas
as “minorias”, a dos idosos e aposentados é a que, universalmente, sofre a maior
desigualdade em termos de renda.
Ela poderá chegar a equiparar-se no final da década de 1970 e início da de 1980 com o
“Movimento pela Libertação da Mulher”, enquanto questão política e legal. Pois os
idosos e aposentados (e pessoas em idade de se aposentar que não querem fazê-lo) são,
decididamente, a mais ampla “minoria” — mais numeroso do que pobres, negros ou
qualquer outro grupo minoritário na sociedade americana (ou em qualquer outra
sociedade desenvolvida). Eles também são o grupo “desprivilegiado” que cresce mais
rapidamente. Essa minoria interage com todas as outras e, além de ser a mais
representativa, faz parte do grupo a que todos esperam se reunir. Envelhecer pode não
ser uma alternativa altamente desejável, mas a maioria das pessoas a prefere à outra
alternativa possível. Os integrantes dessa minoria são desprivilegiados não por falha
própria, tampouco por falha de terceiros. Ninguém está tirando alguma coisa ou se
beneficiando às custas deles, oprimindo-os ou explorando-os. Eles não são
considerados, como todas as outras minorias (ou maiorias) desprivilegiadas, “vítimas da
sociedade”. No entanto, fazem parte de uma verdadeira minoria e sofrem com uma
desigualdade de renda real. Numa sociedade tão sensível à desigualdade quanto a nossa
afirma ser, a desigualdade dos idosos e aposentados simplesmente não pode passar
desapercebida. Essas pessoas são numerosas e possuem o poder de voto para se fazerem
ouvir; a natureza igualitária de nossa época garante que eles serão atendidos.
Além disso, a desigualdade desse grupo é fundamentalmente diferente de qualquer
outro, e as soluções tradicionais para lidar com a desigualdade no caso, ou são
inadequadas ou podem agravá-la. Em toda a história, a solução costumeira para a
desigualdade era criar “igualdade de oportunidades” ou, em outras palavras,
proporcionar a todos o mesmo acesso a direitos, empregos, educação, e assim por
diante. Logicamente, a igualdade de oportunidades não levaria à igualdade de
remuneração. O desempenho e as habilidades desiguais seriam remuneradas de modo
desigual, e é esse o significado que os filósofos moralistas sempre conferiram à
“justiça”. Mas, em primeiro lugar, remover barreiras à igualdade de oportunidades
resultaria num grande aumento do desempenho social e econômico (o argumento
remonta a Adam Smith e, muito antes dele, a David Rume, se não ao Antigo
Testamento). Tirar as barreiras, portanto, seria um meio para o exercício da
“compaixão”, para se lidar com essas pessoas e grupos aos quais falta habilidade a
ponto de precisar de apoio social; e, é claro, tornaria controlável o problema da
desigualdade — limitando-o àqueles cuja “desigualdade de condições” resulta de uma
verdadeira, inata, irreversível e séria desigualdade de dons naturais.
Pagina 139
Durante todo esse período, porém, tem havido uma outra abordagem que se concentra
na “igualdade de condições”, principalmente na “igualdade de renda”, como sendo a
verdadeira igualdade, e que considera a “igualdade de oportunidades” uma desigualdade
extrema. Na expressão clássica dessa abordagem, a habilidade superior, sendo em
última instância um acidente de nascença, não deveria mais dar direito ao homem a
remunerações maiores do que riqueza, posição ou cor da pele herdada. E é essa
abordagem que tem predominado nas últimas décadas em países desenvolvidos. O tema
foi tratado com dureza no recente livro de grande aceitação Uma teoria dajustiça*, do
filósofo de Harvard, John Rawls. Segundo ele, a igualdade de oportunidades é uma
ilusão, a menos que produza igualdade de resultados, isto é, de renda. Esse pensamento
faz Rawls concluir que o que os filósofos moralistas — e todas as principais religiões —
sempre consideraram como sendo “justiça” é, na verdade, injustiça, isto é, recompensas
(e punições) segundo mérito e desempenho. A justiça, ao contrário, consiste em oferecer
compensações (Rawls as chama de “reparações”) àqueles que têm menos condições de
igualdade, especialmente se a causa for uma falta de “bens naturais”, quer se trate de
falta de habilidade ou de motivação. Ao contrário dos primeiros defensores da igualdade
total de condições, Rawls não argumenta que as pessoas são inerentemente iguais,
muito pelo contrário, insiste em que a sociedade deve ser totalmente igual e mesmo
favorecer os inerentemente menos iguais. A deficiência genética pode não ser falha da
sociedade, mas a desigualdade dela resultante é, segundo Rawls, uma negação da justiça
e um delito social.
Pagina 141
igualdade total de renda”, enfatiza que a igualdade de condições envolve custos que a
igualdade de oportunidades não acarreta. Qualquer avanço em direção à igualdade de
renda que não seja resultado de uma maior igualdade de oportunidades representa uma
perda de eficiência e produtividade. “Qualquer insistência em dividir o bolo em fatias
iguais reduziria o seu tamanho.” Portanto, uma política igualitária deve examinar a troca
entre igualdade e eficiência; e a sociedade pode — na verdade, deve — aceitar algum
grau de desigualdade de renda como um “aspecto prático”. Igualdade de oportunidades
significa “elevar o nível”, embora apenas gradativamente, não para todos, e talvez nem
mesmo para muitos num determinado momento. Igualdade de condições, contudo,
significa “abaixar o nível” para a maioria. O único ponto a ser discutido é qual
abordagem de igualdade — seja de oportunidades ou de renda e condições — é a
verdadeira “igualdade” e satisfaz as exigências de justiça, imparcialidade e moralidade.
Mas nenhuma abordagem pode ser aplicada à desigualdade do novo centro de gravidade
demográfica da população, os idosos. Devemos proporcionar mais igualdade de
oportunidades aos idosos e aposentados, e não negar-lhes o direito de trabalhar como
agora fazemos. Mas isso talvez apenas atenue o problema, pois não é uma solução. O
conceito de “igualdade de oportunidades” traz implícita a convicção de que, uma vez
que se tenha proporcionado condições iguais de acesso, o indivíduo será capaz de se
tornar “igual” quanto às condições e à renda. Sua desigualdade desaparecerá, qualquer
que seja a sua causa. Isso também indica que, pelo menos para o indivíduo — embora
talvez não para grupos inteiros — a “igualdade de oportunidades” soluciona, e
realmente elimina, o problema da “desigualdade”. Porém, mesmo que consigamos
abolir a aposentadoria compulsória em qualquer idade, a desigualdade para os idosos
será apenas adiada, exceto para os que morrerem.
Não sabemos quantos idosos gostariam de trabalhar, por quanto tempo e em que tipo de
emprego, mas sabemos que muitos são capazes de fazê-lo. Em 1900, afinal, 1/3 das
pessoas que estava empregada antes de completar 65 anos continuou a trabalhar depois
do que hoje é considerada a “idade de aposentadoria” — e suas condições físicas eram
muito piores do que as pessoas que atingem essa idade atualmente, e seus empregos
exigiam muito mais delas fisicamente. Hoje, apenas 1/7 (14%) da antiga força de
trabalho continua ativa depois dos 65 anos — ou, pelo menos, declara seus rendimentos,
o que pode não ser exatamente a mesma coisa, considerando-se as penalidades impostas
pelo Seguro Social a quem ganha mais alguns centavos depois dessa idade. Em 1900,
com certeza, muitos dos trabalhadores prefeririam ter se aposentado se tivessem
condições financeiras para tanto. Hoje, ao contrário, muitos que não trabalham
prefeririam fazê-lo se os regulamentos do Seguro Social o permitisse e se não fossem
impedidos por uma aposentadoria compulsória numa idade determinada.
Pagina 141
De fato, entre os trabalhadores manuais há muitos que não sentem falta do emprego, do
companheirismo ou do estímulo — eles sentem falta apenas do salário. Porém, para
profissionais liberais, executivos e técnicos de todos os níveis, e para trabalhadores
especializados e artesãos, a aposentadoria, mesmo sendo uma renda satisfatória,
representa mais uma ameaça do que algo que se deva esperar com ansiedade.
Mas mesmo que a participação das pessoas com mais de 65 anos na força de trabalho
ultrapassasse o total de 1/3 calculado em 1900 — e isso é muito provável — a parcela
de pessoas ainda ativas com 70, 80 ou 90 anos certamente é muito menor. E, a partir de
agora, o aumento do número de idosos será resultado da longevidade e não de um
crescimento no número de pessoas que atingem a idade de 65 anos. E é também nos
grupos dos mais idosos — com a redução dos benefícios de aposentadoria quando os
cônjuges falecem, o provável gasto da poupança, o aumento da solidão e a maior
necessidade de assistência médica — que a desigualdade em que vivem torna-se maior e
é sentida com mais intensidade.
Porém, a única forma de tornar a renda dos idosos mais equilibrada, e realmente evitar
que seus rendimentos se tornem mais desiguais, é aumentar a “eficiência”. Qualquer
“troca” entre igualdade e eficiência somente pode tornar sua desigualdade maior. Nesse
aspecto, a situação dos idosos difere fundamentalmente da de qualquer outro grupo
“desprivilegiado”: “abaixar o nível” só pode prejudicá-los, nunca beneficiálos.
Aumentar sua igualdade sacrificando “eficiência” é economicamente insustentável e
politicamente impossível, além de moralmente incorreto, mesmo para o mais convicto
dos partidários do igualitarismo, como John Rawls, por exemplo. Um dos motivos é a
dimensão da necessidade. Mesmo para manter os idosos e aposentados em seu estado
atual de relativa desigualdade será necessário um aumento significativo de
produtividade. Numericamente, eles aumentarão tanto quanto a força de trabalho;
mesmo se as barreiras à sua igualdade de acesso e de oportunidade forem eliminadas —
isto é, se as penalidades sobre sua continuação no trabalho forem reduzidas ou
removidas — pode-se apenas, na melhor das hipóteses, evitar que o índice de
dependência se deteriore ainda mais. Portanto, medidas que favoreçam a igualdade de
renda dos idosos à custa da “eficiência”, isto é, da produtividade podem apenas diminuir
a parcela da renda nacional disponível para sustentar os mais velhos e aposentados —
por meio da inflação, o que seria mais provável, ou por meio de cortes em suas pensões.
Politicamente também parece muito improvável (se não impossível) aumentar as verbas
disponíveis para idosos e aposentados reduzindo o tamanho “da fatia do bolo” destinada
à população economicamente ativa. Nestes últimos vinte anos, as pessoas empregadas
deixaram claro que apenas aceitarão maiores encargos destinados às pensões, seja na
forma de aumento nos impostos de Seguro Social ou nos pagamentos para fundos de
pensão privados, se a própria renda subir na mesma proporção. E os trabalhadores
ativos são os únicos que podem financiar rendimentos reais mais elevados para os
aposentados. Não há nenhuma outra fonte de renda ou riqueza disponível.
Pagina 142
Conseqüentemente, igualdade versus igualdade pode muito bem se tornar uma questão
essencial no socialismo de fundo de pensões — com uma igualdade baseada numa
“eficiência” maior e numa igualdade baseada na “reparação” que gerem políticas muito
diferentes e cisões acirradas dos dois grupos.
Desde a Grande Depressão, o desemprego tem sido visto como uma doença endêmica e
a mais perigosa da sociedade e economia modernas. No socialismo de fundos de
pensão, pode-se esperar que a inflação assuma os dois papéis. O desemprego, mal
menor, aceito e tolerado socialmente, como forma de controlar a inflação, pode se tornar
uma questão política essencial. O socialismo de fundos de pensão e as mudanças
demográficas que o fundamentam, colaboram para a inflação da economia de duas
maneiras. Uma, claro, é a tentativa de aumentar o salário do trabalhador e suas
contribuições para a aposentadoria (ou a pensão do aposentado), sem um aumento
correspondente na produtividade total. E, já que o trabalhador empregado não aceitará
pagar uma contribuição maior para o Seguro Social ou o fundo de pensão, sem um
aumento compensador em seu salário, esse perigo está sempre presente.
Pagina 144
Novos alinhamentos
Pagina 144
Essa nova maioria exigirá uma liderança política representativa, mas ela também
poderia ser reunida pelos protestos demagógicos contra os sábios “burocratas”.
Prever um novo alinhamento para a política americana é um dos nossos esportes
políticos mais antigos. Desde os primeiros dias da República, todo alinhamento político
e toda “maioria” pareciam ser precários, frágeis, desordenados, à beira de desintegração.
No entanto, uma vez estabelecidos, esses alinhamentos mostraram um enorme poder de
resistência na política americana. Eles mudaram com muito menos freqüência do que
em qualquer outro país — talvez por não seguirem uma ideologia e por serem
francamente baseados em interesses. Os alinhamentos políticos existentes nos EUA são
particularmente resistentes à teoria política e não só sobrevivem às derrotas; ao
contrário da maioria das coalizões, sejam políticas ou militares, os alinhamentos
políticos americanos sobrevivem até mesmo às suas vitórias.
15 - A política do conhecimento
Pagina 147
Portanto, a busca do conhecimento, assim como seu ensino, têm sido tradicional- mente
dissociados de sua aplicação. Ambos foram organizados por temas, isto é, segundo o
que parecia ser a lógica do próprio conhecimento. As faculdades e os departamentos das
universidades, títulos acadêmicos, especializações e, na verdade, toda a organização do
ensino superior, têm se concentrado nos temas. Elas têm se baseado, para usar a
linguagem dos especialistas em organização, no “produto”, e não no “mercado” ou no
“uso final”.
Aplicação do conhecimento
Atualmente, o conhecimento e sua busca estão sendo cada vez mais organizados em
torno de áreas de aplicação, e não ao redor das áreas que são objetos das disciplinas. O
trabalho interdisciplinar tem crescido rapidamente em todos os lugares nestes últimos
tempos. Como exemplo, temos os muitos institutos de estudos em áreas específicas,
quer seja na África, na Rússia ou em modernas metrópoles e que reúnem pessoas
dedicadas a todas as disciplinas, de economia a psiquiatria e de agronomia a história da
arte. Esse trabalho interdisciplinar mobiliza cada vez mais as energias das universidades
e define sua direção. Esse é um sintoma da mudança no significado do conhecimento,
passando de um fim em si mesmo para um recurso, isto é, um meio de atingir
determinado resultado. O que antes era conhecimento está se transformando em
informação. O que era tecnologia está se tornando conhecimento. O conhecimento
como a energia central da sociedade moderna existe em conjunto com sua aplicação e
quando é submetido ao trabalho, O trabalho, contudo, não pode ser definido em termos
de disciplinas. Os resultados finais são, necessariamente, interdisciplinares.
O fato de o conhecimento ter se tornado o principal recurso da sociedade moderna
acrescenta uma terceira função às tarefas tradicionais da universidade. Às funções
de ensino e pesquisa, ele acrescenta a do serviço comunitário, ou seja, a conversão do
conhecimento em ação e resultados na comunidade.
Hoje em dia ouve-se falar muito sobre a ênfase dada à pesquisa e sua incompatibilidade
com o ensino e as necessidades dos alunos. Provavelmente trata-se de um mal-
entendido, pois o verdadeiro dilema é causado pela crescente orientação do trabalho da
universidade para o serviço comunitário. As pessoas mais capazes da faculdade? são as
mais propensas a se engajar no trabalho interdisciplinar, além de serem procuradas para
prestar consultoria — pelo governo e sistemas de ensino, empresas e hospitais, pelas
forças armadas, assim como por outras faculdades e departamentos da própria
universidade. O consultor pratica ostensivamente sua especialidade, mas sua
preocupação é com os resultados de seus clientes. Ele é membro, em regime de meio
expediente, de uma equipe concentrada nos resultados finais da aplicação, e não na
lógica de qualquer disciplina. O simples fato de se esperar cada vez mais que a
universidade mobilize suas energias de conhecimento para aplicação e resultados na
comunidade, pode nos esti
Pagina 148
mular ainda mais a reestruturar o ensino de acordo com as principais áreas de aplicação,
e não segundo a lógica da disciplina. É isso que os alunos rebeldes querem. A exigência
de uma “universidade crítica” por parte de alunos radicais, da qual se ouve falar em
Berkeley, Berlim e Tóquio, é uma exigência por um aprendizado organizado ao redor de
importantes áreas voltadas para resultados. O aluno vê o professor empregando seu
conhecimento em problemas referentes a metrópole, desenvolvimento econômico,
conservação do meio ambiente, e pergunta: “Por que nós deveremos nos entediar com
informações insignificantes, sem aplicação e sem relação com as necessidades
importantes que nós e toda a sociedade temos”? Evidentemente os educadores têm uma
resposta. Eles dizem, “Vocês precisam conhecer os instrumentos antes de usá-los”.
Parece plausível, mas de fato faz sentido? Se as matérias que ensinamos aos alunos
realmente são instrumentos, nesse caso serão mais bem aprendidas na prática. De fato, a
única forma de se aprender a usar um instrumento é usando-o numa tarefa específica e
significativa que apresente pelo menos alguns resultados.
Pagina 149
Precisamos ainda mais do homem que, em seu próprio trabalho, reúna conhecimento e
habilidades de várias disciplinas e as integre em uma aplicação efetiva fora da
universidade. Atualmente, ele não é oficialmente reconhecido — mas é o verdadeiro
“astro” da grande universidade moderna. Finalmente, precisamos de algo cuja
necessidade o ensino superior nunca reconheceu: administradores. Os vários tipos de
pessoas das faculdades devem organizar- se em uma instituição. No entanto, devem
organizar-se para realizar diversas funções. Cada um desses homens terá de ser capaz de
atingir os próprios objetivos e de extrair a própria satisfação de seu trabalho. E, assim,
as necessidades e desejos dos alunos deverão se integrar a outras fun ções da
universidade. Isso requer uma elevada capacidade administrativa. A universidade pode
oferecer a mais desafiadora, a mais difícil, mas também a mais necessária entre todas as
tarefas administrativas existentes atualmente. Tradicionalmente, acostumamo-nos a opor
um conceito elitista de conhecimento e de educação a um conceito de massa.
Acostumamo-nos a supor que é possível concentrar-se ou na criação de uns poucos
líderes, ou na de uma grande quantidade de seguidores, mas a sociedade moderna
precisa de ambos. Conseqüentemente, a sociedade não pode permitir na educação a
“instituição de uma elite” que detém o monopólio da posição social, do prestígio e das
posições de comando na sociedade e na economia. Oxford e Cambridge são importantes
razões para a debandada de profissionais qualificados da Inglaterra. Uma das principais
razões para a defasagem tecnológica é a Grande École, como a École Polytechnique ou
a École Normale. Essas instituições de elite fazem um excelente trabalho educativo, mas
somente os que ali se formam chegam a posições de comando. Apenas suas faculdades
“têm importância”. Tal atitude restringe e empobrece toda a sociedade. Obviamente,
como em qualquer outra área, na do conhecimento as pessoas apresentam diferentes
habilidades e interesses. E nas universidades, como em todas as demais instituições, há
diferenças de qualidade. Porém, negar a qualquer trabalha dor de conhecimento a
oportunidade de especializar-se é uma atitude incompatível com a natureza do
conhecimento e com as necessidades da sociedade moderna. Onde ele adquiriu seu
conhecimento e onde o aplica deveria ser irrelevante cinco anos após sua formatura. Da
mesma forma, é incompatível com a natureza do conhecimento e com as exigências da
sociedade que se confira uma posição de monopólio a qualquer instituição do
conhecimento. Nós simplesmente precisamos de um grande número de pessoas
qualificadas a fim de estreitar o canal que leva à realização, à oportunidade e ao
progresso. Uma das formas de aumentar a quantidade de mestres é educar o maior
número possível de artífices para atingir um alto nível. Isso foi demonstrado nas artes
— na Renascença italiana, por exemplo, na grande explosão de criatividade do período
Momoyama, no Japão do século XVI, ou nos Países Baixos, na época de Rembrandt e
Rubens.
Pagina 150
A política do conhecimento
Está ficando cada vez mais claro que o conhecimento não é um bem absoluto em si mais
do que qualquer outra coisa, O conhecimento pode ser neutro, mas a neutralidade não se
aplica de modo algum ao que fazemos com ele. Deve-se estimular a busca pelo
conhecimento que poderia ser usado apenas para controlar e manipular mentes — como
ocorre com grande parte da pesquisa nas ciências comportamentais? Ou trata-se de uma
caixa de Pandora, da qual só poderá sair o mal? E quanto às pesquisas sobre a guerra
bacteriológica? Ainda é válida e aceitável a desculpa de que, se não o fizermos, outro o
fará? A questão das prioridades é ainda mais inevitável e incômoda. Estamos
encontrando limitações físicas na busca pelo conhecimento. Devemos poupar nossos
recursos. Não é dinheiro que faltará pois ele, afinal, não realiza as pesquisas, mas sim o
homem. E a quantidade de homens capazes de produzir novos conhecimentos está se
esgotando rapidamente em todos os países desenvolvidos. Nas ciências naturais, na
Pagina 151
Quais são as prioridades na busca pelo conhecimento? Em que tipo de trabalho devemos
empregar nossos escassos recursos de pessoal treinado, experiente e testado? E quem
deve tomar as decisões? As conseqüências dessas decisões são alarmantes, pois elas
envolvem mais risco do que jamais enfrentamos na alocação de recursos em
expectativas econômicas. No entanto, sabemos muito menos sobre elas do que sobre as
decisões e os riscos econômicos. Até o momento, não dispomos de meios para optar
racionalmente entre diferentes linhas de investigação e pesquisa. Mesmo que
pudéssemos admitir uma relação definida entre esforço e resultados nesse trabalho, não
há como fazer uma escolha racional entre os diferentes resultados.
A que se deve dar prioridade: à pesquisa para curar uma doença infantil relativamente
rara, ou para melhorar a expectativa de vida e a saúde dos idosos? Precisamos mais: de
métodos de aprendizado de línguas estrangeiras fáceis e rápidos ou de melhores
métodos para acelerar o desenvolvimento socioeconômico? Devemos destinar recursos
escassos à melhoria do potencial de defesa que pode representar a diferença entre
derrota e sobrevivência, ou devemos empregar os mesmos recursos em transporte
urbano? Está claro que a decisão não se baseará em fundamentos “científicos”,
tampouco “factuais”. Ela deve ser uma escolha entre valores e basear-se em avaliações
altamente subjetivas sobre o futuro. Em outras palavras, não se trata de uma decisão
científica, mas sim política. Essas decisões sobre prioridades surgem não-somente no
âmbito internacional ou nacional, mas dentro de todos os departamentos de
universidades e faculdades, e em todos os laboratórios de pesquisa. No entanto, as
pessoas de conhecimento, principalmente os intelectuais e cientistas de nossas
universidades, raramente percebem a necessidade de tomar essas decisões. A maioria
ainda acredita que o governo (ou a universidade) tem o dever de apoiar qualquer projeto
de pesquisa apresentado por um acadêmico respeitável e não compreende que isso é
impossível do ponto de vista físico e muito menos do econômico.
Pagina 152
Pagina 153
Mas, e o conhecimento? Nesse aspecto, é possível que nossas palavras e atos se tornem
ambíguas. Quando tentamos estabelecer uma diferença entre diversos tipos de
conhecimento, classificando-o como “bom”, “neutro” ou “perigoso”, podemos
começara nos perguntar se mais conhecimento é desejável ou necessário.
É possível que nos tornemos céticos quando um tipo de conhecimento considerado
absolutamente necessário por determinado grupo de especialistas é julgado inútil por
outro. Isso certamente acontecerá com bastante regularidade, uma vez que somos
obrigados a estabelecer prioridades e a discutir que rumo deveremos dar ao esforço pelo
conhecimento. (Isso já aconteceu com respeito à física de partículas de alta energia, que
é especialmente cara.)
Se chegarmos a questionar o valor do conhecimento, será a primeira vez que o faremos
desde que Sócrates o definiu como a origem do pensamento e da visão do mundo
ocidental há 2.400 anos. Desde então, o conhecimento foi considerado um fato natural
pelos ocidentais. Teólogos de várias doutrinas religiosas, do cristianismo bizantino ao
marxismo, procuraram repetidas vezes controlar o que é ou deveria ser o “verdadeiro”
conhecimento. Porém, depois dos gregos poucas pessoas no ocidente rejeitaram o
conhecimento em si ou questionaram seu valor e sua virtude. O conhecimento foi
combatido pelos místicos franciscanos do século XIII, mas retomado pela grande síntese
do conhecimento de São Tomás de Aquino. E, nessa ocasião, seu contemporâneo, São
Boaventura, ele mesmo um franciscano, determinou sua atual posição: todo o
conhecimento, ensinava, leva ao conhecimento fundamental da Verdade; todo
conhecimento é santificado e santifica. Estaremos prestes a abandonar essa crença, a
fundação sobre a qual foi construído o ocidente moderno?
É provável que questionemos o valor do conhecimento precisamente devido ao seu
sucesso. O conhecimento está se tornando ambíguo porque passou a ser a base dos
recursos econômicos da sociedade moderna. Sócrates estabeleceu que o conhecimento
era bom ao afirmar, em oposição aos sofistas, que o mesmo não se aplica à ação, que, na
verdade, empregá-lo em ações é usá-lo de forma errada. O objetivo do conhecimento
era o conhecimento e sua prova, a sabedoria. Hoje, porém, quaisquer que sejam as
palavras que empreguemos, nossos atos tornam claro que nosso objetivo é a aplicação
prática, ou pelo menos a prova do conhecimento. A posição socrática não é mais
suficiente. Como resultado, é bastante plausível que os grandes “ismos” do futuro sejam
ideologias sobre o conhecimento. É possível que o conhecimento passe a ocupar lugar
de destaque nas filosofias intelectuais e políticas de amanhã que a propriedade, isto é, os
objetos, ocuparam no capitalismo e no marxismo. Mas isso são conjeturas e tudo que se
pode dizer atualmente é que a aplicação tornou-se o centro do conhecimento, do esforço
pelo conhecimento e de sua busca organizada. Como resultado, o conhecimento passou
a ser a verdadeira base da economia e da sociedade modernas, e o verdadeiro princípio
Pagina 154
da ação social. Essa mudança é de tal maneira significativa que deve exercer um grande
impacto no próprio conhecimento e deve transformá-lo numa questão filosófica e
política fundamental na sociedade do conhecimento.
O conhecimento tem futuro?
Pagina 155
pagina 156
(exceto talvez nas ciências físicas)? Há qualquer prova de que tal título torne alguém um
professor melhor ou mesmo um acadêmico melhor? Ou o principal motivo para essa
exigência será o fato de ela assegurar acesso a nomeações e lucros a pessoas que
dedicaram tempo e dinheiro à universidade? Um cargo vitalício poderá mesmo ser
moralmente justificado? Precisamos de uma defesa contra a pressão política e a tirania
administrativa exercida nas faculdades, mas não será a defesa do cargo vitalício talvez
ainda pior do que a ameaça das pressões políticas e administrativas? Não poderíamos
idealizar uma forma de proteger o indivíduo contra essas pressões e ainda proteger a
comunidade, a escola e o aluno contra a indolência e a incompetência? Por que não criar
um comitê consultivo formado por acadêmicos visitantes, que fiscalizariam o
desempenho e os serviços de todos os membros da faculdade, a cada três ou cinco anos?
Temos hoje, nos EUA, mais de 2 mil faculdades e universidades e cerca de 80 mil
estabelecimentos de ensino. Certamente não é difícil para um professor competente
encontrar outro bom emprego caso seja demitido sem justa causa. Nossas faculdades
estão abarrotadas de pessoas fisicamente capacitadas que pararam de lecionar no
momento em que se tornaram professores-adj untos ou catedráticos e assumiram um
cargo vitalício. E há poucas queixas de pressões ou perseguições indevidas nos
laboratórios de pesquisa industrial, onde os cargos não são permanentes.
Paginas 157
Tão grandes e profundos como qualquer desses impactos gerados pelo conhecimento
são os impactos exercidos sobre ele. Acima de tudo, as transformações do conhecimento
em base do trabalho e do desempenho, impõem responsabilidades ao homem de
conhecimento. De que forma ele aceitará tal responsabilidade, e como a colocará em
prática, será em grande parte, determinante, para o futuro do conhecimento pode até
mesmo determinar se o conhecimento terá futuro.
Pagina 159
16 - A escola responsável
(Mudanças radicais)
• Ela deve imbuir os alunos de todos os níveis e de todas as idades de motivação para
aprender e de disciplina para o aprendizado contínuo.
Pagina 159
• Ela deve ser um sistema aberto, acessível às pessoas de elevado grau de instrução e às
pessoas que por qualquer motivo não tiveram acesso à instrução avançada quando
jovens.
Pagina 160
as crianças — subordine tudo o mais à aquisição das habilidades básicas. A menos que
a escola seja bem-sucedida em proporcionar essas habilidades ao jovem estudante, ela
terá falhado em sua principal missão: a de proporcionar autoconfiança e competência
aos iniciantes, e dar-lhes condições para que, daqui a alguns anos, tenham bom
desempenho e sucesso na sociedade pós-capitalista, a sociedade do conhecimento.
“Instrução” tradicionalmente significava conhecimento subjetivo, por exempio, a
capacidade de multiplicar ou alguns conhecimentos de história. Mas a sociedade do
conhecimento precisa igualmente de conhecimento de processos — algo que as escolas
raramente tentaram ensinar.
Realmente, nós sabemos o que fazer. Na verdade, durante centenas, se não milhares de
anos estamos criando motivação para o aprendizado contínuo e a necessária disciplina.
Os bons mestres dos artistas agem dessa forma; os bons treinadores de atletas,
igualmente; e também os bons “mentores” nas organizações empresariais das quais
ouvimos falar tanto ultimamente na literatura de desenvolvimento de gestão. Eles
conduzem seus alunos a feitos tão significativos a ponto de surpreender seu realizador,
criando estímulo e motivação — especialmente para realizar a prática e o trabalho
rigorosos, disciplinados e persistentes que o aprendizado contínuo exige.
Há poucas coisas mais monótonas que a prática de escalas. No entanto, quanto mais
talentosos e perfeitos são os pianistas, mais eles as praticam, hora após hora, dia após
dia, semana após semana. Da mesma forma, quanto mais habilidosos são os cirurgiões,
maior é o cuidado com que praticam as suturas, hora após hora, dia após dia, semana
após semana. Os pianistas praticam suas escalas meses a fio para atingir uma melhoria
infinitamente pequena em sua habilidade técnica. Porém, essa prática lhes permite
alcançar o resultado musical que já podem ouvir internamente. Os cirurgiões fazem
suturas durante meses sem fim para obter uma melhoria infinitamente pequena em sua
destreza manual. Porém, tal prática lhes permite acelerar uma operação e, assim, salvar
uma vida. A realização vicia, porém, tal realização não significa obter um resultado um
pouco menos insatisfatório em alguma tarefa na qual não se é especialmente talentoso.
A realização que motiva é a que permite fazer excepcionalmente bem algo para o qual já
se demonstra talento. A realização precisa basear-se nos esforços do aluno — como já é
do conhecimento de todos os mestres de artistas, técnicos de atletas e mentores há
milênios. De fato, encontrar os pontos fortes dos alunos e orientá-los para a realização é
o que melhor define o professor e o ensino. É a definição que consta do Dialogue on the
Teacher, de um dos maiores professores do Ocidente, Santo Agostinho de Hipona
Pagina 161
Naturalmente, as escolas e seus professores também estão cientes deste fato, mas eles
raramente puderam concentrar-se nos pontos fortes dos alunos e desaflálos. Em vez
disso, foram obrigados a concentrar-se nas fraquezas. Nas tradicionais escolas do
ocidente praticamente todo o tempo — pelo menos até a universidade — é gasto em
solucionar fraquezas e em produzir uma respeitável mediocridade.
A escola na sociedade
A escola é uma instituição social essencial há muito tempo — no ocidente pelo menos
desde a Renascença, e ainda há mais tempo no oriente. Mas ela tradicionalmente é “da
sociedade”, em vez de estar “presente na sociedade”. Ela sempre foi uma instituição
independente que raramente, talvez nunca, se associou a nenhuma outra instituição. As
primeiras escolas no ocidente, os mosteiros beneditinos do início da Idade Média,
treinavam principalmente futuros monges e não os leigos.
Pagina 162
O ensino deixará de ser função apenas das escolas para ser, cada vez mais, um
empreendimento conjunto, no qual as escolas são parceiras e não as detentoras do
monopólio. Em muitas áreas, as escolas serão apenas uma entre as muitas instituições
Pagina 164
Como já dissemos, a escola costumava ser o lugar onde se aprende e o emprego o lugar
onde se trabalha. A linha que os separa está se tornando menos evidente. Com
freqüência cada vez maior, a escola será o local em que os adultos continuam a
aprender, mesmo trabalhando em período integral. Eles voltarão à escola para um
seminário de três dias de duração, para um curso de fim de semana ou intensivo de três
semanas, ou assistirão às aulas duas noites por semana durante vários anos até se
formar.
A escola responsável
Pagina 164
dos de uma escola de segundo grau num subúrbio dos EUA que é aceita pela faculdade
de sua preferência; a popularidade das diferentes universidades entre os estudantes. Mas
só agora estamos começando a perguntar: Quais são os resultados nessa escola? E quais
deveriam ser? Essas questões teriam surgido de qualquer maneira. No século XX, a
educação tornou-se cara demais para não ser avaliada. Os gastos do sistema educacional
nos países desenvolvidos dispararam de 2% do PNB por volta de 1913, para 10% oito
anos depois.
Porém, as escolas também estão se tornando importantes demais para não serem
consideradas responsáveis — para não refletir sobre quais deveriam ser seus resultados,
assim como por seu desempenho em atingi-los. Certamente, diferentes sistemas de
ensino oferecerão diferentes respostas a essas perguntas, mas todos os sistemas de
ensino e todas as escolas em breve terão de ter respostas e levá-las a sério. Não
aceitaremos mais a velha desculpa para um desempenho medíocre: “Os alunos são
preguiçosos e obtusos”. Sendo o conhecimento o principal recurso da sociedade, alunos
preguiçosos ou fracos são responsabilidade da escola. Então, haverá somente escolas
que funcionam ou que não funcionam.
As escolas já estão perdendo o monopólio como provedoras de ensino, mas cada vez
mais a concorrência se dará entre escolas e “não-escolas”, com diversos tipos de
instituições ingressando no ramo, cada qual oferecendo uma abordagem diferente de
ensino.
O maior desafio, porém — e o que estamos menos preparados para enfrentar — está no
compromisso que a escola terá de assumir em relação a resultados. Ela terá de
estabelecer qual será seu “resultado final”, o desempenho pelo qual deverá se tornar
responsável e pelo qual está sendo paga. A escola finalmente se tornará responsável.
Pagina 165
Pagina em branco
Pagina 166
17 - Da análise à percepção
Pagina 167
a principal fonte de energia, se não a única, havia sido uma animal de duas pernas
chamado homem. Era a mulher do lavrador que puxava o arado. O arreio para cavalos
permitiu, pela primeira vez, substituir a mulher do fazendeiro pela força animal. E os
beneditinos também transformaram o que havia sido brinquedo na antiguidade, a roda-
d’água e o moinho de vento, nas primeiras máquinas. Num período de duzentos anos, a
liderança tecnológica passou da China para o ocidente. Setecentos anos mais tarde, a
máquina a vapor de Papin criou uma nova tecnologia e, com ela, uma nova visão do
mundo — o universo mecânico. Em 1946, com a chegada do computador, a informação
tornou-se o princípio organizacional de produção. Assim, surgia uma nova civilização
básica.
Muito tem se falado e escrito ultimamente (quase excessivamente) sobre o impacto que
as tecnologias de informação exercem sobre a civilização material, sobre os bens,
serviços e as empresas. Os impactos sociais são, contudo, igualmente ou, de fato, até
mais importantes. Um desses impactos é perfeitamente observável: qualquer uma dessas
mudanças desencadeiam uma explosão de empreendimentos. De fato, a onda de
empreendimentos que começou nos EUA no final da década de 1970 e que, depois de
dez anos, havia se espalhado para todos os países não-comunistas desenvolvidos, foi a
quarta ocorrida desde a época de Papin, há trezentos anos. A primeira iniciou-se em
meados do século XVII e prosseguiu até os primeiros dias do século XVIII e foi
desencadeada pela “Revolução Comercial”, a expressiva expansão do comércio que se
seguiu à fabricação do primeiro cargueiro transoceânico verdadeiramente capaz de
conduzir pesadas cargas por grandes distâncias. A segunda onda empresarial — que
começou em meados do século XVIII e prosseguiu até meados do século seguinte — foi
o que comumente chamamos de “Revolução Industrial”. Então, aproximadamente em
1870, foi desencadeada a terceira onda pela criação de novas indústrias — as primeiras
que não só empregavam um diferente tipo de força motriz, mas que realmente
fabricavam produtos que nunca antes haviam sido feitos, ou que eram produzidos
somente em quantidades limitadas: eletricidade, telefone, produtos eletrônicos, aço,
produtos químicos e farmacêuticos, automóveis e aviões.
Atualmente vivemos uma quarta onda, desencadeada pela informação e pela biologia.
Assim como ocorreu nas demais, a presente onda não está limitada à “alta tecnologia”,
mas abrange igualmente a “média” e a “baixa” tecnologias e também o “não-
tecnológico”. Como ocorreu nas primeiras, ela não está restrita a pequenas ou novas
empresas, mas também é sustentada por empresas de grande porte — e muitas vezes
com maiores impactos e eficiência. E, como nas ondas anteriores, não está limitada a
“invenções”, isto é, à tecnologia. As inovações sociais são dotadas de igual “espírito
empreendedor” e importância. Algumas das inovações sociais produzidas pela
Revolução Industrial — o exército moderno, o serviço público, os correios, os
Pagina 168
Pagina 169
Ela poderá lembrar as catedrais medievais em que os lavradores dos arredores se
reuniam vez ou outra nos importantes feriados religiosos; entre uma festa e outra, ficava
vazia, exceto pela presença dos clérigos eruditos e dos alunos da escola. E será a
universidade do futuro um “centro de conhecimento” que transmitirá informações, e não
mais um lugar que terá a efetiva presença dos alunos? O local em que o trabalho é
realizado também determina, em grande parte, como ele é feito, e influi muito no tipo de
trabalho executado. É certo de que haverá grandes mudanças, mas como e quando
ocorrerão não podemos sequer adivinhar.
Forma e função
Certamente seria contraproducente para a barata ser grande e para o elefante ser
pequeno. Os biólogos gostam de dizer, “O rato sabe de tudo que precisa para ser um
rato bem-sucedido”. Ë uma tolice querer saber se o rato é mais inteligente do que o
homem; no que se refere a se dar bem como um rato, ele está muito além de qualquer
outro animal, incluindo o ser humano.
Durante cinqüenta anos, desde os primeiros dias da Grande Depressão até a década de
1970, a centralização e a grandeza eram as tendências em vigor. Antes de 1929, os
médicos apenas internavam os pacientes em caso de cirurgia. Muito poucos bebês
nasciam em hospitais antes da década de 1920; a maioria nascia em casa. O interesse no
ensino superior nos EUA no final da década de 1930 estava voltado para
Paginas 170
Na década de 1970, a tendência mudou. Ser maior não é mais a marca de um bom
governo. No que se refere à assistência médica, afirmamos hoje que é melhor fazer em
outros lugares tudo que puder ser feito fora dos hospitais. Antes da década de 1970,
achava-se que até mesmo pessoas com leves problemas mentais estariam melhor se
internadas em manicômios. Desde então, os doentes mentais que não representam
ameaça a outras pessoas vêm sendo tirados dos hospitais (nem sempre com bons
resultados). Não mais veneramos a grandeza que caracterizou os primeiros 3/4 do
século XX e, especialmente o período imediatamente posterior à Segunda Guerra
Mundial. Estamos reestruturando e despojando as grandes empresas. Estamos
descentralizando as tarefas governamentais e deslocando-as para governos locais,
especialmente nos EUA. Estamos “privatizando” e terceirizando tarefas
governamentais, especialmente na comunidade local, para pequenas empresas
particulares.
Conseqüentemente, cada vez mais a questão do tamanho ideal de uma tarefa torna-se
essencial. Essa tarefa será mais bem realizada por uma abelha, um beija-flor, um rato,
um cervo ou um elefante? Todos são necessários, mas cada qual para uma diferente
tarefa e em um ambiente diferente, O tamanho certo será cada vez mais o que manipula
com mais eficiência a informação necessária para a tarefa e a função. Enquanto a
organização tradicional se consolidava por meio do comando e do controle, a
“estrutura” da organização baseada em informações era um excelente sistema de
informações.
Da análise à percepção
A tecnologia não é natural, mas criada pelo homem; ela não trata de ferramentas, mas de
como o homem trabalha. Ela diz respeito igualmente à maneira como o homem vive e
pensa. Há uma frase de Alfred Russel Wallace, que juntamente com Charles Darwin
elaborou a teoria da evolução, que diz, “O homem é o único animal capaz de evoluir de
forma dirigida e intencional; ele fabrica ferramentas”. Porém, exatamente porque a
tecnologia é uma extensão do homem, mudanças tecnológicas básicas sempre
expressam nossa visão de mundo e, por sua vez, o transformam. O computador é, de
certa forma, a mais importante expressão da visão de mundo analítica e conceitual de
um universo mecânico que surgiu com Papin, no final do século XVII. Em última
análise, ele se baseia na descoberta de um contemporâneo e amigo de Papin, o filósofo-
matemático Gottfried Leibniz, de que todos os números podem ser expressos
“digitalmente”, isto é, pelos dígitos 1 e 0. O computador tornou-se possível devido à
expansão dessa análise além dos números até a lógica, em
Pagina 171
Pagina 172
Há trezentos anos, Descartes disse: “Penso, portanto existo”. Agora temos de dizer
também: “¼jo, portanto existo”. Desde Descartes, a ênfase foi colocada no conceitual.
Agora, cada vez mais estabelecemos um equilíbrio entre o conceitual e o perceptivo. Na
verdade, as novas realidades com que lida este livro são configurações e como tal
exigem percepção tanto quanto análise: o desequilíbrio dinâmico dos novos pluralismos,
por exemplo; a ecologia e economia transnacional multifacetada; o novo arquétipo da
“pessoa capacitada” que é tão necessário. E este livro procura tanto nos fazer ver quanto
pensar.
Passaram-se mais de 100 anos desde que Descartes e seu contemporâneo, Galileu,
lançaram os alicerces para a ciência do universo mecânico, desde que Emanuel Kant
criou a metafísica que codificou a nova visão do mundo. Sua obra Kritik der reinen
Vernunfi (Crítica da razão pura, 1781) então dominou a filosofia ocidental por mais de
um século. Ela definiu questões significativas mesmo para adversários de Kant, como
Friedrich Nietzche. De fato, Kant definiu “conhecimento” até para Ludwig Wittgenstein
na primeira metade deste século. Mas os filósofos contemporâneos não mais enfocam os
interesses de Kant. Eles lidam com configurações — com sipais e símbolos, padrões,
mitos, linguagem. Eles lidam com percepção. Assim, a mudança do universo mecânico
para o biológico acabará por exigir uma nova síntese filosófica. Kant poderia tê-la
chamado de Einsicht, ou uma Crítica da percepção pura.
Pagina 173
Pagina em branco
Pagina 174
APÊNDICE
Além da sociedade*
(O antiquado Kierkegaard)
O grande impacto de Kierkegaard ocorrido nos últimos anos mostra os primeiros sinais
de cansaço e, pelo bem do filósofo, espero que termine em breve, O Kierkegaard da
moda literária é perspicaz e moderno, diferente dos outros intelectuais especialmente
por ter vivido 100 anos antes. No entanto, esse Kierkegaard dos psicólogos,
existencialistas e todas as linhagens ex-marxistas tem pouca semelhança com o
verdadeiro Kierkegaard, que não se interessava nem um pouco por psicologia ou
dialéticas (exceto para mostrar o quanto eram inadequadas e irrelevantes), mas
preocupava-se somente com a experiência religiosa. E é este verdadeiro Kierkegaard
que em sua agonia é significativo para o mundo moderno. Não dispomos nem de santos
nem de poetas para reunir os fragmentos de nossas experiências; temos, em
Kierkegaard, pelo menos, um profeta. Como todos os pensadores religiosos,
Kierkegaard privilegia a questão, “De que maneira é possível a existência humana”?
Em todo o século XIX, essa pergunta — antes no centro do pensamento ocidental —
não só era extremamente antiquada, mas parecia sem sentido e irrelevante. A época era
dominada por uma pergunta radicalmente diferente, “De que maneira a sociedade é
possível?” Rousseau, Hegel e os economistas a proferiam. Marx a respondeu de uma
forma, o protestantismo liberal de outra. Porém, independentemente da maneira pela
qual é proferida, sempre leva a uma resposta que nega que a existência humana seja
possível fora da sociedade.
* Este apêndice, que na edição brasileira teve revisão técnica de Ivo da Silva Júnior, foi
extraído de Sewanee review, de 1949.
Pagina 175
Rousseau formulou sua resposta para toda uma época de progresso: seja qual for a
existência humana; e seja qual for a liberdade, o direito e os deveres que o indivíduo
tenha; seja qual for o significado da vida individual — tudo é determinado pela
sociedade segundo sua necessidade objetiva de sobrevivência. Em outras palavras, o
indivíduo não é autônomo, mas sim determinado pela sociedade. Ele é livre somente em
questões sem importância. Ele tem direitos somente porque a sociedade os concede a
ele. Ele é dono da própria vontade apenas se desejar o que a sociedade precisa. Sua vida
tem significado somente se estiver relacionada ao significado social e enquanto
satisfazer a si mesma ao satisfazer a meta objetiva da sociedade. Resumindo, não há
existência humana, só há existência social. Não há o indivíduo; só há o cidadão.
Dificilmente será possível exagerar as diferenças entre a “Vontade Geral”, de Rousseau,
o conceito de Hegel sobre a História como o desdobramento de idéias, e a teoria
marxiana da determinação do indivíduo pela sua condição de classe objetivamente dada.
Porém, todos apresentaram a mesma resposta à questão da existência humana: não
existe tal coisa, não existe tal problema. Existem idéias e cidadãos, mas não seres
humanos. Somente é possível a realização das idéias na sociedade e por seu intermédio.
Pois, se partirmos da questão, “De que maneira é possível a sociedade?”, sem ao mesmo
tempo perguntar, “De que maneira é possível a existência humana?”, chegaremos
inevitavelmente a um conceito negativo da existência do indivíduo e da liberdade: a
liberdade do indivíduo é, portanto, o que não perturba a sociedade. Assim, a liberdade
torna-se algo sem função e sem uma existência autônoma própria. Ela se torna uma
conveniência, uma questão de estratégia política, ou um slogan demagógico. Não se
trata de nada vital. Definir liberdade como algo destituído de função é, todavia, negar
sua existência, pois nada sobrevive na sociedade sem ter uma função. Contudo o século
XIX considerava-se por demais seguro da posse da liberdade para atentar a esse fato. A
opinião predominante não notou que negar a relevância da pergunta, “De que maneira é
possível a existência humana?”, significava negar a relevância da liberdade humana. Na
realidade, esse século viu na questão, “De que maneira é possível a sociedade?” a chave
para o princípio da liberdade — principalmente porque visava à igualdade social. E o
rompimento dos antigos grilhões da desigualdade parecia equivalente à implantação da
liberdade. Hoje sabemos que o século XIX estava equivocado, O nazismo e o
comunismo foram lições caras — mais, talvez, do que pudemos suportar; mas, pelo
menos, aprendemos que não podemos conseguir liberdade se nos limitarmos à questão
“De que maneira é possível a sociedade?”. Talvez seja verdade que a existência humana
livre não é possível; o que, de fato, Hitler e também os comunistas, assim como, de
modo mais velado todos os “engenheiros sociais” bem-intencionados que acreditam em
psicologia social, propaganda, reeducação ou administração afirmavam, para poderem
moldar e formar o indivíduo. No entanto, pelo menos
Pagina 176
a questão, “De que maneira é possível a existência humana?”, não pode mais ser
considerada irrelevante. Para os que alegam acreditar na liberdade, não há indagação
mais importante.
Não dizemos que Kierkegaard foi o único pensador do século XIX que constatou a
direção para a qual Rousseau levava o mundo ocidental. Houve também os romancistas,
alguns dos quais, principalmente na França, sentiram o que estava por vir. Houve a
revolta inútil e suicida de Nietzsche um Sansão cujo tremendo poder destruiu somente a
si mesmo. Houve, principalmente, Balzac, que analisou a sociedade na qual uma
existência humana não era mais possível e descreveu um Inferno mais terrível que o de
Dante, visto que nem ao menos tinha um Purgatório acima dele. Embora todos fizessem
a pergunta, “De que maneira é possível a existência humana?”, ninguém, a não ser
Kierkegaard, a respondeu.
pagina 177
A existência humana
E essa resposta que forma o paradoxo essencial da experiência religiosa. Dizer que a
existência humana é possível somente no conflito entre a existência na eternidade e a
existência temporal é dizer que a existência humana só é possível se for impossível: que
o que ela exige em um nível é proibido pela existência no outro. Por exemplo, a
existência em sociedade requer que a necessidade objetiva de sobrevivência da
sociedade determine as funções e as ações dos indivíduos. A existência em espírito,
porém, só é possível se não houver leis ou normas, exceto as do indivíduo, consigo
mesmo e com seu Deus. Como o homem precisa existir em sociedade, não pode haver
liberdade exceto em questões sem importância; mas como o homem precisa existir em
espírito, não pode haver regras ou limitações sociais em questões de importância. Em
sociedade, o homem pode existir apenas como ser social — como marido, pai, filho,
vizinho, cidadão. Em espírito, o homem pode existir apenas individualmente — só,
isolado, completamente emparedado em sua própria consciência.
A existência em sociedade exige que o homem aceite a esfera dos valores e crenças,
recompensas e punições sociais como reais. Porém, a existência em espírito, “perante
Deus”, exige que o homem considere todos os valores e crenças sociais como pura
ilusão, vaidades, falsidades, inválidas e irreais. Kierkegaard cita Lucas, 14:26, “Se
alguém vem a mim, e não odeia seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e
ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo”. O Evangelho do Amor não diz:
ame-os menos que a mim; ele diz odeie. Afirmar que a existência só é possível
simultaneamente na temporalidade e na eternidade é, portanto, afirmar que ela só é
possível como uma existência esmagada entre dois princípios éticos incompatíveis. E
isso significa
Pagina178
(se for mais que a zombaria de deuses cruéis): a existência humana é possível apenas
como existência trágica. É a existência no temor e no tremor, no pavor e na ansiedade e,
acima de tudo, no desespero.
O otimismo do século XIX
Essa visão da existência humana parece muito sombria e pessimista, não valendo a pena
ser alimentada. Para o século XIX, ela manifestava-se como uma aberração patológica.
Vejamos para onde nos leva o otimismo desse século, já que é a análise desse otimismo
e a predição de seu resultado final que conferiu contornos à obra de Kierkegaard.
A essência das doutrinas do século XIX concentrava-se nos fatos de que a eternidade
pode e será atingida na temporalidade; que a verdade pode ser estabelecida na sociedade
e por meio da decisão da maioria; que a permanência pode ser obtida através da
mudança. Esta é a crença num progresso inevitável, que representava o século XIX e dá
sua própria contribuição ao pensamento humano. Podemos interpretar a doutrina do
progresso de um ponto de vista mais ingênuo e, portanto, mais sedutor — com a
convicção de que o homem, automaticamente e por meio de sua permanência
temporária na temporalidade, torna-se melhor, mais perfeito, aproximando-se do divino.
Podemos interpretar a doutrina em sua forma mais sofisticada — com os esquemas
dialéticos de Hegel e Marx em que a verdade se revela na síntese entre tese e antítese,
cada síntese tornando-se, por sua vez, a tese de uma nova integração dialética em um
nível mais elevado e próximo à perfeição. Ou pode-se seguir a doutrina de aparência
pseudocientífica da teoria da evolução por meio da seleção natural. Em cada forma, a
substância da doutrina é a mesma: uma fervorosa crença de que, ao acumularmos
tempo, atingiremos a eternidade; ao acumularmos matéria, nos transformaremos em
espírito; ao acumularmos mudanças, nos tornaremos eternos; ao acumularmos tentativas
e erros, encontraremos a verdade. Para Kierkegaard, o problema do valor final era o
conflito irredutível entre qualidades contraditórias. Para o século XIX, o problema era
de quantidade. No ponto em que Kierkegaard concebe a situação humana como
essencial- mente trágica, o século XIX esbanjava otimismo. Desde o ano 1000, quando
toda a Europa aguardava o Segundo Advento, nunca houve uma geração que se sentisse
tão próxima da completude temporal como o homem do século XIX. Certamente havia
impurezas na estrutura da sociedade, mas os liberais esperavam confiantemente que elas
fossem eliminadas em uma geração ou, no máximo, em um século por meio do diário
fortalecimento da luz da razão. O progresso era automático e, embora as forças da
ignorância e da superstição parecessem vencer algumas vezes, eram somente ilusões
momentâneas. “E sempre mais escuro antes do amanhecer” diz uma máxima
verdadeiramente liberal (e, por acaso, tão falsa em seu significado literal quanto
metafórico). O apogeu desse otimismo ingênuo
Pagina 179
pagina 180
A morte
Por mais bem-sucedido que o século XIX tenha sido em conter o trágico, há um fato
que não poderia ser suprimido, pois permanece alheio à temporalidade: a morte. É o
único fato que não pode ser generalizado e que continua incomparável; o único que não
pode ser socializado, e que permanece pessoal. O século XIX empenhou-se ao máximo
para despojar a morte de seu aspecto individual, único e qualitativo. Tornou a morte um
incidente em estatísticas vitais, mensurável quantitativamente, previsível de acordo com
as leis atuariais da probabilidade. Procurou contornar a morte organizando suas
conseqüências. O seguro de vida talvez seja a instituição mais significativa da
metafísica do século XIX; sua proposição de “desdobrar os riscos” mostra com bastante
clareza a natureza da tentativa de considerar a morte um incidente na vida humana, e
não o seu término. E o século XIX criou o espiritualismo — uma tentativa de controlar
a vida após a morte com recursos mecânicos. No entanto, a morte persiste. A sociedade
pode transformá-la em um tabu, pode convencionar que não é elegante falar sobre ela,
pode substituir aqueles terríveis funerais públicos pela cremação, mais “higiênica”, e
pode chamar coveiros de agentes funerários, O erudito professor Haeckel pôde dar a
entender, que a biologia darwiniana estava prestes a nos fazer viver eternamente; mas
ele não foi bem-sucedido em sua promessa. E, enquanto a morte persistir, o indivíduo
continua com um pólo de sua existência fora da sociedade e com outro fora da
temporalidade.
Pagina 181
Se a sociedade quiser que o homem seja capaz de viver exclusivamente nela deve
possibilitar a ele morrer sem desespero. E a única forma de fazê-lo é tirando o
significado da vida individual. Quando não se é nada além de uma folha na árvore
genealógica, uma célula no corpo da sociedade, a morte não é realmente morte; é
possível referir-se a ela como um processo de regeneração coletiva. Mas então, é claro,
a vida também não é uma vida real, é apenas um processo funcional dentro da vida do
todo, destituída de qualquer significado que não esteja atrelado ao todo. Assim, como
Kierkegaard previu há 100 anos, um otimismo que vincula a existência humana à
existência na sociedade conduz diretamente ao desespero que, por sua vez, pode
somente levar ao totalitarismo. Pois o totalitarismo — e essa é a característica que o
diferencia tão nitidamente das tiranias do passado — baseia-se na afirmação da falta de
sentido da vida e da não- existência da pessoa. Por essa razão, a doutrina do
totalitarismo não enfatiza a maneira como se vive, mas como se morre; para tornar a
morte suportável, foi preciso que a vida individual se transformasse em algo inútil e sem
significado. A doutrina otimista, que de início conferiu à vida nesse mundo um
significado integral, conduziu diretamente à glorificação da auto-imolação nazista como
o único ato em que o homem pode existir significativamente. O desespero torna-se a
essência da própria vida.
O século XIX chegou no mesmo ponto que o mundo pagão do Império Romano havia
chegado e, como na antiguidade, tentou encontrar uma saída puramente ética —
baseando a virtude na razão humana, O grande sistema filosófico do idealismo alemão
— principalmente o de Kant, mas também o de Hegel — dominavam aquela época por
identificarem a razão com a virtude e a boa vida. A cultura ética e aquele ramo do
protestantismo liberal que considera Jesus “o melhor homem que já existiu”, com seus
slogans sobre as normas essenciais, o “imperativo categórico” e a satisfação em servir
— essas e outras éticas a elas relacionadas tornaram-se tão conhecidas no século XIX
quanto haviam sido em sua maioria, na antiguidade. E elas falharam em proporcionar a
base para a existência humana na modernidade, assim como haviam falhado há dois mil
anos. Nas melhores doutrinas, o conceito ético leva, de fato, à integridade e à grandeza
moral, O humanismo do século XIX, baseado em Plutarco, por um lado e em Newton
por outro, poderia ser algo nobre. (Basta lembrar os grandes homens da última geração
desse século, como Woodrow Wilson, Masaryk, Jaurès ou Mommsen.) O próprio
Kierkegaard sentia-se mais atraído por esse humanismo do que imaginava. Embora
lutasse incansavelmente, nunca pôde libertar-se da influência de Hegel; e Sócrates,
símbolo da vida ética, continuou representando para ele o apogeu da história natural do
homem. Kierkegaard, no entanto, também percebeu que o conceito ético, embora
possa conferir integridade, coragem e constância, não pode prover significado —
Pagina 182
nem à vida, nem à morte. Tudo o que ele pode oferecer é uma resignação estóica.
Kierkegaard considerou essa posição mais desesperadora do que a otimista; chamou- a
de “desespero por desejar ser um indivíduo”. E, freqüentemente, uma posição ética não
conduz a nada tão nobre e consistente quanto a filosofia estóica, mas transforma-se no
ouro que doura a pílula do totalitarismo. Esta é, acredito, a posição de muitos que fazem
a apologia da União Soviética; eles supõem que o homem encontre a realização
individual numa tentativa ética de fazer seu vizinho feliz e que isso seja suficiente para
compensar a realidade do totalitarismo. Ou a posição ética se torna puro
sentimentalismo — a posição dos que acreditam que o mal pode ser abolido e a
harmonia estabelecida por meio de boas intenções. E em todos os casos a posição ética
está fadada a degenerar em relativismo. Pois, se a virtude deve ser encontrada no
homem, tudo que o homem aceitar deve necessariamente ser virtuoso. Assim, uma
posição que principia — como fizeram Rousseau e Kant há cerca de duzentos anos — a
estabelecer princípios éticos criados pelo homem deve terminar na completa negação
dos princípios e, assim, na total negação da possibilidade de uma posição
verdadeiramente ética. Dessa forma, não há como escapar ao desespero.
Podemos dizer então que a única conclusão é a de que a existência humana somente
pode ser uma existência trágica e desesperada? Estarão certos os sábios orientais que
vêem a única resposta na destruição do próprio ser, na imersão do homem no nirvana,
no nada?
Pagina 183
A resposta de Kierkegaard
Kierkegaard tem outra resposta: a existência humana é possível como existência, não no
desespero, não na tragédia, mas na fé. O oposto do pecado (para usar o termo tradicional
para uma existência puramente na sociedade) não é a virtude, mas sim a fé.
A fé é a crença de que em Deus o impossível é possível, de que nEle a temporal e a
eternidade são uma só, de que tanto a vida quanto a morte têm significado. A fé é o
conhecimento de que o homem é uma criatura — não-autônoma, não o mestre, não o
fim, não o centro — e, no entanto, responsável e livre. É a aceitação da solidão essencial
do homem a ser superada pela certeza de que Deus está sempre com ele, mesmo “na
hora de nossa morte”. Entre os livros de Kierkegaard está o meu favorito, um pequeno
volume chamado Temor e tremor, no qual ele formula a pergunta: O que diferencia a
disposição de Abraão em sacrificar o filho, Isaac, de um assassinato comum? Se Abraão
nunca tivesse tido a intenção de levar a cabo o sacrifício, mas pretendesse todo o tempo
apenas exibir sua obediência a Deus, então, de fato, Abraão não teria sido um assassino,
mas algo mais desprezível: um trapaceiro e impostor. Se ele não tivesse amado Isaac e
lhe fosse indiferente, estaria disposto a ser um assassino. No entanto, Abraão era um
homem santo, e a ordem de Deus era para ele uma ordem absoluta a ser executada sem
ressalvas; e sabemos que ele amava a Isaac mais do que a si próprio. A resposta é que
Abraão tinha fé e acreditava que em Deus o impossível se tornaria possível — e que ele
poderia obedecer a ordem dele e ainda conservar Isaac. Abraão foi um símbolo para o
próprio Kierkegaard, e o sacrifício de Isaac o símbolo para seu segredo mais profundo,
seu grande e trágico amor — um amor que ele aniquilou embora amasse mais que a si
próprio. Porém, a alusão autobiográfica é apenas incidental. A história de Abraão é um
símbolo universal da existência humana que é possível somente na fé. Na fé o indivíduo
torna-se universal, deixa de estar isolado, torna-se expressivo e absoluto; por
conseguinte, na fé existe a verdadeira ética, e na fé a existência em sociedade também
se reveste de significado, como existência na verdadeira caridade.
A fé não é o que hoje, com freqüência, chamamos de “experiência mística” — algo que
aparentemente pode ser induzido por exercícios respiratórios adequados ou por uma
prolongada exposição à música de Bach. A fé somente pode ser alcançada por meio de
desespero, sofrimento, lutas dolorosas e intermináveis. Não é irracional, sentimental,
emocional ou espontânea. É resultado de uma reflexão e aprendizado sério, de uma
disciplina rígida, de sobriedade total, humildade e subordinação do ego a uma vontade
superior e absoluta. O conhecimento interior da própria unificação em Deus — o que
São Paulo chamou de esperança e nós chamamos de santidade — só pode ser atingida
por poucos, mas todos os homens são capazes de alcançar a fé, pois todos os homens
conhecem o desespero. Kierkegaard, situa-se claramente na significativa tradição da
experiência religiosa, a tradição de Santo Agostinho e São Boaventura, de Lutero, São
João da Cruz, e Pascal. O que o torna diferente e lhe confere hoje uma importância pecu
liar é sua ênfase sobre o significado da vida dentro da temporalidade e da sociedade
para o homem de fé, o cristão. Kierkegaard é “moderno”, não porque emprega o
vocabulário moderno da psicologia, da estética e da dialética — peculiaridades efêmeras
que a grande repercussão dos conceitos de Kierkegaard tornou famosas
— mas porque se preocupa com o mal específico do ocidente moderno: a desintegração
da existência humana, a negação da simultaneidade da vida no espírito e da vida na
carne, a negação do significado de cada um em função do outro.
Em vez disso, temos hoje uma total separação, a justaposição de “iogue” e “comissário”
— os termos são, naturalmente, de Arthur Koestler — como possibilidades que se
excluem mutuamente: uma escolha obrigatória entre temporalidade e eternidade,
caridade e fé, na qual um dos pólos da dupla existência do homem se torna absoluto. Tal
situação significa abdicar totalmente da fé: o “comissário” desiste totalmente da esfera
espiritual em prol do poder e da eficiência; o “iogue” atribui a existência humana na
temporalidade (isto é, a vida social) ao demônio e está disposto a ver milhões perderem
suas vidas e suas almas contanto que seu próprio “eu” seja salvo. É impossível que um
homem religioso aceite qualquer
Pagina 184
uma dessas posições, principalmente o Cristão, que deve viver no espírito e, ainda,
afirmar que a verdadeira fé é eficaz na caridade e por meio dela (isto é, na
responsabilidade social e por meio dela). Pelo menos, porém, ambas são posições
honestas, admitindo com sinceridade sua falência ao contrário da tentativa de fugir ao
problema por um dos vários partidos políticos “cristãos” na Europa, católicos e
protestantes, ou o movimento pelo “Cristianismo Social” ainda poderoso nos EUA. Pois
essas tentativas colocam a moralidade e as boas intenções como molas mestras da ação
em lugar da fé e da experiência religiosa. E os partidos, embora sinceros e zelosos,
embora apoiados e, às vezes, guiados por homens bons e até santos, não precisam
somente ser tão ineficazes na política quanto os “iogues” mas também precisam falhar,
como o “comissário”, para proporcionar uma vida espiritual; pois eles comprometem a
vida na temporalidade e na eternidade, O clérigo austríaco e líder do partido católico
que, em 1930, defendeu Hitler com o argumento de que, “pelo menos ele se opõe a
banhos mistos”, era uma caricatura horrível do moralista cristão na política; ele
representava uma caricatura de algo que ocorre sempre que a moralidade é confundida
com a fé. Kierkegaard não oferece uma saída fácil. De fato, dele poderia ser dito, como
de todos os pensadores religiosos que se concentram na experiência e não na razão e no
dogma, que enfatiza excessivamente a vida no espírito, deixando, assim, de integrar os
dois pólos da existência humana em um todo. Ele, porém, não só apontou a dificuldade,
mas também mostrou com sua própria vida e com suas obras que não há meios de
escapar da realidade da existência humana, existência essa que se encontra em situação
de conflito. Não foi por acidente que foi o livro Discursos edificantes a única parte da
imensa produção literária de Kierkegaard a não ser publicada sob pseudônimo, mas com
seu próprio nome. Não que ele quisesse ocultar a autoria dos outros livros — o
pseudônimo não poderia enganar ninguém — mas somente os livros “edificantes”
transformavam a fé em eficiência social e eram, portanto, verdadeiramente religiosos e
não apenas “iogues”. Também não foi por acidente que toda a obra de Kierkegaard, seus
vinte anos de isolamento, de produção literária, reflexão, oração e sofrimento tenham
sido apenas uma preparação para a violenta ação política à qual ele dedicou os últimos
meses de vida — uma guerra tempestuosa de um homem só, contra a igreja estabelecida
da Dinamarca e seu clero, por confundir moralidade e tradição com caridade e fé.
Embora a fé de Kierkegaard não possa superar a horrível solidão, o isolamento e a
dissonância da existência humana, ela pode torná-la suportável ao torná-la significativa.
A filosofia das doutrinas totalitaristas tornam o homem apto a morrer. E perigoso
subestimar a força de tal filosofia, pois, em uma época de aflição e sofrimento, de
catástrofes e horror (ou seja, nosso tempo), é ótimo poder morrer. No entanto, isso não é
suficiente. A fé de Kierkegaard, igualmente, torna o homem apto a morrer, mas também
a viver.
Pagina 185
Pagina em branco
Pagina 186
Pagina 187
Página 187
The end of economic man: the origins of totalitarianism, 1939. New Brunswick.
N.J., USA: Transaction Publishers, 1995.
The future of industrial man, 1942. New Brunswick, N.J., USA: Transaction
Publishers, 1995.
The new society: anatomy of the industrial order, 1949. [A nova sociedade:
anatomia do sistema industrial. 2.ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1964.]
America’s next twenty years, 1957. Freeport, N.Y.: Books for Libraries Press,
1972.
The effective executive, 1966. [O gerente eficaz. 9.ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1981.]
Technology, management, and society; essays, 1970. Nova York: Harper &
Row, 1970.
Página 188
Towardthe nexteconomics, and other essays, 1981. Nova York: Harper & Row,
1981.
The last of all possible words: a novel, 1982. Nova York: Harper & Row, 1982.
The changing world of the executive, 1982. Oxford, Newton, MA: Butterworth
Heinemann, 1995.
The temptation to do good, 1984. Nova York: Harper & Row, 1984.
Managing for the future.. the 1990s and beyond, 1992. [Administrando para o
futuro: os anos 90 e a virada do século. 6.ed. São Paulo: Pioneira, 1998.]
Página 189
(em branco)
Página 190
(em branco)