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DRUCKER, Peter Ferdinand. O melhor de Peter Drucker.

São Paulo: Nobel, 2001

Peter Drucker
O melhor de Peter Drucker
A Sociedade

Tradução
Edite Sciulli

Apresentação

Os ecologistas sociais lidam com configurações. Eles percebem a sociedade como um


todo. O termo “ecologia social” foi criado pelo próprio Drucker, mas espero que ele se
torne um termo de uso corrente logo no início do século XXI. Precisamos
desesperadamente da ecologia social e, com ela, de ecologistas sociais de primeira
linha. A ecologia social estuda o ambiente feito pelo homem, assim como os ecologistas
estudam o ambiente natural. Drucker, na qualidade de ecologista social, observa a
sociedade e a comunidade e pergunta “o que aconteceu?” “Esta é de fato uma
mudança?” “O que ela significa?” O sentinela de Fausto, de Goethe, diz “Nascido para
ver, destinado a olhar”. É o que Drucker faz.

A série de três volumes de “O melhor de Peter Drucker” visa oferecer aos leitores uma
visão geral do mundo de Drucker. Com mais de 90 anos de idade, o autor ainda tem a
mente jovem e continua escrevendo, ensinando e prestando serviços de consultoria
ativamente. O melhor de Peter Drucker mostra o que ler entre suas várias obras.

O primeiro volume “O homem”, e o segundo, “A administração”, já foram publicados


em outros idiomas e percorrem uma trajetória bem-sucedida. Este é o terceiro volume,
“A sociedade”, repleta de observações sagazes sobre a Nova Sociedade que está
surgindo exatamente no limiar entre os dois séculos.

O material deste volume é extraído de 9 dos 31 livros de Drucker listados na


Bibliografia, ao final da obra.
A Parte 1 “Sociedade”, descreve e analisa as forças que moldam a sociedade do futuro.
O Capítulo 1 é um excerto do Capítulo 2: “What is a functionning society?”, do livro
Thefrture of industrial man (1942), que formulou uma teoria geral sobre a sociedade. O
livro é obrigatório para se compreender de início o que é sociedade.

O Capítulo 2 é um excerto de “The despair of the masses” (Capítulo 2), “The return of
the demons” (Capítulo 3), “The totalitarian miracle” (Capítulo 5), “Fascist noneconomic
society” (Capítulo 6), e “Miracle or mirage” (Capítulo 7), de The end ofeconomic man
— the origins oftotalitarianism (1939), obra inicial de Drucker, que chegou a ser revisto
por Winston Churchill, e depois determinou que exemplares dela fossem distribuídas
aos graduandos da British Officer’s Candidate School.

Aqui Drucker afirma que o fim da crença no Homem Econômico que prometia
liberdade e igualdade originou o totalitarismo fascista nos países sem experiência e
tradição democráticas. Sabemos hoje que o totalitarismo que nega a liberdade não era a
resposta, mas teremos encontrado a resposta correta para uma sociedade não-
econômica em que as pessoas não vivem e morrem pela economia?

O Capítulo 3 é um excerto de “A century of social transformation” (Capítulo 21), de


Managing in a time ofgreat change (1995). Este capítulo analisa as forças da sociedade
que nos conduzirão na primeira metade do século XXI.

O Capítulo 4 é um excerto de “Toward a theory oforganizations” (Capítulo 9), de The


age ofdiscontinuity (1969), bestseller em todo o mundo e que descreve como
precisamos agir hoje para o bem do futuro. O livro é muito conhecido devido a sua
proposta de “reprivatização” que um folheto do British Conservative Central Office,
“Um novo estilo de governo”, adaptou em maio de 1970. O livro foi posto em prática na
privatização de instituições do setor público na gestão de Margaret Thatcher, e
posteriormente em países como o Japão e Nova Zelândia.

No Capítulo 5 e no Capítulo 6, encontramos alguns aspectos da sociedade do século


XDU. O Capítulo é um excerto de “Conclusion: the entrepreneurial society”, de
Innovation and entrepreneurship (1985), e o Capítulo 6, de “Citizenship through the
social sector” (Capítulo 9), de Post-capitalistsociety (1933), ambos livros para os
trabalhadores de conhecimento do futuro. Esses são os dois principais aspectos da futura
Nova Sociedade, termo também cunhado por Drucker.

A Parte 2, “Economia”, enfoca as mudanças nesse setor. Drucker não confere à


economia um lugar independente e decisivo na vida humana. Todavia, conhece sua
essência e significado melhor que a maioria dos economistas pelo simples motivo que
coloca a Sociedade em primeiro lugar e considera a Economia um fator social. Aqui
temos apenas dois artigos. O editor não pôde introduzir outros artigos valiosos e
estimulantes sobre economia, como o escrito sobre Keynes imediatamente após sua
morte em 1946. O artigo “Keynes: economics as a magical system”, está em The
ecological vision — reflections on the American condition (1992).

O Capítulo 7 é um excerto de “The end ofcontinuity” (Capítulo 1), de The age


ofdiscontinuity. é uma pena que ainda existam políticos, burocratas, acadêmicos e
mesmo homens de negócios que não percebem que a continuidade acabou. Drucker
escreve, “Enquanto terminávamos o grande edifício econômico do século XIX, os
alicerces foram abalados sob nossos pés”. O Capítulo 8 é um excerto de “The changed
world economy” (Capítulo 1), de Thefrontiers of management — where tomorrow’s
decisions are beingshaped today (1986), uma das mais famosas compilações dos artigos
de Drucker publicados no The WallStreetJournal, Foreign Affairs, Forbes, Harvard
Business Review, etc. “A mudança na economia mundial”, na revista ForestAffairs, foi
um dos artigos mais usados no ano de sua publicação.

A Parte 3 versa sobre Política. Tendo iniciado sua carreira como cientista político,
Drucker percebe e concebe a política e o Estado com familiaridade. O Capítulo 9 e 10
são excertos de “From Rousseau to Hitler” (Capítulo 7), e de “The conservative
counterrevolution of 1776” (Capítulo 8), de Thefrture ofindustrial man, seu segundo
livro. Os leitores considerarão o Capítulo 9 chocante e o 10, indispensável. Altos
executivos da General Motors, então a maior, mais bem-sucedida e poderosa empresa
do mundo, que leram o livro convidaram Drucker para analisar sua organização. O
resultado foi Concept ofthe coporation (1946), que se tornou o livro-texto de muitas
empresas, incluindo a Ford Motor Company e a General Electric que se empenhavam
em sua reorganização. Essa análise também fez com que Drucker continuasse a estudar
as organizações e acabasse sendo chamado de o criador da administração de empresas.
O Capítulo 11 é um excerto de “The divide” (Capítulo 1), e de “No more salvation by
society” (Capítulo 2), de The new realities (1989), tão conhecido por nos mostrar a
futura queda do império russo. O Capítulo 12 é um excerto do Capítulo 3, “The end of
FDR’S America”, do mesmo livro. Em todos os países desenvolvidos está claro, hoje,
que nem a “salvação pela sociedade”, nem a integração de “blocos de interesse”
funcionam. O Capítulo 12 é um excerto do Capítulo 6, “From nationstate to megastate”,
de Post-capitalist society.

O Capítulo 14 é um excerto de “The revolution no one noticed” (Capítulo 1), de “The


political lessons and political issues ofpension fund socialism” (Capítulo 4), e “New
alignments in american politics” (Capítulo 5), de Thepensionfundrevolution (1976), o
primeiro livro a tratar do envelhecimento da sociedade e da sociedade de idosos. Houve
várias obras que trataram do problema do atendimento médico, habitação, pensões e
mesmo de hobbies dos idosos nessa época, mas quase nenhum sobre a própria
sociedade envelhecida, sua economia, sua sociedade, sua política. Quando traduzi The
pension fund revolution para o japonês, não pude encontrar nenhum texto que me fosse
útil.

A Parte 4, “Conhecimento e educação”, é a tarefa-chave do século XXI. O Capítulo 15 é


um excerto de “The politics of knowledge” (Capítulo 16) e “Does knowledge have a
future? (Capítulo 17)” de Theageofdiscontinuity. O Capítulo 16 é um excerto do
Capítulo 11, “The accountable school” de Post-capitalist society.

O Capítulo 17 é um excerto da Conclusão: “From analysis to perception”, de The new


realities. A frase “da análise à percepção” é a chave para compreender e viver na nova
sociedade. Reconhecemos totalmente a importância da percepção em nossa própria vida
e a empregamos, mas na vida das organizações dependemos excessivamente da análise,
chamando-a de científica principalmente porque compreender e descrever a
configuração é trabalhoso, enquanto analisar é mais fácil e convincente. O racionalismo
quase sempre tem sido a causa de progressos na história do Ocidente, mas no século
XXI não podemos compreender nada essencial somente por meio da análise.
E, finalmente, o Apêndice — “The unfashionable Kierkegaard” — foi publica— do pela
primeira vez no Sewanee Review (1949), e recentemente em The ecological vision.
Todas as outras obras de Drucker tratam da sociedade, ao contrário desse ensaio sobre
Kierkegaard. Esse texto fala dos indivíduos na eternidade. Apesar de sua contribuição
para a sociedade e a civilização, Drucker, no início de 1949, escreveu que a sociedade
não é suficiente, “sequer para a própria sociedade”.

Drucker e eu trocamos mais de 100 cartas, principalmente por fax, para a produção
desta série. Nessa troca de informações, divergimos sobre a colocação desse artigo. Ele
não queria incluí-lo no início do volume “A Sociedade”. Estava certo. Tinha de ser o
artigo final de toda a série, porque ratifica a esperança e nós precisamos dela nesse
início do novo século. Alguns assuntos que o editor não pode incluir: sobre tecnologia e
instrumentos, sobre EUA, Europa, América Latina e Ásia. E um assunto dos mais
interessantes foi excluído: o próprio Drucker. Nesse particular, o editor recomenda,
Afterword:reflections of a social ecologist’, de The ecological vision, e os vários livros
escritos sobre o autor. E se você tiver interesse sobre o início de sua carreira, seu livro
Adventures of a bystander (1979) é extremamente útil.

Drucker continua ativo, escrevendo, ensinando e prestando serviços de consultona. Em


fevereiro de 2000, quando falou via vídeo sobre os indivíduos da sociedade dos idosos,
reuniu um público de três mil pessoas em um dos maiores auditórios de Tóquio. A
NHK, o maior canal de televisão do Japão, entrevistou-o durante dois dias inteiros,
editou a entrevista e transmitiu-a num programa quatro vezes, pela manhã, à tarde, no
começo da noite e à meia-noite em diferentes dias em julho e agosto de 2000. Milhões
de pessoas assistiram ao programa. Como editor, gostaria que você assimilasse os
ensinamentos de Drucker de várias formas. É na era das mudanças que a compreensão
de um verdadeiro ecologista social é mais necessária. E, mais uma vez como editor,
gostaria de expressar minha enorme gratidão a Peter Drucker pela desafiadora
oportunidade de editar suas obras.

Atsuo Ueda*
Nota de rodapé: * Atsuo Ueda, editor da obra de Peter Drucker no Japão, é responsável
pela compilaçáo que resultou em O melhor de Peter Drucker, cujo terceiro volume é
este.

Introdução

Atualmente fala-se muito sobre a nova economia, mas a nova sociedade, sobre
a qual ninguém fala, pode ser muito mais importante. Também é provável que ela
seja muito mais “nova” do que a economia do futuro.

Quais são as raízes da nova sociedade? Que tendências históricas do século XIX
fundamentam e orientam seu surgimento? Quais são as forças que a moldam? Estes são
os principais temas deste volume: O melhor de Peter Drucker — A Sociedade.

Sou mais conhecido por meus textos sobre administração, mas metade dos mais de
trinta livros que escrevi não trata desse tema, mas sim de sociedade e comunidade. E,
naturalmente, meu interesse em administração resultou de minha preocupação e
interesse pela sociedade e comunidade. Meu primeiro livro, escrito e publicado antes
mesmo da Segunda Guerra Mundial (The end ofeconomic man, 1938-39), procurava
entender e explicar o fracasso e a desintegração da sociedade européia, que levou ao
surgimento de Hitler, ao totalitarismo e, finalmente, à Segunda Guerra. E o seguinte,
alguns anos depois (Thefuture of industrial man, 1943), escrito nos primeiros anos da
Segunda Guerra Mundial, procurou desenvolver as instituições e conceitos básicos que
criariam novamente uma sociedade estável e atuante (trechos de ambos os livros estão
incluídos neste volume). Quando esses livros foram lançados, eles eram totalmente
“politicamente incorretos”. A opinião dominante naqueles dias, por exemplo, e
especialmente nos EUA, aceitava o marxismo como a base da teoria social e política, e
via no comunismo a sociedade do futuro. Ambos os livros, contudo, mostravam o
marxismo como já fracassado e esse fracasso como a principal razão para a queda da
Europa no abismo do totalitarismo. Na verdade, esses livros, escritos há cerca de
sessenta anos, esboçavam o que, depois de 1950, tornou-se de fato a socieda de que,
durante cinqüenta anos, proporcionou aos países desenvolvidos estabilidade social,
continuidade, previsibilidade e bom senso.
Mas logo percebi que essa sociedade da década de 1950 transformava-se rapidamente.
Cada capítulo selecionado para o presente volume prevê e discute uma dessas mudanças
fundamentais: o surgimento dos modernos empreendimentos comerciais como nova
organização de integração social (daí meu interesse por administração), que eu comecei
a identificar e questionar no início dos anos 1940; o surgimento do trabalhador de
conhecimento* e da sociedade do conhecimento (primeiro num livro publicado em 1959
e, então, com maior profundidade, em Age ofdiscontinuity, de 1969; o surgimento de
novas tecnologias, especialmente de informação, e com elas a sociedade empresarial. O
sucesso e fracasso do “Megaestado”, a profunda mudança demográfica com o rápido
aumento da população idosa, mas com taxas de nascimento caindo drasticamente; a
globalização da informação e da moeda, e assim por diante.

Já está claro que a Nova Sociedade será tão diversa da sociedade da segunda metade do
século XX quanto esta se diferenciou da sociedade da primeira metade do mesmo
século. E também já está claro quais são suas raízes históricas, suas realidades, seus
novos desafios e oportunidades, as forças que irão moldá-la. Esses são os temas de
discussão e de análise deste volume: as novas tendências, as novas realidades, os
desafios e oportunidades, as influências atuantes. Em outras palavras, este é um livro
sobre a Nova Sociedade, e não um livro sobre a sociedade a partir da qual estamos
rapidamente nos transformando. Mas não se trata de um livro de previsões. É um livro
de análise e descrição cujo objetivo é proporcionar idéias, conhecimento e opiniões.

Dos três volumes de O melhor de Peter Drucker, este foi o mais difícil para selecionar e
editar, devido ao grande número de material disponível. Mas este volume também
exigiu o difícil equilíbrio entre a percepção e a análise das tendências sociais, de fatos e
realidades, e uma sustentação conceitual e teórica sem a qual tendências e realidades
seriam apenas “dados estatísticos”. Portanto, realizá-lo representou um desafio
extraordinário para o editor de O melhor de Peter Drucker, meu velho amigo Atsuo
Ueda, tradutor e editor japonês. Tenho certeza de que qualquer leitor compartilhará
comigo a opinião de que o sr. Ueda solucionou esse desafio magistralmente. Sei que
falo em nome de todos os leitores deste livro ao lhe expressar todo meu
reconhecimento, gratidão e profunda admiração e espero que ele me permita expressar
pessoalmente minha carinhosa gratidão por quase trinta anos de amizade e cooperação
felizes, harmoniosas e produtivas.
Peter F. Drucker

Claremont, Califórnia

Outono, 2000

Nota de rodapé para ; o surgimento do trabalhador de conhecimento*: * Em inglês


knowledge worker— termo criado por Peter Drucker para caracterizar o trabalhador
moderno, que não se baseia na força física para realizar o seu trabalho, mas na
capacitação sob forma de conhecimentos. Trabalhador preparado para agir por iniciativa
própria, em decorrência de seus conhecimentos e preparado para tomar decisóes (N. do
E.).

Dados biográficos

Peter Drucker é escritor, professor e consultor.

Publicou 31 livros que têm sido traduzidos em mais de vinte línguas. Treze deles tratam
de Sociedade, Economia e Política. São eles: The end of economic man (1939, 1995);
The future of industrial man (1942, 1994); The new society (1949, 1992); America ‘s
next twenty years (1957); Landmarks of tomorrow (1959, 1996); The age of
discontinuity (1969, 1992); Men, ideas and politics (Entails) (1971); The unseen
revolution (1976; publicado novamente sob o título Thepensionfund revolution, 1995);
Toward the next economics (Ensaios) (1981); The new realities (1989); The ecological
vision (Ensaios) (1992); Post capitalist society (1993); Drucker ou Asia: the
DruckerNakauchi dialogue (1996). Quinze livros tratam de Administração. São eles:
Concept of the corporation (1946, 1992); Thepractice of management(1954, 1992);
Managing for results(1964, 1992; Theeffectiveexecutive(1996, 1992); Technology,
management, and society (Ensaios) (1970); Management: tasks, responsibilities,
practices (1974, 1992); Managing in turbulent times (1980, 1992); The changing world
of the executive (Ensaios) (1982); Innovation and entrep reneurshz (1985, 1992);
Thefrontiers ofmanagement (Ensaios) (1986, 1997); Managing the nonprofit
organization (1990); Managing for thefuture (Ensaios) (1992); Managing in a time
ofgreat change (Ensaios) (1995); Peter Drucker on theprofession ofmanagement (1998);
e Management challenges for the 2lst century (1999). Dois livros são romances: The
last ofailpossible worlds (1982), e The temptation to so good (1984). Um livro é
autobiográfico: Adventures ofa bystander (1979; 1991;1994). Drucker também é co-
autor deAdventures ofthe brush;japanese paintings (1979). Ele fez quatro séries de
filmes educativos baseados em seus livros de administração. Drucker é colaborador
freqüente de revistas, e foi colunista de The WallStreetJournalde 1975 a 1995.

Desde 1971, Drucker é professor de Ciências Sociais e Administração na Claremont


Graduate University em Claremont, Califórnia, que deu o nome de Drucker à sua Escola
de Administração em 1987. De 1979 a 1985, ele também fez palestras sobre Arte
Oriental em Pomona Coilege, em Claremont. Também proferiu palestras na Harvard
University em 1994.

Peter Drucker é consultor especializado em estratégia e política para empresas e


instituições sem fins lucrativos, e em trabalho e organização da alta administração.
Trabalhou com várias das maiores corporações do mundo e com empreendimentos e
empresas de pequeno porte, com instituições não-lucrativas como universidades,
hospitais e serviços comunitários; e com órgãos do governo norte-americano, bem como
com órgãos do governo de outros países como o do Canadá e Japão.

Drucker é doutor honorário de diversas universidades dos Estados Unidos, Bélgica,


República Checa, Inglaterra, Japão, Espanha e Suíça. É Chairman Honorário
da Peter F. Drucker Foundation for Nonprofit Management.

Drucker trabalhou como economista para um banco internacional em Londres; como


economista americano para um grupo de bancos europeus e britânicos e trustes de
investimento; como correspondente americano para um grupo de jornais ingleses; e
como professor de política e de filosofia na Bennington College, Bennington, Vermont.
De 1950 a 1971 Drucker foi professor de administração da Graduate Business School da
New York University que, em 1969, concedeu a ele a honra máxima da universidade,
Condecoração Presidencial por Méritos.
Nascido em 1909 em Viena, Áustria, Drucker foi educado na Áustria e na
Inglaterra. Ele tem doutorado em Direito Público e Internacional da Frankfurt
University (Alemanha). É casado e tem quatro filhos e seis netos.
Sumário

Parte 1 — SOCIEDADE página 17


1 — O que é uma sociedade funcional? página 17
Para que a sociedade funcione página 17
Posição e função do indivíduo página 18
Poder legítimo página 19
Nem relativismo, nem absolutismo página 21
2 — O fim do Homem Econômico e a busca de uma sociedade não-econômica
página 23
O desespero das massas página 23
Uma hierarquia sem Deus página 23
O aspecto ameaçador da liberdade econômica página 25
O fim do Homem Econômico página 26
A volta dos demônios página 29
Valor decrescente da democracia página 31
Fascismo página 32
As formas de democracia página 34
A sociedade fascista não-econômica página 34
Invililitarização totalitária página 38
A continuidade da história página 40
3 — Um século de transformações sociais página 43
Fazendeiros e empregados domésticos página 44
Ascensão e queda do operariado página 45
A ascensão do trabalhador de conhecimento página 47
A emergência da sociedade do conhecimento página 48
A sociedade do empregado página 50
O setor social página 53
O novo pluralismo página 55
4 — Rumo a uma teoria sobre organizações na sociedade pluralista página 59
Gerando desempenho na organização página 60
Organização e qualidade de vida página 63
A legitimidade das organizações página 66
5 — O início de uma sociedade empresarial página 69
Planejar não é a solução página 71
Desistência sistemática página 71
O desafio para os indivíduos página 72
6 — A cidadania por intermédio do setor social página 75
Um “terceiro setor” página 76
A necessidade de uma comunidade página 77
O voluntário como cidadão página 78
PARTE 2 – ECONOMIA página 81
7—O fim da continuidade página 81
Sem mudanças na estrutura industrial página 83
8 —A mudança na economia mundial página 87
A economia baseada em produtos primários página 88
Qual o significado de “desindustrialização” página 90
Da economia “real”à “simbólica” página 91
A liderança da economia mundial página 93
PARTE 3 – POLITICA página 95
9 — O destino do liberalismo página 95
A descoberta página 96
De Rousseau a Hitler página 99
O papel de Marx página 100
A conversão de Hitier página 101
10 — Uma abordagem conservadora página 105
Os EUA, a Inglaterra e o continente europeu página 106
O conservadorismo americano página 107
O conservadorismo inglês página 109
O método do conservadorismo página 112
11 — Os divisores página 115
Não há mais salvação pela sociedade página 116
Ofim da mística da revolução página 118
Um vazio página 120
12 — O fim da integração de “blocos de interesse” página 121
Longe de ideologias página 121
Tantos sucessos página 122
Ultrapassado página 124
Não para a nova maioria página 126
13 — Do Estado-nação ao Megaestado página 127
Os fracassos dos impérios coloniais e dos superestados página 128
Do Estado-nação ao Megaestado página 130
A criação do Estado controlador página 131
O Megaestado soberano na economia página 132
A transformação em Estado fiscal página 133
O Estado da ‘guerra fria” página 134
O Estado da demagogia política página 135
14 — A política em uma sociedade de idosos página 137
Igualdade versus igualdade página 138
A desigualdade de condições dos idosos página 141
Inflação versus desemprego: qual o mal menor? página 143
Novos alinhamentos página 144
PARTE 4 – CONHECIMENTO E EDUCAÇÃO página 147
15 — A política do conhecimento página 147
Aplicação do conhecimento página 148
A política do conhecimento página 151
O conhecimento tem futuro? página 155
16 — A escola responsável página 159
As novas exigências de desempenho página 160
A escola na sociedade página 162
A escola responsável página 164
17 — Da análise à percepção página 167
Os impactos sociais exercidos pela informação página 168
Forma efunção página 170
Da análise à percepção página 171
APÊNDICE página 175
Além da sociedade página 175
A existência humana página 177
O otimismo do século XJX página 179
A morte página 181
A saída por meio de um estado ético página 182
A resposta de Kierkegaard página 183
Bibliografia de Peter F. Drucker página 187

PARTE 1 – SOCIEDADE

1 — O que é uma sociedade funcional? *


(Uma teoria geral sobre sociedade)

Em sua vida social e política, o homem precisa dispor de uma sociedade funcional da
mesma forma que precisa do ar para respirar em sua vida biológica. Entretanto, o fato
de que o homem precisa da sociedade não significa necessariamente que ele a tem.
Ninguém chama a massa humana desorganizada, aterrorizada e tresmalhada em um
navio naufragado de “sociedade”. Isso não é sociedade, embora sejam seres humanos
reunidos num grupo. Na verdade, o pânico é resultado direto do colapso da sociedade; e
a única maneira de superá-lo é restabelecendo uma sociedade com valores, disciplina,
poder e organização sociais.

A vida social não pode funcionar sem uma sociedade, mas é concebível que não
funcione de fato. As evidências dos últimos vinte e cinco anos de civilização ocidental
dificilmente nos habilitam a dizer que nossa vida social funcionou tão bem a ponto de
produzir uma situação evidente para a existência de uma sociedade funcional.

Para que a sociedade funcione

Definir uma sociedade é tão impossível quanto definir a vida. Estamos tão próximos a
ela que as características simples e básicas desaparecem sob uma massa complexa e
atordoante de detalhes. Fazemos também parte integrante dela de tal maneira que é
impossível ver o todo. E, finalmente, não existe uma linha bem definida, nenhum ponto
em que a ausência de vida se transforma definitivamente em vida, a
Nota de rodapé: * * Este capítulo foi extraído de Thefrture of industrial man, publicado
em 1942.

Página 17
ausência de sociedade definitivamente em sociedade. Mas, embora não saibamos o que
é a vida, todos sabemos quando um corpo vivo deixa de sê-lo e se transforma num
cadáver. Sabemos que o corpo humano não pode funcionar como um corpo vivo se o
coração pára de bater ou os pulmões param de respirar. Enquanto houver um batimento
cardíaco ou uma respiração, há vida nesse corpo; sem eles há somente um cadáver. Da
mesma forma, a impossibilidade de não podermos dar uma definição normativa para
sociedade não nos impede de compreendê-la funcionalmente. Nenhuma sociedade pode
operar como sociedade a menos que conceda ao seus membros posição e função social,
e a menos que o poder social decisivo seja um poder legítimo. O primeiro estabelece a
estrutura básica da vida social: o objetivo e o significado de sociedade. O último molda
o espaço dentro da estrutura: torna a sociedade concreta e cria suas instituições. Se o
indivíduo não tem posição ou função social, não pode haver sociedade, mas somente
uma massa de átomos sociais percorrendo o espaço sem objetivo ou propósito. E, a
menos que o poder seja legítimo, não pode haver material social, mas apenas uma vácuo
social que se mantém unido por mera submissão ou inércia.

Nada mais natural do que questionar quais desses critérios é mais importante ou quais
desses princípios de vida social vêm em primeiro lugar. Essa questão é tão antiga quanto
o próprio pensamento político, originando a primeira divergência significativa da teoria
política, a de Platão e Aristóteles, entre a prioridade do objetivo da sociedade e de sua
organização institucional. Mas essa é uma questão insignificante, embora consagrada
pela antigüidade e por nomes famosos. Não pode haver questão de primazia — nem no
espaço de tempo, tampouco em importância — entre conceitos e instituições políticos
básicos. Realmente, o fato de terem sempre um pólo na esfera conceitual de crenças,
metas, desejos e valores e outro na esfera pragmática dos fatos, instituições e
organizações constitui a verdadeira essência da ação e do pensamento políticos. Sem
esses dois não existe política. O pólo puramente conceitual pode representar uma boa
filosofia ou ética; o exclusivamente pragmático, um bom jornalismo ou uma boa
antropologia. Sozinhos, nenhum dos dois pode resultar numa boa política ou, sequer, em
alguma política.

Posição e função do indivíduo


A posição e função social do indivíduo são a equação do relacionamento entre um grupo
e um membro individual. Eles simbolizam a integração do indivíduo com o grupo e do
grupo com o indivíduo. Expressam o propósito individual em termos de sociedade e o
propósito social em termos do indivíduo. Assim, tornam compreensíveis a existência
individual do ponto de vista do grupo, e a existência do grupo do ponto de vista do
indivíduo.

Não há sociedade para o indivíduo a menos que ele desfrute de posição e função sociais.
A sociedade é significativa apenas se seus objetivos, suas metas, suas idéias e ideais

Página 18

fizerem sentido em termos dos objetivos, das metas, das idéias e ideais do indivíduo.
Deve existir um relacionamento funcional definido entre a vida do indivíduo e a do
grupo.

Para o indivíduo desprovido de função e posição sociais, a sociedade é irracional,


imensurável e amorfa, O indivíduo “sem raízes”, o pária — pois a ausência de posição e
função sociais isola o indivíduo do convívio social — não consegue vislumbrar a
sociedade. Ele vê apenas forças demoníacas, meio sensatas, meio sem sentido, meio
discerníveis e meio sombrias, mas nunca previsíveis. Essas forças decidem sua vida e
sua subsistência sem que ela possa interferir e, naturalmente, sem compreendêlas: é
como um homem vendado em um aposento estranho, participando de um jogo cujas
regras desconhece; e o que está em jogo é a própria felicidade, a própria subsistência e
até a própria vida.

O fato de o indivíduo precisar desfrutar de posição e função social é tão importante para
a sociedade quanto para ele. A menos que o objetivo, as metas, as ações e os motivos do
indivíduo estejam integrados ao objetivo, às metas, às ações e aos motivos da sociedade,
essa sociedade não pode compreendê-lo ou incluí-lo.

Dados os precedentes, é evidente que o tipo e forma de relacionamento funcional entre


sociedade e indivíduo em qualquer sociedade dependem da crença básica dessa
sociedade quanto à natureza e à realização do homem. A natureza do homem pode ser
vista como livre ou não, igual ou desigual, boa ou má, perfeita, aperfeiçoável ou
imperfeita. A realização pode visar este mundo ou o próximo; vida eterna ou a expiação
da alma individual pregada pelas religiões ocidentais; a paz ou a guerra; o sucesso
econômico ou uma grande família. A crença referente à natureza do homem determina o
objetivo da sociedade; a crença referente à sua realização, a esfera em que se busca a
execução do objetivo.

Qualquer uma dessas crenças básicas sobre a natureza e a realização do homem


conduzirá a uma sociedade e a relacionamentos básicos funcionais diversos entre
sociedade e indivíduo. Não vem ao caso discutirmos aqui qual dessas crenças é a
correta, qual é verdadeira ou falsa, boa ou má, cristã ou anticristã. A questão é que
qualquer uma dessas crenças pode servir de base para uma sociedade trabalhadora e
viável, isto é, uma sociedade na qual o indivíduo desfruta de posição e função sociais.
E, inversamente, qualquer sociedade, independentemente da natureza de suas crenças
básicas, pode ser eficiente somente se conferir ao indivíduo uma posição e função
sociais.

Poder legítimo

O poder legítimo origina-se da mesma crença básica da sociedade que diz respeito à
natureza e à realização do homem sobre a qual repousam a função e a posição sociais do
indivíduo. Na verdade, o poder legítimo pode ser definido como a soberania que
encontra sua justificativa no etos básico da sociedade. Em toda sociedade há vários
poderes que nada têm a ver com esse princípio básico, e instituições que não

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são, de modo algum, planejadas ou dedicadas a sua realização. Em outras palavras, há


sempre inúmeras instituições “não-livres” em uma sociedade livre, muitas
desigualdades em uma sociedade igualitária, e muitos pecadores entre os santos. Mas
enquanto esse poder social determinante chamado soberania for baseado na
reivindicação por liberdade, igualdade ou santidade, e for exercido por meio de
instituições que se destinam a satisfazer esses objetivos ideais, a sociedade poderá atuar
como sociedade livre, igualitária e pia, pois sua estrutura institucional estará
fundamentada em um poder legítimo.

Isso não significa que seja irrelevante o fato de poderes e instituições não-determinantes
da sociedade estarem em contradição com seus princípios básicos. Pelo contrário, os
problemas mais sérios na política originam-se nesses conflitos. E uma sociedade pode
muito bem sentir que uma instituição ou poder não-determinantes contrastam de
maneira tão flagrante com suas crenças básicas que põe em perigo a vida social, apesar
de seu caráter não-determinante. O melhor exemplo é o da Guerra Civil Americana
quando percebia-se que a escravidão no Sul punha em risco toda a estrutura de uma
sociedade livre. Antes da Guerra Civil, no entanto, a força decisiva dos EUA era,
indubitavelmente, um poder legítimo baseado no princípio de liberdade, e exercido
através de instituições organizadas e voltadas para a liberdade. Portanto, a sociedade
americana funcionava como uma sociedade livre. Naturalmente, foi somente por
funcionar dessa maneira que sentia a escravidão como uma ameaça.

Não se pode determinar quais são os poderes e as organizações institucionais


determinantes de qualquer sociedade por meio de uma análise estatística.

Nada pode ser mais inútil do que medir uma sociedade contando cabeças, e recebimento
de impostos ou comparando níveis de renda. Determinante é um termo político, e isso
significa que é puramente qualitativo. A aristocracia inglesa nunca constituiu mais do
que uma pequena fração da população; além disso, após a ascensão dos mercadores e
fabricantes ela possuía apenas uma parcela muito modesta da riqueza e renda nacionais.
Todavia, conservou o poder social decisivo até nossos tempos. Suas instituições eram
fundamentais na sociedade inglesa. Suas crenças formaram a base da vida social; seus
padrões, os padrões representativos; seu modo de vida, o padrão social. E seu ideal
pessoal, os cavalheiros, continuaram a ser o tipo ideal de toda a sociedade. Seu poder
não era apenas determinante, era legítimo.

Da mesma forma, leis e constituições raramente dizem, se é que o dizem, onde reside o
poder determinante. Em outras palavras, a soberania não é idêntica ao controle político.
A soberania é um controle social e político, integralmente uma categoria legitimada.
Entre 1874 e 1914, o Exército Prussiano era, por exemplo, raramente mencionado na
Constituição Imperial Alemã; no entanto, não há dúvidas de que detinha poder decisivo
e, provavelmente, legitimidade. O governo era realmente subordinado ao exército,
apesar do parlamento civil e normalmente antimilitarista.

Outro exemplo é o do “controle indireto” britânico em certas colônias africanas. Ali, o


poder socialmente determinante encontra-se nas tribos. Pelo menos teoricamente, o
governo do homem branco não exerce nenhum poder social; ele se restringe a

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simples questões policiais destinadas a apoiar e a manter a organização social das tribos
dentro da estrutura puramente normativa de “lei e ordem”. No entanto,
constitucionalmente, o governador e a assembléia administrativa detêm poder absoluto.

Finalmente, deve-se compreender que legitimidade é um conceito puramente funcional.


Não existe legitimidade absoluta. O poder só pode ser legítimo em relação à crença
social básica, O que constitui a “legitimidade” é uma questão que deve ser respondida
em termos de uma determinada sociedade e suas respectivas crenças políticas. Um
poder é legítimo quando é justificado por um princípio ético ou metafísico aceito pela
sociedade. Se esse princípio é bom ou ruim em termos éticos, verdadeiro ou falso em
termos metafísicos, isso em nada interfere com sua legitimidade, que é tão indiferente
ética ou metafisicamente quanto qualquer outro critério formal. O poder legítimo é o
poder socialmente funcional; mas por quê é funcional e a que objetivo atende são
questões inteiramente externas e anteriores à legitimidade.

O poder ilegítimo não deriva de crenças básicas da sociedade. Conseqüentemente, não é


possível decidir se a pessoa que exerce o poder o faz em concordância com o propósito
do poder; pois não existe propósito social. O poder ilegítimo não pode ser controlado;
sua natureza é incontrolável. Ele não pode se tornar responsável, pois não há critério de
responsabilidade, não há autoridade definitiva, socialmente aceita, que a justifique. E o
que não pode ser justificado não pode ser responsável.

Pelo mesmo motivo, ele não pode ser limitado. Limitar o exercício do poder é fixar
linhas além das quais o poder deixa de ser legítimo, isto é, deixa de realizar o objetivo
social básico. E se, para começar, o poder não é legítimo, não há limites além dos quais
ele deixa de ser legítimo.

Ninguém que detenha o poder de forma ilegítima pode exercê-lo de forma satisfatória e
sensata. O poder ilegítimo corrompe invariavelmente; pois ele pode ser apenas “força”,
jamais autoridade. Ele não pode ser um poder controlado, limitado, responsável ou
racionalmente determinável. É um axioma da política — desde que, Tácito em sua
história sobre os imperadores romanos nos mostrou inúmeros casos e que nenhum ser
humano, por melhor, mais sensato ou criterioso que seja, pode controlar o poder
incontrolado, irresponsável, ilimitado ou racionalmente não-determinado sem se tornar
prontamente arbitrário, cruel, desumano e caprichoso — em outras palavras, um tirano.

Nem relativismo, nem absolutismo

O que provamos até agora? RESPOSTA.Que a sociedade não pode ser funcional a
menos que confira posição e função sociais ao indivíduo, e a menos que seu poder
socialmente determinante seja legítimo. A isso podemos chamar de “pura teoria da
sociedade” e, como em todas as “teorias puras”, é exclusivamente formal. Ela nada diz
sobre o conteúdo de uma sociedade, sobre liberdade, religião, igualdade, justiça, direitos
individuais, progresso, paz e todos os outros valores da vida social. E pensar, como
pensam atualmente muitos engenheiros de eficiência social, que ser funcional é tudo
que importa na vida social, é compreender de modo totalmente equivocado os limites e
a importância da simples eficiência. A eficiência funcional em si nada representa, a
menos que tenhamos a resposta à pergunta: eficiência a que preço e para que objetivo?

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RESPOSTA - Não concordo com os relativistas para os quais toda sociedade se


apresenta igualmente boa, desde que seja funcional, mas oponho-me da mesma forma
aos extremistas, do outro lado, que se afastam de todas as questões referentes a função e
eficiência, e que se recusam a considerar qualquer coisa além das crenças e idéias
básicas. Parece-me que esse grupo não só — podemos chamá-lo de absolutista —
recusa-se a ver que os valores básicos só podem ser eficazes numa sociedade funcional,
e também se recusa a ver que à sociedade funcional resta somente outra alternativa:
dissolução em massas anárquicas.

Talvez a falácia maior de nossa era seja o mito das massas que glorifica a multidão
amorfa, desintegrada e sem sociedade. Na verdade, as massas são produto da
decomposição social e perturbam a ordem social.

O perigo não reside numa “revolta das massas”, como pensava Ortega y Gasset. A
revolta ainda é, afinal, uma forma de participação na vida social, mesmo que apenas sob
forma de protesto. As massas são completamente incapazes de qualquer participação
social ativa que pressuponha valores sociais e uma organização da sociedade. O perigo
das massas reside precisamente em sua incapacidade de participar, em sua apatia,
indiferença cínica e completo desespero. Como não dispõem de posição e função
sociais, sociedade para elas nada é além de uma ameaça demoníaca, irracional e
incompreensível. Como não têm crenças básicas que poderiam servir de base a um
poder legítimo, qualquer autoridade legítima lhes parece tirânica e arbitrária. As massas,
portanto, estão sempre dispostas a seguir um apelo irracional ou a submeter-se a um
tirano arbitrário, bastando que este prometa uma mudança. Como párias da sociedade,
as massas nada têm a perder — nem mesmo seus grilhões. Sendo amorfas, não possuem
estrutura própria que possa resistir a uma tentativa tirânica arbitrária de moldá-las.

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2 — O fim do Homem Econômico e a busca de uma sociedade não-econômica.

(O fracasso do capitalismo burguês e do marxismo)

O fascismo é resultado do colapso da ordem espiritual e social européia. O i’iltimo e


decisivo passo que levou a esse colapso foi a desintegração da crença no socialismo
marxista, que se mostrou incapaz de superar o capitalismo e de estabelecer uma nova
ordem social. O fracasso do marxismo não reside na esfera econômica. O argumento de
que nunca foi posto em prática em nenhum lugar sob “condições econômicas
adequadas” simplesmente nada tem a ver com o verdadeiro problema.
O desespero das massas

O marxismo se arvora e fracassa na promessa de superar a desigualdade social e a falta


de liberdade do capitalismo e de proporcionar a liberdade e a igualdade numa sociedade
sem classes. E deixou de ser um credo por ter mostrado que não pode criar uma
sociedade sem classes, mas conduz necessariamente a um padrão de classes ainda mais
rígido e sem liberdade.

Uma hierarquia sem Deus

Um dos principais dogmas socialistas sem o qual é impossível acreditar na ordem do


marxismo atesta que o capitalismo em sua tendência em direção a unidades de produção
cada vez maiores precisa desenvolver necessariamente uma estrutura social na qual
todos são iguais como proletários exceto uns poucos expropriadores. A expropriação
desses poucos daria então início a uma sociedade sem classes. Em outras palavras,
enquanto a unidade de produção se torna necessariamente maior, o número de desiguais
privilegiados se torna necessariamente menor, e finalmente, a conversão de toda a

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máquina de produção em uma unidade, de propriedade da comunidade e operada pela


comunidade de trabalhadores e para essa comunidade, será inevitável e eliminará toda a
desigualdade e privilégios. Na realidade, porém, o número de desiguais privilegiados
aumenta em proporção quase geométrica em relação ao tamanho da unidade de
produção. Economicamente, esse sistema poderia gerar milagres de eficiência e
produtividade mas, longe de ser uma sociedade sem classes, constituiria uma sociedade
com um padrão mais rígido e complexo de classes naturalmente antagônicas. Em vez de
estabelecer a verdadeira liberdade, o estado socialista produziria uma sociedade
genuinamente feudal, embora o servo fosse proclamado o beneficiário. No apogeu do
feudalismo no século XII e início do século XIII, a pirâmide social era organizada
racionalmente com base na doutrina sobre a qual a sociedade era construída. Mas a
estratificação social no estado socialista não pode ser justificada, e não pode nem ao
menos ser explicada. Ela é tão sem sentido quanto uma hierarquia sem Deus. Que tal
sociedade seja a conseqüência inevitável da realização do socialismo invalidou,
portanto, a crença baseada na doutrina marxista como sendo a precursora da futura
ordem social.

O fracasso da revolução socialista nos países pré-capitalistas — os únicos onde ainda


ela é viável e ainda pode atrair as massas — foi admitido pelos próprios russos quando
“adiaram indefinidamente” o dia em que seria criado o verdadeiro estado socialista de
liberdade. Isso significa — traduzido do marxismo para termos comuns — que nunca
chegará o dia em que a minoria que se apoderou do poder em nome do proletariado
transferirá esse poder às massas proletárias. Não se pode mais justificar a ditadura como
sendo a ditadura do proletariado sobre os inimigos burgueses, e a completa destruição
dos burgueses. Portanto, é óbvio que se trata de uma ditadura sobre um proletariado
desigual e sem liberdade em si. Essas questões ocupam um espaço injustificado em
nossas discussões intelectuais contemporâneas. Na realidade, elas não exercem
nenhuma influência nos avanços dos países industrializados da Europa central e
ocidental e ainda menos nos EUA. Na Europa industrializada, a crença no socialismo
como doutrina e futuro regime deixou de existir muito antes de ter sido colocada à
prova na Rússia. O processo de desintegração foi lento e gradual. Se quisermos supor
uma data específica em que esse processo teria se completado, seria o dia do início da
Segunda Guerra Mundial. Nesse dia, provou-se que a solidariedade de interesses e de
crenças entre o movimento trabalhista e a sociedade capitalista de todos os países é mais
forte do que a solidariedade internacional da classe operária. Desse dia em diante, a luta
de classes, embora não menos real e inevitável, tornou-se sem sentido e destrutiva, O
socialismo havia retirado sua reivindicação de estabelecer a sociedade sem classes e de
se tornar a nova ordem. E nesse dia Mussolini deixou de ser marxista.

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O aspecto ameaçador da liberdade econômica

O fim do capitalismo parece ser um lugar-comum, e o é certamente no que concerne à


Europa. Entretanto, os argumentos geralmente usados para sustentar essa afirmativa —
a saber, que o capitalismo fracassou como sistema econômico — não apenas revelam
profunda ignorância sobre a natureza desse sistema, mas provavelmente estão
incorretos. Como um sistema econômico que produz quantidades de bens sempre
crescentes a preços sempre decrescentes e com horas de trabalho regular- mente
menores, o capitalismo não apenas não fracassou, mas foi mais bem-sucedido do que
jamais se supôs. Não há razão econômica para que seus maiores êxitos não estejam à
frente da industrialização dos países coloniais e da agricultura.

O capitalismo como ordem social e como doutrina é a expressão da crença no progresso


econômico como caminho para a liberdade e igualdade do indivíduo numa sociedade
livre e igualitária. O marxismo supÕe que essa sociedade resulte da abolição do lucro
privado, O capitalismo supõe que a sociedade igualitária e livre resulte da entronização
do lucro privado como diretriz principal do comportamento social. Naturalmente, o
capitalismo não inventou “a motivação do lucro”; mostrar que o desejo por lucros
sempre foi uma forte motivação para a ação individual também não é prova suficiente
para a alegação marxista de que todas as sociedades passadas eram fundamentalmente
capitalistas. O lucro sempre foi e será uma das principais forças motivadoras do
indivíduo — independentemente da ordem social na qual ele vive. Mas a doutrina
capitalista foi a primeira e única que valorizou o motivo do lucro positivamente como
meio pelo qual a sociedade ideal livre e igualitária seria concretizada automaticamente.
Todas as doutrinas anteriores consideraram a motivação do lucro privado socialmente
destrutivo ou, pelo menos, neutro.

O capitalismo, portanto, deve dotar a esfera econômica de independência e autonomia, o


que significa que as atividades econômicas não devem se sujeitar a considerações não-
econômicas, mas precisam ocupar um lugar de destaque. Todas as energias sociais
devem estar concentradas na promoção de fins econômicos, porque o progresso
econômico encerra a promessa do milênio social. Isto é capitalismo e sem esse fim
social ele não tem sentido ou justificativa, tampouco possibilidade de existência.
Do alto do bem-estar econômico que atingimos como resultado de 150 a 200 anos de
progresso capitalista, podemos nos sentir inclinados, à primeira vista, a ridicularizar a
afirmativa de que a liberdade econômica a que devemos todas essas realizações pode
não ser nada mais do que um bem, um produto. No entanto, essa não era a impressão
que tinham nem mesmo os que mais sofriam com a antiga ordem précapitalista, os
desditosos artesãos e servos famintos. Para eles, a liberdade econômica encerrava
apenas horrores, exigindo que desistissem de sua segurança; mesmo sendo segurança
desprezível e inexpressiva, que mal supria suas necessidades, era tudo o que tinham e,
economicamente, nada lhes prometia além de insegurança. Essa liberdade privava-as de
seus pequenos pedaços de terra recebidos por herança, da proteção tarifária de seus
mercados, dos preços mínimos estabelecidos pelas guildas e corporações, e os fazia
depender de suas habilidades e inteligência. Eles aceitaram essa liberdade apenas
porque encerrava a promessa de uma igualdade social e econômica básica.

Todos sabemos que essa promessa era ilusória, O progresso econômico não traz
igualdade, nem mesmo a igualdade formal da “oportunidade igual”. Em vez disso, ele
produz as novas desigualdades de classes e classes extremamente rígidas. E tão difícil
para o proletariado — pelo menos na Europa — ascender à pequena burguesia quanto é
para a pequena burguesia chegar à classe dos empresários. Se as classes da moderna
sociedade industrial não são hereditárias por lei, na prática o são. Provavelmente, era
mais fácil chegar ao topo na sociedade dos séculos XVII e XVIII, uma vez dado o
primeiro passo para ascender da camada inferior da massa amorfa, do que é para a
sociedade européia do século XX ascender da classe em que nasceu para uma classe
mais alta.

O fracasso em estabelecer a igualdade por meio da liberdade econômica, apesar das


recompensas materiais, minou a fé no capitalismo como sistema social não apenas entre
o proletariado, mas entre as classes médias que mais se beneficiaram econômica e
socialmente.

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O fim do Homem Econômico

O capitalismo provou ser um falso deus por conduzir inevitavelmente a uma luta de
classes, classes essas rigidamente definidas. O socialismo provou ser ilusório pois
tornou evidente que não pode abolir essas classes. A sociedade de classes da realidade

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capitalista é incompatível com a ideologia capitalista a qual, conseqüentemente, deixa
de fazer sentido. A luta de classes marxista, por outro lado, embora reconheça e
explique a verdadeira realidade, deixa de ter qualquer significado porque não leva a
nenhum lugar. Ambas as doutrinas e ordens sociais fracassaram porque o conceito de
que o exercício da liberdade econômica pelo indivíduo gera conseqüências automáticas
era ilusório.

Esse fracasso exerce repercussões muito diretas sobre a esfera econômica e torna sem
sentido ou, pelo menos, duvidosas, todas as instituições da vida política. Mas um efeito
mais profundo atinge o conceito fundamental sobre o qual toda a sociedade se baseia: o
conceito que o homem tem de sua própria natureza, de sua função e de seu lugar na
sociedade. A prova de que a liberdade econômica do indivíduo não conduz automática
ou dialeticamente à igualdade destruiu o conceito da natureza do homem no qual tanto o
capitalismo quanto o socialismo se baseavam: o Homem Econômico.

Toda sociedade organizada é baseada no conceito da natureza do homem e de sua


função e seu lugar na sociedade. Qualquer que seja a verdadeira imagem da natureza
humana, esse conceito sempre proporciona uma imagem verdadeira da natureza da
sociedade que se reconhece nele e se identifica com ela. Ele simboliza os dogmas e
crenças fundamentais da sociedade mostrando a esfera de atividade humana que
considera socialmente decisiva e suprema. O conceito do homem como “animal
econômico” é o verdadeiro símbolo das sociedades do capitalismo burguês e do
socialismo marxista, que vêem no livre exercício da atividade econômica do homem os
meios para realizar seus objetivos. As satisfações econômicas por si só parecem
socialmente importantes e significativas. As posições, os privilégios e os direitos
econômicos são aqueles pelos quais o homem trabalha. Por eles o homem trava guerras,
e por eles está preparado para morrer. Todos os outros parecem mera hipocrisia,
esnobismo ou absurdo romântico.

Esse conceito do homem econômico foi primeiramente expresso em literatura no homo


wconomicus de Adam Smith e sua escola. Ele mostrava seu caráter imaginário repleto
de astúcia e completamente inescrupuloso, que não apenas quis sempre agir de acordo
com seus melhores interesses econômicos, mas também sempre soube como atendê-los.
A emergência do conceito do homem econômico como base da sociedade ocorreu com
o surgimento da economia como ciência. Assim que esse conceito foi aceito como
representando a verdadeira natureza do homem, o desenvolvimento da ciência da
economia não só se tornou possível mas imperativo e essencial.

À primeira vista pode parecer que a ciência econômica nunca foi mais importante do
que agora e que, conseqüentemente, o mesmo estaria acontecendo com a crença na
sociedade do homem econômico. Uma nação após outra vem confiando a administração
de seus negócios ao economista habilitado. Ele é procurado para ocupar posições de
executivo e de líder político, como conferencista e comentarista de rádio. Mas essa
aparência superficial é enganosa. Supervalorizamos o economista num último esforço
desesperado para salvar a sociedade do homem econômico, como no século XVIII foi
supervalorizado o filósofo — o racionalista, “iluminado”, o sábio historicamente
treinado — e os colocamos em tronos instáveis. E falharam igualmente, o filósofo-rei
no século XVIII e o economista primeiro-ministro do século XX.

O colapso da sociedade do homem econômico foi inevitável assim que o marxismo se


mostrou incapaz de concretizar uma sociedade livre e igualitária. Além do marxismo,
não há possibilidade de conciliar a supremacia da esfera econômica com a crença em
liberdade e em igualdade como verdadeiros objetivos da sociedade. E a única
justificativa, a única base para o homem econômico ou para qualquer sociedade nele
baseada, é a promessa de se produzir liberdade e igualdade.

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Com o cristianismo, a liberdade e a igualdade tornaram-se dois conceitos básicos na


Europa; eles são a própria Europa. Durante dois mil anos todas as ordens e doutrinas
européias originaram-se da ordem cristã e tinham a liberdade e a igualdade como meta e
a promessa de, ao final, alcançar a liberdade e a igualdade para justificálas. A história
européia é a história da projeção desses conceitos na realidade da existência social.
A busca da realização da liberdade e igualdade ocorreu primeiramente na esfera
espiritual. A doutrina de que todos os homens são iguais e livres para decidir seu destino
no outro mundo por meio de suas ações e pensamentos neste, que, conseqüentemente,
seria meramente uma preparação para a verdadeira vida, pode ter sido apenas uma
tentativa de controlar as massas, como mostram o século XVIII e os marxistas. Mas
para as pessoas do século XI ou XIII a promessa era real, O fato de todas as cenas do
Juízo Final na porta das igrejas mostrarem papas, bispos e reis condenados à danação
eterna não representava apenas fantasias românticas de algum escultor rebelde. Tratava-
se da expressão real e verdadeira daquele período de nossa história que planejava
liberdade e igualdade na esfera espiritual. Ela via e concebia o homem como o Homem
Espiritual, e seu lugar no mundo e na sociedade como um lugar em uma ordem
espiritual. E tornava a teologia uma “ciência exata”.

Quando essa ordem ruiu, a liberdade e a igualdade passaram a ser projetadas numa
esfera intelectual. A doutrina luterana, que fez o homem decidir seu destino usando o
intelecto livre e igualitário na interpretação das Escrituras, é a metamorfose suprema —
embora não a única, tampouco a última — da ordem do Homem Intelectual. Após seu
colapso, a liberdade e a igualdade passaram a ser numa esfera social: o homem tornou-
se primeiro o Homem Político e depois o Homem Econômico. A liberdade e a igualdade
tornaram-se a liberdade e a igualdade sociais e econômicas. A natureza do homem
tornou-se o exercício de seu lugar na ordem social e econômica na qual sua existência
encontrou explicação e razão.

Como o capitalismo burguês, o marxismo vê o objetivo final da sociedade no


estabelecimento da verdadeira liberdade. A oposição à sociedade capitalista origina- se
dessa ênfase na liberdade. Mas a fim de provar que o homem será livre no estado
socialista, Marx teve de negar não só que ele é realmente livre no capitalismo, mas até
que possui a faculdade de ser livre. A promessa do socialismo reside no “automatismo”
das leis econômicas que privam o indivíduo de seu livre-arbítrio e o sujeitam a sua
situação de classe, isto é, à falta de liberdade. Trata-se de uma teologia tão audaciosa e
corajosa quanto a antinomínia entre a verdadeira liberdade e a predestinação absoluta do
calvinismo, com o qual o marxismo tem uma extraordinária semelhança intelectual e
ideológica, e em sua função histórica.

O marxismo deve sua tremenda força religiosa à subordinação à liberdade. Essa força
conferiu à doutrina sua inevitabilidade, sua certeza do sucesso final e sua fascinante
finalidade intelectual. Sem ela, a necessidade de acreditar que a sociedade sem classes
chegaria, porque a sociedade sempre fora uma sociedade de luta de classes, ou que a
maior desigualdade traria a verdadeira igualdade, teria parecido absurda — e não apenas
numa era “racional”. Mas o marxismo deve a ela também sua natureza dogmática e
inflexível. Sua força intelectual é tão rigorosa que todo o edifício ameaça ruir se uma
pedra for tocada. Nada pode ser mudado no marxismo sem que se abandone a meta de
liberdade ou a promessa de sua obtenção. Isso explica a extrema vulnerabilidade da
crença no marxismo e a rapidez com que ele se desintegrou, tão logo questionou-se se a
sociedade socialista livre e igualitária seria uma meta atingível.
Em 1848, na Europa, o capitalismo como meio de se obter a liberdade e a igualdade
mostrou-se ilusório; no entanto, até ontem uma minoria bastante significativa ainda
acreditava nele. O socialismo, por outro lado, não alcançou a posição de doutrina

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representativa até o final do século XIX. Menos de vinte e cinco anos separam a
primeira grande vitória eleitoral dos trabalhadores alemães de sua derrota em 1932
quando, com o apoio de metade da população, sofreram sem protestar a expulsão física
de seu governo legalmente eleito pelo governo pré-Hitler de von Papen, completamente
impotente, que não recebeu apoio do exército, da polícia ou de qualquer outro grupo. E
menos de doze meses depois eles aceitaram com resignação a destruição de todas as
conquistas realizadas em décadas de duras lutas. Com o colapso da doutrina marxista,
qualquer sociedade baseada na soberania e autonomia da esfera econômica torna-se
inválida e irracional, porque a liberdade e a igualdade não podem ser conseguidas nela e
por meio dela. Mas enquanto os antigos sistemas capitalista e socialista se
desintegravam sem chances de recuperação e futuro desenvolvimento, não surgiu
nenhum sistema novo. Como vimos anteriormente, é um aspecto característico de
nossos tempos que nenhum novo conceito da natureza do homem tenha sido elaborado
para tomar o lugar do Homem Econômico. Nenhuma esfera da atividade humana
propõe a liberdade e a igualdade. Embora a Europa se torne, portanto, incapaz de
explicar e justificar suas antigas ordens sociais com e a partir de seus velhos conceitos,
ela ainda não adquiriu ou desenvolveu um novo conceito que possa originar novos
valores sociais válidos, uma nova razão para uma nova ordem e uma explicação para o
lugar do homem.

Com o colapso do homem econômico, o indivíduo é privado de sua ordem social, e seu
mundo, da existência racional. Ele não pode mais explicar ou compreender sua
existência como racionalmente correlacionada e coordenada ao mundo em que vive;
tampouco pode coordenar o mundo e a realidade social à sua existência, O papel do
indivíduo na sociedade se tornou totalmente irracional e sem sentido. O homem está
isolado dentro de uma tremenda máquina, cujo objetivo e significado ele não aceita e
não pode traduzir em termos de sua experiência. A sociedade deixa de ser uma
comunidade de indivíduos unidos por um objetivo comum e se torna um tumulto
caótico de mônadas isoladas e sem objetivo.

A volta dos demônios

O colapso da crença nas doutrinas capitalista e socialista foi traduzido em termos de


experiência individual pela Guerra Mundial e a grande crise econômica. Essas
catástrofes invadiram a rotina diária que faz os homens aceitarem as formas, instituições
e dogmas existentes como leis naturais inalteráveis. Elas expuseram repentinamente o
vácuo existente por trás da fachada social. As massas européias perceberam pela
primeira vez que a existência nessa sociedade é dominada não por forças racionais e
equilibradas, mas sim cegas, irracionais e demoníacas.

Em termos de experiência humana, a guerra mostrou repentinamente o indivíduo como


um átomo isolado, indefeso e impotente num mundo de monstros irracionais. O
conceito de sociedade em que o homem é um membro livre e igual e na qual seu destino
depende principalmente dos próprios méritos e esforços provou ser uma ilusão. A
grande crise econômica mostrou que forças irracionais e imensuráveis também regem a
sociedade dos tempos de paz: a súbita ameaça de desemprego permanente, de ser
descartado no momento de ingressar no mercado de trabalho ou mesmo antes de
começar a trabalhar. Contra essas forças, o indivíduo se vê indefeso, isolado e
pulverizado como se lutasse contra máquinas de guerra. Ele não pode prever quando o
desemprego surgirá e porquê; ele não pode combatê-lo, nem mesmo fugir dele.
Nós procuramos uma fórmula, uma palavrinha secreta, um simples mecanismo que, de
repente, transforme o caos em ordem. Esse esforço gerou uma fé na existência de
atalhos, que são simplesmente mágicos, para a Utopia, e que faz com que a credulidade

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tola e ingênua nos milagres do passado, pareça raciocínio perspicaz e crítico.
Estamos convencidos hoje de que todos os alquimistas que alegaram ter encontrado a
pedra filosofal eram charlatães, e de que todos os príncipes, filósofos e eruditos
enganados eram somente campônios iletrados. Da mesma forma, um tempo futuro
provavelmente julgará que as pessoas deviam ser tolas ou tratantes por acreditar
firmemente hoje que todos os nossos males poderiam se curar, bastando encontrar a
cada dia a fórmula para o preço certo do ouro ou aumentar a velocidade da circulação de
dinheiro. Semelhante espera por um milagre inspira as teorias de que se pode criar ou
aumentar a riqueza destruindo-se bens ou reduzindo a produção, ou distribuindo a
riqueza existente de outra maneira. No entanto, todas essas sugestões e crenças são
sérias e sinceras, e se originam de uma tentativa pateticamente racional de encontrar a
alavanca pela qual a máquina tornada irracional e caótica pode ser novamente obrigada
a servir aos propósitos para as quais foi projetada.

O homem de finanças acredita em liberdade e independência. Conseqüentemente, ele


tenta expulsar os demônios que destroem a sociedade livre e racional com ritos de
magia. A predominância de tais panacéias nos EUA é uma indicação significativa de que
a crença e a confiança na liberdade e na independência são maiores e mais sinceras do
que em qualquer outro lugar. O fato de que nada resta além do milagre não é uma
reflexão sobre o excêntrico sincero ou sobre as massas que o seguem em sua busca por
uma saída para o impasse.

A contradição inerente à tentativa de manter a sociedade suprimindo a conseqüência


inevitável, tal como ocorre com a depressão que se segue ao progresso econômico, vem
se tornando evidente em toda a Europa. Com a queda do experimento da “frente
popular” na França, essa evidência generalizou-se. Desde então, as massas estão
consciente ou inconscientemente inteiradas de que precisam escolher entre renunciar à
sociedade tradicional ou renunciar à tentativa de expulsar os demônios.

A opinião de que os demônios econômicos devem ser banidos, mesmo que se tenha de
desistir de tudo o mais, tem triunfado no campo da economia. As massas não podem
resistir a um mundo governado por forças demoníacas. Em toda a Europa, as crenças e
dogmas da sociedade do homem econômico foram julgadas considerando-se apenas se
ameaçam incitar os demônios ou prometem afastá-los ou expulsá-los. A tendência de
subordinar todos os fatos a essa nova e importantíssima meta reverteu nossa posição
quanto a considerarmos o progresso econômico desejável.

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O valor decrescente da democracia

A partir dessa rejeição ao progresso econômico em áreas restritas, nos últimos anos
avançamos para a rejeição total do progresso. Nem mesmo os discursos louvam o deus
do progresso. Em seu lugar, a segurança — segurança em relação às crenças
econômicas, ao desemprego, ao progresso — tornou-se a meta universal suprema. Se o
progresso impede a segurança, então o progresso deve ser repudiado. E, no caso de
ocorrer uma nova crise, nenhum país europeu hesitará em introduzir medidas que,
embora impeçam o progresso e representem retrocesso econômico e empobrecimento
duradouro, possam talvez expulsar os demônios ou, pelo menos, mitigar sua investida
violenta. Em relação à democracia, tem-se instalado a mesma subordinação às antigas
crenças e instituições. Os antigos objetivos e conquistas da democracia: proteção das
minorias dissidentes, esclarecimento de questões por meio da livre discussão, solução
conciliatória entre iguais não ajudam na nova tarefa de expulsar os demônios.
Conseqüentemente, as instituições projetadas para concretizar esses objetivos tornaram-
se inexpressivas e irreais. Elas já não são boas, elas não são más; elas apenas são
totalmente insignificantes e ininteligíveis para o homem comum. Este é incapaz de
compreender que a cidadania e o direito ao voto para as mulheres foram questões
políticas de primeira ordem há apenas vinte anos. Os otimistas podem enganar a si
mesmos acreditando que essa apatia deve-se a simples “erros técnicos”. A representação
proporcional é anunciada como uma panacéia na Inglaterra, assim como sua extinção
foi pregada na Alemanha pré-Hitler. Mas a essência da democracia enfraquecida não
pode ser salva por uma fórmula mecânica. A democracia ainda pode exercer uma forte
atração sentimental enquanto estiver profundamente enraizada e presente na consciência
histórica e na tradição do povo como algo pelo qual ele lutou e sofreu. Mas essa atração
cai por terra assim que ela é confrontada com uma realidade que exij a como preço a ser
pago pela expulsão dos demônios o abandono da democracia.
Finalmente, o próprio conceito de liberdade foi rebaixado e desvalorizado. Foi provado
que a liberdade econômica não leva à igualdade. Agir para obter maior vantagem
econômica — a essência da liberdade econômica — perdeu o valor social que lhe era
atribuído. Independentemente do fato de ter passado a fazer parte da verdadeira natureza
do homem colocar seus interesses econômicos em primeiro lugar, as massas deixaram
de considerar o comportamento econômico como socialmente benéfico em si, visto que
é incapaz de gerar igualdade. Portanto, restringir ou abandonar a liberdade econômica é
uma atitude aceita ou mesmo bem-vinda se, dessa forma, a ameaça de desemprego, o
perigo de uma crise econômica ou os riscos de sacrifícios econômicos puderem ser
menos iminentes.

As massas, então, prepararam-se para abandonar a liberdade diante da promessa de


restabelecer a racionalidade do mundo. Se a liberdade for incompatível com a
igualdade, elas desistirão de liberdade. Se ela for incompatível com a segurança, elas
optarão por esta última. Ser livre ou não tornou-se uma questão secundária, visto que a
liberdade que pode ser conquistada não ajuda a expulsar os demônios. Visto que a
sociedade “livre” é a que se vê ameaçada pelos demônios, parece mais que plausível
responsabilizar a liberdade e esperar livrar-se do desespero abandonando a liberdade.
Em última análise, em toda a história da Europa a liberdade sempre foi um direito do
indivíduo. A liberdade política e econômica, de escolher entre o bem e o mal, de
consciência, de culto religioso — nenhuma tem significado exceto como liberdade do
indivíduo em oposição à maioria e à sociedade organizada.

A nova liberdade pregada na Europa é, entretanto, o direito da maioria em oposição ao


indivíduo e foi internacionalmente aceita no acordo de Munique que entregou à
Alemanha todos os territórios com uma escassa maioria alemã. A minoria checa nesses
distritos, mesmo tendo somado 49,9% da população, foi privada de todos os direitos e
de toda a liberdade. Mas o direito ilimitado da maioria não é liberdade: é licenciosidade.

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Fascismo
Podemos encontrar a mesma peculiaridade na forma pela qual a Europa esvazia a
substância de outros objetos de reverência dos sistemas capitalista e socialista. A
economia de livre empresa, o reconhecimento da motivação de lucro como uma força
socialmente construtiva e a autonomia do progresso devem ser deixados de lado quando
as massas ficam convencidas de que elas evocam as formas demonfacas da crise. No
entanto, a fachada da administração, das finanças, dos preços, dos cálculos, da
contabilidade, da produção e da distribuição da indústria manufatureira deve ser
mantida. Isso é chamado de “verdadeiro capitalismo” ou “verdadeiro socialismo”. No
campo político, a liberdade política individual, os direitos dos grupos socialmente mais
fracos — isto é, das minorias — a crença na sabedoria da “volontégénérale”, na
soberania do povo e nos princípios da representação popular — perderam sua validade e
estão sendo abandonados. No entanto, a forma aparente da democracia formal — a

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ficção do mandato popular, manifestação da opinião popular e da vontade popular


através do voto, a igualdade formal de todo eleitor — foram mantidos. Hitler e
Mussolini proclamam que concretizaram a única “verdadeira democracia”, visto que
seus governos expressam os desejos de 99% do povo. No entanto, ao transformar o voto
contra eles em crime, ambos desistiram abertamente da falsa alegação de que qualquer
pessoa é livre para votar. De qualquer maneira, ambos proclamam que governam não
por mandato popular, mas sim divino.

Essa é a característica mais importante e inédita de nossa época. A simples fachada de


lemas e formas é mantida como uma concha vazia e toda a estrutura deve ser
abandonada. Quanto mais intolerável se torna a reálidade do sistema industrializado
para as massas, mais necessário ele se torna a fim de conservar suas formas externas.
Nesta contradição reside a verdadeira causa do fascismo. Ele deriva da experiência
básica da época em que vivemos: a ausência de uma nova doutrina e de uma nova
ordem social. A antiga ordem deixou de ter validade e realidade e, conseqüentemente,
seu mundo tornou-se irreal e demoníaco. Mas não surgiu nenhum nova ordem que
pudesse fundamentar uma nova crença, e a partir da qual pudéssemos desenvolver
novas formas e novas instituições para organizar a realidade social de modo a atingir um
novo objetivo supremo. Não podemos conservar a realidade de nossa antiga ordem,
visto que ela produz um caos espiritual que as massas não podem suportar. Porém,
tampouco podemos abandonar as antigas formas e instituições, pois isso causaria o caos
social e econômico, que é igualmente intolerável. Encontrar uma saída que nos a
ofereça uma nova realidade, que carregue uma nova racionalidade e que possibilite ao
mesmo tempo a manutenção das antigas formas externas é uma necessidade das massas
desnorteadas. E é essa a tarefa que o fascismo se dispõe a realizar. A própria natureza
dessa tarefa explica a ênfase atribuída à “legalidade” e à “continuidade legal” que vem
desconcertando tantos observadores e que foi responsável pela dificuldade em se
reconhecer o caráter revolucionário do movimento. Como mostra a história, uma
revolução triunfa ao derrubar antigas fachadas e produzir novas formas, novas
instituições e novos lemas. Mas — como observadores sagazes notaram enquanto a
revolução ainda estava em andamento — a realidade social muda apenas lentamente e,
muitas vezes, simplesmente não muda. No fascismo, a realidade da antiga ordem social
foi impiedosamente destruída, mas a antiga forma, mais superficial, foi cuidadosamente
preservada.

Nenhuma revolução anterior teria mantido Hindenburg como presidente da República


Alemã enquanto abolia a república da qual ele era presidente. Essa perversão de todas
as normas históricas é inevitável no fascismo, que tem de manter as formas, mas destrói
o conteúdo. Que o fascismo se oponha e elimine toda a liberdade é igualmente uma
necessidade que faz parte de suas atribuições. Visto que resulta da ausência de uma nova
esfera da atividade humana na qual a liberdade pudesse ser projetada, a nova realidade
que ele tenta oferecer à sociedade deve, necessariamente, ser uma realidade sem
liberdade em uma sociedade também desprovida de liberdade. Por igual necessidade,
toda a liberdade deve ser hostilizada para a busca da nova meta sem liberdade, cuja
obtenção depende de compulsão e submissão totais. Assim sendo, o fascismo por sua
natureza deve negar todos os dogmas, conceitos e objetos de reverência da Europa,
porque todos eles foram baseados no conceito da liberdade. Sua própria doutrina deve
se tornar cada vez mais negativa à medida que se torna mais difícil salvar as formas, os
lemas e os ornamentos da fachadà vazia do passado da Europa. As massas aderiram ao
fascismo e ao nazismo e se renderam a Mussolini e a
Hitier precisamente porque esses regimes contrariavam a razão e rejeitavam tudo o que
pertencia ao passado, sem exceção. O feiticeiro é tido como tal porque trabalha com o
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sobrenatural de uma forma sobrenatural que desconhece toda a tradição racional e


contrária a todas as leis da lógica. E é de um feiticeiro capaz de operar milagres que as
massas na Europa precisam e exigem para exorcizar seu mundo assombrado novamente
pelos demônios.

As formas de democracia

Para responder à questão sobre o que teria causado o colapso da democracia na Itália e
na Alemanha precisamos descobrir características sociais e políticas comuns a esses
dois países que não são partilhadas pelo resto da Europa. Existe apenas uma, e ela pode
ser descrita de várias maneiras. Pode-se dizer que nesses dois países a ordem burguesa
foi estabelecida de cima para baixo e não por meio de uma revolução das camadas
inferiores. Ou pode-se dizer que, embora a Itália e a Alemanha dispusessem de
instituições democráticas e uma burguesia e um proletariado numericamente fortes,
essas classes nunca obtiveram o controle ativo do governo; o “professor político” na
Alemanha e o “advogado político” na Itália tiveram um desempenho social
insignificante, mesmo quando admitidos a cargos governamentais. Ou, finalmente,
pode- se dizer que a Itália, a Alemanha e as regiões ocidentais da antiga monarquia
austrohúngara limitaram o ocidente à democracia européia — um tipo de fronteira
militar em que o domínio da democracia nunca esteve completamente seguro. Todas
essas formulações têm um único significado: o grande acontecimento importante do
século XIX na Itália e na Alemanha que teve forte apelo junto às massas, emocional e
sentimentalmente, não foi a vitória da ordem burguesa, mas a unificação nacional. Os
movimentos revolucionários eram antes de mais nada nacionais e, em segundo lugar,
democráticos. Travaram-se guerras e corria sangue em nome da unidade nacional. A
ordem burguesa foi aceita primeiramente como um meio de alcançar a unificação
nacional. Os dogmas e lemas da burguesia não dispunham de atrativo sentimental; sua
força residia em sua promessa e em seu conteúdo sociais. Não tinham portanto uma
existência emocional e sentimental própria para conquistar a adesão das massas. Assim
que se percebeu que o conteúdo havia se tornado inválido, os dogmas burgueses
deixaram de existir de todo. Por outro lado, na Inglaterra, na França, na Holanda e nos
países escandinavos, a vivência e a tradição que estão arraigadas no povo são a luta pela
democracia. A unidade nacional havia sido alcançada muito antes e, portanto, a própria
doutrina democrática adquiriu um valor emocional.

A sociedade fascista não-econômica

A característica mais importante, embora a menos notória, do totalitarismo na


Itália e na Alemanha é a tentativa de substituir satisfações, recompensas e considerações
econômicas por outras não-econômicas como base para nível, função e posição do
indivíduo na sociedade industrial. A sociedade industrial não-econômica constitui o
milagre social do fascismo, que torna possível e equilibrada a manutenção do sistema de
produção industrial e, portanto, necessariamente economicamente desigual.

Se o totalitarismo é capitalista ou socialista é uma questão muito debatida. Na realidade,


não é um nem outro. Tendo considerado ambos insatisfatórios, o fascismo busca uma
sociedade além do capitalismo e do socialismo, não baseada em considerações
econômicas. Seu único interesse econômico é manter a máquina da produção em boas
condições de funcionamento. À custa e para o benefício de quem é uma questão
secundária, pois as conseqüências econômicas são totalmente incidentais em relação à
principal tarefa social. A contradição evidente da simultânea hostilidade para com a
supremacia do lucro privado do capitalismo assim como para com o socialismo é,
embora confusa, uma expressão constante das genuínas intenções do fascismo. O

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fascismo e o nazismo são revoluções sociais, mas não são socialistas; mantêm o sistema
industrial, mas não são capitalistas.
Mussolini e Hitler, como tantos líderes revolucionários antes deles, provavelmente não
entendiam a natureza de suas revoluções, tampouco tencionavam ir além da denúncia
dos “abusos” de ambas as partes. Mas, como já explicamos, a necessidade social os
obrigou a inventar novas satisfações e distinções não-econômicas e, finalmente, iniciar
uma política social com o objetivo de construir uma sociedade não- econômica
abrangente lado a lado e dentro de um sistema industrial de produção.
O primeiro passo nessa direção foi oferecer às classes mais baixas e desprivilegiadas
parte da parafernália não-econômica do privilégio econômico. Essas tentativas estão
amplamente desenvolvidas nas organizações fascistas das horas de lazer dos
trabalhadores: “Dopo lavoro” (“Após o trabalho”) na Itália, “Kraft durch Freude”
(“Força através da alegria”), na Alemanha. É claro que essas organizações compulsórias
são projetadas principalmente como um meio de controlar politicamente uma classe
potencialmente perigosa e hostil. Elas são infiltradas por propagandistas e espiões da
polícia cujo dever é evitar a realização de quaisquer reuniões de trabalhadores, a menos
que adequadamente supervisionadas. As atrações oferecidas por essas organizações
funcionam como subornos para os trabalhadores. Mas — e essa é sua característica
importante — elas não procuram oferecer recompensas financeiras como suborno,
embora essa seja a forma tradicional que provou ser eficiente, dos romanos ao regime
comunista na Rússia. Embora subornos em dinheiro provavelmente fossem mais
baratos, as organizações fascistas de lazer para os trabalhadores oferecem, além da
propaganda e do habitual programa de educação política e técnica, prazeres em forma
de entradas de teatro, ópera e concertos, viagens para os Alpes e países estrangeiros,
cruzeiros pelo Mediterrâneo e pela África no inverno, cruzeiros para Cabo Norte no
verão, etc. Em outras palavras, elas oferecem o típico “desperdício notável” de uma
classe rica e privilegiada. Essas atividades prazerosas não têm nenhum valor econômico
em si, mas são poderosos símbolos de posição social. Têm o propósito de indicar certa
igualdade social que compensaria a contínua desigualdade econômica.

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Elas são aceitas como tal por uma grande parte da classe trabalhadora, especialmente na
Alemanha, onde mesmo os marxistas mais inveterados consideravam os prazeres
culturais mais elevados, importantes e valiosos do que muitas recompensas econômicas.
As organizações voltadas para o lazer desempenham, portanto, uma função definida e
altamente importante na implementação do fascismo. Elas fazem com que a
desigualdade econômica existente pareça muito menos intolerável do que antes.
Contudo, elas não justificam nem tornam razoável a desigualdade. Podem aliviar o
problema, mas não solucionam ou o fazem desaparecer, pois as diferentes classes ainda
ocupam papéis e posições sociais desiguais na comunidade. Esta é a razão para o
ressurgimento da teoria orgânica da sociedade, que proclama a harmonia social das
classes economicamente desiguais e antagônicas. A comparação do corpo político a um
corpo humano sempre serviu para enfatizar a igualdade entre as várias classes em
termos de função econômica e importância econômica a fim de justificar uma existente
desigualdade social não-econômica, O fascismo, por outro lado, usa a teoria orgânica
para criar uma igualdade de importância, status, e papel social não-econômicos a fim de
equilibrar a desigualdade econômica das classes.

Tudo isso é ainda mais surpreendente considerando-se que o fascismo original- mente
pretendia assumir, sem alterações, a antiga teoria como prova da verdadeira existência
de harmonia econômica. Os “estados” econômicos em que a teoria totalitária divide a
sociedade foram concebidos como unidades econômicas que deveriam complementar-se
umas às outras na forma tradicional. Na realidade social e política dos estados
totalitários, contudo, os “estados” tornaram-se unidades sociais que reivindicam
diferença social, papel social e igualdade social próprias, inteiramente independentes de
suas funções e contribuições econômicas e de ser ou não indispensáveis.

Ao “estado camponês” alemão é concedida uma posição única de “espinha dorsal


biológica da raça” que lhe dá o direito a igualdade social completa e mesmo a
superioridade social definitiva, embora unilateral e intangível. O camponês ocupa sua
posição independentemente do valor de sua contribuição à economia nacional; admite-
se com franqueza que ele é um passivo econômico. Mas, exatamente porque a utilidade
econômica do pequeno fazendeiro é extremamente duvidosa e porque sua existência
econômica está ameaçada pela iminente revolução industrial na agricultura, do ponto de
vista nacional é ainda mais importante fortificar sua posição social. A propriedade do
camponês não só é protegida por leis especiais e continuamente exaltada em discursos,
cortejos cívicos e comemorações simbólicas, mas é enfatizada de forma impressiva
pelas regulamentações que exigem que todo garoto ou garota criados na cidade passem
algum tempo trabalhando numa fazenda sob o comando de um fazendeiro.
A vantagem econômica que o fazendeiro extrai desse fornecimento de mãode-obra
gratuita, assim como de vários outros subsídios econômicos, não é desprezível; mas não
é, de modo algum, uma paga suficiente pela deterioração de seu

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status econômico pelo controle compulsório da safra. Sua posição social, contudo,
tornou-se supostamente independente do status econômico. E é, segundo a teoria
fascista, a posição social que realmente determina a posição e o papel do camponês na
sociedade. Tentativas semelhantes foram feitas para desfazer a ligação entre o status
social e econômico das outras classes e para basear sua posição social em considerações
fora da esfera econômica. À importância, indispensabilidade e igualdade sociais da
classe trabalhadora é conferida expressão simbólica na conversão do 1” de Maio
socialista em um festival do Trabalho e em sua elevação ao mais importante feriado do
nazismo. Se o camponês é a espinha dorsal biológica da nação, o trabalhador é a
espiritual. Ele corporifica o novo conceito humano que o fascismo procura desenvolver
— o Homem Heróico, com sua disposição para o auto-sacrifício, sua autodisciplina, sua
auto-abnegação, e sua “igualdade interior” — tudo isso independente de seu status
econômico. Assim como o trabalho agrícola compulsório é o símbolo da superioridade
social do camponês em relação à população urbana, o serviço operário que todos os
adolescentes, independentemente de sua posição econômica, são obrigados a realizar,
simboliza a superioridade social do operário em relação às classes ricas.
Já a classe média é distinguida por outra característica não-econômica que lhe garante
uma posição social igualitária. Ela é declarada o “padrão da cultura nacional”. O
“Fuehrer Prinzip”, o princípio heróico de liderança pessoal, confirma a classe de
empreendedores da indústria em sua posição social. Esse princípio é supostamente
desvinculado de questões econômicas. O líder não deve seu papel e posição social a seu
papel e riqueza econômicos. A tese de que um líder precisa se qualificar no campo
espiritual e se despojar de sua posição econômica se falhar naquele aspecto, é levada
totalmente a sério por seus criadores — e por muitos outros.

As formações semimilitares, a Milícia Fascista, as Tropas de Assalto, as Guardas de


Elite, a Juventude Hitlerista, e as organizações femininas servem aos mesmos fins não-
econômicos. O valor militar dessas formações e organizações é extremamente duvidoso.
Na Alemanha, há muito abandonou-se a idéia de usá-las como corpos auxiliares do
exército. Mas, ao mesmo tempo em que o valor militar dessas organizações decrescia,
aumentava sua importância social. Seu objetivo é, verdadeiramente, proporcionar às
classes desprivilegiadas uma esfera valorizada em que possam exercer algum comando
enquanto as classes economicamente privilegiadas obedecem. Nas Tropas de Assalto
nazistas, assim como na Milícia Fascista, toma-se imenso cuidado para tornar as
promoções totalmente independentes da diferença de classes. As unidades são
socialmente mistas, O filho do “chefe” ou o próprio chefe é propositadamente colocado
sob as ordens de um dos trabalhadores sem qualificação que pertence há mais tempo ao
partido. O mesmo princípio se aplica a organizações de crianças e adolescentes. Corre o
boato na Alemanha de que nenhum filho de pai rico será admitido na “Ordensburgen”,
as academias nazistas nas quais será treinada a futura elite, embora oficialmente a
seleção seja feita somente de acordo com o preparo e a confiabilidade.

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Militarização totalitária

No entanto, na melhor das hipóteses, essas tentativas são um substituto insatisfatório


para o que realmente importa. Elas compensam a desigualdade econômica, mas não a
eliminam como um fator de diferença social. Elas são eficazes da mesma forma que o
pagamento de um seguro pode ser considerado uma compensação adequada por um
homem que perdeu uma perna num acidente de automóvel; no entanto, o pagamento do
seguro nunca irá dar-lhe uma nova perna. Portanto, mesmo o completo êxito dessas
tentativas não seria suficiente. Teoricamente, elas podem proporcionar uma igualdade
em fundamentos sociais a todas as classes, suficiente para compensá-las pela rígida e
inevitável desigualdade econômica, mas não podem oferecer um princípio claro e
construtivo de organização social que proporcione ao indivíduo posição e papel numa
sociedade não-econômica subordinada a uma ordem de valores não-econômicos.
A Wehrwirtschafi totalitária — a organização de toda a vida social e econômica nas
linhas militares — atende, portanto, ao objetivo vital de fornecer uma base não-
econômica à sociedade enquanto deixa inalterada a fachada da sociedade industrial. Ao
mesmo tempo, ela atende ao objetivo não menos importante de criar pleno emprego e,
dessa forma, expulsar o demônio do desemprego.

A essência da Wehrwirtschafi é tentar fazer com que todos os relacionamentos sociais


correspondam ao modelo de relacionamento entre oficiais superiores e subordinados, e
entre oficiais e homens. Ela procura substituir a autoridade concedida pelo privilégio
econômico pela do comando, as recompensas econômicas pela distinção com
recompensas militares, a motivação de ganhos privados pelo código de honra, o papel
do trabalhador na linha de montagem pelo do soldado individual. A submissão sujeita à
dependência econômica, a desigualdade das recompensas econômicas e a disciplina da
indústria de produção em massa são ratificadas como servindo não a fins econômicos,
mas sim militares. A Wehrwirtschafi trata todo o país como um exército. Ela não pode
tolerar qualquer “civil” — nem mesmo a criança de colo. Precisa uniformizar os
jornalistas porque não pode reconhecer um única profissão sem lugar e justificativa na
organização militar. Precisa sujeitar o empregado ao código de honra militar e torná-lo
responsável diante da lei marcial, pois a única base dessa autoridade sobre os
trabalhadores deve residir em seu “preparo para a batalha” espiritual e técnico.

À primeira vista pode parecer que, como afirmam os marxistas, a Wehrwirtschafi nada
mais é do que um disfarce para a total escravização do trabalhador sob o domínio do
expropriador capitalista. Ela destrói todas as suas liberdades e reprime seus sindicatos.
Não é permitido ao trabalhador entrar em greve. Deve cumprir a jornada de trabalho que
lhe é imposta. Não pode demitir-se ou mudar de emprego. Não tem permissão de mudar
de cidade sem autorização, tampouco de deixar o país. Empregados assalariados são
tratados de maneira semelhante dando a impressão de que sua proletarização social e
política atende ao projeto que a teoria marxista propõe para o capitalismo. Traduzido em
termos econômicos, isso significa que o empregado não dispõe mais de nenhum
controle ou liberdade. Ele também deve obedecer ordens sem retrucar, mesmo quando

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seus interesses pessoais e econômicos são desrespeitados em favor dos interesses de


todo o exército social. O industrialista não será consultado, — receberá ordens sem
qualquer explicação adicional. Elas virão não de uma autoridade pertencente ao
processo econômico, mas de uma autoridade independente e acima dele — por
exemplo, do estado-maior ou de um empregado civil. Além disso, o empregador está
sujeito a ser “transferido” física e economicamente. Em termos econômicos, isso
significa que ele terá de abrir mão de sua propriedade sempre que o governo determinar
e o governo decidirá arbitrariamente se sua fábrica é desnecessária e deve ser fechada
ou se será necessário dobrar sua capacidade.
Na verdade, o homem de negócios tem tão pouca liberdade quanto seus empregados.
Não pode contratar ou despedir sem a permissão, não deve tirar o empregado do
concorrente, e o valor do salário dos empregados é decidido pelo governo. O preço de
venda de seus produtos é fixado arbitrariamente. Em muitas das maiores indústrias —
por exemplo, material de construção, calçados e fertilizantes — o preço fixado para
atender pedidos é consideravelmente abaixo do preço de custo.

Apesar da total perda do controle e liberdade de decisão por parte do capitalista,


algumas pessoas ainda chamam o sistema de “capitalismo” porque ele conserva o
princípio dos lucros privados. Em minha opinião, a conservação desse princípio não
prova absolutamente nada. Sob condições econômicas modernas os lucros deixaram de
ser um elemento formativo da sociedade. Eles nada são além de um lubrificante que faz
a máquina funcionar com mais facilidade. Além disso, em uma economia fechada como
a do Estado fascista, que proíbe exportações de capital e impõe o investimento
compulsório, os lucros são apenas registros em livros contábeis. Em vez de começar
eliminando os lucros, o governo deixa-os circular mais uma vez pelo sistema econômico
para retomá-los sob a forma de impostos e empréstimos compulsórios. Além disso, na
Alemanha e na Itália os lucros estão de tal maneira subordinados às exigências de um
interesse nacional militarmente concebido e ao pleno emprego, que a conservação do
princípio do lucro é puramente teórica. Os lucros perderam sua autonomia como meta
independente, para não dizer suprema, da atividade econômica. Na maioria dos casos,
eles tornaram-se substitutos de uma taxa de administração — com a restrição porém, de
que no fascismo o gerente-proprietário arca com todo o risco. Há uma tendência clara
na Itália e na Alemanha para eliminar a participação do lucro e direitos de propriedade
de acionistas e sócios não-gerentes. O gerente de um negócio, independentemente de ser
proprietário ou apenas um executivo pago, fica isento de toda a responsabilidade em
relação aos acionistas externos, mesmo em relação a um acionista majoritário que não
participa da administração. Se ele não quiser pagar dividendos embora os lucros o
permitam, e preferir investir em empréstimos do governo, este lhe permite destinar a si
próprio um bônus significativo.

O que quer que seja esse sistema, certamente não é capitalista. Trata-se de um sistema
industrial de produção em que a base econômica foi substancialmente eliminada.
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O principal problema de uma economia de “consumo gerenciado” reside não no campo


econômico, mas no campo social e político. Enquanto as massas estiverem dispostas a
aceitar uma redução no consumo e aceitarem como socialmente mais desejáveis os bens
produzidos no lugar dos antigos bens de consumo não-essenciais, o sistema pode
funcionar. “Armas em vez de manteiga” não é uma alternativa econômica, é uma
escolha moral e social. Contrária à opinião geral, a redução de consumo não é urna
fraqueza da sociedade totalitária, mas uma de suas principais fontes de poder. E o meio
pelo qual a sociedade não-econômica se equilibra. O fato de que o padrão de vida e de
consumo de cada classe é reduzido numa escala proporcional- mente menor do que o da
classe imediatamente superior, confere substância econômica à substituição de
recompensas econômicas pelas não-econômicas. Essa compensação econômica negativa
é a maior e mais potente satisfação social na sociedade não- econômica do totalitarismo.
E ela continuará a satisfazer as massas até que e a menos que elas deixem de acreditar
totalmente na ideologia da sociedade não-econômica. O colapso, se houver, será moral e
não econômico.

A continuidade da história

A confiança na emergência final de uma nova ordem ganha apoio se nossa


época for encarada numa perspectiva histórica, ou seja, do ponto de vista da
continuidade da história ocidental. A nossa não é a primeira época na qual essa
continuidade foi rompida. Duas vezes antes, nos séculos XIII e XVI, a ordem européia
veio abaixo. Na época, não eram visíveis ou evidentes nem uma continuação, nem uma
nova ordem. Em ambos os casos, o colapso foi, como hoje, provocado pela
desintegração da crença em um conceito sobre o homem: no século XIII, no do Homem
Espiritual, no século XVI, no do Homem Intelectual. Ambos os conceitos se
desintegraram porque foi provado que a sociedade baseada neles não poderia alcançar a
liberdade e a igualdade na esfera que considerava como a única socialmente
constitutiva. As sociedades neles baseadas ruíram, como hoje, quando aparentemente
haviam atingido a perfeição — o Santo Império Romano do início da Idade Média, e os
reformadores protestantes. Pode-se estender as comparações: O marxismo foi para a
sociedade do Homem Econômico o mesmo que o calvinismo foi para o Homem
Intelectual: o exagero final e messiânico de sua doutrina. Em ambos, a crença na
possibilidade de se atingir a liberdade e a igualdade somente poderia ser mantida pelo
sacrifício da verdadeira liberdade. A doutrina de determinação pela predestinação no
calvinismo é comparável à da determinação pela luta de classes no marxismo. Ambos
aboliram a liberdade real na sociedade existente a fim de conservar a crença na
realidade e na iminência de liberdade na sociedade vindoura. E ambos ruiram como
ordens quando foi provado que a única sociedade que poderiam criar seria uma
sociedade sem liberdade. Como hoje, o período transitório entre o colapso da antiga
ordem e a emergência da nova representou o caos, o pânico, a caça às bruxas e o
“totalitarismo”. Também houve a crença de que o fim do ocidente havia chegado e de
que não poderia haver uma nova evolução. Mas de repente — aparentemente a partir do
nada — a nova ordem surgiu e o pesadelo se desvaneceu como se nunca tivesse
existido.

A nova sociedade que acabará surgindo do colapso da sociedade do Homem Econômico


irá novamente tentar gerar liberdade e igualdade. Embora ainda não saibamos que esfera
irá se tornar socialmente constitutiva na ordem do futuro, sabemos que não será a esfera
econômica, que deixou de ser válida. Isso significa que a nova ordem será capaz de
gerar igualdade econômica. Pois, se cada ordem européia devido a sua origem cristã
busca atingir a liberdade e a igualdade, também busca concretizá-la na sua esfera
socialmente constitutiva. A liberdade e a igualdade não podem ser concretizadas, elas
podem apenas ser prometidas naquela esfera. Concretizálas numa esfera só se torna
possível após uma nova esfera ter se tornado socialmente constitutiva. Assim sendo, a
liberdade e a igualdade religiosas poderiam apenas se concretizar após o abandono da
esfera espiritual como base da sociedade. A igualdade política da democracia formal
tornou-se possível apenas após a economia tornar- se a base da distinção e satisfação
social. A igualdade econômica se tornará igualmente possível depois de deixar de ser
socialmente fundamental e quando a liberdade e a igualdade em uma nova esfera forem
a promessa de uma nova ordem.

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A luta em busca da liberdade e da igualdade inatingíveis tem sido a força motriz da


história ocidental. Se, nesse processo, avançamos de uma esfera inferior a outra
superior, ou se decaímos continuamente, a dinâmica e o caráter messiânico de nossa
base nos têm conferido um desenvolvimento contínuo, enquanto todas as outras
civilizações têm se mantido estacionárias. Ela também nos deu um poder ideológico
interior para dominar o mundo. Embora hoje esse domínio pareça ser atacado com
armas que nós mesmos fornecemos, esse ataque do exterior irá ruir assim que
encontrarmos uma nova ordem válida.

Mas o caráter dinâmico de nossa história, representa toda nossa força e, também, nossa
fraqueza, pois torna inevitáveis períodos de transição como o presente. E se hoje as
massas européias preferem a magia negra do totalitarismo a um mundo sem ordem e
uma sociedade sem sentido, isso demonstra apenas que a energia da Europa é ainda
vibrante.

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3 — Um século de transformações sociais

(A emergência da sociedade do conhecimento)

Nunca na história da humanidade houve tantas transformações sociais radicais como no


século XX. Em minha opinião, elas serão os acontecimentos mais significativos desse
século e seu legado duradouro. Nos países desenvolvidos que adotam uma economia de
livre mercado — apenas 1/5 da população do mundo, mas um modelo para os demais —
o trabalho e a força de trabalho, a sociedade e a forma de governo têm sido qualitativa e
quantitativamente diferentes nos últimos anos desse século se comparados aos primeiros
e a qualquer outro da história da humanidade: diferentes na configuração, nos processos,
nos problemas e nas estruturas.

Mudanças sociais muito mais insignificantes e lentas ocorridas em períodos anteriores


desencadearam violentas crises espirituais e intelectuais, rebeliões e guerras civis. As
extraordinárias transformações sociais ocorridas nesse século praticamente não
causaram agitação, avançaram com um mínimo de atrito e de comoção social e, na
verdade, com um mínimo de atenção por parte de intelectuais, políticos, imprensa e
público. De fato, esse nosso século foi provavelmente o mais cruel e violento da história
da humanidade, com guerras mundiais e civis, torturas em massa, genocídios e expurgos
étnicos. Mas, todos esses horrores e mortes impostos à raça humana pela
Weltbeg1ückd*, compreendemos tardiamente, não passaram de atos sem qualquer
sentido: Hitier, Stalin e Mao, os três gênios do mal desse século, destruíram, mas nada
criaram. * Este capítulo foi extraído de Managing in a time ofgreat change, publicado
em 1995. ** Weltbeglücker — aqueles que criam o paraíso na Terra eliminando não-
conformistas, dissidentes, antagonistas e inocentes espectadores, sejam judeus,
burgueses, kulaks ou intelectuais — termo alemão sem tradução (N. do T.).

Na verdade, se esse século confirma alguma coisa, é a inutilidade da política. Mesmo


quem acredita no determinismo histórico de forma irrestrita teria dificuldades em
creditar as transformações sociais desse século aos eventos políticos criadores de
manchetes, ou esses eventos às transformações sociais. Mas são essas transformações
que, fluindo como correntes marítimas sob a superfície do mar atormentado por
furacões, exerceram um efeito duradouro e, na verdade, permanente. Elas — e não toda
a violência da superfície política — transformaram a sociedade e a economia, a
comunidade e a forma de governo em que vivemos.

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Fazendeiros e empregados domésticos

Antes da Primeira Guerra, os fazendeiros eram o maior grupo existente em todos os


países. Há oitenta anos, na véspera da Primeira Guerra Mundial, considerava-se
indiscutível que os países desenvolvidos — sendo a América do Norte a única exceção
— se tornariam progressivamente incapazes de suprir suas necessidades de alimento e
teriam de contar cada vez mais com a importação de áreas não industriais e não
desenvolvidas. Hoje, apenas o Japão, entre países importantes, desenvolvidos e que
adotam uma economia de livre mercado, é um grande importador de alimentos. (O que é
desnecessário — sua falha em produzir alimentos é, em grande parte, resultado de uma
política de subsídio ao arroz que impede que o país desenvolva uma agricultura
moderna e produtiva.) Todos os demais países de livre mercado registraram super-
produção de alimentos apesar do crescimento das populações urbanas. Nesses países, a
produção de alimentos é hoje muitas vezes maior do que há oitenta anos — nos EUA,
oito a dez vezes maior.

Mas em todos os países desenvolvidos de livre mercado — incluindo o Japão — os


fazendeiros representam, no máximo, 5% da população e da força de trabalho, ou
seja, 1/10 do que eram há oitenta anos. O segundo maior grupo com força de trabalho
nos países desenvolvidos por volta de 1900 era o de empregados domésticos. Eram
considerados uma “lei natural” como os fazendeiros, O censo britânico realizado em
1910 classificava como “classe média baixa” uma residência que empregasse menos de
três pessoas. E, enquanto os fazendeiros, como parcela da população e da força de
trabalho, foram diminuindo ao longo do século XIX, o número de empregados
domésticos, em números absolutos e percentuais, foi aumentando com constância até o
período da Primeira Guerra Mundial. Oitenta anos depois, os empregados domésticos
que residiam nos empregos em países desenvolvidos estavam praticamente extintos.
Poucas pessoas nascidas desde a Segunda Guerra Mundial, isto é, com menos de
cinqüenta anos, viram algum, exceto no palco ou em filmes antigos.
Os fazendeiros e empregados domésticos não faziam parte apenas dos maiores
grupos sociais, mas também dos grupos sociais mais antigos. Juntos formaram, através
dos anos, a base da economia e da sociedade, de toda a “civilização”.

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Ascensão e queda do operariado

Um dos motivos, na verdade o principal, pelo qual as transformações sociais causaram


tão pouca agitação foi que, em 1900, uma nova classe, a do operariado, atuante na
indústria manufatureira, havia se tornado socialmente dominante. A sociedade do início
do século XX nutria obsessão, fixação e encantamento pelos operários.
A nova classe, a do operário da indústria manufatureira, era extremamente visível. O
operário tornou-se a “questão social” de 1900 porque pertencia à primeira “classe
inferior” da história que podia se organizar e permanecer organizada. Jamais uma classe
na história cresceu tão rapidamente quanto a do operariado e nenhuma também caiu tão
depressa.

Em 1883, ano da morte de Marx, os “proletários” ainda eram o contingente menor dos
trabalhadores da indústria. A maior parte desses trabalhadores eram operários
qualificados, empregados em pequenas oficinas com cerca de vinte ou trinta
empregados, no máximo. Por volta de 1900, trabalhador industrial havia se tornado
sinônimo de operador de máquinas em uma fábrica que empregava centenas, quando
não milhares, de pessoas. Esses trabalhadores de fábricas eram, realmente, os
proletários de Marx, sem posição social, poder político, econômico ou de compra.
Os trabalhadores de 1900 — e mesmo de 1913 — não recebiam aposentadoria, férias
pagas, horas extras, adicional por trabalho noturno ou no domingo, seguro-saúde
(exceto na Alemanha), seguro-desemprego e tampouco tinham garantia de emprego.
Uma das primeiras leis a limitar a jornada de trabalho para adultos do sexo masculino
— promulgada na Austria em 1884 — estabeleceu a jornada de onze horas por dia, seis
dias por semana. Os trabalhadores industriais, em 1913, trabalhavam um mínimo de
3.000 horas por ano, em todos os lugares. Seus sindicatos ainda eram oficialmente
proibidos ou, na melhor das hipóteses, apenas tolerados. Mas os operários mostraram a
habilidade de se organizar e de agir como uma “classe”.

Na década de 1950, os operários da indústria haviam se tornado o maior grupo nos


países desenvolvidos, incluindo os comunistas, embora fossem uma verdadeira maioria
apenas durante o tempo da guerra. Haviam se tornado eminentemente respeitáveis. Em
todos os países desenvolvidos de livre mercado, eles se tornaram em termos
econômicos, a “classe média”. Dispunham de uma ampla garantia de emprego,
aposentadorias, longas férias remuneradas, seguro-desemprego abrangente ou “emprego
vitalício”. Acima de tudo, haviam conquistado o poder político e não foi só na Grã-
Bretanha que os sindicatos eram considerados o “verdadeiro governo”, com mais poder
que o primeiro-ministro e o parlamento.

Em 1990, contudo, operariado e sindicatos encontravam-se em pleno e irreversível


retraimento. Haviam se tornado quantitativamente insignificantes. Enquanto os
operários politicamente atuantes representavam 2/5 da força de trabalho na década de
1950, no início da década de 1990 correspondiam a menos de 1/5, isto é, a mesma
percentagem de 1900, quando começou sua subida meteórica.

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Em outros países desenvolvidos de livre mercado a queda foi inicialmente mais lenta,
mas após 1980 começou a acelerar em todos os lugares. No ano de 2000 ou 2010, os
operários de indústrias não representarão mais de 1/10 ou, no máximo, 1/8 de toda a
força de trabalho em todos os países desenvolvidos de livre mercado. O poder dos
sindicatos tem decrescido com a mesma rapidez. Enquanto nas décadas de 1950 e de
1960 o Sindicato Nacional dos Mineiros do Reino Unido derrubou ministros com
facilidade, nos anos 1980 Margaret Thatcher venceu eleição após eleição por desdenhar
abertamente a mão-de-obra organizada e por reduzir gradativamente seu poder político
e seus privilégios. O operário da indústria manufatureira e seu sindicato seguem o
mesmo caminho do fazendeiro.

Seu lugar foi tomado pelo “tecnólogo”, isto é, pessoas que trabalham com as mãos e
com conhecimento teórico. (Como exemplo, temos os técnicos de computação, ou na
área médica, os técnicos de raios X, fisioterapeutas, técnicos de laboratório, e assim por
diante, que pertencem ao grupo de maior crescimento na força de trabalho nos EUA
desde 1980.) E, em vez de uma classe, isto é, um grupo coerente, reconhecível, definido
e autoconsciente, o operário da indústria manufatureira pode logo se tornar apenas
um “grupo de pressão”

Em contraste com as previsões marxistas e sindicalistas, a ascensão do operário


da indústria não desestabilizou a sociedade. Ao contrário, emergiu como o avanço
social mais estabilizador do século e explica por que o desaparecimento do fazendeiro e
do empregado doméstico não produziu crises sociais. O trabalho na indústria
representava uma oportunidade para o fazendeiro e o empregado doméstico. Era, na
verdade, a primeira oportunidade na história social de melhorar de situação sem
necessidade de emigrar. Nos países desenvolvidos de livre mercado, todas as gerações
dos últimos 100 ou 150 anos podiam esperar atingir resultados significativamente
melhores do que a anterior, O fato é que fazendeiros e empregados domésticos puderam
e se tornaram operários na indústria. Como os operários estavam concentrados em
grupos, isto é, trabalhando em uma grande fábrica em vez de uma pequena oficina ou
em seus lares, foi possível um trabalho sistemático de avaliação e incremento da
produtividade. A partir de 1881 — dois anos antes da morte de Marx — estudos
sistemáticos do trabalho, das tarefas e das ferramentas desencadearam um aumento da
produtividade da manufatura e transporte de objetos de 3-4%, o que, somado a cada ano
gerou um aumento de cinqüenta vezes na produção por trabalhador no período de 100
anos. Isso proporcionou todos os ganhos econômicos e sociais do período. E, ao
contrário do que “todos sabiam” no século XIX — não só Marx, mas todos os
“conservadores”, como J.P. Morgan, Bismarck e Disraeli — praticamente todos esses
ganhos reverteram para o operário, metade na forma de uma redução drástica da jornada
de trabalho (com cortes variando de 40% no Japão a 50% na Alemanha), metade na
forma de um aumento de 25 vezes nos salários reais dos operários que fabricavam ou
transportavam objetos. Havia, portanto, ótimas razões para que a ascensão do
operariado fosse pacífica, e não violenta. Mas o que explica que a queda do operariado
tenha sido igualmente pacífica e quase totalmente isenta de protestos sociais, revoltas ou
graves perturbações, pelo menos nos EUA?

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A ascensão do trabalhador de conhecimento.

A ascensão da “classe” que sucede o operário da indústria não representa uma


oportunidade para ela, mas sim um desafio. O grupo dominante recém-emergente é
constituído dos “trabalhadores de conhecimento”. O termo era desconhecido há
quarenta anos — eu o criei em um livro de 1959 (The landmarks oftomorrow). No final
do século XX, esses trabalhadores somarão 1/3 ou mais da força de trabalho nos EUA,
isto é, uma percentagem tão grande quanto a dos operários, exceto em tempos de guerra.
A maioria dos trabalhadores de conhecimento recebe um salário tão bom quanto o dos
operários, ou melhor, e os novos empregos oferecem oportunidades muito maiores ao
indivíduo.

Mas — há sempre um grande “mas” — os novos empregos exigem, na grande maioria,


qualificações que o operário não possui e tem poucas condições de adquirir, Os novos
empregos exigem uma boa quantidade de educação formal e a habilidade de adquirir e
aplicar conhecimento teórico e analítico. Exigem que o trabalho seja abordado de modo
diferente e com outra atitude. Acima de tudo, exigem que se tenha o hábito do
aprendizado contínuo. Trabalhadores demitidos da indústria não podem, portanto,
simplesmente passar ao trabalho de conhecimento ou de prestação de serviços da forma
que os fazendeiros e empregados domésticos passaram para o setor industrial.
Mesmo em comunidades totalmente dependentes de uma ou duas fábricas de produção
em massa que fecharam suas portas ou cortaram 2/3 de seus empregados
— cidades siderúrgicas no oeste da Pensilvânia ou no leste de Ohio, por exemplo, ou
cidades automobilísticas como Flint, Michigan — em poucos anos as taxas de
desemprego entre mulheres e homens brancos adultos caíram a níveis pouco mais
elevados do que a média americana. E isso significa níveis ligeiramente mais altos do
que a taxa de “pleno emprego” nos EUA. E não houve radicalização por parte dos
operários americanos.

A única explicação para esse fato é que para a comunidade operária branca o
desenvolvimento não representou surpresa, por mais indesejável, doloroso e ameaçador
que fosse para o trabalhador e para as famílias. Os operários americanos devem ter sido
preparados psicologicamente — talvez em termos de valores, e não em termos de
emoções — para aceitar como correta e adequada a mudança para empregos que exigem
educação formal e que remunerem pelo conhecimento e não pelo trabalho manual,
qualificado ou não.

Uma possível explicação pode ser a Declaração de Direitos proclamada após a Segunda
Guerra Mundial que, ao oferecer educação superior a todo veterano de guerra americano
que retornava ao país definiu ensino superior como “norma” e os demais como “abaixo
do padrão”. Outro fator pode ter sido o recrutamento adotado nos EUA na Segunda
Guerra Mundial e mantido nos trinta e cinco anos seguintes, que levou a grande maioria
de adultos americanos do sexo masculino nascida entre 1920 e 1950 — e isso significa a
maioria dos adultos americanos vivos hoje — a prestar o serviço militar onde eram
obrigados a completar o curso secundário, se já não o tivessem feito. Mas, qualquer que
seja a explicação, a mudança do trabalho manual operário para o de conhecimento foi
amplamente aceita nos EUA (exceto na comunidade negra) como apropriada ou, pelo
menos, inevitável. Nos EUA, por volta de 1990, a mudança já tinha sido realizada em
grande parte, mas até então apenas naquele país. Em outros países desenvolvidos de
livre mercado, no oeste e no norte da Europa e no Japão, ela começou somente na
década de 1990, porém é certo que avançará rapidamente nesses países e talvez mais
rapidamente do que nos EUA no início. Será que essa mudança ocorrerá com um
mínimo de revolta, perturbação e agitação social, como aconteceu nos EUA? Ou o
desenvolvimento americano irá se tornar outro exemplo de “excepcionalidade” (como
ocorreu com grande parte da história social e, especialmente, a história das classes
trabalhadoras americanas)? No Japão, a valorização da instrução formal e das pessoas
formalmente educadas é geralmente aceita de modo que o declínio do trabalhador da
indústria — ainda uma classe bastante recente nesse país e que se tornou mais numerosa
que fazendeiros e empregados domésticos apenas bem depois da Segunda Guerra
Mundial — pode ser considerado adequado, talvez mais ainda do que ocorreu nos EUA.
Mas o que dizer sobre a Europa industrializada — o Reino Unido, a Alemanha, a
França, a Bélgica, o norte da Itália, e assim por diante — em que, por mais de um
século, existe uma “cultura da classe operária” e “uma classe operária que respeita a si
própria” e onde, apesar de todas as provas ao contrário, ainda está profundamente
enraizada a crença de que o trabalho operário, industrial, e não o conhecimento, é
gerador de riqueza? Irá a Europa reagir como o negro americano? Essa certamente é
uma questão importante, cuja resposta irá, em grande parte, determinar o futuro social e
econômico dos países desenvolvidos de livre mercado da Europa. E a resposta será dada
dentro de aproximadamente uma década.

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A emergência da sociedade do conhecimento

Os trabalhadores de conhecimento não serão a maioria dentro da sociedade do


conhecimento, mas em muitos, se não na maior parte dos países desenvolvidos,
constituirão o grupo mais numeroso dentro da população total e da força de trabalho. E,
mesmo se forem minoria em relação aos demais, o grupo dos trabalhadores de
conhecimento conferirá caráter, liderança e perfil social à emergente sociedade do
conhecimento. Eles podem não ser a classe dominante da sociedade do conhecimento,
mas é a classe que lidera. E, no que se refere a características, posição social, valores e
expectativas, eles diferem fundamentalmente de qualquer grupo na história que já
ocupou uma posição de liderança, para não dizer de dominação.
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Em primeiro lugar, o trabalhador de conhecimento tem acesso ao trabalho, emprego e


função social pela educação formal. A primeira implicação disso é que a educação se
tornará o centro da sociedade do conhecimento, e a escola sua instituição-chave. Que
tipo de conhecimento é necessário para todos? Que combinação de conhecimentos é
necessária para todos? O que é “qualidade” em aprendizado e ensino? Todas essas
preocupações se tornarão, inevitavelmente, fundamentais à sociedade do conhecimento,
e questões políticas essenciais. Na verdade, talvez não seja fantasia prever que a
aquisição e distribuição de conhecimento formal ocupará, na política da sociedade do
conhecimento o lugar ocupado pela aquisição e distribuição da propriedade e renda, nos
dois ou três séculos que chamamos de Era do Capitalismo.

Podemos também prever, com grande probabilidade de acerto, a redefinição de “pessoa


instruída”. A sociedade do conhecimento inevitavelmente se tornará muito mais
competitiva do que qualquer sociedade anterior — pela simples razão de que o
conhecimento universalmente acessível, não permite justificativas para o não-
desempenho. Não haverá países “pobres”. Haverá somente países ignorantes. E o
mesmo se aplicará a empresas, indústrias e organizações de qualquer tipo e também ao
indivíduo. De fato, sociedades desenvolvidas já se tornaram infinitamente mais
competitivas para o indivíduo do que as sociedades do início do século XX — sem
mencionar as sociedades anteriores, dos séculos XIX ou XVIII. Naquela época, a
maioria das pessoas não tinha oportunidade de sair da “classe” em que havia nascido,
mantendo o trabalho e posição na vida dos pais.

Mas os trabalhadores de conhecimento, quer seu conhecimento seja primitivo


ou avançado, quer o possuam em grande ou pequena quantidade, irão se especializar. E,
quanto maior seu grau de especialização, mais eficaz ele se tornará.

A necessidade de os trabalhadores de conhecimento serem especialistas gera uma


segunda conseqüência, igualmente importante: o fato de precisarem trabalhar como
membros de uma organização. Somente uma organização pode proporcionar a
continuidade básica que esses trabalhadores precisam para serem eficientes. Somente
uma organização pode converter o conhecimento especializado do trabalhador de
conhecimento em desempenho.

O conhecimento especializado em si não gera desempenho. O cirurgião não é eficiente a


menos que haja um diagnóstico que, de modo geral, não lhe cabe determinar, tampouco
faz parte de sua competência. Pesquisadores de mercado, por si só, produzem somente
dados. Convertê-los em informações, sem falar em torná-los eficazes na prática, exige
pessoal de marketing, de produção e de serviços. Sozinho, o historiador pode ser muito
eficiente em suas pesquisas e seus textos, mas para promover a educação do aluno, é
necessária a contribuição de muitos outros especialistas — pessoas cuja especialidade
pode ser literatura, matemática ou outras áreas da história. E isso exige que o
especialista tenha acesso a uma organização.

Esse acesso pode ser conseguido como consultor ou fornecedor de serviços


especializados, mas um grande número de trabalhadores de conhecimento o conseguirá
como empregados de uma organização — em período integral ou parcial.

quer seja um órgão do governo, um hospital, uma universidade, uma empresa, um


sindicato ou qualquer outro entre uma centena de opções. Na sociedade do
conhecimento, não é o indivíduo que desempenha, pois ele é um núcleo de custos e não
de desempenho. O desempenho é gerado pela organização.

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A sociedade do empregado

A sociedade do conhecimento é uma sociedade do empregado. A sociedade tradicional,


isto é, a existente antes do surgimento do empreendimento manufatureiro e do operário,
não era umasociedade de independentes. A sociedade de pequenos fazendeiros
independentes pregada por Thomas Jeiferson, onde cada um era dono de uma fazenda
familiar cultivada apenas com a ajuda da mulher e dos filhos, nunca foi mais que uma
fantasia. Quase todas as pessoas na história eram dependentes, mas não trabalhavam
para uma organização. Trabalhavam para um proprietário, como escravos, servos,
empregados contratados nas fazendas; como diaristas e aprendizes nas oficinas; como
auxiliares e vendedores nas lojas de um comerciante; como empregados domésticos,
livres ou não, e assim por diante. Elas trabalhavam para um “patrão”. Quando foi criado
o trabalho operário, elas ainda trabalhavam para um “patrão”

No ótimo romance de Dickens de 1854, Hard times, os empregados trabalhavam para


um “proprietário” e não para a “fábrica”. Apenas no final do século XIX, a
fábrica, e não o proprietário, passou a ser o empregador. E apenas no século XX a
corporação, e não mais a fábrica, tornou-se o empregador. Somente nesse século, o
“patrão” foi substituído por um “chefe” que, nove em dez casos, é um empregado
que também responde a um chefe. Trabalhadores de conhecimento serão “empregados”
que respondem a um “chefe” e “chefes” que supervisionam “empregados”.
As organizações eram ignoradas pela antiga ciência social e continuam a sê-lo, de modo
geral, pela ciência social atual. A primeira “organização”, no sentido atual da palavra, e
a primeira a ser encarada como um protótipo e não uma exceção, foi certamente a
moderna empresa comercial surgida após 1870 — que é a razão pela qual, até hoje, a
maioria das pessoas pensa em “administração” de um órgão específico da organização
como “administração de empresas”

Com o surgimento da sociedade do conhecimento, a sociedade se tornou uma sociedade


de organizações. Quase todos trabalhamos em e para uma organização, dependemos,
para exercer nossa eficiência e igualmente, para nossa sobrevivência, de ter acesso a ela,
seja como empregado ou como fornecedor de serviços — como advogado ou
despachante aduaneiro por exemplo. E cada vez mais os próprios serviços de apoio às
organizações são constituídos em organizações. A primeira firma de advocacia foi
organizada nos EUA há pouco mais de um século — até então os advogados exerciam a
profissão individualmente. Na Europa, não havia firmas

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de advocacia até depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, a prática da advocacia é


crescentemente realizada em sociedades cada vez maiores. Mas isso também se aplica,
especialmente nos EUA, à prática da medicina. A sociedade do conhecimento é uma
sociedade de organizações nas quais praticamente todas as tarefas sociais são
desempenhadas em e por meio de uma organização. Quase todos os trabalhadores de
conhecimento passarão a maior parte de suas vidas profissionais, se não toda ela, como
“empregados”. Mas o significado do termo é diferente do que foi — e não apenas em
inglês, mas também em alemão, espanhol e japonês. Individualmente, os trabalhadores
de conhecimento dependem do emprego, recebem uma remuneração ou salário, são
contratados e podem ser demitidos. Legalmente, cada um é um “empregado”. Mas,
coletivamente são, cada vez mais, os próprios “capitalistas”, por meio dos fundos de
pensão e outros tipos de poupança (por exemplo, nos EUA, por meio de fundos
mútuos), os empregados são donos dos meios de produção. Na economia tradicional (e,
de modo algum apenas na economia marxista) há uma forte distinção entre o “fundo de
salários” — todo destinado ao consumo — e o “fundo de capital”. E quase toda a teoria
social da sociedade industrial é baseada, de um modo ou de outro, no relacionamento
entre ambos, seja ele conflitante ou promotor de equilíbrio e cooperação necessários e
vantajosos. Na sociedade do conhecimento, os dois se fundem. O fundo de pensão é um
“salário diferido*, e, como tal, um fundo de salário. Mas também é, cada vez mais, a
principal, se não a única, fonte de capital para essa sociedade. Igualmente — e talvez
mais importante—, é que na sociedade do conhecimento os empregados, isto é, os
trabalhadores de conhecimento, são novamente donos dos instrumentos de produção. A
grande constatação de Marx foi ter percebido que o operário não possui e não pode
possuir os instrumentos de produção e, portanto, deve ser “alienado”. Ele ressaltou que
não havia como os operários serem donos da máquina a vapor e de levá-la com eles ao
mudar de um emprego para outro. O capitalista precisa ser dono da máquina a vapor e
controlá-la. Cada vez mais, o verdadeiro investimento na sociedade do conhecimento
não se realiza em máquinas e instrumentos, mas sim no trabalhador de conhecimento.
Sem ele, as máquinas são improdutivas, não importa o quanto sejam avançadas ou
sofisticadas.

O trabalhador industrial precisava do capitalista muito mais do que este precisava do


trabalhador industrial — essa era a base da afirmativa de Marx de que sempre haveria
um excedente de trabalhadores industriais e um “exército industrial de reserva” que
impossibilitaria os salários de subirem acima do nível de subsistência (e provavelmente
seu erro mais notório). Na sociedade do conhecimento, a suposição mais provável — e
certamente aquela na qual todas as organizações têm de basear seus negócios é a de que
elas precisam do trabalhador de conhecimento muito mais do que ele precisa delas.
Cabe à organização negociar seus empregos de modo a conse

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Salário diferido = renda cujo pagamento principia a partir de um certo prazo (N. do T.).
Trabalhadores de conhecimento em quantidade adequada e de qualidade supe.nor. Há
um crescente relacionamento de interdependência em que o trabalhador de
conhecimento precisa aprender quais são as necessidades da organização, e a
organização também deve aprender quais são as necessidades, exigências e expectativas
do trabalhador de conhecimento.

Uma conclusão adicional: como a sociedade do conhecimento, forçosamente, é


formada por organizações, seu órgão central e característico é a administração.
Quando começamos a falar sobre administração, o termo significava “administração de
empresas” — visto que as grandes empresas foram as primeiras entre as novas
organizações a se tornarem visíveis. Mas aprendemos nestes cinqüenta anos que
administração é um elemento característico de todas as organizações. Todas precisam de
administração — quer usem o termo ou não. Todos os administradores fazem as
mesmas coisas, qualquer que seja o ramo de negócios de suas empresas. Todos precisam
reunir as pessoas — cada qual com diferentes conhecimentos — para obter um
desempenho conjunto. Todos devem tornar produtiva a força de trabalho e irrelevantes
as fraquezas. Todos devem refletir sobre o que significam “resultados” para a
organização — e depois definir os objetivos. Todos devem refletir sobre o que chamo de
“teoria da empresa”, isto é, as premissas que norteiam o desempenho e as ações de
organização e, igualmente, as premissas que aconselham o que não fazer. Todos
necessitam de um órgão que pense estrategicamente, ou seja, dos meios pelos quais as
metas da organização se transformam em desempenho. Todos precisam definir os
valores da organização, seu sistema de recompensas e punições e com eles, seu espírito
e sua cultura. E em todas, os administradores precisam de domínio administrativo de
trabalho e disciplina e o conhecimento e a compreensão da organização em si, seus
objetivos, seus valores, seu ambiente e seus mercados, enfim suas competências
essenciais.
A administração é uma prática muito antiga. O executivo mais bem-sucedido de toda a
história certamente foi o egípcio que, há cerca de 4.700 anos, idealizou a pirâmide e a
desenhou e construiu em tempo recorde. Aquela pirâmide se mantém de pé com uma
durabilidade diferente de qualquer outro trabalho humano. Mas como disct1ina, a
administração tem apenas cinqüenta anos e foi vagamente vislumbrada na época da
Primeira Guerra Mundial, tendo se desenvolvido apenas na Segunda Guerra Mundial,
primeiramente nos EUA. Desde então, é a nova função que mais rapidamente cresceu, e
o seu estudo, a disciplina que mais depressa se desenvolveu. Nenhuma função na
história teve uma evolução tão rápida quanto a dos administradores nos últimos 50 ou
60 anos, e certamente nenhuma percorreu o mundo todo num tempo tão curto.

Na maioria das escolas, a administração ainda é ensinada como um conjunto de


técnicas, como a técnica orçamentária. É verdade que a administração, como qualquer
outra função, possui instrumentos e técnicas próprias, mas assim como a essência da
medicina não reside na análise da urina, por mais importante que ela seja, a essência da
administração não se encontra em técnicas e procedimentos. A essência da
administração está em tornar o conhecimento produtivo. Em outras palavras, a
administração é uma função social e, na prática, é verdadeiramente uma “arte liberal”.

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O setor social

As comunidades antigas — família, vilas, paróquia, e assim por diante —


desapareceram na sociedade do conhecimento. Seu lugar foi tomado por uma nova
unidade de integração social: a organização. Enquanto ser membro da comunidade era
visto como destino, ser membro de uma organização é um ato voluntário. Enquanto a
comunidade reivindicava a pessoa por inteiro, a organização é um meio, um instrumento
para que a pessoa atinja um determinado fim. Há 200 anos vem sendo realizado um
debate acirrado, especialmente no Ocidente: serão as comunidades “orgânicas”, ou são
elas simplesmente extensões da pessoa? Ninguém alegaria que a nova organização é
“orgânica”. Ela é claramente um produto artificial, uma criação humana, uma tecnologia
social.
Mas quem, então, realiza as tarefas sociais? Há 200 anos, as tarefas sociais eram
executadas em todas as sociedades pela comunidade local — primeiramente, é claro,
pela família. Muito poucas dessas tarefas, talvez nenhuma, são hoje realizadas pelas
antigas comunidades, tampouco elas seriam capazes de executá-las. As pessoas não
mais permanecem onde nasceram, seja geograficamente ou em termos de posição e
status social. Por definição, uma sociedade do conhecimento é dotada de mobilidade. E
todas as funções sociais das antigas comunidades, quer fossem bem ou mal
desempenhadas (e, na verdade, a maioria era executada de forma muito insatisfatória),
pressupunham que o indivíduo e a família permaneceriam ali. “Família é o lugar em que
a gente se sente em casa”, lizia um provérbio do século XIX, e comunidade, repito,
representava destino. Deixar a comunidade significava tornar-se um pária, talvez até um
fora- da-lei. Mas a essência de uma sociedade do conhecimento está na mobilidade em
termos do local em que vivemos, do que fazemos e das pessoas com as quais nos
associamos.

Essa mobilidade significa que, numa sociedade do conhecimento, os desafios e as


tarefas sociais se multiplicam. As pessoas perdem suas “raízes”, deixam de ter uma
“vizinhança” que controla onde vivem, o que fazem e, claro, que “problemas” podem
ter. A sociedade do conhecimento, por definição, é uma sociedade competitiva; com o
conhecimento acessível a todos, espera-se que todos possam encontrar seu lugar, que se
aperfeiçoem e que tenham aspirações. Trata-se de uma sociedade na qual muito mais
pessoas podem ser bem-sucedidas. Mas também é, conseqüentemente, por definição,
uma sociedade em que muito mais pessoas podem falhar ou, pelo menos, chegar em
segundo lugar. E mesmo que isso ocorra apenas porque a aplicação do conhecimento ao
trabalho tenha tornado as sociedades desenvolvidas tão mais ricas do que qualquer
sociedade anterior poderia ter sonhado em ser, as falhas, seja pobreza ou alcoolismo,
agressão a mulheres ou delinqüência juvenil, são vistas como falhas da sociedade.
Numa sociedade tradicional elas são aceitas como inevitáveis. Na sociedade do
conhecimento, são consideradas uma afronta, não só ao senso
de justiça, mas também à capacidade e auto-respeito da sociedade.
Quem, então, na sociedade do conhecimento, cuida das tarefas sociais? Não
podemos mais ignorá-las, mas a comunidade tradicional é incapaz de tratar delas.
Duas respostas surgiram neste século — a resposta da maioria e uma opinião
divergente. E ambas provaram estar erradas.

A resposta da maioria remonta há mais de cem anos, aproximadamente a 1880, quando


a Alemanha de Bismarck deu os primeiros passos vacilantes em direção ao Estado de
bem-estar social. A resposta: os problemas sociais podem, devem e precisam ser

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resolvidos pelo governo. E provavelmente ainda a resposta aceita pela maioria das
pessoas, especialmente nos países desenvolvidos do Ocidente embora as próprias
pessoas realmente não acreditem nela. Esta solução foi completamente desaprovada.
Os governos modernos, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial,
transformaram-se numa grande burocracia do bem-estar em todos os lugares. E hoje, a
maior parte do orçamento de todos os países desenvolvidos é destinado a “direitos
adquiridos”, ou seja, o pagamento de todos os tipos de serviços sociais. E, no entanto,
em todos os países desenvolvidos, em vez de mais saudável, a sociedade está ficando
mais enferma, e os problemas sociais se multiplicam. O governo tem um importante
papel a desempenhar nas tarefas sociais — o papel de legislador, de criador de padrões
e, até um ponto significativo, de tesoureiro. Mas como órgão que executa serviços
sociais, ele se mostrou quase que totalmente incompetente — e hoje sabemos porquê.
A segunda opinião, divergente, foi primeiramente formulada por mim em meu livro de
1942, Thefuture of industrial man. Argumentei então que a nova organização e
cinqüenta anos atrás isso representava a grande empresa — teria de ser a comunidade na
qual o indivíduo encontraria status e função, e que a comunidade industrial se tornaria o
local em que, e por intermédio do qual, as tarefas sociais seriam organizadas. No Japão
(embora de forma bastante independente e sem nada me dever) o grande empregador —
órgão do governo ou empresa — de fato procurou tornar-se o “grupo comunitário” de
referência para seus empregados. O “emprego vitalício” foi apenas uma das
confirmações disso. Moradia, planos de saúde, férias e outros benefícios oferecidos pela
empresa indicam para o empregado que o empregador, e principalmente a grande
empresa, é ao grupo comunitário o sucessor da antiga vila e da antiga família. Mas isso
também não funcionou.
Há, de fato, a necessidade, principalmente no Ocidente, de levar o empregado ao
controle, cada vez maior, da comunidade industrial. O que hoje chamamos de
“delegação de poder” é muito semelhante às que me referi há mais de cinqüenta anos,
mas essa delegação não cria uma comunidade, tampouco a estrutura pela qual as tarefas
sociais da sociedade do conhecimento podem ser realizadas. Na verdade, praticamente
todas essas tarefas, seja a de proporcionar educação ou atendimento médico, tratar de
anomalias e enfermidades de uma sociedade desenvolvida e especialmente rica, como o
uso excessivo de álcool e drogas, ou solucionar problemas de incompetência e
irresponsabilidade como os que ocorrem nas “subclasses” das cidades americanas —
estão fora do âmbito da instituição empregadora.

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A instituição empregadora é e continuará sendo uma “organização”. O relacionamento


entre ela e o indivíduo não é o mesmo que ocorre entre um “membro” e a
“comunidade”, isto é, um elo bidirecional e inquebrável. Para sobreviver, ela precisa de
flexibilidade de emprego. Mas também, cada vez mais, os empregados qualificados, e
principalmente as pessoas dotadas de conhecimento avançado, vêem a organização
como um instrumento para atender aos próprios objetivos e, portanto, ressentem-se —
progressivamente mesmo no Japão — de qualquer tentativa de sujeitá-los à organização
como comunidade, isto é, de seu controle, da exigência de se comprometerem com ela
por toda a vida, e da exigência de subordinarem suas próprias aspirações às metas e
valores dela. Isso se torna inevitável, pois o possuidor de conhecimento, como já
dissemos, é dono de seus “instrumentos de produção” e tem a liberdade de ir para onde
quer que as oportunidades de eficiência, realização e progresso pareçam melhores. A
resposta certa à pergunta “Quem enfrenta os desafios da sociedade do conhecimento?”
não é, pois, “o governo”, tampouco “a organização empregadora”. É um setor social,
novo e independente.

Essas organizações do setor social atendem progressivamente a um segundo e


igualmente importante objetivo. Elas criam cidadania. A sociedade e a política
modernas tornaram-se tão amplas e complexas que não é mais possível exercer a
cidadania, isto é, a participação responsável. Tudo que podemos fazer como cidadãos é
votar uma vez a cada poucos anos e pagar impostos o tempo todo. Como voluntário em
uma instituição do setor social, o indivíduo pode, novamente, exercer um efeito
importante sobre os fatos.

Nenhum conceito foi descartado tão depressa quanto o do “homem organizacional”, que
há quarenta anos era aceito quase em toda a parte. De fato, quanto mais satisfatório é o
trabalho qualificado de uma pessoa, mais ela precisa de uma esfera de atividade
comunitária independente.

O novo pluralismo

O surgimento de uma sociedade de organizações desafia a função do governo. Todas as


tarefas sociais nesta sociedade estão passando paulatinamente para organizações
individuais, cada qual criada para determinada tarefa social, quer seja educação,
atendimento médico ou limpeza de ruas. A sociedade, portanto, está rapidamente se
tornando pluralista. No entanto, nossas teorias políticas e sociais ainda imaginam uma
sociedade na qual não há centros de poder exceto o governo. Destruir ou, pelo menos,
tornar incapazes todos os outros centros de poder foi, de fato, a principal ofensiva
histórica e política no Ocidente durante 500 anos, do século XIV em diante, culminando
nos séculos XVIII e XIX quando (exceto nos EUA) essas instituições tendo sobrevivido
— por exemplo, as universidades ou as igrejas estabelecidas — tornaram-se órgãos do
Estado e seus empregados, funcionários públicos.

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Mas então, começando imediatamente em meados do século XIX, novos centros se


desenvolveram — o primeiro, a nova empresa comercial, surgiu aproximadamente em
1870. E desde então foi criada uma nova organização após outra.

No antigo pluralismo, o feudalismo na Europa da Idade Média, ou no período Edo do


Japão dos séculos XVII ou XVIII, todos organismos pluralistas, quer fosse o barão
feudal na Inglaterra da Guerra das Rosas ou o daimyo — o senhor local — no Japão do
período Edo, tentaram controlar tudo que ocorria em suas comunidades. Ou pelo menos
procuravam impedir que qualquer outra pessoa controlasse qualquer aspecto ou
instituição da comunidade dentro de seus domínios.
Mas na sociedade de organizações, cada uma das novas instituições preocupa-se
somente com seu próprio objetivo e missão. Elas não reivindicam poder sobre nada
mais, mas também não assumem a responsabilidade por mais nada. Quem, então,
preocupa-se com o bem comum? Este sempre foi o principal problema do pluralismo e
nenhuma de suas manifestações anteriores foi capaz de solucioná-lo. O problema volta
agora, mas com nova aparência. Até o momento, ele tem sido visto como a imposição
de limites a essas instituições, ou seja, proibindo-as de fazer coisas no cumprimento de
sua missão, função e interesse que invadam o domínio público ou desrespeitem as
normas públicas. As leis contra discriminação — por raça, sexo, idade, educação, saúde,
e assim por diante — que proliferaram nos EUA nos últimos quarenta anos proíbem o
comportamento socialmente indesejável. Mas questionamos com mais freqüência a
“responsabilidade social” dessas instituições: “O que elas teriam de fazer — além de
desempenhar as próprias funções — para promover o bem público?” Essa, porém —
embora aparentemente ninguém perceba — é uma exigência para a volta ao antigo
pluralismo, o pluralismo do feudalismo. É uma exigência para que autoridades privadas
assumam o poder público.

O exemplo oferecido pelo ensino nos EUA deixa extremamente claro que esse fato
poderia ameaçar seriamente o funcionamento das novas organizações.
O novo pluralismo conserva o antigo problema — quem cuida do bem comum quando
as instituições dominantes da sociedade atendem apenas a seu próprio objetivo? Mas
apresenta também uma nova dificuldade: como manter o desempenho das novas
instituições e conservar, ao mesmo tempo, a sociedade coesa? Esse fato torna o
surgimento de um setor social forte e atuante duplamente importante e é outra razão
para que este setor seja cada vez mais essencial ao desempenho, se não à coesão, da
sociedade do conhecimento.

Quando o conhecimento se tornou o recurso econômico principal, a integração de


interesses — e com ela a integração do pluralismo de uma nova sociedade organizada
— começou a se desintegrar. Cada vez mais, os interesses não-econômicos estão se
transformando no novo pluralismo, nos “interesses especiais”, nas organizações de
“causas únicas”, e assim por diante. Cada vez mais, a política não trata de “quem
consegue o quê, quando e como”, mas de valores, cada qual considerado como absoluto.
A política trata do “direito de viver” do embrião no útero e de abortar esse embrião.

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Trata do ambiente. Trata de conquistar igualdade para grupos que se dizem oprimidos e
discriminados. Nenhuma dessas questões é econômica. Todas são fundamentalmente
morais.

Pode-se chegar a um acordo quanto a interesses econômicos, e é ao apoiar-se neles que


a política encontra seu grande poder. “Metade de um pão ainda é pão” é um ditado
significativo, mas “meio bebê”, na história bíblica do julgamento de Salomão, não é
meia criança, é um cadáver e um pedaço de carne. Não há possibilidade de se chegar a
um acordo. Para um ambientalista, “meia espécie ameaçada” é uma espécie extinta.
Isso agrava grandemente a crise do governo moderno. Jornais e comentaristas ainda
tendem destacar o que ocorre em termos econômicos em Washington, Londres, Bonn ou
Tóquio, mas um número cada vez maior de lobistas que definem as leis e ações
governamentais deixam de fazer lobby por interesses econômicos. Eles fazem lobby a
favor e contra medidas que eles — e quem os pagam — consideram morais, espirituais
e culturais. E cada um desses novos interesses morais, cada qual representado por uma
nova organização, alega ser absoluto. Dividir seu pão não é fazer concessões, é traição.
Portanto, não há na sociedade de organizações nenhuma força integradora que reúna
organizações individuais numa sociedade e torne a comunidade coesa. Os partidos
tradicionais talvez as criações políticas mais bem-sucedidas do século XIX — não
podem mais integrar grupos divergentes e pontos de vista discordantes em uma busca
comum pelo poder. Em vez disso, eles se tornam campos de batalha entre grupos, cada
qual lutando por uma vitória absoluta e não contentes com nada além da rendição total
do inimigo.

Isso faz surgir a pergunta de como formar o governo de modo que ele funcione
novamente. Em países que detêm uma tradição de sólida burocracia independente,
notadamente o Japão, a Alemanha e a França, o serviço público ainda procura manter o
governo unido. Mas mesmo nesses países a coesão do governo está sendo
progressivamente enfraquecida por interesses específicos e, acima de tudo, por
interesses não-econômicos, morais e especiais.

Desde Maquiavel, há quase quinhentos anos, a ciência política vem se preocupando


principalmente com o poder. Maquiavel — e cientistas políticos e políticos depois dele
— consideram ponto pacífico que o governo possa funcionar quando de posse do poder.
Hoje, cada vez mais, as questões a serem tratadas são: “Quais são as funções das quais o
governo pode abrir mão e quais as que precisa desempenhar?” e “Como pode o governo
ser organizado de modo a desempenhar essas funções em uma sociedade de
organizações”? No século ou certamente a agitação e o desafio social, econômico e
político prosseguirão, pelo menos nas primeiras décadas. A Era de Transformações
Sociais ainda não chegou ao fim. E os desafios que se avizinham podem ser ainda mais
sérios e desanimadores do que os trazidos pelas transformações sociais ocorridas no
século XX. No entanto, não teremos nem mesmo uma chance de resolver esses
problemas novos e os que se avizinham, a menos que primeiro tratemos dos desafios
apresentados pelos avanços que já são fatos consumados, relatados em seções anteriores
deste capítulo.

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Eles representam as tarefas prioritárias. Pois somente se tentarmos dominá-las


poderemos, nos países desenvolvidos, democráticos e de livre mercado, esperar atingir
uma coesão social, uma economia atuante e a capacidade do governo necessárias para
enfrentar os novos problemas. A primeira ordem das empresas — para sociólogos,
cientistas políticos e economistas; para educadores; para executivos de empresas;
políticos e líderes de organizações sem fins lucrativos, e para pessoas de todas as
posições sociais, como pais, empregados, cidadãos — é trabalhar nessas tarefas
prioritárias, para as quais somente em poucos casos temos soluções, nem sempre
testadas. Se o século XX foi um século de transformações sociais, o século XXI precisa
se caracterizar por inovações sociais e políticas.

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4 - Rumo a uma teoria sobre organizações na sociedade pluralista


(Tarefas, responsabilidades e legitimidade)

Na primavera de 1968, um livro bem-humorado esteve em destaque por algumas


semanas. Management & Machiavelli**. Segundo ele, todas as empresas eram
organizações políticas e, conseqüentemente, as normas de Maquiavel para príncipes e
governantes aplicavam-se totalmente à conduta dos executivos corporativos.
As senhoras dos subúrbios a quem se destinavam as críticas de Management &
Machiaveii provavelmente tinham total consciência de que o clube de bridge e a APM
nada tinham a aprender sobre politicagem com as grandes empresas ou, naturalmente,
com Maquiavel. Não é novidade, nem surpreende que todas as organizações precisem
organizar o poder e, portanto, fazer a política.

Durante os últimos vinte anos, porém, instituições não-comerciais — governo,


forças armadas, universidades, hospitais — começaram a aplicar os conceitos e métodos

de administração de empresas, e esse fato é novo e, sem dúvida, surpreendente.


A novidade está na conscientização de que todas nossas instituições são “organizações”
e, como resultado, têm uma dimensão comum de administração. Essas organizações são
complexas e multidimensionais e exigem raciocínio e compreensão em pelo menos três
áreas — funcional ou operacional, moral e política. A nova teoria geral sobre uma
sociedade de organizações parecerá muito diferente das teorias sociais a que estamos
acostumados. Locke e Rousseau não têm muita importância; tampouco John Stuart Miii
ou Karl Marx. *Este capítulo foi extraído de The age ofdiscontinuity, publicado em
1969. ** Jay, Antony, Nova York, Holt, Rinchart & Winston, 1968.

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Gerando desempenho na organização

Como funcionam e operam as organizações? Como realizam seu trabalho? Não há


muito sentido em nos preocuparmos com qualquer outra questão sobre organizações, a
menos que saibamos primeiro por que motivo elas existem. A área funcional ou
operacional em si é dividida em três partes importantes, cada qual uma disciplina ampla
e distinta, relacionada a metas, administração e desempenho individual.

1. As organizações não existem para benefício próprio. Elas são meios: cada uma é um
órgão da sociedade destinado ao desempenho de uma tarefa social. A sobrevivência não
é a meta de uma organização, como o é para as espécies biológicas. A meta da
organização é contribuir de maneira específica para o indivíduo e a sociedade e,
portanto, ao contrário do que ocorre com um organismo biológico, o sucesso de seu
desempenho está sempre fora dela. Conseqüentemente, a área das metas é a primeira em
que precisamos de uma teoria de organização. Como uma organização decide quais
devem ser seus objetivos? Como mobiliza suas energias para apresentar desempenho?
Como avalia esse desempenho? É impossível ser eficiente, sem decidir antes o que se
pretende realizar. Em outras palavras, é impossível administrar sem antes definir uma
meta. Nem mesmo é possível definir a estrutura de uma organização, a menos que se
saiba a que propósito deve atender e como medir seu desempenho.
Qualquer pessoa que tente responder à pergunta, “O que é a nossa empresa”?, vai
considerar a tarefa difícil, controversa e ardilosa. Na verdade, nunca é possível
apresentar uma resposta definitiva a essa pergunta. Qualquer resposta torna-se obsoleta
num período muito curto e a pergunta precisa ser repensada repetidamente.
Mas se não há meios de se chegar a uma resposta e se os objetivos não forem
claramente definidos, os recursos serão pulverizados e desperdiçados e não haverá como
medir os resultados. Se a organização não definiu seus objetivos, não pode determinar
sua eficiência e se está obtendo resultados ou não.

Não há um método “científico” para estabelecer objetivos para uma organização, pois
eles são julgamentos de valor, ou seja, questões genuinamente políticas. O fato de que
as decisões estão cercadas por uma contínua incerteza é um dos motivos para que isso
ocorra. Elas estão relacionadas com o futuro e não dispomos de “fatos” referentes a ele.
Por esse motivo, nessa área há sempre um conflito de programas e de valores políticos.
No entanto, o cientista político do século XX não foi totalmente irresponsável quando
deixou de se preocupar com valores, programas políticos e ideologias e se concentrou
no processo de tomada de decisão. As decisões mais difíceis e importantes sobre
objetivos não se referem ao que fazer. Elas concernem, primeiro, ao que renunciar por
não ter mais valia e, segundo, ao que dar prioridade e no que se concentrar. Como
norma, essas não são decisões ideológicas, mas julgamentos que devem ser baseados em
informações.

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Além disso, devem ser fundamentadas numa definição de alternativas e não em opiniões
e emoções.A decisão sobre o que abandonar é, sem dúvida, a mais importante e a mais
negligenciada. Grandes organizações não podem ser versáteis. Uma grande organização
é eficiente por seu volume e não por sua agilidade. As pulgas podem saltar várias vezes
a própria altura, mas o mesmo não ocorre com os elefantes, O volume possibilita a
organização a colocar em prática um número muito maior de conhecimentos e
habilidades do que seria possível uma única pessoa ou pequeno grupo reunir. Mas o
volume também é limitador. Uma organização, não importa como, pode realizar apenas
uma pequena parcela de tarefas de cada vez e isso não pode ser solucionado por uma
organização melhor ou “comunicação mais eficiente”. A lei da organização é a
concentração. Separar os que decidem dos que executam também é básico para a
organização.

2. Todas as organizações importantes diferem quanto aos seus objetivos e cada qual
atende a um propósito diferente da comunidade. Na área administrativa, contudo,
elas são essencialmente parecidas. Como todas as organizações exigem a reunião de um
grande número de pessoas para um desempenho conjunto e integrado em um
empreendimento comum, todas enfrentam o problema de equilibrar os objetivos da
instituição e as necessidades e desejos do indivíduo. Cada organização recebe a tarefa
de equilibrar a necessidade de ordem e a necessidade de flexibilidade e interesse dos
indivíduos. Cada uma requer uma estrutura determinada pela tarefa e suas exigências.
Cada uma também requer uma estrutura determinada por “princípios de organização”
genéricos, isto é, basicamente por normas constitucionais. A menos que cada uma
reconheça a autoridade inerente à “lógica da situação” e ao grau de conhecimento dos
indivíduos, não haverá desempenho. A menos que cada uma disponha de uma
autoridade para tomar decisões que não admitem apelação, não haverá decisões. E as
duas diferentes estruturas, cada qual com uma lógica própria, devem coexistir em um
equilíbrio dinâmico dentro da mesma organização.
É neste campo da administração que realizamos a maior parte do trabalho durante os
últimos cinqüenta anos. Nunca antes nos vimos diante da tarefa de organizar e liderar
grandes organizações de cultura técnica. Tivemos de aprender rapidamente e ninguém
que conheça o ramo afirmaria que sabemos muito. De fato, se houver qualquer consenso
nessa área intensamente controvertida, é quanto ao fato de que as estruturas da
organização do futuro serão diferentes de qualquer outra que conhecemos hoje. No
entanto, o trabalho de administração não é mais pioneiro. 90% do que se ensina sob esse
nome em nossas universidades podem ser consideradas histórias da carochinha
— e o restante pode ser considerados procedimentos e não administração. Ainda assim,
os principais desafios na área são suficientemente conhecidos.

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3. O último campo na área operacional, o da eficiência pessoal, provavelmente é o que


apresenta as menores diferenças nas organizações. As organizações são ficções legais.
Elas não fazem, não decidem, não planejam nada por si sós. São os indivíduos que
decidem e planejam. Acima de tudo, organizações apenas “agem” na medida em que as
pessoas agem pessoas que geralmente chamamos de “executivos” e das quais esperamos
decisões que afetem os resultados e o desempenho da organização.

Como ressaltei em um livro antigo, The effective executive, na organização do


conhecimento todo trabalhador de conhecimento é um “executivo”. O número de
pessoas que precisa ser eficiente para que a organização moderna apresente bom
desempenho é, portanto, muito grande e aumenta rapidamente. O bem-estar de toda
nossa sociedade depende cada vez mais da capacidade de esse grande número de
trabalhadores de conhecimento ser eficiente numa verdadeira organização. E também,
por extensão, a realização e a satisfação do trabalhador de conhecimento.
A eficiência dos executivos não é apenas algo de que a organização necessita. Não é
uma fórmula para o “homem-organização” do mito popular. É, acima de tudo, algo
necessário ao indivíduo, pois a organização precisa ser sua ferramenta, enquanto, ao
mesmo tempo, ela produz os resultados necessários para a sociedade e para a
comunidade.

A eficiência dos executivos não é automática. Não se trata de “como ser bem- sucedido
com pouco esforço” nem mesmo de “como ser bem-sucedido com algum esforço”. A
organização é um ambiente novo e diferente e faz novas e diferentes exigências ao
executivo, oferecendo-lhe novas e diferentes oportunidades. Ela cobra uma nova
compreensão e, em menor grau, um novo comportamento.

Por fim, ela requer que o indivíduo seja capaz de tomar decisões que produzam os
resultados corretos, O camponês sabe, por tradição, o que e como fazer as coisas, O
artesão tinha sua associação que lhe ensinava o trabalho, sua seqüência e seus padrões.
Mas o executivo de uma organização não recebe informações de seu ambiente. Ele
precisa tomar decisões sozinho e, se não o fizer, não poderá atingir resultados e está
fadado a ser mal-sucedido e não-realizado.

Até agora, a teoria da administração deu pouca atenção a essa área. Demos ênfase às
habilidades do executivo, seu treinamento e seu conhecimento, mas não a um atributo
específico que é a eficiência. Isso é o que se espera dele, embora não saibamos, de
modo geral, o que significa. Tudo o que sabemos é que poucos executivos atingem um
décimo da eficiência que suas habilidades, seu conhecimento e sua empresa prometem.
A eficiência do executivo acabará ocupando, na teoria das instituições, o lugar que, em
toda a história da teoria política, tem sido ocupado pela discussão sobre a educação do

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governante (a cuja tradição Maquiavel pertence integralmente, embora com respostas


diferentes). Os advogados constitucionais, os primeiros representantes do que hoje
chamamos de “administração”, perguntaram: “De que estrutura a sociedade organizada
precisa”? Os pensadores e os que escreveram sobre a “educação do governante” (de
quem Platão, com República e na A Carta VII foi o primeiro grande nome)
perguntaram, “que tipo de homem o governante precisa ser, e o que ele precisa fazer”?
É essa pergunta que hoje se faz novamente quando discutimos o “executivo eficiente”.
Só que não falamos mais sobre o “Príncipe”, isto é, um homem que ocupa um alto
cargo. Na organização do conhecimento fala-se sobre vários grandes homens, pois nela
quase todos ocupam um “alto cargo”, no sentido tradicional da palavra.
Essas três áreas, objetivos da política e a avaliação do desempenho comparado a metas,
administração e eficiência do executivo são totalmente diferentes. No entanto, todas
pertencem ao mesmo campo e à mesma dimensão da organização. Todas tratam do
funcionamento da organização.
Organização e qualidade de vida

A “responsabilidade social da empresa” tornou-se um tema muito apreciado por


jornalistas, líderes empresariais, políticos e escolas de administração de empresas. A
ética da organização é, de fato, uma preocupação básica de nossa época, mas falar da
“responsabilidade social da empresa” pressupõe que responsabilidade e
irresponsabilidade são um problema apenas da empresa. Está claro, porém, que elas são
problemas fundamentais de todas as organizações. Todas as instituições têm poder e o
exercitam; conseqüentemente, todas necessitam assumir a responsabilidade por seus
atos.

A menos responsável de nossas instituições modernas não é empresarial: é a


universidade. De todas nossas instituições, provavelmente é a que exerce o maior
impacto social e ocupa uma posição de monopólio não obtida por nenhuma outra.
Quando um jovem termina a faculdade, dispõe de várias opções de carreira, mas até
então a educação controla a ele e ao seu acesso a todas essas opções: a corporação
comercial e o serviço público, as profissões liberais e o hospital, e assim por diante. No
entanto, a universidade ainda não percebeu que possui poder, nem mesmo compreendeu
o impacto que exerce e, conseqüentemente, o problema de responsabilidade que tem nas
mãos. A nova esquerda enxerga esse fato com clareza. Ela pode não se mostrar
encantada com a empresa, mas certamente vê a universidade e a autoridade dela com
hostilidade.

Em todo caso, a abordagem de “responsabilidade” é muito limitada e, portanto, mal


orientada. Não existe, como sabe todo advogado constitucional, a palavra
“responsabilidade” no dicionário da política. A palavra é “responsabilidade e
autoridade”. Quem assume “responsabilidade” impõe “autoridade”. Por outro lado,
somos responsáveis por aquilo sobre o que temos autoridade. Assumir responsabilidade
sobre o que não se tem autoridade é usurpação de poder.

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A questão, portanto, não é saber quais são as “responsabilidades sociais” das
organizações, mas sim qual é a autoridade apropriada. Que impactos as organizações
exercem devido a sua função?

1. Qualquer instituição deve exercer um impacto na sociedade a fim de cumprir sua


missão. Da mesma forma, uma instituição deve se posicionar, ou seja, exercer impactos
na comunidade local e no ambiente natural. Além disso, cada instituição emprega
pessoas, o que acarreta uma boa dose de autoridade sobre elas. Esses impactos são
necessários, pois de outra maneira não poderíamos obter bens e serviços das empresas,
educação das escolas, novo conhecimento dos laboratórios de pesquisa ou controle do
tráfego por parte do governo local. Porém, eles não representam os objetivos da
organização; eles têm pouca importância.

Esses impactos são um mal necessário no sentido mais completo da palavra.


Se soubéssemos como obter o desempenho necessário para manter a instituição sem o
uso de autoridade, certamente não permitiríamos que ela fosse exercida sobre as
pessoas. De fato, todo administrador de bom senso ficaria satisfeito em realizar o
trabalho sem pessoas, pois elas representam um inconveniente. Ele não quer representar
o papel do “governo”, pois essa posição apenas atrapalha a execução de seu serviço.
A primeira lei da “responsabilidade social” é, portanto, limitar os impactos exercidos
sobre as pessoas o máximo possível. E o mesmo se aplica a todos os outros impactos,
Os impactos sobre a sociedade e a comunidade representam interferências e podem ser
tolerados somente se minuciosamente definidos e interpretados com rigor. Reivindicar
“lealdade” por parte dos empregados, em especial, é inadmissível e ilegítimo. O
relacionamento baseia-se no contrato de trabalho que deve ser interpretado com mais
atenção que qualquer outro contrato previsto em lei. Isso não exclui sentimentos como
afeição, gratidão, amizade, respeito mútuo e confiança entre a organização e as pessoas
que emprega, pois eles são valiosos, embora secundários, e precisam ser conquistados.
A segunda lei, talvez ainda mais importante, é o dever de prever o impacto. É função da
organização olhar para a frente e refletir quais dos seus impactos poderão transformar-se
em problemas sociais e é seu dever tentar evitar esses indesejáveis efeitos colaterais.
Isso é do interesse da própria organização. Quando ela não evita um impacto
indesejável, ele acaba afetando a própria organização, levando a regulamentações, leis
punitivas e interferência externa. No final, o impacto prejudicial ou inoportuno conduz a
“escândalos”; e leis que resultam de um “escândalo” são, invariavelmente,
insatisfatórias. Elas punem noventa e nove inocentes para derrubar um vilão, penalizam
o que está certo e raramente evitam a imperícia. Expressam emoção em vez de razão.
Em contrapartida, quando os líderes de uma instituição prevêem um impacto e refletem
sobre o que precisa ser feito para evitá-lo ou torná-lo aceitável, suas propostas são
aceitas. Sempre que esperaram até que houvesse um “escândalo”, um protesto público,
foram punidos com regulamentações que, com excessiva freqüência, agravaram o
problema.

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Existem exemplos em abundância. Por exemplo, não é verdade que a indústria


automobilística americana não tem se preocupado com a segurança. Ao contrário, ela foi
pioneira em promover o dirigir responsável e implementar estradas seguras. E fez muito
para reduzir o número de acidentes — com sucesso considerável. Hoje, porém, está
sendo criticada por não ter conseguido tornar os acidentes menos perigosos. No entanto,
quando os fabricantes tentaram lançar carros construídos com dispositivos de segurança
(como fez a Ford no início da década de 1950), o público recusou-se a comprálos. Os
fabricantes de automóveis ressentem-se amargamente e consideram total ingratidão o
fato de serem responsabilizados pela fabricação de carros inseguros, de estarem sujeitos
a uma legislação punitiva e expostos ao desprezo do público.
Tudo que só puder ser feito se todos o fizerem, exige uma lei, O “esforço voluntário”,
no qual todos têm de fazer uma coisa arriscada e impopular a curto prazo nunca deu
certo. Em todos os grupos geralmente há pelo menos um membro tolo, ganancioso e
destituído de visão. Se esperarmos por uma “ação voluntária” por parte de todos, nunca
chegaremos a resultado algum. A organização que prevê um problema tem, portanto, o
dever de fazer o que é impopular: refletir sobre o problema, desenvolver uma solução e
agir em favor da política pública adequada, apesar da desaprovação ostensiva por parte
de outros “membros do clube”. Ninguém que tenha assumido essa responsabilidade
falhou — ou sofreu conseqüências. Mas sempre que uma instituição recua, alegando
que “o público não nos permite”, ou “a indústria não nos permite”, acaba pagando um
alto preço. O público perdoará a ignorância, mas não os que deixam de agir
conscientemente. Isso é, justificadamente, considerado covardia.
2. O ideal é que a organização transforme a satisfação das necessidades e carências
sociais em oportunidades para o próprio desempenho, inclusive as criadas por seus
próprios impactos. Numa sociedade pluralista espera-se que cada organização seja uma
empreendedora no sentido tradicional da palavra, isto é, o agente da sociedade que
transfere recursos de um emprego menos produtivo para outro mais produtivo. Cada
organização define “produtivo” em função da própria área de desempenho. Cada uma,
portanto, avalia resultados de modo diferente, mas todas têm à frente a mesma tarefa.
Isso significa, em especial, que é uma exigência ética das empresas transformar
a satisfação de necessidades e carências sociais num negócio rentável.
As necessidades e carências da sociedade deveriam representar oportunidades para
todas as instituições. O aumento do custo do atendimento médico é uma grande
oportunidade para os hospitais, pois exige inovação e liderança empresarial por parte de
seus administradores; mas é para isso que são pagos, afinal. As necessidades da
sociedade moderna quanto à excelência e competência na educação oferecem um
importante desafio empresarial e uma oportunidade às escolas.

Esse aspecto das “responsabilidades sociais das organizações” — a previsão das


necessidades sociais e sua transformação em oportunidades de desempenho e resultados
— pode ser especialmente importante num período de descontinuidade como o que
estamos vivendo. Nos últimos cinqüenta anos, essas oportunidades não eram

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comuns. O maior desafio para todas as instituições é fazer melhor o que já está sendo
feito. As oportunidades para tentar lidar com coisas novas e diferentes, seja nos
negócios, na assistência médica ou na educação, eram raras.

Mas nem sempre foi assim. Há cem anos as grandes oportunidades empresariais
residiam, como as de hoje, na satisfação das necessidades e carências sociais.
Atualmente, tornar a educação ou a habitação urbana um negócio grande e lucrativo,
pode parecer um tanto estranho para as pessoas — homens de negócios e também quem
os criticam. Mas essas oportunidades não são tão diferentes das que levaram ao
desenvolvimento da moderna indústria elétrica, da telefonia, dos jornais e editoras das
grandes cidades, das lojas de departamentos ou do trânsito urbano. Todas representavam
desejos da comunidade há cem anos, todas exigiam visão e coragem empresarial. Todas
exigiam uma considerável quantidade de novas tecnologias e também uma boa porção
de inovação social. Todas eram necessidades do indivíduo que somente poderiam ser
atendidas em termos de massa.

Essas necessidades não foram satisfeitas por terem sido vistas como um “fardo”,
isto é, como “responsabilidades”, mas sim porque foram vistas como oportunidades.
Em outras palavras, explorar oportunidades é a ética da organização.
Resumindo, as organizações não agem de forma “socialmente responsável” quando se
preocupam com “problemas sociais” fora de sua própria esfera de competência e ação.
Elas agem de forma “socialmente responsável” quando satisfazem as necessidades da
sociedade concentrando-se em seu trabalho específico. Elas agem de maneira ainda
mais responsável quando transformam as necessidades do público em suas próprias
realizações. Consciência social é do interesse da organização. As necessidades da
sociedade, se não atendidas, transformam-se em doenças sociais. Nenhuma instituição,
quer se trate de uma empresa ou um hospital, uma universidade ou órgão do governo,
terá probabilidade de prosperar em uma sociedade enferma.

A legitimidade das organizações

A grande maioria das pessoas, e especialmente a esmagadora maioria das pessoas


instruídas de nossa sociedade, é empregada de grandes organizações. Como tal, a
organização exerce, por necessidade, considerável autoridade sobre elas. É, na verdade,
a autoridade imediata para quase todos. Há também os alunos de escolas, faculdades e
universidades e várias outras pessoas que estão inexoravelmente sujeitas à direção e ao
controle de uma ou mais dessas instituições. Portanto, a legitimidade do poder
organizacional e de administrações de organizações — quer se trate de um órgão do
governo, de hospitais, de universidades ou de empresas — representa um problema. É o
problema político da sociedade de organizações. Entretanto, as organizações de nossa
sociedade pluralista não são e não podem ser comunidades genuínas. A meta da
verdadeira comunidade é sempre atingir a

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própria realização, mas hoje a organização não apresenta nenhuma meta dentro de si
mesma, tampouco resultados. Tudo que tem dentro de si mesma são custos.
A comparação de administração, quer seja nos negócios, na universidade, órgão do
governo ou hospital, com um verdadeiro “governo”, apresentada de maneira tão
divertida em Management & Machiaveii é, portanto, uma meia-verdade. As
administrações de instituições sociais modernas (incluindo o órgão do governo que
administra, por exemplo, os correios) não são “governos”. Sua tarefa é antes funcional
que política. Elas exercem o poder e a autoridade que possuem a fim de satisfazer uma
necessidade parcial da sociedade. Ao contrário de poderes pluralistas antigos, sua esfera
não é a totalidade dos recursos e necessidades sociais e comunitárias. Sua esfera se
limita a uma necessidade e exigência social específica. Seu comando se restringe aos
recursos alocados a uma tarefa, específica e limitada, embora vital. Qualquer que seja a
capacidade de desempenho dessas instituições, elas a devem a sua especialização, a sua
limitação a uma tarefa restrita e ao seu investimento de recursos em um propósito
específico, definível e limitado.

Isso significa, acima de tudo, que seus líderes, os chefes dessas organizações, não
podem basear sua posição, seu cargo e sua autoridade em qualquer princípio de
legitimidade tradicional. Eles não podem, por exemplo, basear sua autoridade na
“aprovação dos governados”. Pois os “governados” não são e não podem ser, como uma
verdadeira sociedade política, os beneficiários e o objetivo do “governo”.
Uma grande empresa não existe por causa dos empregados. Seus resultados estão em
outra dimensão e são apenas tangencialmente afetados pelo consentimento, aprovação e
atitude dos funcionários. Da mesma forma, a “clientela” do hospital não são as pessoas
que nele trabalham, mas os pacientes. E isso se aplica a cada uma das instituições da
sociedade pluralista, incluindo órgãos do governo. Se as políticas financeiras que elas
adotam atendem aos interesses dos empregados do Departamento do Tesouro não é
muito importante.

Para atender ao próprio interesse, as organizações devem obrigar seus membros a


assumir o máximo de responsabilidade. Porém, os membros não podem assumir o
controle de áreas que afetam diretamente padrões, desempenho e resultados da
instituição. Nessas áreas, são os padrões, o desempenho e os resultados que devem
dominálos. Tudo que é feito, e como é determinado, em grande parte, pelas carências e
necessidades de pessoas estranhas à instituição e também pela “disciplina”, seja a
definida pela ciência ou pelo mercado, O voto dos trabalhadores da General Motors para
o design de um novo automóvel seria totalmente irrelevante. O que importa é se o
consumidor vai comprá-lo ou não.

Naturalmente, a velha reação da esquerda diante disso é exigir que essas instituições
sejam “legitimadas” por meio do controle do “político soberano”, o Estado. Seus
administradores iriam, então, ser indicados por uma autoridade política legítima e
extrair seu poder do verdadeiro soberano. A experiência tem mostrado que isso não
passa de um sofisma ingênuo. O que realmente acontece são os mesmos esforços inúteis
anteriormente criticados por serem terríveis exemplos de má administração,

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se transformarem em contribuições altamente desejáveis para o bem-estar social. A


participação ou indicação de administradores por parte do governo não altera a função
das instituições. No momento em que as organizações começarem a realizar sua função,
estarão livres do efetivo controle político do governo. De fato, elas precisam ser
independentes para poder desempenhar-se de sua função. Elas devem ser controladas
pela função e avaliadas pelo desempenho.

Naturalmente, uma instituição cujos membros rejeitam sua legitimidade não pode
funcionar. A instituição precisa possibilitar aos seus membros atingirem seus próprios
objetivos. Sabemos há muito que a organização moderna deve conferir status e função
aos seus membros, mas eles também devem servir e realizar os propósitos da
instituição, que nunca poderão ser os próprios. Satisfazer seus membros não é e nunca
pode ser a primeira tarefa ou o teste das organizações pluralistas de nossa sociedade.
Elas precisam satisfazer as pessoas de fora, servir a um propósito independente e atingir
resultados externos. Na melhor das hipóteses, podem integrar e harmonizar os objetivos,
valores e desejos de seus membros com as exigências de sua missão. Mas a missão vem
em primeiro lugar. Ela é dada, é objetiva e é impessoal. E ao mesmo tempo, é
específica, limitada e dirigida a apenas uma das muitas necessidades e carências da
sociedade, da comunidade e do indivíduo.
É essa dedicação a um propósito limitado de uma sociedade mais ampla que
torna nossa moderna organização eficiente. Existe apenas um fundamento para a
autoridade que nossas organizações e suas administrações devem ter: desempenho. Esta
é a única razão pela qual nós as mantemos, toleramos seu exercício de poder e sua
exigência de autoridade. Especificamente, isso significa que precisamos saber o que
“desempenho” representa para esta ou aquela instituição. Precisamos ser capazes de
avaliar, se uma instituição está se desincumbindo de sua responsabilidade e se sua
administração está sendo competente. Precisamos exigir que as instituições e suas
administrações restrinjamse a tarefas específicas cujo desempenho justifique sua
existência e seu poder. Qualquer coisa além disso significa usurpação.
A concentração na tarefa específica é a chave da força, desempenho e legitimidade da
organização na sociedade pluralista. As opiniões quanto à tarefa específica de uma
organização podem e devem diferir. A definição mudará à medida que as circunstâncias,
as necessidades sociais, os valores comunitários e as tecnologias mudarem. De fato,
diferentes instituições do mesmo tipo, por exemplo, diferentes universidades em um
país, podem definir seus objetivos de modo totalmente diverso, assim como diferentes
empresas pertencentes a um setor, ou mesmo diferentes hospitais. Mas, quanto mais
claramente cada uma delas definir seus objetivos, mais forte ficará. Quanto mais
específicos forem os padrões de avaliação e medidas usados para aquilatar o
desempenho, mais eficiente ela se tornará. Quanto mais sua autoridade se basear no
desempenho, mais legítima ela será.“Por seus frutos vocês a conhecerão —“ este pode
muito bem ser o princípio essencial fundamental da nova sociedade pluralista.

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5 – O inicio de uma sociedade empresarial

(Sucessora do estado do bem-estar social)

“Todas as gerações precisam de uma revolução”, concluiu Thomas Jefferson no final


de sua longa vida. Goethe, o grande poeta alemão, seu contemporâneo, embora
ultraconservador, expressou o mesmo sentimento quando escreveu, em idade avançada:
Vernunft wird Unsinn Wohltat, Plage.** Tanto Jefferson quanto Goethe expressavam o
desencanto de sua geração com o legado da Revolução Francesa e do Iluminismo. Mas
eles poderiam perfeitamente estar criticando nosso legado atual, 150 anos mais tarde, o
da extraordinária promessa, o estado do bem-estar social, que teve início no Império
Alemão e redestinava de fato a indigentes e inválidos e que hoje se transformou no
“direito de todos” e numa crescente carga para aqueles que produzem.
Instituições, sistemas e políticas acabam se perpetuando, assim como produtos,
processos e serviços. Isso ocorre quer tenham cumprido ou não seus objetivos, O
mecanismo ainda pode funcionar, mas os pressupostos que lhe deram forma já não
* Este capítulo foi extraído de Innovation and entrepreneurhzp, publicado em 1985.
** A razão se transforma em contra-senso, Os privilégios, em angústias (N. do T.)

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são válidos — como, por exemplo, ocorreu com os dados demográficos que serviram
de base para os planos de assistência médica e sistemas de aposentadoria em todos os
países desenvolvidos nos últimos 100 anos. Então, de fato, a razão se transforma em
contra-senso e os privilégios, em angústias.

Porém, “revoluções”, como havíamos aprendido com Jeiferson, não são a solução. Elas
não podem ser previstas, dirigidas ou controladas, conduzem as pessoas erradas ao
poder e, o que é pior, seus resultados — previsivelmente — são justamente o oposto de
suas promessas. Poucos anos após a morte de Jefferson, em 1826, o grande escritor
político, Alexis de Tocqueville, ressaltou que as revoluções não destroem os grilhões do
antigo regime, elas os ampliam. Tocqueville provou que o legado mais duradouro da
Revolução Francesa foi apertar os mesmos grilhões da França pré-revolucionária — a
sujeição de todo o país a uma burocracia descontrolável e incontrolada, e a centralização
de toda a vida política, intelectual, artística e econômica em Paris. A Revolução Russa
teve como principais conseqüências uma nova servidão para os camponeses, uma
polícia secreta onipotente e uma burocracia rígida, corrupta e asfixiante — as mesmas
características do regime czarista contra o qual os liberais e revolucionários russos
protestaram ruidosa e justificadamente. E o mesmo se pode dizer sobre a macabra
“Grande Revolução Cultural” de Mao.
De fato, sabemos que “revolução” não passa de ilusão, uma ilusão ubíqua do século
XIX, mas talvez hoje o mais desacreditado dos mitos. Sabemos agora que “revolução”
não significa realização e um novo alvorecer. Ela é resultado da decadência senil, da
falência de idéias e instituições, do fracasso da auto-renovação.

E agora também sabemos que teorias, valores e todos os produtos de mentes e mãos
humanas envelhecem e tornam-se rígidos e obsoletos, transformam-se em “angústias”.
Assim sendo, a inovação e o espírito empreendedor são necessários tanto na sociedade
quanto na economia, nas instituições públicas tanto quanto nas empresas. E
precisamente porque a inovação e o espírito empreendedor não são fenômenos que
ocorrem como um todo, mas avançam “passo a passo”, um produto aqui, uma política
ali, um serviço público acolá; porque não são planejados, mas voltados para
oportunidades e necessidades específicas; porque são experimentos e desaparecerão se
não produzirem os resultados esperados e necessários; porque, em outras palavras, são
pragmáticos em vez de dogmáticos, e modestos em vez de grandiosos — que eles
prometem manter qualquer sociedade, economia, indústria, serviço público ou empresa
flexível e em contínua renovação. Eles conquistam o que Jefferson esperava conseguir
por meio da revolução em todas as gerações, e o fazem sem derramamento de sangue,
guerra civil ou campos de concentração, sem catástrofes econômicas, mas com objetivo,
rumo e controle.

Nós precisamos de uma sociedade empresarial na qual a inovação e o espírito


empreendedor sejam normais, estáveis e contínuos. Assim como a administração se
tornou um setor específico em todas as instituições contemporâneas e o órgão integrador
de nossa sociedade de organizações, a inovação e o espírito empreendedor terão de ser a
atividade que sustentará nossas organizações, economia e sociedade.

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Isso exige que executivos em todas as organizações tornem a inovação e o espírito


empreendedor uma atividade normal, contínua e diária, uma prática em seu
próprio trabalho e no da organização.

Planejar não é a solução


Ao se falar de políticas públicas e medidas governamentais necessárias na sociedade
empresarial a primeira prioridade é definir o que funcionará — especialmente
quando as políticas não-funcionais são tão populares hoje em dia.
“Planejar”, segundo a acepção habitual do termo é, na verdade, uma medida
incompatível com uma sociedade e uma economia empresarial. A inovação deve,
realmente, ter um objetivo, e o espírito empreendedor deve ser administrado. Mas a
inovação, quase que por definição, deve ser descentralizada, adhoc, autônoma,
específica e microeconômica e é melhor que comece de forma modesta, experimental e
flexível. Na verdade, as oportunidades para inovar são encontradas, em sua totalidade,
no desenrolar dos acontecimentos. Elas não serão encontradas nos conjuntos concretos
com que o planejador lida por necessidade, mas fora deles — no inesperado, na
incongruência, na diferença entre “o copo está meio cheio” e “o copo está meio vazio”,
no elo fraco de um processo. Quando a divergência se torna “estatisticamente
significativa” e, dessa forma, visível ao planejador, é tarde demais. Oportunidades de
inovação não aparecem na tempestade, mas no leve sussurrar da brisa.

Desistência sistemática

Uma das mudanças fundamentais na visão e percepção do mundo nos últimos vinte
anos — uma reviravolta verdadeiramente monumental — é a compreensão de que os
órgãos e políticas governamentais têm origem humana, e não divina e que, portanto,
certamente serão obsoletos com bastante rapidez. No entanto, a política ainda se baseia
na antiga suposição de que tudo que o governo faz está fundamentado na natureza da
sociedade humana e, assim, “dura para sempre”. Como resultado, até agora não surgiu
um mecanismo político que descarte no governo o que é antigo, gasto, que já não
produz.

Ou, para sermos exatos, o que temos ainda não está funcionando. Nos EUA,
ultimamente tem surgido uma série de “leis do ocaso”, que determinam que um órgão
governamental ou uma lei pública prescreva após um certo período de tempo, a menos
que seja especificamente determinado que voltem a atuar. Essas leis, porém, não
funcionaram, em parte porque não há critérios objetivos que determinem quando um
órgão ou lei deixou de ser funcional, e em parte porque até agora não existe um
processo de desistência organizado; mas, talvez, principalmente porque ainda não
aprendemos a desenvolver métodos novos ou alternativos para realizar o que um

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órgão ou uma lei ineficiente deveria executar. Desenvolver os princípios e o processo


para tornar as “leis do ocaso” significativas e eficientes é uma das importantes
inovações sociais que nos esperam — e que precisam ser colocadas em prática em
breve. Nossas sociedades estão preparadas para isso.

O desafio para os indivíduos

Numa sociedade empresarial, os indivíduos enfrentam um enorme desafio que precisa


ser explorado como uma oportunidade: a necessidade de proporcionar aprendizado e
reaprendizado contínuos. Na sociedade tradicional podia-se partir do princípio — e era
o que ocorria — que o aprendizado terminava na adolescência ou, no máximo, ao
atingirmos a idade adulta. O que não era aprendido até os 2 anos, não seria aprendido
nunca mais, O que era aprendido até essa idade seria aplicado, inalterado, pelo resto da
vida. Nesses princípios baseavam-se o aprendizado, os ofícios e profissões tradicionais,
e também os sistemas tradicionais de ensino e as escolas. Ofícios, profissões, sistemas
de educação e escolas ainda são, de modo geral, baseados nesses pressupostos.
Naturalmente, sempre houve exceções entre alguns grupos que praticavam o
aprendizado e reaprendizado contínuos: os grandes artistas e intelectuais, monges zen-
budistas, místicos, os jesuítas. Mas essas exceções eram tão raras que podiam ser
ignoradas.

Em uma sociedade empreendedora, porém, essas “exceções” tornam-se os modelos.


Nela, o certo será supor que os indivíduos terão de aprender coisas novas depois da
idade adulta — e, talvez, mais que uma vez, e que o que aprenderam até os 21 anos
começará a ficar obsoleto após cinco ou dez anos e terá de ser substituído — ou pelo
menos renovado — por novo aprendizado, novas técnicas e novo conhecimento.
Uma das implicações desse fato é que os indivíduos terão de assumir cada vez mais o
próprio aprendizado e reaprendizado contínuos, o próprio desenvolvimento e a própria
carreira. Eles não poderão mais partir do princípio de que o que aprenderam quando
crianças e jovens servirá de “base” para o resto de suas vidas. O que aprenderam será a
“plataforma de lançamento” — o local de onde decolar, e não sobre o qual construir e
ficar. Eles não poderão mais supor que “ingressam numa carreira” que então seguirá ao
longo de um “caminho profissional” predeterminado, bem sinalizado e planejado até um
destino conhecido — o que o exército americano chama de “subir de posto”. De agora
em diante, deve-se supor que os indivíduos terão de encontrar, definir e desenvolver por
si mesmos várias “carreiras” ao longo de suas vidas profissionais.

E quanto maior o grau de escolaridade dos indivíduos, maior será o espírito


empreendedor que cercará suas carreiras e maiores serão seus desafios de aprendizado.
Talvez um carpinteiro ainda possa esperar que as habilidades que adquiriu quando
aprendiz e estagiário serão úteis por quarenta anos. Médicos, engenheiros, metalúrgicos,
químicos, contadores, advogados, professores e gerentes devem partir do

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princípio de que as habilidades, os conhecimentos e os instrumentos que terão de


dominar e aplicar daqui a quinze anos serão novos e diferentes. De fato é melhor que
suponham que daqui a quinze anos estarão fazendo coisas novas e bem diferentes, que
terão novas e diferentes metas e, claro, em muitos casos, “carreiras” diferentes. E
somente eles podem encarregar-se do aprendizado e reaprendizado necessários e
estabelecer seu próprio rumo. Tradição, convenção e “política corporativa”
representarão um obstáculo, e não um auxílio. Isso também significa que uma sociedade
empreendedora desafia hábitos e pressupostos do ensino e aprendizado. Os sistemas
educacionais em todo o mundo foram fortemente influenciados pelos avanços da
Europa no século XVII. Houve acréscimos e mudanças significativos, mas o plano
estrutural básico de nossas escolas e universidades remonta a trezentos anos ou mai
Agora um novo pensamento e novas abordagens, em alguns casos radicalmente novos,
são necessários em todos os níveis. O uso de computadores na pré-escola pode ser uma
moda passageira, mas crianças de quatro anos expostas à televisão esperam e exigem
uma pedagogia muito diferente daquela orientada para as crianças da mesma idade há
cinqüenta anos e suas reações são também bastante diversas.
Jovens determinados a seguir uma “profissão” — isto é, 4/5 dos alunos universitários de
hoje — precisam de uma “educação liberal”. Mas essa educação tem um significado
claramente diferente da versão do século XIX do currículo do século XVII e que
constituía uma “educação liberal” no mundo de língua inglesa ou que constituía o
“Allgemeine Bil.dung”, na Alemanha. Se esse desafio não for enfrentado, corremos o
risco de perder totalmente o conceito fundamental de “educação liberal” e para
buscarmos a educação puramente vocacional e especializada, o que colocaria em perigo
a base educacional da comunidade e, no final, a própria comunidade. Porém, também os
educadores terão de aceitar que a escola não se destina apenas aos jovens e que o
desafio maior — mas também a maior oportunidade — para ela encontra-se no
reaprendizado contínuo de adultos que já dispõem de elevados níveis de escolaridade. E,
até o momento, não elaboramos uma teoria educacional para essas tarefas.
Até o momento, não dispomos de ninguém que faça o que fez, no século XVII, o grande
reformador da educação, o checo Johann Comenius, ou que desenvolva como os
educadores jesuítas o sistema que até hoje corresponde à escola e à universidade
“modernas”. Pelo menos nos EUA, porém, a prática está muito adiante da teoria. Em
minha opinião, o avanço mais positivo, e o mais estimulante, ocorrido nos últimos vinte
anos é a efervescência da experimentação pedagógica nesse país — um acertado
subproduto da falta de um “Ministro da Educação” — no que se refere ao aprendizado e
reaprendizado contínuos para adultos, e especialmente para profissionais com

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alto grau de instrução. Sem um “plano mestre”, sem uma “filosofia educacional” e,
claro, sem muito apoio do sistema educacional, a educação contínua e o
desenvolvimento profissional de pessoas com alto grau de instrução e de adultos muito
bem- sucedidos tornou-se uma verdadeira “indústria em crescimento” nos EUA nos
últimos vinte anos.

O surgimento de uma sociedade empresarial pode ser um ponto decisivo na história. Há


100 anos, o pânico que tomou conta do mundo em 1873 pôs fim ao Século do Laissez-
Faire que se iniciara com a publicação do livro A riqueza das nações: investigação
sobre sua natureza e suas causas*, de Adam Smith, em 1776. O estado do bem- estar
social nasceu no pânico de 1873 e todos sabem que ele se desenvolveu e chegou ao seu
final um século depois. Ele pode sobreviver apesar dos desafios demográficos de uma
população que está envelhecendo e de uma taxa de natalidade em processo de retração.
Mas sobreviverá somente se a economia empresarial conseguir aumentar
significativamente os níveis de produtividade. Poderemos até mesmo fazer alguns
acréscimos ao edifício do bem-estar, aumentar um quarto aqui ou fazer uma melhoria
ali. Mas o estado do bem-estar social significa passado, e não futuro — como até
mesmo os velhos liberais hoje sabem. Será a sociedade empresarial sua sucessora? *
São Paulo, Abril Cultural, 1983.

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6 - A cidadania por intermédio do setor social

(As funções das organizações sem fins lucrativos)


As necessidades sociais serão maiores em duas áreas. Primeiramente, na que foi
tradicionalmente considerada caridade: ajuda ao próximo, a inválidos, desamparados,
vítimas. E crescerão, ainda mais, na área de serviços que visam mudara comunidade e
as pessoas.O número de pessoas necessitadas sempre aumenta durante um período de
transição. Há massas de refugiados em todo o mundo, vítimas de guerras e levantes
sociais, de perseguições raciais, étnicas, políticas e religiosas, da incompetência e
crueldade dos governos. Mesmo em sociedades mais sólidas e estáveis, as pessoas serão
descartadas na busca por trabalho qualificado. São necessárias uma ou duas gerações
para que a sociedade e seus integrantes assimilem as mudanças radicais ocorridas na
formação da força de trabalho e as exigências técnicas especializadas. Levará algum
tempo — boa parte de uma geração, a julgar pela experiência histórica — até que a
produtividade dos trabalhadores do setor de prestação de serviços possa aumentar
suficientemente para proporcionar-lhes um padrão de vida de “classe média”.
As necessidades crescerão igualmente — talvez até mais depressa — na outra área de
serviços sociais, serviços esses que não dispensam a caridade, mas procuram mudar as
pessoas e exercer um efeito significativo na comunidade. Tais serviços eram
praticamente desconhecidos antigamente, enquanto a caridade vem sendo praticada há
milênios, mas eles desenvolveram-se rapidamente, principalmente nos EUA.
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Esses serviços serão necessários com urgência ainda maior nas próximas décadas. Um
dos motivos é o rápido aumento no número de idosos em todos os países
* Este capitulo foi extraído de Post-capitalistsociety, publicado em 1993 desenvolvidos,
que em sua maioria mora e quer viver sozinha. Um segundo motivo é a crescente
sofisticação dos serviços de assistência médica e de saúde que exigem pesquisas e
ensino na área e cada vez mais clínicas e hospitais. Há também a crescente necessidade
de aprendizado contínuo para adultos, e a necessidade criada pelo crescente número de
famílias de pais solteiros. O setor de serviços para a comunidade provavelmente será um
dos “setores de crescimento” real nas economias desenvolvidas, embora possamos
esperar que a necessidade por caridade acabará por diminuir outra vez.

Um “terceiro setor”

Nos últimos quarenta anos nenhum programa que tentou lidar com problema social por
intermédio da ação do governo apresentou resultados significativos nos EUA. Órgãos
independentes sem fins lucrativos apresentaram resultados impressionantes. Escolas
públicas nas partes pobres de certas cidades — por exemplo, Nova York, Detroit e
Chicago — têm se deteriorado a um ritmo alarmante. Escolas dirigidas pela Igreja
(especialmente nas escolas pertencentes a dioceses católicas) têm obtido êxitos
surpreendentes nas mesmas comunidades e com crianças vindas de lares desfeitos e de
grupos raciais e étnicos semelhantes. Os únicos resultados na luta contra o alcoolismo
euso de drogas bem-sucedido (muito significativos) foram conseguidos por
organizações independentes como os Alcoólicos Anônimos, o Exército da Salvação e os
Samaritanos. Os únicos êxitos na reintegração de “mães sustentadas pelo Estado” —
mães solteiras, muitas vezes negras ou hispânicas — no mercado de trabalho e em
famílias estáveis têm sido obtidos por organizações autônomas e sem fins lucrativos
como o Judson Center, em Royal Oak, Michigan. Melhorias em importantes áreas do
atendimento médico como prevenção e tratamento de doenças cardíacas e mentais têm
sido, em grande parte, resultado do trabalho de organizações independentes sem fins
lucrativos. A American Heart Association e a American Mental Health Association, por
exemplo, patrocinaram as pesquisas necessárias e iniciaram campanhas educativas de
prevenção e tratamento para a comunidade médica e o público.
Incentivar a criação de organizações comunitárias autônomas no setor social é,
portanto, um passo importante para fazer com que o governo passe a ter um bom
desempenho.

Porém, a maior contribuição feita pela organização comunitária autônoma é na forma de


um novo centro de cidadania representativa. O Megaestado quase destruiu a cidadania.
Para restaurá-la, o Estado necessita de um “terceiro setor”, além dos dois geralmente
reconhecidos, o “setor privado” das empresas, e o “setor público”, do governo. Ele
precisa de um setor social autônomo. A cidadania política não pode mais atuar no
Megaestado. Mesmo que se trate de um país pequeno, os negócios do governo
encontram-se tão distantes que os indivíduos não podem influir de modo significativo.

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Os indivíduos podem votar — e aprendemos da maneira mais dificil nessas últimas


décadas o quanto é importante o direito de voto. Os indivíduos podem pagar impostos
— e mais uma vez aprendemos da maneira mais difícil nessas últimas décadas que esta
é uma obrigação significativa.

Mas os indivíduos não podem assumir responsabilidades, tampouco começar a agir para
participar de forma significativa. Contudo, sem cidadania, o Estado fica vazio. Pode
haver nacionalismo, mas sem cidadania, é provável que ele degenere do patriotismo
para o chauvinismo. Sem cidadania, não pode existir o compromisso responsável que
cria o cidadão e que, em última análise, consolida o Estado, tampouco o senso de
satisfação e orgulho que advém da participação. Sem cidadania, a unidade política, quer
seja chamada de “estado” ou de “império”, não pode ser outra coisa senão poder. O
poder é então a única força que mantém a união. A fim de poder agir em um mundo
perigoso e que muda rapidamente, o Estado pós-capitalista precisa recriar a cidadania.

A necessidade de uma comunidade

Igualmente, é necessário restaurar a comunidade. Comunidades tradicionais não


possuem mais poder de integração; elas não podem sobreviver à mobilidade conferida
ao indivíduo pela especialização. As comunidades tradicionais, sabemos agora, eram
mantidas unidas mais por necessidade, quando não por coerção e temor, e não pelo que
seus membros tinham em comum.

A família tradicional era uma necessidade. Na literatura do século )UX, quase todas as
famílias pertenciam ao que poderíamos hoje chamar de “lares desfeitos”, mas tinham de
se manter unidas, não importa quão intenso fosse o ódio, a aversão e o temor que
nutrissem uns pelos outros. “A família é o lugar em que a gente se sente em casa”, dizia
um ditado do século XIX. Até o século XX a família proporcionava praticamente todos
os serviços sociais disponíveis.Ficar com a família era uma necessidade; ser repudiado
por ela, uma catástrofe. Um personagem comum nas peças e filmes da década de 1920
era o pai cruel que expulsava a filha quando esta aparecia em casa com um filho
ilegítimo. Ela, então, tinha apenas duas opções: cometer suicídio ou tornar-se prostituta.
Hoje, a família está realmente se tornando mais importante para as pessoas, mas como
um vínculo voluntário, um elo de afeição, união, respeito mútuo e não por necessidade.
Os jovens de hoje, passada a fase de rebeldia da adolescência, sentem uma necessidade
muito maior de estar perto dos pais e dos irmãos do que os integrantes de minha
geração. Ainda assim, a família não mais constitui a comunidade. As pessoas precisam
da comunidade, especialmente nas grandes cidades e nos subúrbios onde vivem com

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freqüência cada vez maior. Não se pode mais contar — como ocorria nas aldeias rurais
— com vizinhos que partilham os mesmos interesses, as mesmas ocupações, a mesma
ignorância e que vivem juntos no mesmo mundo. Mesmo que haja uma forte ligação,
não se pode contar com a família. A mobilidade geográfica e ocupacional indica que as
pessoas não ficam mais no mesmo lugar, classe ou cultura em que nasceram, em que
vivem os pais, em que moram irmãos e primos. A comunidade que é necessária para a
sociedade pós-capitalista — principalmente para o trabalhador qualificado — deve se
basear em compromisso e compaixão, e não ser imposta pela proximidade e pelo
isolamento.

Há quarenta anos, imaginei que essa comunidade iria surgir no local de trabalho. Em
Thefuture of industrial man (1942), The new society (1949) e Thepractice of
management (1954), falei sobre a comunidade fabril como o lugar que conferiria
posição e função ao indivíduo, além da responsabilidade de se autogovernar. Mas nem
mesmo no Japão a comunidade fabril funciona por muito tempo. Está se tornando cada
vez mais claro que a comunidade fabril japonesa está mais baseada no temor do que
num sentimento de participação. O operário de uma grande empresa japonesa que adota
um sistema salarial baseado em tempo de serviço e que perde o emprego após os trinta
anos de idade fica praticamente impossibilitado de arrumar uma colocação pelo resto de
sua vida. No Ocidente, a comunidade fabril nunca criou raízes. Eu ainda acredito
firmemente que se deve conferir o máximo de responsabilidade e autogoverno ao
empregado — a idéia que fundamenta minha defesa da comunidade fabril. A
organização baseada em especialização deve tornar-se uma organização baseada em
responsabilidade. Mas os indivíduos, e especialmente os trabalhadores de
conhecimento, precisam de uma esfera adicional de vida social, de relacionamentos
pessoais e de contribuição externa e alheia à organização e, de fato, a sua própria área
especializada de conhecimento.

O voluntário como cidadão

O setor social é uma das áreas em que essa necessidade pode ser satisfeita. Ali os
indivíduos podem contribuir, ter responsabilidade, participar significativamente, ser
“voluntários”. E isso já está ocorrendo nos EUA. A diversidade de credos das igrejas
americanas; a forte ênfase colocada na autonomia regional dos estados, municípios e
cidades; e a tradição comunitária de povoamentos isolados desaceleraram a politização
e a centralização das atividades sociais nos EUA. Como resultado, os EUA hoje
possuem quase um milhão de organizações sem fins lucrativos ativas no setor social.
Elas representam 1/10 de produto nacional bruto — sendo 1/4 dessa soma arrecadado
através de doações, 1/4 pago pelo governo para trabalhos específicos (por exemplo, a
administração de programas de reembolso de atendimento médico), e o restante auferido
com taxas pagas por serviços prestados

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(por exemplo, ensino pago por alunos universitários, ou dinheiro arrecadado nas lojas de
arte encontradas hoje em todos os museus americanos). As empresas sem fins
lucrativos tornaram-se o maior empregador dos EUA. Metade dos americanos adultos
(90 milhões de pessoas) trabalha três horas por semana como “funcionário não-pago”,
ou seja, como voluntário em organizações sem fins lucrativos, igrejas e hospitais,
clínicas/órgãos de assistência médica, serviços comunitários como a Cruz Vermelha,
escoteiras, serviços de reabilitação como o Exército da Salvação e os Alcóolicos
Anônimos, entidades de defesa de mulheres, e em serviços de aulas particulares em
escolas de áreas pobres da cidade. Até o ano de 2000 ou 2010, a quantidade de
voluntários deverá ter aumentado para 120 milhões, com uma média de trabalho de
cinco horas semanais.

Esses voluntários não são mais “ajudantes”; eles tornaram-se “parceiros”. Cada vez
mais, as organizações sem fins lucrativos nos EUA empregam um executivo pago em
tempo integral, e o restante da equipe administrativa é formada por voluntários. Cada
vez mais, eles dão andamento à organização. A mudança mais significativa ocorreu na
Igreja Católica Americana. Atualmente, em uma das maiores dioceses, mulheres leigas
realmente dirigem todas as paróquias como suas “administradoras”, Os padres rezam
missa e ministram os sacramentos. Tudo o mais, inclusive o trabalho social e
comunitário das paróquias, é realizado por “funcionários não-pagos” e dirigido por um
administrador. A principal razão para esse repentino crescimento da participação
voluntária nos EUA não é o aumento da necessidade, mas sim a busca por parte dos
voluntários da comunidade, de compromisso e contribuição. A grande maioria dos
novos voluntários não é de aposentados; ela é formada por maridos e esposas vindos de
famílias de profissionais liberais em que ambos trabalham, pessoas de 30 ou 40 anos,
instruídas, ricas, ocupadas. Elas apreciam seus empregos, mas sentem a necessidade de
fazer algo em que possam “participar significativamente”, para usar a frase que se ouve
repeti- das vezes — quer isso signifique dar aulas sobre a Bíblia na igreja local, ensinar
a tabuada a crianças excepcionais, ou visitar idosos que voltam para casa após uma
longa estada no hospital e ajudá-los com exercícios de reabilitação.
O que as empresas sem fins lucrativos americanas fazem por seus voluntários pode ser
tão importante quanto o que estes fazem por quem recebe seus serviços.
A Giri Scouts ofAmerica (Bandeirantes) é uma das poucas organizações do país que
teve uma integração racial completa. Em suas divisões, as garotas trabalham e brincam
juntas, independentemente da cor ou nação de origem. Mas a maior contribuição do
movimento de integração iniciado na década de 1970 é o fato de ter recrutado um
grande número de mães — negras, asiáticas, hispânicas — em posições de liderança
como voluntárias no trabalho comunitário integrado. A cidadania no setor social e
exercida por seu intermédio não é uma panacéia para os males da sociedade e do Estado
pós-capitalistas, mas pode ser um pré-requisito para lidar com eles. Ela restaura a
responsabilidade que é a sua marca e o orgulho cívico que é a marca da comunidade.

Pagina 79

A necessidade é maior nos locais em que a comunidade e as organizações comunitárias


— e também a cidadania — foram tão prejudicadas a ponto de terem sido quase que
totalmente destruidas: nos países ex-comunistas. O governo desses países não foi
totalmente desacreditado, mas tornou-se completamente impotente. Pode levar anos até
que os governos sucessores dos governos comunistas — na Checoslováquia e no
Casaquistão, na Rússia, na Polônia, na Ucrânia — possam realizar com eficiência as
tarefas que somente um governo pode executar: administrar o dinheiro e os impostos,
dirigir o exército e os tribunais, conduzir as relações exteriores. Enquanto isso, apenas
organizações regionais autônomas sem fins lucrativos — pertencentes ao setor social,
baseadas no serviço voluntário e liberando energias espirituais das pessoas — podem
oferecer os serviços sociais de que a sociedade precisa e o desenvolvimento de liderança
de que o Estado necessita.

Diferentes sociedades e países certamente estruturarão o setor social de modo bastante


diverso. Porém, cada país desenvolvido precisa de um setor de organizações
comunitárias autônomo e autogerido — a fim de oferecer os serviços comunitários
indispensáveis mas, acima de tudo, para restaurar os elos da comunidade e o sentido de
uma cidadania atuante. Historicamente, a comunidade era um fado. No Estado e na
sociedade pós-capitalista, a comunidade deve se tornar um compromisso.

Pagina 80

PARTE 2 – ECONOMIA

7 - 0 fim da continuidade

(A mudança nos fundamentos)


Alguém que conheça apenas estimativas e dados econômicos de 1968 e 1913 — e que
desconheça os anos transcorridos entre esses períodos e qualquer coisa além de
estimativas econômicas — poderia duvidar dos acontecimentos catastróficos desse
século como as duas guerras mundiais, as revoluções russa e chinesa, ou o regime
hitlerista que, aparentemente, não deixaram rastros nas estatísticas. De modo geral, a
enorme expansão econômica em todo o mundo industrial nos últimos vinte anos apenas
compensou as três décadas de estagnação entre as duas guerras mundiais. E a expansão
restringiu-se, em sua maior parte, às nações que já eram “adiantadas” industrialmente
em 1913 — ou, pelo menos, se encontravam em acelerado ritmo de crescimento.
Todos concordaremos em afirmar que a nossa é uma época de mudanças significativas
— na política e na ciência, na concepção do mundo e nos costumes, nas artes e nas
guerras. Porém, na economia, área em que a maioria das pessoas imagina ter havido as
mudanças mais importantes, a última metade do século foi, na verdade, um período de
continuidade surpreendente e quase sem paralelos.

A expansão econômica nos últimos vinte anos foi muito rápida, mas ocorreu
principalmente em setores que já eram “prósperos” antes da Primeira Guerra Mundial.
Foi baseada em tecnologias que por volta de 1913 já estavam bem-estabelecidas e que
tinham o intuito de explorar invenções feitas nos cinqüenta anos anteriores.
Tecnologicamente, esses últimos cinqüenta anos representaram a realização das
promessas que nos foram legadas por nossos avós vitorianos e não pelos anos de
mudanças revolucionárias sobre os quais falam os suplementos de domingo. * Este
capítulo foi extraído de The age ofdiscontinuity, publicado em 969.

Pagina 81

Imagine um bom economista que tivesse adormecido em julho de 1914, imediatamente


antes de os “canhões de agosto” abalarem o mundo dos vitorianos. Ele acordaria então,
cinqüenta e tantos anos depois e, como bom economista, imediatamente buscaria os
últimos relatórios e estimativas da área econômica. Este Rip Van Winkle’ ficaria muito
espantado — não por constatar uma mudança significativa na economia, mas por
observar que, em cinqüenta anos, a mesma havia mudado muito menos do que qualquer
economista (que dirá os bons) teria esperado.
Os números mostrariam que, em meados da década de 1960 todos os países
economicamente desenvolvidos haviam atingido os mesmos níveis de produção e renda
que teriam alcançado caso as tendências econômicas de aproximadamente trinta anos
antes de 1914 tivessem continuado basicamente inalteradas por outros cinqüenta anos.
Todos os outros países que, em 1913, haviam atingido o que agora chamamos de “ponto
de decolagem” em desenvolvimento econômico — os EUA, os países da Europa central
e ocidental e o Japão — hoje estão aproximadamente na situação em que uma projeção
de longo alcance das tendências de crescimento, realizada entre os anos de 1885 e 1913,
os teria colocado meio século depois, ou seja, na atualidade. Isso se aplica inclusive à
Grã-Bretanha: em 1913 seus níveis de crescimento já haviam caído
extraordinariamente.

Ainda mais surpreendente é o fato de que o nosso economista dorminhoco encontraria a


estrutura da geografia econômica do mundo muito pouco modificada. Todas as áreas
que hoje representam as importantes potências industriais já estavam a caminho da
liderança industrial em 1913. Nenhum novo país industrializado passou a fazer parte do
clube desde então. O Brasil, pelo menos na região Sul, pode estar dando os primeiros
passos nessa direção, mas ainda não chegou lá. Quanto a outros, somente áreas que são,
na verdade, extensão das antigas regiões industrializadas, como Canadá, México e
Austrália, atingiram alguma envergadura industrial e, mesmo assim, principalmente
como economias-satélite.

Nos cinqüenta anos que precederam 1913, o mapa econômico mundial mudou tão
rápida e drasticamente quanto o mapa físico durante a era dos descobrimentos nos
séculos XV e XVI. Entre 1860 e 1870, os Estados Unidos e a Alemanha surgiram como
novas e grandes potências industriais e rapidamente ultrapassaram a antiga grande
potência, a Grã-Bretanha. Vinte anos depois, a Rússia, o Japão, a atual Checoslováquia
e a atual Áustria também decolaram, seguidos de perto pela Itália setentrional.

O fato de o desenvolvimento econômico — que parecia tão fácil de ser atingido na


época mesmo para um país não-ocidental como o Japão — ter se tornado tão difícil
ou mesmo aparentemente inatingível depois da Primeira Guerra não representa apenas

Pagina 82
hum Rip Van Winlde — um vagabundo, personagem de Irving Washington, que dorme
durante vinte anos e acorda assombrado com as mudanças ocorridas no mundo (N. do
T.) um contraste econômico importante entre nossa época e a dos vitorianos e do Rei
Eduardo, mas também a maior ameaça política da atualidade — comparável somente à
ameaça da luta de classes na sociedade industrial antes de 1913.
Se nosso economista Rip Van Winkie observasse a tecnologia e estrutura industrial,
estaria igualmente (e inesperadamente) em terreno conhecido. Naturalmente, há
centenas de produtos ao seu redor que lhe seriam desconhecidos: aparelhos elétricos e
de televisão, aviões, antibióticos, computadores. Mas em termos de estrutura e
crescimento econômico, o ritmo de produção ainda ocorre por conta das mesmas
indústrias e, em grande parte, das mesmas tecnologias que existiam em 1913.

Sem mudanças na estrutura industrial

O principal mecanismo de crescimento econômico nos países desenvolvidos durante os


últimos vinte anos foi a agricultura. Em todos esses países (excetuando-se apenas a
Rússia e seus satélites europeus), a produtividade no campo cresceu mais depressa do
que nas indústrias manufatureiras. No entanto, a revolução tecnológica na agricultura
começou bem antes de 1913. A maior parte da “nova” tecnologia agrícola — tratores,
fertilizantes, sementes beneficiadas e raças melhoradas — era usada há vários anos, O
“bom” fazendeiro moderno está perto de atingir a produtividade e os resultados da
“fazenda-modelo” de 1913. O aço vem logo após a agricultura como segunda força
motriz da recente expansão econômica. A capacidade de produção mundial de aço
aumentou cinco vezes desde 1946, liderada pela Rússia e pelo Japão. Mas essa
produção tornou-se sinônimo de poder econômico muito antes da Primeira Guerra
Mundial. Quase todas as siderúrgicas construídas desde a Segunda Guerra usam
processos que remontam à década de 1860 e já eram considerados obsoletos há
cinqüenta anos. A indústria automobilística — provavelmente ocupando hoje o terceiro
lugar em crescimento — também era considerada bastante avançada quando do início
da Primeira Guerra. Henry Ford fabricou 250 mil unidades do modelo T em 1913 —
mais do que a União Soviética produziu em qualquer outro ano. E não existe nenhuma
característica importante em um carro moderno que não possa ser encontrada em
qualquer marca disponível em 1913.
As indústrias de aparelhos elétricos, e dos setores da química orgânica e da telefonia já
eram poderosas há cinqüenta anos. A General Electric, Westinghouse, Siemens, BelI
Telephone Systems e as indústrias químicas alemãs já eram empresas bem-estabelecidas
e respeitadas. A Standard Oil Company, de Rockefeller, e a Shell da Grã-Bretanha
dificilmente poderiam ser consideradas incipientes; elas eram os “polvos” de 1913,
lançando seus tentáculos a todos os países do mundo. E, embora a indústria eletrônica
estivesse apenas começando a dar seus primeiros passos, já era grande o suficiente para

Pagina 83

originar um escândalo tão estrondoso e suculento — o “caso Marconi”, na Inglaterra,


em 1912 — que ameaçou a vida política do primeiro integrante da nova classe de
líderes “democratas”, Lloyd George.

Naturalmente estamos cercados de novas indústrias e tecnologias mas, segundo a


maneira pela qual os economistas definem “importância” — isto é, pela contribuição ao
produto nacional bruto, à renda pessoal e ao emprego — elas ainda são insignificantes,
pelo menos para a economia pública. O avião começou a exercer um impacto
econômico apenas com a chegada dos jatos, na década de 1960, e somente agora o
transporte de carga aéreo está crescendo a um ritmo significativo. Quando os grandes
“aviões jumbo” começarem a voar, aproximadamente em 1970, depois de alguns anos o
avião de carga poderá tornar obsoleto o navio cargueiro, assim como o caminhão
quebrou o monopólio do transporte ferroviário em terra nos últimos trinta anos. Até o
momento, porém, o transporte aéreo de carga ainda é um elemento insignificante no
transporte mundial. Quanto aos computadores, apenas agora que a IBM os está
produzindo a uma taxa de mil por mês, eles estão começando a exercer impacto
econômico significativo. A indústria farmacêutica quase transformou a prática da
medicina nos últimos trinta anos. Graças a novos medicamentos, a assistência médica
tornou-se um excelente negócio no mercado e uma demanda universal; como resultado,
os serviços médicos e seu custeio estão se tornando uma preocupação do governo em
todos os lugares, assim como o ensino se tornou público há 150 anos, quando a
instrução transformou-se em um investimento lucrativo para os indivíduos. No entanto,
economicamente — isto é, em termos de emprego ou de contribuição direta para o
produto nacional bruto — a indústria farmacêutica ainda é pouco relevante e pouco
representa perto de indústrias tradicionais como a de processamento de alimentos, a do
transporte ferroviário e a têxtil. Entre todas as novas indústrias apenas uma — a
indústria de plásticos — conseguiu, até o momento, atingir uma grande importância
econômica (segundo o ponto de vista dos economistas). O plástico era tido, há poucos
anos, como um “substituto” — ersatz — e não como uma nova e importante indústria e
tecnologia. E mesmo a indústria plástica atual é só um tênue presságio do que a
indústria destes “materiais” poderá ser no futuro, tanto econômica quanto
tecnologicamente.

As novas indústrias e suas novas tecnologias parecem muito maiores aos nossos olhos
do que as antigas e conhecidas siderúrgicas e montadoras de automóveis. Elas seduzem
nossa imaginação e oferecem ações atraentes para nossas carteiras de investimentos.
Mas se todas elas (exceto a de plásticos), com toda sua produção e seus empregos,
fossem retiradas das estimativas da economia pública, a diferença mal seria notada na
renda nacional ou na taxa total de emprego, isto é, nos números pelos quais os
economistas medem poder e crescimento econômico.

Um economista de 1913 poderia, portanto, ter feito uma previsão sobre a estrutura
industrial da década de 1960 com razoável precisão. Porém, nenhum economista
sensato da época teria sonhado em prever uma continuidade. A relativa estabilidade nas
tecnologias e nas indústrias durante os últimos cinqüenta anos contrasta fortemente com
a turbulência do meio século anterior. Os cinqüenta anos que terminaram com a
Primeira Guerra Mundial produziram a maioria das invenções que sustentam nossa
moderna civilização industrial. Tintas sintéticas (e com elas a indústria química
orgânica), o método Bessemer de fabricação de aço e o gerador elétrico Siemens
surgiram no final das décadas de 1850 e 1860. A lâmpada elétrica e o fonógrafo foram
inventados (ambos por Edison) no final da década de 1870. Na mesma década surgiram
a máquina de escrever e o telefone que, juntos, tiraram um número considerável de
mulheres de casa, levando-as para os escritórios, conduzindo-as, assim, no meio século
que se seguiu, à emancipação e ao direito devoto femininos. Na década de 1880 surgiu o
automóvel. Na mesma década, descobriu-se o alumínio — juntamente com a borracha
vulcanizada, um pouco mais antiga, o primeiro material realmente novo desde que os
chineses fizeram o papel, aproximadamente na época de Cristo. O telégrafo sem fio de
Marconi e a aspirina (a primeira droga sintética eficaz e o início da indústria
farmacêutica) foram desenvolvidos na década de 1890, o avião dos irmãos Wright em
1903, e a válvula eletrônica (de Forrest e Armstrong) em 1912.
Quase toda a tecnologia industrial moderna é uma extensão e modificação das
invenções e tecnologias daquele notável meio século que antecedeu a Primeira Guerra
Mundial. Essa continuidade, por sua vez, contribuiu para a criação de uma estrutura
industrial estável. Todas as grandes invenções do século XIX originaram, quase que
imediatamente, uma nova e importante indústria e novas grandes empresas que ainda
hoje ocupam lugar de destaque.

De fato, mesmo as “catástrofes” tecnoeconômicas com que somos ostensiva- mente


ameaçados, ainda se encontram no futuro e não no presente. A “explosão populacional”
não causou, até o momento, fome e pestes em larga escala. Na verdade, ainda
estaríamos nos preocupando bastante com “excedentes invendáveis” das safras agrícolas
se a Rússia tivesse continuado a aumentar a produtividade no mesmo ritmo praticado
antes da Primeira Guerra Mundial (sem falar na possibilidade de a produtividade
agrícola russa apresentar um crescimento explosivo como o da agricultura americana).
E, embora tenhamos os meios tecnológicos para controlar a população, até agora nem
mesmo a pílula anticoncepcional exerceu um impacto significativo nos países pobres de
rápido crescimento demográfico.

O mundo da “nova esquerda” e dos hippies, da op art e da Revolução Cultural de Mao


Tsé-tung, da bomba-H e foguetes, parece mais afastado das certezas e percepções dos
vitorianos e da época de Eduardo VII do que estes estavam do final da antigüidade.
Mas na economia, na geografia, na estrutura e na tecnologia industrial, ainda somos
herdeiros dos vitorianos.

Pagina 85

Medido pelos instrumentos dos economistas, o último meio século pertenceu à Era da
Continuidade — o período que menos apresentou mudanças em cerca de trezentos anos,
isto é, desde que o comércio mundial e a agricultura planejada se tornaram fatores
econômicos dominantes, nas décadas finais do século XVII. O crescimento durante esse
período de continuidade foi notável, especialmente nos países que eram já bastante
desenvolvidos antes de 1913. Mas o crescimento se deu ao longo do caminho aberto
naqueles dias longínquos por nossos avós e bisavós. O fato de que tenha se passado
meio século até que o trabalho e as idéias das gerações anteriores produzissem frutos
não representa surpresa. A geração de 1900, que hoje costumamos encarar como
retrógrada, criou bases econômicas de tal força e excelência a ponto de prevalecerem
sobre toda a crueldade, insanidade criminosa e violência suicida dos últimos cinqüenta
anos. As grandes realizações econômicas da atualidade, as economias opulentas de
consumo em massa dos países desenvolvidos, sua produtividade e suas habilidades
tecnológicas, estão solidamente construídas sobre alicerces vitorianos e da época de
Eduardo VII e com matéria-prima daquela época. Elas são, acima de tudo, a realização
das promessas econômicas e tecnológicas da era vitoriana e da época de Eduardo VII e
um testemunho de sua visão econômica. Hoje, contudo, enfrentamos uma Era da
Descontinuidade na economia e tecnologia mundiais. Poderemos ter êxito em também
torná-la uma era de grande crescimento econômico, mas a única certeza que até agora
temos é de que será um período de mudanças — na tecnologia e na política econômica,
nas estruturas das indústrias e na teoria econômica, no conhecimento necessário para
governar e administrar, e nas questões econômicas. Enquanto estávamos ocupados em
concluir o grande edifício econômico do século )UX, seus alicerces abalaram-se sob
nossos pés.

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8 - A mudança na economia mundial*

(Alterações irreversíveis)

Atualmente fala-se muito sobre a mudança na economia mundial, mas — e


esse é o tema deste capítulo — ela não está mudando. Sua base e sua estrutura já
mudaram, provavelmente de modo irreversível. Nos últimos dez ou quinze anos,
ocorreram três mudanças fundamentais na estrutura básica da economia mundial:

1. A economia baseada em produtos primários “desatrelou-se” da economia industrial.


2. Na própria economia industrial, a produção desatrelou-se do emprego.
3. Os fluxos de capital e não o comércio de bens e serviços tornaram-se o instrumento e
a força motriz da economia mundial. É possível que os dois não tenham se
desatrelado, mas o elo ficou bastante solto e, o que é pior, totalmente imprevisível.
Essas mudanças são permanentes e não-cíclicas. Talvez nunca compreendamos o que as
provocou — as causas das mudanças econômicas raramente são simples. Talvez se
passe muito tempo antes que os teóricos da área aceitem que ocorreram mudanças
fundamentais, e mais ainda até que adaptem suas teorias para justificá-las. Eles
certamente ficarão muito relutantes principalmente em aceitar que a economia mundial
tem o controle, e não a macroeconomia do estado nacional, na qual a maioria das teorias
econômicas ainda se concentra exclusivamente.Porém os profissionais, quer se
encontrem no governo ou na empresa, não podem esperar por uma nova teoria, por mais
que ela seja necessária. Eles precisam agir.

E, então, quanto mais suas ações forem baseadas nas novas realidades de uma economia
mundial transformada, maior será a probabilidade de serem bem-sucedidas. * Este
capítulo foi extraído de Thefrontiers ofmanagement where tomorrow’s decisions are
betng shaped today, publicado em 1986.

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A economia baseada em produtos primá rios

A queda dos preços de produtos não-petrolíferos começou em 1977. A queda dos preços
de matérias-primas e a redução na sua demanda contrastou surpreendente- mente com as
previsões. O Report ofthe Club ofRome previu que certamente haveria uma enorme
escassez de todas as matérias-primas no ano de 1985. Ainda mais recentemente, em
1980, o Global 2000 Report da administração do presidente Carter concluiu que a
demanda mundial por alimentos aumentaria regularmente durante pelo menos vinte
anos; que a produção de alimentos em todo o mundo decresceria, exceto nos países
desenvolvidos; e que os preços reais dos alimentos seriam duplicados.
Porém, contrariando todas essas previsões, a produção agrícola no mundo aumentou, na
realidade, quase 1/3 entre 1972 e 1985, atingindo uma alta ainda não superada, e
cresceu ainda mais em países menos desenvolvidos. Da mesma forma, a produção de
praticamente todos os produtos silvícolas, metais e minerais cresceu entre 20 e 30% nos
últimos dez anos, novamente aumentando mais nos países menos desenvolvidos. E não
há o menor motivo para acreditar que essas taxas de crescimento passam a diminuir,
apesar da queda dos preços. De fato, no que se refere a produtos agrícolas, o
crescimento maior, a uma taxa quase exponencial, pode ainda não ter acontecido.
Entretanto, talvez ainda mais surpreendente que o contraste entre o que todos esperavam
e o que ocorreu, seja o fato de que a queda de preços de matérias-primas não tenha
exercido quase nenhum impacto na economia industrial do mundo. No entanto, se havia
um fato indubitavelmente “conhecido” e “comprovado” na teoria do ciclo empresarial,
era o de que uma queda brusca e prolongada nos preços de matérias-primas
inevitavelmente, e no período de dezoito a trinta meses, acarretaria uma crise mundial
na economia industrial. A economia industrial certamente não está normal segundo
qualquer definição do termo, mas é certo também que não passa por uma depressão
mundial. De fato, a produção industrial em países não- comunistas desenvolvidos tem
apresentado um crescimento regular e contínuo, embora a um ritmo menos acelerado,
especialmente na Europa Ocidental.

A economia de matérias-primas, portanto, desatrelou-se da economia industrial. Essa é


uma mudança estrutural importante na economia mundial, com extraordinárias
implicações para as políticas social e econômica e para a teoria econômica, tanto em
países desenvolvidos quanto em desenvolvimento.

Assim, é muito improvável que os preços das matérias-primas aumentem


significativamente em comparação aos dos bens manufaturados (ou de serviços
altamente qualificados como informática, educação ou assistência médica) exceto no
caso de uma violenta guerra prolongada.

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Uma das implicações dessa brusca mudança relativa ao comércio de produtos primários
diz respeito aos países desenvolvidos, quer se trate de importantes exportadores de
matérias-primas como os EUA, ou grandes importadores como o Japão. Durante dois
séculos, os EUA vêm considerando a abertura dos mercados para seus produtos
agrícolas e suas matérias-primas como essencial para sua política comercial
internacional. De fato, isso é o que significa nos EUA uma “economia mundial aberta ’
e de “livre comércio”. Isso ainda faz sentido? Ou os EUA precisam aceitar que os
mercados estrangeiros para seus alimentos e matérias-primas encontram-se num longo e
irreversível declínio? Mas, também, faz sentido para o Japão basear sua política
econômica internacional na necessidade de captar divisas suficientes para pagar as
importações de matéria-prima e alimentos? Desde que o Japão abriu as portas para o
exterior há 120 anos, a preocupação, que chega quase a uma obsessão nacional, com sua
dependência nas importações de matérias-primas e alimentos tem sido a força
propulsora da política, e não só da economia japonesa. Mas hoje o Japão pode muito
bem partir do princípio, muito mais realista no mundo atual, de que há oferta excessiva
de alimentos e matérias-primas.

Chegando a uma conclusão lógica, esses acontecimentos podem significar que uma
variante da tradicional política japonesa — altamente “mercantilista”, com forte
diminuição na ênfase no consumo doméstico e formação de capital, e com proteção de
indústrias “incipientes” — pode servir melhor aos EUA do que as suas próprias
tradições. Inversamente, os japoneses podem ser mais bem atendidos por alguma
variante das políticas tradicionais americanas e, especialmente, passar a favorecer o
consumo e não mais a poupança e a formação de capital. Mas será provável ocorrer um
rompimento de convicções políticas e comprometimentos de mais de cem anos? A partir
de agora os fundamentos da política econômica certamente serão criticados com
freqüência cada vez maior nesses dois países, e também em todos os demais países
desenvolvidos.

Contudo, eles também serão cada vez mais fiscalizados pelos principais países do
Terceiro Mundo. Pois se produtos primários estão assumindo uma posição de menor
importância na economia do mundo desenvolvido, as teorias e políticas tradicionais de
desenvolvimento estão perdendo suas bases. Todas são fundamentadas na hipótese
‘historicamente válida’ de que os países em desenvolvimento pagam pela importação de
bens de capital com a exportação de produtos primários — produtos agrícolas e
silvícolas, minerais, metais. Todas essas teorias de desenvolvimento, por mais que se
diferenciem sob outros aspectos, ainda pressupõem que a aquisição de matérias-primas
por parte de países industrialmente desenvolvidos precisam crescer pelo menos tão
depressa quanto a produção industrial desses países. Isso implica que, durante um amplo
período de tempo, qualquer produtor de matérias-primas torna-se um investimento de
menor risco e apresenta uma balança comercial mais favorável. Mas isso tornou-se
altamente questionável. Em que base, então, pode-se fundamentar o desenvolvimento
econômico, especialmente em países que não possuem uma população grande o bastante
para desenvolver uma economia industrial

Pagina 89

baseada no mercado interno? E, como veremos a seguir, o desenvolvimento econômico


desses países também não pode mais se basear no baixo custo da mão-de-obra.

Qual o significado de “desindustrialização”

A segunda maior mudança na economia mundial reside no desatrelamento da produção


do setor fabril do emprego na indústria. Aumentar a produção industrial em países
desenvolvidos realmente se tornou um meio de reduzir o emprego operário. Como
conseqüência os custos de mão-de-obra estão se tornando cada vez menos importantes
como “custo comparativo” e como fator de concorrência.

Fala-se muito hoje em dia sobre a “desindustrialização” dos EUA mas, na verdade, a
produção fabril tem crescido regularmente em volumes absolutos e não caiu, de forma
alguma, como percentagem da economia como um todo. Desde o final da guerra da
Coréia, ou seja, há mais de trinta anos, ela manteve uma taxa estável de
aproximadamente 23-24% do PNB total dos EUA. Da mesma forma, ela se manteve no
nível costumeiro em todos os maiores países industrializados. Assim, não é a economia
americana que está sendo “desindustrializada”, mas sim a sua força de trabalho.
Essa tendência não é nova. Na década de 1920 um em cada três americanos
ativos era operário. Na década de 1950, a proporção ainda era de um em cada quatro.
Hoje é de um em cada seis e está caindo. Mas, embora a tendência esteja se
desenvolvendo há muito tempo, ultimamente acelerou-se a ponto de, pelo menos em
tempos de paz, nenhum aumento da produção &bril, não importa quão grande seja,
poder reverter a longo prazo o declínio da quantidade de empregos operários nas
fábricas ou em sua proporção na força de trabalho. A tendência é a mesma em todos os
países desenvolvidos e é, naturalmente, mais pronunciada no Japão. É, portanto,
altamente provável que países desenvolvidos como os EUA ou Japão empreguem, até o
ano 2010, uma parcela da força de trabalho no setor fabril inferior à que os países
desenvolvidos empregam agora na agricultura — 1/10, no máximo.
Se uma empresa, indústria ou país não conseguir, nos próximos vinte e cinco anos,
aumentar expressivamente a produção fabril e, ao mesmo tempo, reduzir a força de
trabalho operária, não poderá esperar continuar competitivo, ou mesmo “desenvolvido”,
e irá regredir com relativa rapidez. A Grã-Bretanha apresentou um declínio industrial
nos últimos 25 anos, principalmente porque o número de operários por unidade de
produção fabril diminuiu com muito mais lentidão do que em todos os outros países
não-comunistas desenvolvidos. Esta, porém, não é uma conclusão que políticos, líderes
trabalhistas ou mesmo o público em geral possa compreender ou aceitar facilmente.
A escolha entre uma política industrial favorável àprodução e outra ao emprego
será uma questão política singularmente controversa durante o restante deste século

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é outra conseqüência do desatrelamento entre a produção fabril e o emprego no setor.


Historicamente, essas questões sempre foram consideradas dois lados de uma mesma
moeda. A partir de agora, porém, elas se tornarão exacerbadas em direções diferentes e
estão, de fato, tornando-se alternativas, quando não incompatíveis.

Finalmente, é provável que os custos de mão-de-obra representem cada vez menos uma
vantagem no comércio internacional, simplesmente porque nos países desenvolvidos
eles corresponderão a uma parcela cada vez menor dos custos totais. Porém, os custos
totais dos processos automatizados são ainda menores dos que os das fábricas
tradicionais com baixos custos de mão-de-obra, principalmente porque a automação
elimina os custos ocultos, mas muito elevados da ociosidade, como os custos da má
qualidade e dos resíduos, e os custos de paralisar um maquinário para passar de um
modelo de produto para outro. A depreciação regular dos custos de mão-de-obra, como
um fator importante de concorrência, poderia ser uma circunstância positiva para os
países desenvolvidos, especialmente os EUA. Entretanto, para o Terceiro Mundo e,
principalmente, para os países de rápida industrialização o Brasil, por exemplo, ou a
Coréia do Sul e o México — ela representa um impacto negativo. Dos países que se
industrializaram rapidamente no século XIX, um deles, o Japão, desenvolveu-se
exportando matérias- primas, principalmente seda e chá, a preços que subiam de modo
estável e gradativo. Outro, a Alemanha, desenvolveu-se seguindo os avanços das
indústrias high-tech de sua época, principalmente de produtos elétricos, químicos e
ópticos. O terceiro país de rápida industrialização do século XIX, os EUA, seguiu
ambos os processos. Os dois caminhos estão bloqueados para os países que estão se
industrializando rapidamente na atualidade: o primeiro devido à deterioração das
relações de troca para produtos primários, o segundo porque exige uma “infra-estrutura”
de conhecimento e instrução longe do alcance de um país pobre (embora a Coréia do
Sul esteja se esforçando para atingi-la). A concorrência baseada em baixos custos de
mão-de-obra parecia ser a solução. Será que esse caminho também será bloqueado?

Da economia “real” à “simbólica”

A terceira mudança fundamental é o surgimento da economia simbólica — movimentos


do capital, taxas de câmbio e fluxo de crédito — como diretriz da economia mundial, no
lugar da economia real: o fluxo de bens e serviços — e acima de tudo, independente
desta. É a mais visível e, no entanto, a menos compreendida das mudanças.
Na economia mundial, a economia real de bens e serviços, e a simbólica do
dinheiro, crédito e capital, já não estão estreitamente ligadas uma à outra mas, na
verdade, afastando-se cada vez mais. A teoria econômica internacional tradicional ainda
é neoclássica e afirma que o comércio de bens e serviços determina o fluxo de capital
internacional e as taxas cambiais,

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O fluxo de capital e as taxas de câmbio nesses últimos 10 ou 15 anos, contudo,


movimentaram-se com bastante independência do comércio exterior e, de fato (por
exemplo, na alta do dólar em 1984/5) em sentido contrário.

Mas a economia mundial também não se adapta ao modelo keynesiano no qual a


economia simbólica determina a real, e o relacionamento entre as turbulências na
economia mundial e doméstica tornou-se bastante obscuro. Apesar de seu inédito déficit
comercial, os EUA, por exemplo, não apresentou deflação e mal foi capaz de manter a
inflação sob controle. Apesar do déficit comercial, os EUA também apresentam a menor
taxa de desemprego entre os países industrializados importantes, depois do Japão. A
taxa americana é menor, por exemplo, do que a da Alemanha Ocidental, cujas
exportações de bens manufaturados e superávit comercial têm crescido tão depressa
quanto os do Japão. Inversamente, apesar do crescimento exponencial das exportações
do Japão e de seu inédito superávit comercial, a economia nacional japonesa não
prosperou: tem se mantido notavelmente estacionária e não está gerando novos
empregos.

Qual será o provável resultado? Os economistas pressupõem que as duas economias, a


real e a simbólica, devam se unir novamente. Eles discordam, contudo — e com
veemência — sobre se isso ocorrerá numa “aterrissagem tranqüila” ou numa colisão de
frente. Uma das implicações da separação das economias real e simbólica é que a partir
de agora as taxas cambiais entre moedas mais fortes terão de ser tratadas, na teoria
econômica e na política empresarial, igualmente como um fator de “vantagem
comparativa” e, além disso, importante. A teoria econômica afirma que fatores de
vantagem comparativa da economia real — custos comparativos e produtividade de
mão-de-obra, de matéria-prima, de energia, de transportes, e assim por diante —
determinam as taxas de câmbio. E praticamente todos os negócios baseiam suas
políticas nessas premissas. Porém, cada vez mais as taxas cambiais determinam como os
custos da mão-de-obra do país A se rivalizam com os custos de mão-de-obra do país B.
Cada vez mais, as taxas cambiais representam um importante custo comparativo e
totalmente além do controle das empresas. E, então, qualquer firma que esteja exposta à
economia internacional precisa perceber que faz parte de dois empreendimentos ao
mesmo tempo. Ela é fabricante de bens (ou fornecedora de serviços) e uma empresa
financeira, e não pode desconsiderar nenhum dos dois. Especificamente, a empresa que
vende para o exterior — seja como exportadora ou por meio de subsidiárias em países
estrangeiros — terá de se proteger contra a exposição à moeda estrangeira no que se
refere a: receita de vendas, capital de giro destinado à fabricação para exportação, e
investimentos externos. Isso terá de ser feito quer a empresa espere que o valor de sua
própria moeda suba ou desça. Empresas que compram no exterior terão de fazer o
mesmo. De fato, mesmo empresas totalmente nacionais, que enfrentam a concorrência
estrangeira em seu mercado interno, terão de aprender a se proteger da moeda na qual
seus principais concorrentes produzem.

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A liderança da economia mundial

É muito cedo mesmo para imaginar como será a economia do futuro. Será que países
importantes, por exemplo, sucumbirão diante da tradicional reação ao medo
— isto é, o recuo para o protecionismo — ou enfrentarão a mudança na economia
mundial como uma oportunidade? Alguns dos principais planos, porém, já estão muito
claros.

Em primeiro lugar estará a formulação de novas políticas e conceitos de


desenvolvimento, especialmente por parte de países que estão se industrializando
rapidamente como México ou Brasil. Eles não podem mais ter esperança de financiar
seu progresso com as exportações de matérias-primas como, por exemplo, o petróleo
mexicano, mas também está se tornando uma atitude pouco realista acreditar que seus
baixos custos de mão-de-obra permitiriam exportar grandes quantidades de bens
acabados aos países desenvolvidos — que é o que os brasileiros, por exemplo, ainda
esperam. Seria melhor se ingressassem no sistema de produção em parceria, ou seja,
usar sua vantagem de mão-de-obra para se tornarem subempreiteiros de fabricantes em
países desenvolvidos criando mão-de-obra altamente intensiva que não pode ser
automatizada — por exemplo, algumas operações de montagem de peças e
componentes necessários somente em quantidades relativamente pequenas. Países
desenvolvidos simplesmente não dispõem mais da mão-de-obra para executar esse tipo
de trabalho. No entanto, mesmo com a mais profunda automação, ela ainda
corresponderá a 15- 20% de trabalho operário. Mas mesmo se a parceria na produção
for usada em sua capacidade máxima, ela não proporcionará renda suficiente para
favorecer o desenvolvimento, especialmente em países tão grandes quanto cidades-
estado chinesas. Finalmente, chegamos a uma conclusão: a dinâmica econômica
decididamente transformou-se em economia mundial. A teoria econômica predominante
— seja keynesiana, monetarista ou da oferta — considera a economia nacional,
principalmente a de grandes países desenvolvidos, como autônoma e a união da análise
e da política econômica. A economia internacional pode representar uma barreira e uma
limitação, mas não é essencial, e determhante em si. Esse “axioma macroeconômico” do
economista moderno tornou-se progressivamente duvidoso. A partir de agora, qualquer
país — mas também qualquer empresa, principalmente grande — que queira ser bem-
sucedido economicamente, terá de aceitar o fato de que a liderança é exercida pela
economia, mundial e que as políticas econômicas internas apenas obterão êxito se
fortalecerem, ou pelo menos não prejudicarem, a posição competitiva internacional do
país. Esta talvez seja a característica mais importante — certamente é a mais
surpreendente — da nova economia mundial

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PARTE 3 – POLITICA

9 - 0 destino do liberalismo

(De Rousseau a Hitier)

É tido quase como um axioma na literatura política e histórica nossa liberdade ter raízes
no Iluminismo e na Revolução Francesa. Essa crença é de tal modo generalizada, sua
aceitação tão completa, que os descendentes do racionalismo do século XVIII
apropriaram-se da palavra Liberdade, denominando-se liberais. Não se pode negar que o
Iluminismo e a Revolução Francesa contribuíram para a liberdade no século XIX, mas
essa contribuição foi totalmente negativa, dinamitando e varrendo para longe o entulho
da antiga estrutura. Em nada contribuíram para os fundamentos da nova estrutura de
liberdade sobre os quais foi construída a ordem social no século XIX. Ao contrário: o
Iluminismo, a Revolução Francesa e os movimentos que se sucederam, até o liberalismo
racional de nossos dias, são incompatíveis com a liberdade. Fundamentalmente, o
liberalismo racional é totalitário.

E todos os movimentos totalitários dos dois áltimos séculos da história ocidental


nasceram do liberalismo dessa época. Há uma linha reta que liga Rousseau a Hitler —
uma linha que abrange Robespierre, Marx e Stalin. Todos surgiram da falência do
liberalismo racional de suas épocas. Todos conservaram a essência de seus respectivos
credos liberais, e usaram o mesmo mecanismo para converter o totalitarismo latente e
ineficaz do racionalimo, no totalitarismo evidente e eficaz do despotismo
revolucionário. Longe de serem as raízes da liberdade, o Iluminismo e a Revolução
Francesa representam as sementes do despotismo totalitário que hoje ameaça o mundo.
* Este capítulo foi extraído de Thejãture of industrial man, publicado em 1942.

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A descoberta

Constatar que a razão humana é absoluta foi a grande descoberta do Iluminismo. Nela
basearam-se não só as doutrinas liberais subseqüentes, mas também todas as doutrinas
totalitárias que se seguiram a Rousseau. Não foi por acaso que Robespierre criou a
Deusa da Razão; seu simbolismo era mais imperfeito do que o dos revolucionários que
se seguiram mas, na realidade, não muito diferente. Tampouco foi casual o fato de a
Revolução Francesa ter escolhido uma pessoa viva para desempenhar o papel da Deusa
da Razão. Toda a filosofia racionalista é baseada no fato de que ela atribui a perfeição
da razão absoluta a homens vivos, Os símbolos e lemas mudaram. A posição de ser
supremo ocupado pelo “filósofo cientista” em 1750, cem anos depois foi ocupada pelo
sociólogo e seu utilitarismo econômico e o “cálculo prazer-dor”. Hoje, foi substituído
pelo “psicobiólogo científico” e seu determinismo quanto à raça e à propaganda. Hoje,
porém, lutamos basicamente contra o mesmo absolutismo totalitário que foi formulado
pelos iluministas e enciclopedistas — os racionalistas de 1750 — e que primeiramente
nos conduziram à tirania revolucionária do Terror de 1793.

Deve-se compreender que nem tudo que é chamado de liberalismo é, necessariamente,


uma doutrina absolutista. É verdade que todos os movimentos liberais contêm as
sementes da filosofia totalitária — assim como todos os movimentos conservadores
tendem a se tornar reacionários. No continente europeu nunca houve movimentos ou
partidos liberais que não fossem totalitários em suas crenças fundamentais. Nos EUA, o
elemento totalitário teve forte representação desde o início — baseado tanto na
influência européia quanto na tradição puritana. E, desde a última guerra, o liberalismo
se tornou absolutista em todos os lugares. Hoje é fato, embora com reservas, que o
liberal, no que se refere a suas convicções objetivas, é um absolutista.
O fato de a doutrina racionalista ser objetivamente incompatível com a liberdade não é
uma negação da benevolência ou de boa fé racionalista ou liberal do indivíduo. Sem
dúvida, o liberal racionalista acredita sinceramente que ele, e apenas ele, defende a
liberdade e se opõe à tirania. Também não há dúvidas de que ele abomina
subjetivamente a tirania do totalitarismo e tudo que ele representa. E, por sua vez, ele é
a primeira vítima dos déspotas.

Mas tais sentimentos antitotalitários do indivíduo racionalista são inteiramente


ineficazes na política. O racionalismo é totalmente incapaz de uma ação política
positiva, atuando apenas como oposição. Nunca consegue passar da crítica negativa
para a política construtiva. Sempre se opõe radicalmente às instituições livres da
sociedade bem como às que oprimem e cerceiam a liberdade.

O liberal racionalista considera sua função se opor às injustiças, superstições e


preconceitos de sua época. Mas essa oposição à injustiça é apenas parte da hostilidade
geral para com todas as instituições da sociedade, inclusive as livres e justas. Os
iluministas, por exemplo, derrubaram os privilégios aristocratas, a servidão e a
intolerância religiosa. Eles também destruíram a autonomia de províncias e o controle

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dos governos locais; e nenhum país do continente europeu conseguiu se recuperar


totalmente desse sopro de liberdade. Eles atacaram os abusos, os privilégios e a
opressão do clero, diminuíram a importância das igrejas da Europa, submetendo-as à
autoridade administrativa do governo e fizeram o possível para privar a vida religiosa de
sua autonomia social e autoridade moral. E toda a intensidade do desprezo iluminista foi
dirigida contra os tribunais independentes e contra o direito consuetudinário. A
insistência do racionalista do século XVIII em elaborar um código de lei
“racionalmente” perfeito e criar tribunais controlados pelo Estado leva diretamente a um
estado total onipotente. Não foi por acaso que o liberalismo anglo-americano “livre” do
século XIX se baseou em grande parte nessas mesmas instituições repudiadas pelos
iluministas: autonomia local, igrejas livres e autônomas, o direito consuetudinário e um
judiciário independente.
O racionalista não apenas se opõe às instituições existentes e as destrój sem adotar um
princípio de seleção, como é completamente incapaz de desenvolver novas instituições
para substituir as que destruiu. Ele sequer acha necessário que exista uma atividade
construtiva. Para ele, a ausência do mal já é considerada um bem. Ele imagina que sua
tarefa está completa ao conseguir afastar por meio de críticas as instituições prejudiciais
ou opressoras. Mas na vida social e política nada é eficaz a menos que tenha uma
concepção institucional. A sociedade precisa ser organizada numa base de relações de
poder funcionais. A subversão somente é legítima na política se conduzir à construção
de algo melhor. Mas apenas destruir algo — por pior que seja — não é a solução. E, a
menos que se substitua a instituição destruída por outra atuante, a ruína da vida social
daí resultante poderá gerar males ainda piores do que o que foi aniquilado.
O racionalista liberal fracassou em todos os lugares em que chegou ao poder. O destino
do governo liberal de Kerenski, na Rússia, que foi derrubado pelo bolchevismo após
meio ano de estagnação política, é somente o caso mais evidente, Os social- democratas
alemães foram igualmente incapazes de agir politicamente quando chegaram ao poder
em 1918. Eles haviam representado uma oposição extremamente útil durante o governo
do Kaiser. Não há dúvidas de que seus líderes eram sinceros e honrados, que eram
administradores capazes, pessoalmente corajosos e populares. No entanto, o fato
surpreendente não é o de terem fracassado, mas o de terem durado tanto tempo, pois em
1922 ou 1923 eles já estavam totalmente arruinados. O mesmo se aplica aos radicais
franceses, aos liberais italianos ou aos democratas espanhóis. E também nos EUA o
“reformador” geralmente acabou em decepção. A história de todos os governos
municipais nos EUA mostra a ineficiência política desses bem-intencionados
racionalistas.

É impossível explicar um registro tão extraordinário e consistente de fracassos como


tendo sido causado pelas circunstâncias ou por acidentes. A verdadeira razão é que o
liberalismo racional está condenado à esterilidade política por sua própria natureza. Ele
vive em constante conflito consigo mesmo e é baseado em dois princípios que se
excluem mutuamente. Ele só pode contestar, mas não pode agir.

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Por um lado, o racionalista acredita na razão absoluta. Ontem, o progresso ou a
harmonia nacional entre interesse pessoal e o bem comum eram inevitáveis. Hoje há a
crença de que a libido, a frustração e as glândulas explicam todos os conflitos pessoais
ou do grupo. Por outro lado, o liberalismo racionalista acredita que seus princípios
absolutos são resultado de uma dedução racional, são prováveis e racional- mente
incontestáveis. Faz parte da essência do liberalismo racionalista proclamar que, seus
princípios absolutos são racionalmente evidentes.

Entretanto, a razão absoluta nunca pode ser racional, e não pode ser provada ou refutada
pela lógica. A razão absoluta está, por sua própria natureza, acima e além do argumento
racional. A dedução lógica pode e deve ser baseada na razão absoluta, mas nunca pode
prová-la. Conscienciosamente, um princípio absoluto é mais que racional — um
princípio metafísico genuíno que confere uma base válida à lógica racional. Se
formulada e proclamada pelo homem, a razão absoluta deve ser irracional e estar em
conflito insolúvel com a lógica e os meios racionais.

Todos os dogmas básicos do racionalismo durante os últimos cento e cinqüenta anos


não foram apenas irracionais, mas basicamente anti-racionais. Isso foi verdade no
racionalismo filosófico dos iluministas que proclamava a racionalidade inerente do
homem e no racionalismo utilitarista da geração de 1848 que viu na ganância do
indivíduo o mecanismo pelo qual a “mão invisível” da natureza promovia o bem
comum. E é particularmente verdade no racionalismo do século XX que considera o
homem determinado psicológica e biologicamente. Cada um desses princípios nega não
só o livre-arbítrio, como também a razão humana. E cada um desses princípios pode ser
transformado em ação política apenas pela força e por um governante absolutista.
Porém, o racionalista não admite esse fato. Ele precisa sustentar que seus princípios são
racionais e que podem tornar-se eficientes por meios racionais. Ele sustenta como um
dogma que seus princípios são racionalmente evidentes. Por isso, o liberal racionalista
não pode tentar transformá-los em ação política, exceto por meio da conversão racional
— tentativa que pode falhar. Por um lado, ele não pode respeitar qualquer oposição,
pois só pode se opor à verdade absoluta; por outro, ele não pode combatê-la, pois o erro
— e toda oposição à sua verdade absoluta é um erro para um racionalista — só pode ser
atribuído à falta de informação. Nada ilustra melhor esse fato que a frase que se ouvia
com freqüência nas décadas de 1920 e 1930 na Europa e nos EUA: uma pessoa
inteligente deve ser de esquerda. E hoje a crença na onipotência da propaganda exprime
aberta e claramente a base absolutista e a incoerência da doutrina racionalista.
Por um lado, o liberal racionalista não pode ceder. Trata-se de uma doutrina
perfeccionista que não permite concessões. Quem quer que se recuse ver a luz é um
perfeito vilão com o qual é impossível manter relações políticas. Por outro lado, o
racionalista não pode combater ou eliminar inimigos, pois não pode admitir sua
existência. Apenas podem existir pessoas mal-informadas ou enganadas que,
necessariamente, verão a razão quando a incontestável evidência da verdade racional
lhes for apresentada. O liberal racionalista está preso entre a santa ira contra os
conspiradores

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e o zelo educacional para com os mal-informados. Ele sempre sabe o que é certo,
necessário e bom — o que é sempre simples e fácil. Mas ele não pode colocar nada em
prática, pois não pode fazer concessões ao poder e tampouco lutar por ele. Ele está
sempre politicamente imobilizado: extremamente audacioso na teoria e tímido na ação,
forte na oposição e indefeso no poder, certo no papel mas incapaz na política.

De Rousseau a Hitier

O fato de haver apenas um caminho — o totalitarismo — para atingir eficiência política


é a desgraça do liberal racionalista. Sua crença sub jetivamente sincera na liberdade só
pode, objetivamente, conduzir à tirania. Pois há somente um meio de escapar da
esterilidade política do liberal racionalista: deixar o racionalismo e tornar- se
abertamente totalitário, absolutista e revolucionário.

Em pleno Iluminismo, Rousseau deu o passo fatal do racionalismo e da pretensa


racionalidade rumo ao totalitarismo, abertamente irracional e anti-racional. Não há o
pretexto de que a “vontade geral” é racionalmente determinável ou racionalmente
realizável. Trata-se confessadamente de um irracionalismo que desafia a análise racional
e que se situe fora e além da compreensão racional. Ele existe — mas como, onde e
porquê, ninguém sabe. Ele precisa prevalecer — naturalmente, visto que é perfeito e
absoluto. Quem quer que esteja de posse da razão, quem quer que compreenda a
vontade suprema da sociedade, tem o direito e, é claro, o dever de impô-la igualmente à
maioria, à minoria e aos indivíduos. A liberdade reside somente na perfeita realização da
volontégénérale. Rousseau não usa falsas alegações na busca da razão ou da liberdade
individual.

É verdade que Rousseau insistiu na pequena unidade da cidade-estado, com sua


democracia direta e não-representativa, como a única forma perfeita de governo. E ele
estabeleceu o direito inalienável de o indivíduo discordar, abandonando a sociedade, o
que foi considerado uma indicação de um desejo de liberdade individual. Porém, em um
mundo, como o de meados do século XVIII, em que essas condições eram tão pouco
prováveis de se realizar, elas dificilmente poderiam ter sido consideradas como algo
além de prelúdios românticos, em um mundo que, de fato, era obstinadamente realista e
desprovido de romantismo. Por outro lado, a “oferta” feita por Hitier aos judeus para
eles emigrarem também poderia ser considerada “liberdade”.

O mergulho de Rousseau no absoluto irracional tornou os conceitos básicos do


Iluminismo politicamente eficientes. Rousseau estava certo quando viu no repúdio ao
racionalismo a diferença básica de seu sistema em relação ao dos filósofos. Seu
irracionalismo evidente permitiu-lhe livrar-se dos grilhões que condenaram os
enciclopedistas à ineficiência política. Onde eles acreditaram no lento e trabalhoso
processo racional de educação e investigação científica, ele acreditou na luz interior da
revelação.

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Eles tentaram definir o homem de acordo com as leis da física, mas Rousseau viu o
homem como um ser político que age sob impulso e emoção. Onde eles viram a
gradativa melhoria racionalista, ele acreditou no milênio que poderia ser e seria criado
pela mais irracional das forças: a revolução. Sem dúvida ele conhecia mais política e
sociedade que todos os iluministas juntos. Sua visão sobre o homem na sociedade era
realista, enquanto os iluministas racionalistas foram irremediável e pateticamente
românticos.

De fato, Rousseau pode ser contestado apenas se atacarem sua base: a crença na
razão absoluta feita pelo homem, no fato de que ele mesmo a possuía e que quem
quer que possua a razão absoluta tem o direito e o dever de impô-la.
Por ter desprezado o racionalismo defendido pelo Iluminismo, Rousseau tornou-se uma
grande força política até hoje. Por ter mantido a crença dos iluministas no
aperfeiçoamento do ser humano, ele repudiou a liberdade e tornou-se o grande
totalitário e revolucionário que acendeu o estopim de um incêndio universal somente
equiparável ao de nossa geração.

Opapel de Marx

O método de Rousseau foi seguido sempre que um liberalismo politicamente estéril,


porque racionalista, foi convertido em totalitarismo não-racional politicamente eficiente.
O primeiro a seguir seus passos foi Karl Marx. Assim como Rousseau surgiu quando os
iluministas do princípio do século XVIII mostraram sua ineficiência política, Marx
revelou-se quando os racionalistas utilitários do século XIX fracassaram politicamente.
Em 1848, o liberalismo racional estava destruído. Ele teve a ofensiva do poder nas mãos
durante a queda da monarquia reacionária na França, Áustria, Alemanha e Espanha e,
sem exceção, mostrou-se totalmente incapaz de fazer algo com o poder, exceto perdê-lo
outra vez. Marx converteu o liberalismo racional impotente de sua época em uma força
politicamente poderosa abandonando seu racionalismo e adotando um absolutismo
abertamente irracional. Ele conservou o absoluto dos liberais contemporâneos, a tese da
definição econômica que vê o homem como o Homem Econômico racional. Mas
eliminou o racionalismo que esperava a realização da sociedade econômica perfeita a
partir da ação econômica livre e racional do indivíduo. Em seu lugar, divulgou um
princípio irracional: o da determinação da ação humana pela condição de classe do
indivíduo. O princípio nega a capacidade do homem para agir, pensar e analisar
racionalmente. As tarefas e os pensamentos de todos são resultado de uma condição de
classe que está além do controle e compreensão do indivíduo. Marx conservou o
materialismo histórico dos utilitaristas; mas substituiu a inevitável harmonia pela
igualmente inevitável luta de classes. Ele manteve a crença racionalista na perfeição
essencial do homem, mas confinou a perfeição à classe proletária.

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Marx deu um passo a mais que Rousseau. Para este, a revolução era necessária, como
deve realmente ser para todo totalitarista, mas não inevitável. Rousseau deixou um
elemento de dúvida; Marx não deixou nenhum. Em uma visão verdadeiramente
apocalíptica, ele enxergou a inevitabilidade da revolução que precederia o milênio.
Racional- mente, a crença marxista de que o ftituro inevitavelmente pertencerá à
sociedade perfeita sem classes porque todo o passado é feito de sociedades de classes é
um contra-senso implacável, notório e místico. Politicamente, foi a falta de
racionalidade desse item de fé que lhe conferiu força. Ele não só proporcionou uma
crença, mas também possibilitou o surgimento do mentor, do tirano-filósofo
revolucionário que, versado na dialética do inevitável, poderia alegar total sabedoria em
todos os momentos.

Politicamente é irrelevante o fato de Marx ter alegado seguir princípios “científicos” —


assim como é insignificante o fato de Maquiavel ter sido membro da Igreja Católica
Romana e ter gozado de boas relações com ele. Marx ainda teria o mesmo apelo político
se nunca tivesse escrito uma única linha de Das Kapital. Ele foi eficiente não por ser o
mais brilhante historiador do desenvolvimento do capitalismo, tampouco por ser o
teórico mais aborrecido, pedante e inconsistente da economia capitalista, mas por ter
cativado um mundo e uma sociedade já convenci- dos de uma tese absolutista referente
à natureza do homem, e por haver tornado sua tese politicamente eficientes.
Rousseau tornou-se uma tremenda força política porque ocorreu uma revolução. Marx
— embora muito inferior a Rousseau como político, psicólogo e filósofo
— tornou-se uma força de igual intensidade mesmo que a revolução não tenha ocorrido.
O fato de que a revolução de Marx fosse inevitável, ao contrário da de Rousseu, foi
suficiente.

Porém, embora o marxismo tenha fracassado como doutrina revolucionária nos países
industrializados, ele exerceu um impacto duradouro nas crenças políticas no continente
europeu. Ele preparou as grandes massas para o totalitarismo, deixou- as prontas para
aceitar a lógica das idéias absolutistas e apocalípticas criadas pelo homem. Só esse fato
é suficiente para que Marx mereça ser chamado de pai do hitlerismo. Ele também legou
para o totalitarismo de nosso tempo o molde e a estrutura das idéias e do pensamento
político. O que Marx fez com o fracassado liberalismo racional de sua época — o
liberalismo dos economistas clássicos e dos utilitaristas — Hitler fez com o
racionalismo abalado de nossa época — o dos cientistas e psicólogos naturalistas.

A conversão de Hitier

As raízes do nazismo encontram-se no determinismo biológico que se iniciou com


Darwin. E o significado e a estrutura política do hitlerismo podem ser compreendidos
apenas à luz do desenvolvimento filosófico e político desse novo — e, até agora, último
— conjunto de princípios absolutos criados pelo homem.

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Não é a teoria da evolução ou a das neuroses que nos interessam nessa relação, mas sim
a filosofia desenvolvida a partir delas que se manifesta em frases populares como “O
homem é produto de suas glândulas” ou “O homem é produto de suas frustrações
infantis”. Sem dúvida, as duas frases são literalmente verdadeiras, tanto quanto as
declarações de que o homem é produto dos interesses econômicos, educação, digestão,
condição social, religião ou força física e conformação. Cada uma dessas afirmativas é
incontestável; no entanto, cada uma, por si só, é insignificante. Mas nos sessenta anos
transcorridos entre A origem das espécies e a Grande Guerra de 19 14-18, a explicação
do homem como ser biopsicológico foi gradativamente adotada como base para o
liberalismo racional europeu. Os eugenistas, por um lado, e os behavioristas, de outro
— para mencionar apenas os extremistas — desenvolveram a teoria de que o homem é
aperfeiçoável, seja biológica ou psicologicamente.

Em 1900, a crença no determinismo psicológico começava a se tornar popular e


substituia o desgastado determinismo econômico. Nas esferas sociais e políticas, a
mudança se tornou perceptível aproximadamente na mesma época — o medo do
“Perigo Amarelo”, o agravamento do anti-semitismo na França, Áustria e Rússia, o
avanço da publicidade, dos homens de relações públicas e jornais de propaganda
dirigida.

Enquanto os iluministas tentavam educar, e os utilitaristas procuravam estabelecer um


livre comércio e uma bolsa de valores, os novos racionalistas tentavam organizar-se
sobre uma base racial ou “folclórica” e administrar através da propaganda e outros
métodos da moderna psicologia. Como seus predecessores racionalistas, eles
acreditavam num conceito absoluto da natureza do homem. Eles o viam como uma
criatura feita de genes, cromossomos e glândulas, formada e moldada por experiências
psicológicas mensuráveis. Conseqüentemente, também acreditavam na perfeição do ser
humano, ou pelo menos em seu aperfeiçoamento. Eles proclamavam a razão absoluta
dos que compreendem e dominam a criação humana e sua análise

psicológica. Todos os princípios irracionais — mais irracionais talvez, e certamente


mais anti-racionais do que qualquer um dos absolutos precedentes, criados pelo homem
desde o Iluminismo foram considerados “cientificamente” provados, realizáveis por
meios racionais e, portanto, “verdade objetiva”.

A Primeira Guerra Mundial derrubou esse novo racionalismo mesmo antes de ele ter
tempo de transformar-se em uma força política totalmente desenvolvida. A guerra não
podia ser compreendida por meio da “racionalidade” do psicobiólogo ou, na verdade,
por qualquer racionalismo liberal. A guerra era real, real demais, assim como foi a
década que a seguiu. Nessa crise do novo racionalismo, o nazismo deu o passo decisivo
na direção de um totalitarismo completo e politicamente eficiente que poderia explicar
as realidades. Ele tomou o determinismo biológico e a explicação psicológica do
homem e os apresentou como princípios absolutos irracionais. Ao mesmo tempo,
declarou perfeito aqueles que entendiam a “raça” e a “propaganda” e lhes conferiu
direito à liderança política e ao controle absoluto e incontestável.
Uma das grandes diferenças entre a conversão de Hitler do liberalismo racional
ao totalitarismo e o trabalho de seus predecessores, Rousseau e Marx, encontra-se na
exaltação pública de um mestre em relação sociedade organizada. Naturalmente,

Pagina 103

é verdade que no nazismo a grande massa de indivíduos se desindividualiza a ponto de


perder a identidade, mas isso também ocorre no totalitarismo de Rousseau e Marx. No
regime de Hitler, porém, um homem é exaltado acima de todos seus semelhantes e
acima de toda a sociedade: o Líder. Realmente, tal déspota era inevitável nas teorias de
Rousseau e Marx, como mostra claramente a evolução das revoluções russa e francesa.
Mas somente a revolução nazista tornou-o possível. Os nazistas tornaram a necessidade
de ter um líder perfeito num bem político de primeira grandeza. Embora Rousseau tenha
apenas pregado a revolução e Marx a tenha previsto, o princípio de liderança
possibilitou a Hitler realizá-la. Politicamente, seu totalitarismo é o mais eficiente e
implacável. E o tipo de totalitarismo em que as conclusões filosóficas e políticas do
conceito absolutista sobre a perfeição e o aperfeiçoamento humanos são extraídas mais
completa e rigorosamente.

A base do hitlerismo — assim como dos totalitarismos anteriores — foi fornecida já


pronta pelos liberais racionalistas. O método foi usado duas vezes antes com grande
sucesso e Hitler lhe acrescentou um cinismo moral impraticável nas épocas de Marx e
Rousseau. Mas se mostrou possível e até popular no momento em que a psicologia
pregava que o homem não é dotado de uma essência moral. Hitler deve agradecer aos
psicanalistas e psicólogos a explosiva força do nazismo, presente no Fuebrer Prinzp.
Resumindo, quando o Iluminismo começou a desmoronar, Rousseau substituiu a
perfeição racionalmente atingível pela “vontade geral” irracional e até mística. Quando
o liberalismo racional pós-napoleônico dos utilitaristas e economistas ortodoxos ruiu
nas fracassadas revoluções de 1848, Marx substituiu seus princípios absolutos
racionalistas pela perfeição irracional do proletariado e pela inevitabilidade da
sociedade sem classes. E quando o determinismo racionalista psicobiológico da ciência
moderna, de Darwin, Freud e dos behavioristas fracassou sob o impacto da Guerra
Mundial e da depressão, Hitler se apropriou dos princípios defendidos por biólogos e
psicólogos no irracionalismo da raça e da propaganda.

Nenhum dos totalitaristas modificou os elementos principais. Rousseau manteve as


crenças do Iluminismo referentes à natureza do homem e da sociedade. Marx extraiu
dos economistas ortodoxos a afirmativa de que o homem é basicamente um animal
econômico. Hitler afirma juntamente com biólogos e psicólogos que o homem é
basicamente, glândulas, hereditariedade e impressões nervosas. Nenhum dos
revolucionários teve de acrescentar nada às crenças fundamentais do racionalismo de
suas épocas. Tudo que tiveram de fazer foi transpor a verdade e a razão absolutas de um
princípio racionalista para outro irracionalista e pseudoreligioso.
Rousseau declarou que a “vontade geral” acabaria se estabelecendo precisamente
porque não poderia ser racionalmente avaliada. Marx prometeu que o futuro pertenceria
à sociedade sem classes exatamente porque todo o passado mostrava uma luta de
classes. Hitler propõe o milênio para a raça pura, nórdica, precisamente porque o
passado fora dominado pelas “raças mestiças”. O totalitarismo atrai as pessoas
desencantadas com o racionalismo graças a esses princípios absolutos irracionais, que
também lhe proporcionam força revolucionária e fanatismo, a negação absoluta de toda
a liberdade e a inevitável emergência de um ditador que busca perfeição também.

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10 - Uma abordagem conservadora*

(Princípios do conservadorismo)

Tão popular e tão enganosa quanto a crença de que o Iluminismo teria dado origem à
liberdade no século XIX é a crença de que a Guerra da Independência dos EUA se
baseou nos mesmos princípios da Revolução Francesa, e que esta foi sua predecessora.
Todos os livros de história nos EUA ou na Europa afirmam o mesmo, e não são poucos
os principais protagonistas de ambas as revoluções que partilham dessa crença. No
entanto, é uma completa distorção dos fatos.

A Independência dos EUA se baseou em princípios totalmente contrários aos defendidos


pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. Em intenção e efeito, o fundamento
político para a Revolução Francesa foi proporcionado por um bem-sucedido
contramovimento dirigido ao despotismo racionalista do Iluminismo. Embora ela
tivesse ocorrido tempos depois, foi política e filosoficamente antecipada pela
independência americana. Os conservadores de 1776 e 1787 combateram e superaram o
espírito da Revolução Francesa de modo que o desenvolvimento americano realmente
representa um estágio mais avançado na história do que os Etats Généraux, o Terror
Napoleão. Longe de ser uma revolta contra a antiga tirania do feudalismo, a
Independência dos EUA foi uma contra-revolução conservadora em nome da liberdade
contra a nova tirania do liberalismo racional e do Despotismo Esclarecido.
O totalitarismo liberal do Iluminismo e o totalitarismo revolucionário da Revolução
Francesa podiam apenas destruir o ancien régime. Na melhor das hipóteses,
poderiam ter sido capazes de substituir por uma sociedade atuante, mas despótica e
mercantil, a antiga sociedade pré-mercantilista irremediavelmente falida. Até isso é
* Este capítulo foi extraído de Thefrture of industrial mau, publicado em 1942.

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duvidoso, visto que a Revolução Permanente de Robespierre ou a Guerra Permanente de


Napoleão não propiciaram muito mais base para uma sociedade atuante do que a
doutrina de Hitler. Mas a Guerra da Independência dos EUA obteve êxito em construir
não só uma sociedade atuante, mas livre também.

Mesmo depois de derrotados pelas forças conservadoras da contra-revolução americana,


os princípios da Revolução Francesa — as idéias de 1789 — continuaram a servir à
tirania. Eles proporcionaram as formas de pensamento e a mentalidade para todas as
filosofias totalitárias subseqüentes. A liberdade no mundo ocidental durante o século
XIX e até hoje tem sido baseada nas idéias, princípios e instituições da contra-revolução
conservadora americana de 1776.

Os EUA, a Inglaterra e o continente europeu

Não é novidade afirmar que a base de toda a liberdade no século XIX reside no
movimento conservador que dominou a Revolução Francesa. Tampouco é nova a
descoberta de que, no que se refere à Europa, esse movimento estabeleceu-se na
Inglaterra. Antes de 1850, era lugar-comum no pensamento político da Europa a
Inglaterra ter encontrado “a saída” — assim como mais tarde tornou-se lugar-comum
buscar as origens de liberdade do século XIX na Revolução Francesa. Mas como a
Inglaterra superou a Revolução Francesa? O que lhe permitiu opor-se a ela e, ao mesmo
tempo desenvolver, sem uma guerra civil ou crise social, uma sociedade livre e
mercantil como alternativa ao despotismo da Revolução Francesa e de Napoleão? Uma
resposta simplista a essas perguntas atribuiria o feito inglês ao gênio da raça inglesa, ao
canal da Mancha ou à Constituição inglesa. Mas nenhuma das três respostas é plausível.
Em 1770, tudo na Inglaterra caminhava rapidamente em direção ao Despotismo
Esclarecido. Em 1780, as forças antitotalitárias encontravam-se no poder. O rei havia
sido derrotado para nunca mais recuperar o poder absoluto. Eos rivais revolucionários
do rei, os totalitaristas seguidores de Rousseau, que queriam instalar sua própria tirania,
seu absolutismo, seu governo centralizado no lugar da tirania real e do governo central
do rei, também fracassaram. Não sobreviveu o absolutismo do rei, tampouco o das
massas. Após a bem-sucedida resistência das colônias, o antitotalitarismo voltou ao
poder nas mãos de Pitt e Burke e sob essa nova forma se apoiou sobre o princípio básico
de liberdade. Todas as instituições livres do sistema político inglês do século XIX
remontam, de fato, às origens do curto domínio dos “old whigs” que chegaram ao poder
porque se opuseram à guerra com as treze colônias, que constituiriam os EUA. Eles
introduziram responsabilidade ministerial no Parlamento e o sistema de Conselho de
Ministros, fundaram o moderno sistema de partidos e o serviço público e definiram o
relacionamento entre a Coroa e o Parlamento. A Inglaterra de 1790 não era uma
sociedade muito saudável e muito menos ideal, mas encontrou a estrutura básica
para uma nova sociedade livre. E essa estrutura consistia nos princípios dos “old whigs”

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que praticamente haviam sido destruídos antes da Guerra da Independência dos EUA, e
que não foram apenas restaurados, mas colocados no poder devido à vitoriosa
resistência dos colonos.

O impacto decisivo das idéias e princípios de 1776 se evidencia melhor numa


comparação entre a Inglaterra e a Europa continental. Na Inglaterra, durante o século
XIX, liberais e conservadores basearam-se nos mesmos princípios para uma sociedade
livre, O conflito estabeleceu-se quanto às limitações da liberdade, não quanto à
liberdade em si. Tratava-se do antigo conflito entre “autoritarismo” e “individualismo”,
mas não sobre a essência ou o significado da liberdade.

O partido do continente que se denominava “liberal” era racionalista e absolutista e se


opunha radicalmente a qualquer liberdade real. Os assim-chamados conservadores eram
igualmente racionalistas e absolutistas, embora de um racionalismo reacionário, O
liberal do continente europeu do século XIX foi um produto da Revolução Francesa; os
conservadores eram, na realidade, sobreviventes dos dias do Despotismo Esclarecido.
Eles eram os totalitários racionalistas do passado.

A liberdade na Europa continental durante o século XIX era resultado da incapacidade


de cada doutrina absolutista oposta de impor uma ditadura à outra. A liberdade não era
um fundamento reconhecido, pois era o produto acidental de uma trégua entre dois
inimigos igualmente fortes e totalitários. Na Inglaterra e nos EUA, a liberdade era
essencial e era a base dos conflitos partidários. No continente, a liberdade era negativa
— a ausência da tirania partidária. Ela existia somente porque ambos os lados
apreciavam a oposição ainda menos do que a liberdade.

O conservadorismo americano

É comum, especialmente nos EUA, considerar os acontecimentos de 1776 e 1787 em


termos exclusivamente legais. E a formulação da Constituição americana, a restauração
e a atualização da Constituição Inglesa são, de fato, os monumentos mais tangíveis da
contra-revolução conservadora. Mas esses acontecimentos também criaram a base para
o crescimento de instituições extralegais e extraconstitucionais para os cem anos
futuros. Eles proporcionaram os princípios nos quais eles se basearam, os rumos que
tomaram, e o objetivo pelo qual lutavam. Na vida política e social real, essas
instituições extralegais e extraconstitucionais foram, no mínimo, tão importantes quanto
as próprias constituições.

As constituições são uma estrutura; elas formam um esqueleto legal, e nada mais.
Elas estabelecem os limites para os poderes políticos e as normas de procedimento para
seu exercício, mas não podem organizar a sociedade. Os FoundingFathers* nunca ten
Founding Fathers (Pais peregrinos) — delegados da Convençáo da Constituição na
Filadélfia, em 1787 (N. doT.)

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taram fazer por meios legais e constitucionais o que somente se podia fazer por meio de
instituições sociais. Eles nunca tentaram fabricar instituições, recusaram-se a impor uma
camisa de força institucional à posteridade. Mas, ao solucionar os problemas do dia-a-
dia, eles desenvolveram os princípios de uma sociedade e de um governo livres tão
sólidos que foi possível às gerações posteriores construir sobre suas fundações.

Nos EUA há, em primeiro lugar, o sistema bipartidário baseado não em programas
ideológicos e perfeccionistas, mas em tradições e organizações locais e mecanismos
permanentes. Ao contrário de toda organização partidária na Europa, um partido político
americano não é um organismo central e centralizado cuja preocupação principal é
conquistar o governo central. Apesar do tremendo alvoroço ao redor das eleições
presidenciais e do congresso, o principal interesse dos políticos dos partidos está
concentrado nos acontecimentos da própria cidade, do próprio condado e do próprio
estado. Um partido nacional é, na verdade, uma holding que visa objetivos muito
limitados, O chefe político da cidade, do condado e do estado está interessado nos
acontecimentos nacionais e nas eleições nacionais somente na medida em que afetam
seu próprio campo de atividades, mas o centro de seu poder e interesse continua sendo
local.

Conseqüentemente, as disputas nacionais a cada dois ou quatro anos representam


distúrbios para os organizadores de poder locais e não — como na Europa — sua
principal raison d’être.

Centrado nas questões locais e sendo a “linha partidária” uma conciliação entre vários
pontos de vista locais e regionais conflitantes, um partido americano nunca se
comprometeu com um programa do tipo “tudo ou nada”. Isento de uma ideologia, ele
pode abranger qualquer convicção política, por mais extremada que seja. Assim, o
crescimento de movimentos extremistas fora das fileiras partidárias tornou-se
desnecessário e quase impossível. No entanto, estando livre de compromissos
ideológicos, o partido pode incorporar — e é o que tem feito — qualquer exigência
popular, uma vez que tenha reunido suficiente apoio do povo. Assim sendo, ele evita —
ou pelo menos atenua — mudanças radicais e súbitas na política, mas oferece um
veículo para todos e quaisquer programas que se tornem relevantes.
Concluindo, o partido, nos EUA, não só tem sido uma instituição extremamente
conservadora — anticentralização, anti-autoritária, regional e não-dogmática, mas
também um dos meios mais eficientes para evitar que o governo se torne absoluto. O
partido faz parte do estado, mas não é o estado.

Outra salvaguarda importante para a liberdade nos EUA, embora totalmente extralegal,
tem sido a separação das posições e dos poderes socioeconômico e político. E possível
que a corrupção de políticos profissionais tenha sido a principal razão para que pessoas
“respeitáveis” se afastassem da vida política. É mais provável que a corrupção seja um
efeito, e não a causa, da retirada de pessoas distintas da arena política para o “escritório
de contabilidade”. Seja como for, a resultante falta de respeito e reputação da profissão
política levou à cisão entre as classes política e social governantes, impedindo que
qualquer uma delas se tornasse a classe dominante.

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Acima de tudo, entretanto, a liberdade, nos EUA, alicerçou-se sobre o invisível


autogoverno americano. Uma parte considerável das funções governamentais nos EUA
é exercida local e regionalmente por associações livres, autônomas e voluntárias.
Não se pode dizer que se trata de algo novo, pois suas raízes encontram-se no passado
colonial, se não na Inglaterra medieval. Mas na forma espontânea e desorganizada pela
qual se tornou eficaz nos EUA do século XIX, o autogoverno invisível originou-se nos
princípios de 1776.

As igrejas e as câmaras de comércio, os rotarianos, as associações de pais e mestres,


etc., não estão conscientes de que realizam funções quase governamentais; tampouco
um membro individual está ciente de fazer parte de um governo comunitário
espontâneo. No entanto, essas associações, existentes somente nos EUA, realmente
governam. Elas estabelecem funções e criam padrões comunitários, moldam a opinião
pública e estimulam ou previnem ações comunitárias. Alguém que queira se estabelecer
como advogado, médico ou empresário numa pequena cidade inglesa procura conseguir
auxílio e apoio moral do “fidalgo rural” e da “pequena nobreza”; sem isso estará
perdido. Na Alemanha, antes de Hitler, ele teria de obter o apoio das autoridades do
governo local: o juiz, o chefe de polícia, o governador da província, e assim por diante.
Nos EUA, um recém-chegado tenta ter acesso ao Rotary, à câmara de comércio, à
determinada congregação religiosa, etc. Essas associações espontâneas e voluntárias
talvez sejam a influência antitotalitária mais sólida existente no mundo atual.

O conservadorismo inglês

No que diz respeito à liberdade inglesa durante o século XIX, dois lemas
freqüentemente ouvidos são “soberania parlamentar” e “governo da maioria”. Na
verdade, o sistema político inglês do século XIX consistiu principalmente em limitações
da soberania do parlamento e do governo da maioria. A Inglaterra realmente teve o
governo da minoria limitado pela anuência da maioria.

As instituições políticas reais através das quais esses objetivos foram atingidos
eram: um sistema bipartidário que tornou a oposição parte integrante do governo, o
surgimento do Conselho de Ministros e do serviço público independente.
Pode-se dizer — embora não sem exagero — que a Constituição inglesa durante o
século XIX poderia ter funcionado sem o governo, mas não sem a oposição. A
possibilidade sempre presente de um governo alternativo foi, na verdade, um fator
decisivo na vida política inglesa. A vontade da maioria nunca poderia ser final ou
absoluta, pois a vontade divergente da minoria na oposição era tanto a vontade do povo
britânico e do governo, quanto a vontade da maioria no poder.
Os sistemas inglês e americano têm sido criticados como sendo “não-democráticos”.
Dizem que eles impedem o domínio absoluto da maioria, mas essa não só é

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sua função como também sua maior justificativa. Evitando o domínio absoluto, eles
protegem a liberdade. Igualmente, estamos elogiando e não criticando o sistema
bipartidário quando dizemos que ele evita que pequenos grupos se tornem influentes.
Nada é mais salutar que o fato de a compulsão para novas idéias e novos líderes tenha
de lutar para abrir caminho em grandes partidos existentes e atuantes. Isso obriga o
novo a provar que é melhor e mais eficaz do que o antigo antes que lhe seja permitido
suplantá-lo. Facilitar a atuação de pequenos partidos e facções destrói o governo
parlamentar e conduz a uma inútil subdivisão de unidades políticas, o que torna quase
impossível a existência de um governo disciplinado. Além disso, confere a grupos muito
pequenos, que não representam ninguém além de si mesmos, uma posição decisiva, uma
capacidade de barganha, um poder e uma liberdade de acesso aos bolsos públicos
totalmente fora de proporção com sua real representatividade junto à população. O
sistema bipartidário não só é uma defesa contra a tirania da maioria, mas também da
minoria.

Restringir o domínio da maioria por meio de um sistema bipartidário foi apenas um dos
fatores no mecanismo institucional que dividiu e limitou o governo da Inglaterra. Um
segundo fator foi o Conselho de Ministros, ou, mais precisamente, o surgimento do
primeiro-ministro. Na verdade, embora sem ser de direito, o cargo de primeiro-ministro
que surgiu na época do antigo Pitt, e se manteve inalterado desde Peel, extrai seu poder
não do Parlamento, mas do povo, O primeiro-ministro é eleito pelo povo; o fato de o
eleitor votar no seu representante local para o Parlamento e não em Disraeli, Gladstone
ou Asquith tem significado pouco mais do que o eleitor americano legalmente votar em
um membro do Colégio Eleitoral, e não diretamente no candidato presidencial. Embora
eleito indiretamente, o primeiro-ministro é, de fato, diretamente autorizado a assumir o
poder executivo, mas limitado pelo requisito da confiança parlamentar. Ele está sujeito à
confirmação de mandato a cada cinco anos, quando não antes, mas seu poder é, na
verdade, original e não derivado.

Esse fato, do qual todo primeiro-ministro está ciente, embora não conste de nenhum
texto de lei constitucional inglesa, representou uma divisão efetiva de poderes e funções
— um sistema eficiente de “controle mútuo”. Em primeiro lugar, limitou rigidamente o
alcance e o poder do Parlamento. Opor-se à política de um primeiro- ministro não era
tão fácil quanto na França ou na Alemanha, onde os primeiros- ministros eram
instrumentos do Parlamento. Tratava-se também de uma questão muito mais difícil e
perigosa do que a oposição feita ao presidente, pelo Congresso americano e que não lhe
impõe a responsabilidade de encontrar uma alternativa. A oposição a um primeiro-
ministro que, efetivamente, foi eleito pelo povo impôs a responsabilidade ao Parlamento
de encontrar uma alternativa no mínimo aceitável para o povo. Um primeiro-ministro
derrotado no Parlamento pode sempre convocar o apoio do eleitorado, ou pode voltar-se
para o líder da oposição e obrigá-lo a conseguir o endosso direto do povo.
O serviço público, contudo, é totalmente independente do Parlamento. Ele clara e
indiscutivelmente criou uma limitação externa ao poder parlamentar.
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O serviço público, como se desenvolveu gradativamente na Grã-Bretanha durante o


século XIX, era um co-administrador que dispunha de poder autônomo, fiscalizando e
equilibrando o Parlamento ao mesmo tempo em que era fiscalizado e equilibrado por ele
sem, porém, ser dependente, controlado ou criado por este último — exceto em ficção
legal. No geral, pode-se dizer que o serviço público britânico tem exercido uma função
muito semelhante a dos tribunais nos Estados Unidos. Ele garantiu que não houvesse
quebra repentina na continuidade da evolução, proporcionou a diretriz básica que
fundamentou todas as divergências temporárias, e anulou transgressões do Parlamento
ou do executivo sobre princípios estabelecidos. Supunha-se que todo servidor público
graduado preparasse, simultaneamente, políticas alternativas para os diferentes partidos,
o que asseguraria automaticamente que duas propostas alternativas para uma mesma
situação não fossem diferentes basicamente. A duração de mandatos, a independência
em relação ao poder do Parlamento e do ministério e a existência de um subsecretário
permanente como o verdadeiro chefe de cada departamento, tornou o serviço público
um elemento de controle efetivo do Parlamento e do Conselho de Ministros, O poder
orçamentário do Parlamento e o poder do Conselho de Ministros para estabelecer a
estrutura política geral de trabalho de cada departamento fiscalizava e limitava, por sua
vez, o serviço público. Enquanto o serviço público não cumpria nada além dessa função
original, as freqüentes críticas ouvidas sobre sua falta de iniciativa e imaginação eram
injustificadas. Na medida em que o serviço público tinha funções políticas, ele agia
como um árbitro com poderes semijudiciais. Não é função de um juiz supor e ter
iniciativa, mas sim restringir e conciliar. A iniciativa e a suposição, a liderança política e
a visão tinham de vir do Parlamento ou do Conselho de Ministros, O serviço público
tinha de verificar se tais iniciativas e suposições eram práticas e estavam de acordo com
os princípios básicos para a continuidade do governo. Ele dispunha do que, de fato,
equivalia ao direito e ao dever de um recurso judicial pelo processo administrativo. Para
o ministro conservador e o liberal, o simples fato de um subsecretário permanente ter
sido negligente em seu dever — caso falhasse em preparar a legislação — teria
significado que ele não poderia ter tomado a iniciativa em abandonar sua real tarefa.
Isso, naturalmente, se aplica somente ao período em que a função do serviço público era
um setor do governo, que controlava os outros e era controlado por eles. Não
corresponde mais à verdade hoje, quando o serviço público se tornou, sob muitos
aspectos, o governo. Essa evolução do poder político da burocracia, que reduziu o poder
e a função de ambos, Parlamento e Conselho de Ministros, começou em torno de 1900.
É a tendência mais perigosa na vida política inglesa, quase destruiu a Constituição do
país e criou — pela primeira vez em 175 anos — um perigo real de despotismo absoluto
centralizado na Grã-Bretanha. Partindo de outra posição, lutando contra realidades
completamente diversas, trabalhando em ambientes sociais e emocionais diferentes,
ambos os países conseguiram

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desenvolver uma sociedade mercantilista livre. No entanto, por mais que fossem
diferentes, eles tomaram como ponto de partida o fato de que nenhum homem ou grupo
de homens é perfeito ou possui a Verdade e a Razão absolutas. E os Founding Fathers
americanos e os radicais conservadores na Inglaterra acreditaram num governo misto;
no consentimento dos governados por um lado, e nos direitos de propriedade individual
por outro, como a limitação do governo; na separação do governo entre a esfera política
e a social.

O método do conservadorismo

Os conservadores americanos e ingleses de 1776 e 1787 compartilharam não só os


princípios; eles também tinham em comum o método que usaram para desenvolver uma
sociedade funcional baseada na liberdade. Ambos o usaram da mesma forma e lhe
deram a mesma consideração e importância.

O método da contra-revolução conservadora é tão importante para nós hoje quanto seus
princípios — talvez até mais. Muitos escritores e pensadores políticos acreditam que os
princípios são tudo e que o método é algo irrelevante. Esse é um equívoco básico sobre
a natureza política e ação política que a geração de 1776 jamais teria cometido. Essa
geração sabia que princípios sem realização institucional são tão ineficazes
politicamente — e tão daninhos para a ordem social — quanto instituições sem
princípios. Conseqüentemente, o método era tão importante para ela quanto os
princípios, e seu sucesso deve-se a ambos. Em última análise, seu método consistia em
três partes:
Em primeiro lugar, enquanto conservadores, eles não renovaram e tampouco pretendiam
renovar. Eles nunca idealizaram o passado e não alimentavam ilusões sobre o presente
em que viviam. Eles sabiam que a realidade social havia mudado. Eles nunca teriam
concebido seu trabalho como algo além da integração de uma nova sociedade baseada
em velhos princípios; eles jamais teriam apoiado qualquer tentativa de desfazer o que
havia sido feito. Foi sua recusa incondicional em renovar que fez com que os Founding
Fathers parecessem radicais, e que obscureceu o caráter essencialmente conservador de
seu trabalho. A análise social que realizaram era, de fato, radical ao extremo. Eles nunca
aceitaram a polidez das convenções sociais ou os esperançosos sonhos de renovação
baseados na hipótese de que a antiga sociedade ainda estava atuando embora, na
verdade, já tivesse desaparecido. E as gerações de 1776 e 1787 consideravam a essência
de seu conservadorismo o fato de que não tinham intenção de restaurar. Pois a
restauração é tão violenta e absolutista quanto a revolução. Os Founding Fathers nos
EUA e os radicais conservadores na Inglaterra eram, portanto, conservadores do
presente e do futuro, e não conservadores do passado. Eles sabiam que sua realidade
social era a de um sistema mercantilista, enquanto suas instituições sociais eram pré-
mercantilistas. Seu método consistia em partir desse fato e

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desenvolver uma sociedade mercantil livre e atuante. Eles queriam uma solução para o
futuro, não para o passado, a fim de superar a próxima e não a última revolução. A
segunda característica básica de seu método é o fato de não acreditarem em projetos ou
panacéias. Eles acreditavam em uma ampla estrutura de princípios gerais na qual não
admitiam concessões. Eles sabiam, porém, que uma solução institucional somente é
aceitável se funcionar, isto é, se solucionar um verdadeiro problema social. Eles também
sabiam que praticamente qualquer instrumento institucional real pode ser criado de
modo a atender a praticamente todos os objetivos ideais. Eles eram doutrinários em seus
dogmas, mas extremamente pragmáticos na política do dia-adia. Eles não tentaram
erigir um ideal ou uma estrutura completa, e estavam até dispostos a contradizer-se em
detalhes de soluções reais. Tudo que queriam era encontrar a solução para a tarefa que
tinham em mãos — contanto que esta pudesse encaixar-se na ampla estrutura de
princípios.
Quanto aos EUA, no entanto, pode-se argumentar que os Founding Fathers realmente
engendraram um projeto: a Constituição. Mas o mérito da Constituição reside não no
alcance das normas que estabelece, mas nas limitações. Ela contém alguns princípios
fundamentais, cria algumas instituições básicas e estabelece algumas normas de
procedimento simples. Os membros da Convenção de Filadélfia opuseram-se à inclusão
da Carta de Direitos na Constituição não tanto por serem contrários às suas disposições,
mas por não quererem comprometer o futuro. No entanto, as disposições da Carta de
Direitos têm caráter amplamente negativo e estabelecem não o que deve, mas apenas o
que não deve ser feito. O objetivo final no método da contra-revolução conservadora é o
que Burke chamava de “preceito” e que nada tem a ver com a “sacralização da
tradição”. O próprio Burke rejeitou tradições e precedentes de modo implacável quando
estes não funcionavam. No campo do método político, preceito é a expressão do
princípio da imperfeição humana e diz simplesmente que o homem não pode prever o
futuro e que não sabe para onde vai. A única coisa que ele possivelmente pode saber e
compreender é a sociedade real que se desenvolveu historicamente. Portanto, deve
tomar a realidade social e política existente, e não a sociedade ideal, como base para
suas atividades políticas e sociais. O homem nunca pode inventar instrumentos
institucionais perfeitos. Portanto, é melhor contar com os instrumentos antigos do que
tentar inventar novos para realizar uma tarefa ideal. Sabemos como funciona um antigo
instrumento, o que pode ou não fazer, como usá-lo e até que ponto podemos confiar
nele. E não só nada sabemos sobre novos instrumentos; mesmo que eles sejam
apregoados como perfeitos, como podemos estar bastante certos de que seu
funcionamento será menos satisfatório do que o dos antigos, que ninguém esperava ou
alegava serem perfeitos. Preceito não é apenas a expressão da crença na imperfeição
humana ou da consciência de que toda a sociedade é resultado de um longo
desenvolvimento histórico que distingue estadistas de meros políticos.

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Eles sabiam que podiam usar apenas do que dispunham; sabiam também que o futuro
sempre começou no passado e que é tarefa do estadista decidir que parte de um passado
imperfeito transformar em um futuro melhor, em vez de tentar encontrar o segredo da
mudança política perpétua — ou da perpétua imobilidade política. O surgimento de um
sistema industrial que não pôde ser organizado socialmente pela sociedade mercantilista
do século XIX destruiu — ou pelo menos debilitou consideravelmente — muitos dos
aspectos mais importantes das conquistas de 1776 e 1787. Grande parte da verdadeira
sociedade que a geração de 1776 construiu foi destruída e hoje precisamos desenvolver
uma nova sociedade industrial. Mas tantos os princípios quanto os métodos da contra-
revolução conservadora ainda são válidos. Se quisermos uma sociedade livre, podemos
conquistá-la somente adotando os mesmos princípios básicos. As instituições sociais
reais do futuro serão tão diferentes das criadas em 1776 e 1787 quanto estas, por sua
vez, diferiam das instituições dos séculos XVII e XIX. Se, porém, quisermos que elas
sejam instituições de uma sociedade livre e atuante, devemos desenvolvê-las usando o
mesmo método da geração de 1776: a consciência de que não podemos restaurar e de
que temos de aceitar a nova realidade industrial em vez de tentar voltar ao antigo
sistema mercantilista pré-industrial: ter a disposição de privar-se de projetos e panacéias
e satisfazer-se com a tarefa humilde e menos brilhante de encontrar soluções viáveis —
gradativas e imperfeitas — para problemas imediatos; e conhecimento de que podemos
usar somente o que temos, e que precisamos começar do ponto em que nos
encontramos, não do ponto que queremos atingir. Nossa tarefa hoje pode parecer maior
e mais difícil do que a da geração de 1776 — embora provavelmente estejamos
inclinados a subestimar suas dificuldades, já que conhecemos as respostas, e a
superestimar as nossas, já que não sabemos o que vai acontecer. Porém, é certo que só
podemos esperar completar nossa tarefa se nos basearmos nos princípios e dependermos
dos métodos que a geração de 1776 nos legou.

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11 - Os divisores

(Não há mais “salvação pela sociedade”)

Mesmo na paisagem mais plana há desfiladeiros em que a estrada sobe até um pico e
então desce para um novo vale. A maioria desses desfiladeiros é apenas variação
topográfica, com pouca ou nenhuma diferença de clima, língua ou cultura entre os vales
em cada lado. Mas alguns são diferentes, formam verdadeiros divisores e muitas vezes
nem são altos nem grandiosos. Dos desfiladeiros que cruzam os Alpes, Brenner é o mais
baixo e suave; no entanto, há muito tempo ele marca a fronteira entre as culturas
mediterrânea e nórdica. O Delaware Water Gap, a cerca de 100 quilômetros da cidade
de Nova York, nem é de fato um desfiladeiro; no entanto, divide a costa leste e o centro
dos EUA.

A história também conhece esses divisores e esses também costumam ser poucos
grandiosos e raramente são notados na época em que aparecem. Mas depois que são
cruzados, a paisagem social e política muda, O clima social e político é diferente e o
mesmo ocorre com a linguagem política e social. Há novas realidades.
Em alguma época entre 1965 e 1973, cruzamos um desses divisores e entramos no
“próximo século”. Deixamos doutrinas, compromissos e acordos que moldaram a
política por um ou dois séculos. Encontramo-nos em uma terra política incógnita com
poucos pontos de referência para nos guiar. Ninguém, exceto uns poucos stalinistas,
acredita mais em salvação pela sociedade — a crença que, desde o Iluminismo do
século XIX, tem sido a força dominante e o principal mecanismo político. Mas a única
força política contrária eficaz também está esgotada: a integração política em e por meio
de coligações partidárias. Ela foi a contribuição dos EUA à arte e à prática

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política, criada primeiramente por Mark Hanna no final do século passado e


aperfeiçoada, quarenta anos depois, por Franidin D. Roosevelt como político do New
Deal. * Este capítulo foi extraído de The new realities, publicado em 1989.

Não há mais salvação pela sociedade

“É socialismo, contanto que não ameace o monopólio de poder do Partido Comunista.”


Essa foi a “linha partidária” apregoada por Mikhail Gorbatchev, na Rússia, e por Deng
Xiaoping, na China. Não se trata, porém, de um novo pragmatismo, como chamou a
imprensa ocidental, mas sim de uma clara ideologia do poder muito antiga. Essa linha
repudia totalmente tudo que o comunismo de qualquer espécie — ou socialismo, no
caso — sempre defendeu. E como se o Papa declarasse que não importa se os católicos
acreditam ou não em Cristo, contanto que paguem os dízimos de Pedro a Roma.
Essa política renega descaradamente a proposição fundamental que permitiu a Karl
Marx denominar sua doutrina de socialismo cientifico: a promessa de uma sociedade
duradoura que atingiria a perfeição social e individual, uma sociedade que criaria um
paraíso terrestre. Foi essa crença na salvação pela sociedade que conferiu ao marxismo
sua atração extraordinária. No entanto, ninguém, exceto alguns políticos inúteis e sem
importância, ficou surpreso com a ideologia sobre o poder externada por Gorbatchev.
Todas as outras pessoas — e especialmente nos países comunistas
— haviam perdido a fé na salvação pela sociedade há muito. Todas as outras pessoas
tornaram-se, não pragmáticas, mas céticas.

É possível que Gorbatchev na Rússia, Deng e seus sucessores, na China, consigam obter
êxito em manter o monopólio do poder de seu partido ou mesmo reavivar a economia,
mas não serão capazes de restaurar a crença na salvação pela sociedade, seja por meio
do comunismo ou de qualquer outra doutrina. Ela se foi para sempre. A crença na
salvação pela sociedade também acabou nos países comunistas. Ninguém — exceto,
talvez, os “teólogos da libertação” na América do Sul — acredita mais no poder da ação
social para criar a sociedade perfeita, ou mesmo para aproximá-la de tal ideal, ou para
mudar fundamentalmente o indivíduo a fim de produzir o “novo Adão”.
Há cinqüenta anos, essas crenças eram lugar-comum. Não só os socialistas, mas a
grande maioria de pensadores políticos em todo o mundo acreditava que a ação social
— e principalmente o fim da propriedade privada — mudaria fundamentalmente o ser
humano. Haveria o Homem Socialista, o Homem Nazista, o Homem Comunista, e
assim por diante. As diferenças não se referiam à doutrina básica em si, mas à rapidez
com que se processaria a melhoria e a eficácia de cada ação em particular. Discutiam-se
principalmente os meios. A função do governo e das políticas seria remover os
obstáculos para atingir o aperfeiçoamento social — o que hoje chamaríamos de
“neoconservadorismo” e, há sessenta anos, era chamado de “liberal”?
Ou deveria o governo ativamente criar novas instituições e condições? E agora
isso acabou.

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O governo não vai “definhar”; há poucos sinais disso. Mas qualquer pessoa que
apregoasse hoje a “Great Society* , como Lyndon Baines Johnson fez há apenas vinte
anos, seria ridicularizada. Nós debatemos medidas específicas e questionamos se o
governo deve subsidiar ou proibir essa ou aquela atividade. Cada política será discutida
de acordo com sua própria relação custo/benefício. Suas chances de sucesso serão
debatidas: é provável que o consumo de drogas diminua com sua proibição ou
legalização? É provável que essa ou aquela medida atraia votos, mantenha um partido
no poder, ou afaste os políticos da situação? naturalmente ainda há pessoas — e
provavelmente haverá por muito tempo — que se denominam “socialistas” ou
“trabalhistas”, mas o que isso significa atualmente é exemplificado na pessoa de
François Mitterand, presidente da França desde 1981. Quando chegou ao poder,
Mitterand era o último social-democrata verdadeiramente engajado da Europa, herdeiro
dos programas, das esperanças, das promessas da década de 1930. Em 108 dias, a
realidade — sob a forma de evasão de divisas da França — obrigou-o a reverter sua
rota, O governo socialista de Mitterand tornou-se praticamente o governo mais pró-
capitalista no mundo ocidental, quase do dia para a noite. Desde 1982, o socialismo na
França de Mitterand significava colocar amigos e partidários do governo na presidência
de indústrias nacionalizadas. Atualmente, na França, socialismo é tudo que favorece o
Partido Socialista a se manter no poder. Comparemos esses fatos com o que ocorreu há
cinqüenta anos, em 1931, durante a severa crise econômica na Grã-Bretanha, quando o
primeiro-ministro socialista, Ramsay MacDonald, colocou necessidades econômicas de
curto prazo à frente dos princípios socialistas. MacDonald foi cabalmente
ridicularizado, e considerado traidor e imediatamente perdeu todo o respeito. Mitterand
tornou-se um herói.

John F. Kennedy foi o primeiro presidente americano do século que nem ao menos
fingiu ter um “programa” salvo a conquista do poder. Até hoje é considerado um herói e
uma figura admirada, embora pouco tenha realizado em seus três anos de mandato. E
Lyndon B. Johnson, talvez o último presidente americano que ainda acreditava na
salvação pela sociedade, tornou-se alvo de zombaria por causa dc sua Great Society. Sua
guerra contra a pobreza tornou-se o lema do fracasso. O malogro da salvação pela
sociedade foi maior onde mais ela prometia, nos países comunistas. Ela, porém, também
fracassou no Ocidente. Praticamente nenhum programa de governo aprovado desde a
década de 1950 no mundo ocidental — ou nos países comunistas — foi bem-sucedido.
O último a exercer um efeito positivo talvez tenha sido o Serviço Nacional de Saúde
Britânico, aprovado em 1946-47 e que continua sendo extremamente popular no Reino
Unido, mas que passa por uma crise grave e cada vez mais profunda.
* Great Society — (Grande Sociedade) meta do programa doméstico do governo
Johnson (N. do T.).

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Igualmente importante é o fato de duvidarmos cada vez mais de que haja uma “resposta
correta” para qualquer problema social. Há respostas erradas, com.certeza, mas sabemos
hoje que as situações, o comportamento e os problemas sociais são complexos demais
para que aceitemos uma simples “resposta correta”. Se eles puderem ser solucionados
de alguma maneira, sempre haverá várias soluções — e nenhuma é a mais conveniente.
Agora sabemos que não há uma forma correta de ensinar ou aprender. Há uma forma
correta para um aluno e uma forma correta diferente para outro. Não há um meio
satisfatório de proteger o ambiente contra poluentes e resíduos industriais. Em algumas
situações, proibições e interdições são apropriadas; em outras, multas. Em outras, ainda,
a não-poluição precisa se tornar lucrativa. Para ter apelo popular, contudo, qualquer
promessa de “salvação pela sociedade” precisa ser capaz de dizer, “Esta é a única
forma”, ou pelo menos, “Até agora, este é o melhor caminho”. E assim, encontramo-nos
no final de dois séculos de história ocidental.

A crença na salvação pela fé dominou a Europa medieval. Revivida na Reforma


Protestante do século XVI, ela havia declinado em meados do século XVII. Certamente
cada facção religiosa pregava — e ainda o faz — que o seu “era o único caminho
correto”. Em meados do século XVII, porém, passou-se a aceitar que a fé era assunto
pessoal. Isso não representou o fim das perseguições religiosas, e algumas ainda
existiam mesmo no Ocidente do século XIX. E foi só quando a política separou-se
totalmente da religião, em meados do século XIX, que a ineficiência política baseada na
religião desapareceu, mesmo em países ocidentais. Mas a crença de que a fé religiosa
podia criar a Cidade de Deus na Terra havia desaparecido — ou se tornado irrelevante
— cem anos antes.

O vazio criado pelo desaparecimento da crença na salvação pela fé foi preenchido em


meados de 1700 com o surgimento da crença na salvação pela sociedade, isto é, por
uma ordem social temporal, personificada por um governo igualmente temporal. Essa
crença foi primeiramente exposta por Jean-Jacques Rousseau, na França. Trinta anos
depois, Jeremy Bentham, na Inglaterra, transformou-a num sistema político, e ela foi
moldada em sua forma permanente, o absolutismo “científico”, pelo “pai da sociologia”,
Auguste Comte, e por G. W. F. Hegel, na Alemanha. Os dois então “geraram” Marx que,
por sua vez, gerou Lenin, Hitler e Mao. Quando cresceu o domínio do Ocidente sobre o
mundo, a superioridade de equipamentos, dinheiro e armamentos provavelmente era
menos importante do que a promessa de salvação pela sociedade. E agora isso acabou.

Ofim da mística da revolução

O fim da crença na salvação pela sociedade tem como conseqüência o fim da ilusão
mais difundida dos últimos duzentos anos: a mística da revolução. Ela foi esquecida
quando Mikhail Gorbatchev ousou chamar a Revolução de Outubro de Lenin de “evento
histórico” — ela sempre havia significado, no dicionário comunista,

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o “fim dos tempos”. Não há dúvidas de que continuará a haver revoluções assim como
as houve no passado: golpes de estado, tomadas de poder, rebeliões contra governos
tirânicos e, acima de tudo, as “crises internas” que, em toda a história, têm sido as
causas mais freqüentes de derrubadas violentas de governos. Algumas dessas revoluções
trarão melhorias, outras simplesmente substituirão o Rei Tolo pelo Rei Bobo. Mas a
revolução foi algo totalmente diferente. Tratou-se de um acontecimento messiânico, um
segundo advento secular, que poderia devolver à sociedade e ao ser humano sua pureza
original. Não há duvidas de que revolução seria violenta, mas depois que o
“proletariado oprimido” tivesse se libertado de seus grilhões — ou os virtuosos arianos
tivessem expulsado os judeus — o novo alvorecer anunciaria a utopia. Os “radicais”
derrotados da Revolução Francesa foram os primeiros a ter essa visão messiânica em
1794, quando a sociedade ideal ruiu ao seu redor, conduzindo ao terror e, depois, à
contra-revolução do Directoire. Essa visão reviveu após o fracasso das revoluções de
1848 na Europa continental e se tornou essencial a Marx e ao marxismo quando a
Comuna de Paris, de 1871, terminou em um massacre sangrento e em repressão militar.
Essa mesma visão ainda serviu de estímulo aos seguidores de Mao na “Grande
Revolução Cultural” na China, há apenas quinze anos. Porém, mesmo os terroristas que
matam e incendeiam em nome da revolução — o pequeno bando de maoistas, por
exemplo, que aterroriza os Andes peruanos — não acreditam mais na promessa
messiânica. Eles destroem não porque têm esperança, mas porque se desesperam.

É bem possível que haja novos movimentos messiânicos. O desaparecimento da crença


na salvação pela sociedade e no segundo advento de uma revolução secular pode
suscitar o aparecimento de novos profetas e messias. Mas esses novos movimentos
messiânicos provavelmente serão contra a sociedade e baseados na afirmativa de que só
pode haver salvação pelo indivíduo, fora da sociedade e talvez só mesmo afastando-se
dela.

A Revolução Reagan, nos EUA, e a Revolução Thatcher, na Grã-Bretanha ou a


Perestroika de Gorbatchev, na União Soviética, não representam oposições ao governo,
apesar de toda a retórica. Tanto o presidente Reagan quanto a primeira-ministra
Thatcher aumentaram consistentemente o tamanho e a abrangência de seus respectivos
governos e Gorbatchev pode muito bem imitá-los. A importância desses acontecimentos
— e da “Nova China” de Deng — reside no fato de que eles abandonaram a salvação
pela sociedade. O governo não é mais encarado como o órgão que produzirá uma
sociedade melhor, e muito menos perfeita. A função do governo é cuidar de detalhes
específicos: melhorar a concorrência americana, reduzir o poder dos sindicatos
britânicos, transformar locatários em proprietários através do Conselho Britânico de
Habitação, melhorar a produtividade do campo na Rússia, reduzir a corrupção no
governo chinês e no partido comunista, e assim por diante. Testemunhamos na política o
que aconteceu quando a medicina “moderna” teve início, aproximadamente em 1700: a
rejeição às panacéias, passando-se a fazer diagnósticos específicos e buscar
medicamentos próprios para doenças definidas. Esse novo enfoque não significou

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menos remédios e menos médicos; ele significou muito mais remédios e um número
muito maior de médicos. Da mesma forma, a mudança na política não precisa significar
menos governo e menos medidas governamentais, mas significa que o papel e a função
do governo são encarados de modo diferente — assim como seu objetivo final.

Um vazio
O fim da crença na salvação pela sociedade, que durante duzentos anos tem sido a
influência mais dinâmica na política ocidental e, cada vez mais, na mundial, cria um
vazio, O surgimento do islamismo fundamentalista é uma tentativa de preenchê-lo. É o
resultado do desencantamento com o estado do bem-estar social do Ocidente
“democrático” e com a utopia comunista. O vigoroso ressurgimento da religião como
um elemento da vida pública nos EUA, o ressurgimento das igrejas evangélicas e
pastorais é, de certa forma, uma reação contra o desaparecimento da secular fé na
salvação pela sociedade. A campanha eleitoral de 1988 nos EUA provou decisivamente,
porém, que não vamos retornar ‘a crença da salvação pela fé como fator político
importante, apesar de toda a publicidade destinada à “MoralMajority”*. Tampouco é
provável que haja uma volta à política do laissez-faire praticada no início do século
XIX, pois ela também prometeu a salvação pela sociedade: remover todos os obstáculos
para a busca do ganho individual produziria, no final, uma sociedade perfeita — ou pelo
menos a melhor possível.

O último político de destaque a acreditar na salvação pela sociedade foi Willy Brandt, o
chanceler socialista alemão do início da década de 1970. Seu sucessor como líder dos
socialistas alemães, Helmut Schmidt, era um “estóico”, e não um “crente” e seguia
apenas uma ideologia política, a saber, a decência. Quanto ao mais, acreditava — e
praticava com sucesso — uma política pragmática, que tratava de solucionar problemas
adhoc de curto prazo e não em debatê-los. Os princípios que o orientavam não eram
princípios de modo nenhum, mas sim eficiência, competência e relação custo/benefício.
Da mesma forma, seu sucessor, o cristão-democrata Helmut Kohl, não segue nenhum
princípio a não ser o de não ter princípio. O importante para ele é ver as coisas
funcionarem. Em política, a pedra de toque cada vez mais é adotar o que tem
probabilidade de manter ou ajudar o partido a chegar ao poder.
Será suficiente promover a integração de facções, de grupos de interesse, da
diversidade de pressões de curto prazo que caracterizam a complexa sociedade
moderna? Será suficiente proporcionar governo, liderança, política? * MoralMajority__
grupo político formado principalmente por protestantes fundamentalistas cujo objetivo é
promover medidas conservadoras (N. do T.).

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12 - O fim da integração “de blocos de interesses”

(Sem uma concepção política para o trabalhador de conhecimento)


A salvação pela sociedade foi o princípio de organização política mais evidente, embora
não tenha sido o único. Desde a década de 1890, ele teve um concorrente que se impôs
primeiro nos EUA e depois no Japão do pós-guerra. Esse princípio é a integração do
estado por meio de importantes “ blocos de interesse” — no que poderia ser chamado de
“estados economicamente dominantes” para usar um antigo termo da teoria política. Ele
contrapõe a promessa econômica à utopia da salvação pela sociedade.

Longe de ideologias

Esse conceito remonta à República romana e tornou-se uma realidade política somente
no final do século XIX, e apenas nos EUA. Naquela época, o estado de bem-estar social
de Bismarck começava a triunfar sobre a luta de classes — objetivo para o qual
Bismarck expressamente o planejou. Os socialistas marxistas na Europa Ocidental e
Central estavam aderindo rapidamente ao socialismo-democrático “revisionista” e
tornando-se burgueses. Nos EUA, porém, surgia um novo e ruidoso populismo que, de
muitas formas, era mais “anti” e mais “radical” que a esquerda européia. Para combater
essa ameaça de uma luta de classes dissidente — a ocasião foi a eleição presidencial de
1896 — um político americano, Mark Hanna, criou uma nova integração política na
qual importantes interesses econômicos (os Estados

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economicamente dominantes) se unem por seu interesse comum no que poderíamos


hoje chamar de desenvolvimento econômico; na época, chamava-se prosperidade. Mark
Hanna foi um dos verdadeiros inovadores na história da política. Muito poucos políticos
americanos se equiparam a ele, exceto autores dos Federalist Papers. No entanto, a
imprensa não apoiou seu sucesso: ele teria desviado os políticos americanos da
ideologia e os cientistas políticos nunca o perdoaram por isso. Para eles é indiscutível o
fato de que política respeitável é a que se baseia em ideais. O político respeitável deve
priorizar questões e não desempenho. Entretanto, tudo que funcionou na política
americana durante quase um século baseou-se nos interesses econômicos e na
integração política de Mark Hanna, conferindo vitória imediata ao partido republicano
do qual ele fazia parte. Em 1912, quando a divisão do partido devolveu a vitória aos
democratas, o candidato vencedor, Woodrow Wilson mostrou opor-se às ideologias e ser
a favor dos grupos de interesse com tanta convicção quanto Mark Hanna. Hanna lançou
os alicerces intelectuais e criou grande parte da organização necessária para converter
seus princípios políticos em desempenho. Ele não fundou o Partido Republicano, mas o
recriou. Quarenta anos depois, um democrata, Franklin D. Roosevelt, completou a obra
de Mark Hanna. Roosevelt, como todos sabem, não venceu em 1932; foi Herbert
Hoover quem perdeu. Mas Roosevelt fora indicado em 1932 em detrimento do antigo
favorito do partido, AI Smith, precisamente por ter rejeitado a tentativa deste de
reformular a política americana segundo o modelo ideológico da Europa. Assim que se
mudou para a Casa Branca, Roosevelt começou a restaurar a integração econômica de
Hanna que a Grande Depressão havia abalado. Além disso, ele contribuiu para que o
governo se tornasse uma força dinâmica, revigorante e inovadora. O governo não seria
somente o canal por meio do qual os blocos de interesse — agricultores, trabalhadores,
empresas — se fundiriam numa ação comum, mas também o que conferiria equilíbrio
aos três. Ele se certificaria de que nenhum grupo seria oprimido e explorado por um dos
demais, e também que nenhum dominaria os outros. Esperava-se que o governo de
Roosevelt representasse ao mesmo tempo o papel de integrador e condutor e que usasse
seu poder para manter o equilíbrio social.

Tantos sucessos

Política e socialmente, a administração de Franklin D. Roosevelt pode ter sido a mais


bem-sucedida dos EUA, apesar de todas as suas políticas econômicas terem falhado. O
empresário tradicional via o presidente como um “radical” que colocava o operariado
numa posição de comando, mas Roosevelt certificou-se de que os sindicatos não se
tornariam uma força política independente, como havia ocorrido na Europa, controlando
a legislatura ou o governo. E embora grande parte da retórica do presidente fosse
antiempresarial, sua atuação, desde o começo, visava criar um poder de compra que
gerasse demanda do consumidor e, com ela, lucros para as empresas. Da

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mesma forma, Roosevelt aumentou o apoio ao agricultor, mas, enquanto no governo de
seu antecessor a política agrícola fora protecionista, em seu governo ela visava — numa
consciente continuidade das idéias de Mark Hanna — um aumento de produtividade
cada vez maior nos EUA. E ao somar “reforma” e “recuperação”, isto é, somando a
promessa de justiça social à prosperidade de Mark Hanna, Roosevelt gerou esperança.
Economicamente, os EUA só começaram a se recuperar quando entraram numa
economia de guerra em 1940 e 1941. Social e politicamente, contudo, os EUA, foram os
únicos, entre os maiores países ocidentais, que se recuperaram totalmente, e retomaram
o impulso após cerca de dezoito meses da posse de Roosevelt. Apesar do fechamento
dos bancos, dos níveis catastróficos de desemprego, das secas e tempestades de poeira
que devastavam a economia e a sociedade rurais, em 1935 os americanos passaram a se
considerar vencedores e líderes

Nesse século, nenhum outro governo mostrou-se mais bem-sucedido. Nenhum outro
governo nesse século de rupturas ideológicas e guerras civis foi capaz de criar maior
coesão nacional. Isso explica por que os EUA de Roosevelt tornaram a luz que orientava
e inspirava a todo o globo — a ponto de se tornarem o “inimigo” para os
verdadeiramente radicais. Esse fato, também, é a explicação mais plausível para o que,
de outra forma, seria inexplicável: a declaração de guerra completamente desnecessária
de Hitler contra os EUA após o ataque jappnês a Pearl Harbor (que, em última análise,
condenou aAlemanha nazista). E também explica por que, imediatamente após a
Segunda Guerra Mundial, a União Soviética teve de transformar os EUA em seu
“inimigo” real, mesmo que o governo e o povo americano estivessem mais do que
dispostos a apoiar, subsidiar e manter relações de amizade com seu aliado de guerra.
A tradição de Roosevelt continuou durante a administração de Harry Truman que,
talvez, estivesse mais consciente do que seu antecessor dos conceitos que
fundamentavam o New Deal. A tradição de Roosevelt atingiu seu apogeu no governo de
Dwight Eisenhower, que sabia ser sua a missão histórica coordenar o New Deal, mas
também recuperar para o Partido Republicano o poder integrador idealizado por Mark
Hanna.

De modo geral, acredita-se que a integração política gerada pela promessa econômica
de prosperidade — e não pela ideologia política — funciona “somente nos EUA”, mas
isso simplesmente não é verdade. Ela obteve resultado tão positivo em solo estrangeiro
quanto no país natal de Mark Hanna e Roosevelt. Desde a Segunda Guerra Mundial, o
governo japonês — a administração mais eficiente dos últimos 35 anos — baseou-se na
integração de interesses econômicos de Mark Hanna. Naturalmente, não há nada no
sistema político americano que remotamente se assemelhe à singular posição e poder do
serviço público japonês, tampouco há alguma coisa no sistema japonês que
remotamente se assemelhe ao poder e à posição da singular

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instituição política amerjcana, às pessoas “próximas do poder”, não-ligadas à política e


não-burocratas, “veteranos” de Washington — advogados, jornalistas, professores,
executivos — que, aos milhares, voltam repetidamente a serviço do governo, seja ele
democrata ou republicano, e que detêm praticamente todos os cargos-chave para tomada
de decisões nos principais setores do governo e nas equipes de importantes comitês do
congresso. Há também algumas características do Partido Democrata Liberal que esteve
no poder no Japão desde 1950 que são exclusivamente japonesas (embora muito menos
que a maioria de japoneses e ocidentais suponha). Mas os conceitos e a estrutura do
partido japonês são muito parecidos com os do Partido Democrata de Roosevelt da
década de 1930 e mais ainda com os do Partido Republicano de Coolidge, da década de
1920: as mesmas facções, os mesmos chefes políticos dominando cidades ou regiões
importantes, as mesmas coalizões em contínua mudança entre os principais grupos de
interesse e também os mesmos “acordos” e a mesma corrupção política das máquinas
partidárias locais e regionais. O exemplo americano também possibilitou à Europa
Ocidental recobrar-se, em grande parte, política, social e economicamente.
Permaneceram os antigos partidos com seus rótulos ideológicos, mas somente os
comunistas no sul da Europa realmente continuaram sendo “ideológicos” e dedicados à
“salvação pela sociedade”, motivo pelo qual praticamente deixaram de ter importância.
Konrad Adenauer e Helmut Schmidt, na Alemanha; Charles de Gaulie e François
Mitterand, na França, Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha; Alcide de Gaspari e Bettino
Craxi, na Itália, todos alcançaram sucesso político por meio da integração de blocos de
interesse anti-ideológicos. Nenhum deu a menor atenção aos manifestos ideológicos dos
próprios partidos.
Ultrapassado
Mas agora, a integração baseada em interesses econômicos de Mark Hanna e Roosevelt
é tão ultrapassada quanto a integração baseada na salvação pela sociedade. A última
tentativa foi feita pelo presidente americano Lyndon Johnson. Sua Great Society
simplesmente não funcionou como integração política, como teria funcionado vinte
anos antes. Desde então, cada tentativa de reacender o sonho de Hanna e Roosevelt tem
sido um desastre. Raramente na história americana houve um candidato presidencial
mais competente, decente e experiente do que Walter Mondale, em 1984 — e poucos
tiveram uma derrota tão radical. Sua tentativa de reproduzir a coalizão de grupos de
interesse dos EUA de Roosevelt tornou-o irremediavelmente obsoleto; poucas pessoas
com menos de 50 anos conseguiam imaginar sobre o que ele estava falando. Quatro
anos depois, em 1988, Michael Dukakis procurou encontrar e mobilizar novos “blocos
de interesse”, especialmente a “classe média” — sem alienar os antigos. Também não
funcionou. Fora dos EUA, a integração de blocos de interesse também está provando ser

cada vez menos capaz de proporcionar integração política. Os liberais democratas

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ainda vencem todas as eleições no Japão, mas apenas porque os partidos de oposição
acreditam na ideologia da salvação pela sociedade, o que os torna ainda menos
interessantes. Um dos motivos pelo qual a integração de blocos de interesse não
funciona mais é que os “grupos de interesse” econômicos, como entidades distintas e
conscientes de si mesmas, estão desaparecendo. Nem “agricultores” nem
“trabalhadores” possuem ainda força numérica ou importância política para representar
uma “classe econômica” em qualquer país desenvolvido. Nos EUA de Mark Hanna, os
agricultores representavam metade da população. Quando Roosevelt iniciou a vida
política, o operariado somava cerca de 2/5 da população. Atualmente, os agricultores
não representam mais que 3% da população e a tradicional mão-de-obra operária chega
a 1/5, na melhor das hipóteses. Também as “empresas” já não são uma categoria
econômica dominante, O “interesse empresarial” que Mark Hanna mobilizou em busca
de poder econômico não foi o da General Motors ou Citibank. Foi o do sapateiro, do
dono de bar, do marceneiro da cidade pequena. E ainda há muitos deles por aí, mas eles
não se vêem como “empresas” ou como um grupo de interesse independente.
Em segundo lugar, e mais importante, nenhum desses grupos se distingue mais
socialmente. Na verdade, o que conferiu unidade e identificação política a cada um não
foi um interesse econômico em comum. Criadores de gado são “agricultores”, mas
sempre alimentaram interesses econômicos diferentes dos agricultores produtores de
laticínios ou produtores de tabaco. Profissionais especializados têm interesses
econômicos totalmente diversos do trabalhador não-qualificado que atua na produção
em massa, que se tornou a maioria da “mão-de-obra” americana durante a década de
1920. O que tornava esses grupos distintos e capazes de uma ação conjunta era o que
hoje chamamos de cultura. Eles se identificavam muito mais socialmente do que
economicamente. Havia o “trabalhador com amor-próprio” e a “sociedade rural”. E
havia também o “empresário” nas grandes e pequenas cidades. Cada um desses grupos
lia diferentes jornais, em geral freqüentava diferentes igrejas e normalmente vivia em
diferentes partes da cidade. Cada um defendia valores diversos e levava um estilo de
vida diferente. Acima de tudo, cada grupo tinha uma opinião clara e distinta de si
mesmo. Eles não tinham uma “consciência de classe”, na linguagem marxista,
tampouco acreditavam necessariamente que eram explorados pelos outros grupos e
classes da sociedade — pelo menos não depois da teoria de Mark Hanna de que todos
partilhavam um interesse comum em prosperar. Cada qual, porém, estava plenamente
consciente de que a vida que levava, o papel que desempenhava e o lugar que ocupava
na sociedade eram diferentes.

Tanto Mark Hanna quanto Roosevelt usavam o termo “interesses econômicos” como
um código. Na realidade, queriam dizer — e ambos provavelmente tinham consciência
disso valores e estilos sociais e culturais. Eles falavam sobre quantidade, mas se
referiam a qualidade. Hoje, pouco resta desses valores e estilos. Os que os mantêm,
como o operário do norte da Inglaterra e da Escócia, são hoje considerados
“retrógrados”. O mesmo ocorre com os agricultores da Sicília. O criador de gado
americano ou o criador de galinhas numa granja automatizada ainda se consideram

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agricultores, mas eles provavelmente são mais versados em informática do que qualquer
outro grupo profissional existente no mundo. Está claro que os operários de Detroit são
trabalhadores, mas há poucos vestígios da classe operária em seu estilo de vida, exceto o
fato de preferirem cerveja a vinho.
Quanto ao mais, como me lembrou há pouco tempo o representante sindical de uma das
fábricas de automóveis, dos mais militantes dos EUA, as preocupações dos membros do
sindicato são suas casas motorizadas, suas cabanas de pesca nas florestas do norte e suas
pensões de aposentadoria. Eles assistem exatamente aos mesmos programas de televisão
que todos os outros integrantes da sociedade americana, adquirem os mesmos bens de
consumo nos mesmos supermercados e viajam para os mesmos lugares nas férias.
Eles realizam diferentes tipos de trabalho, mas não levam vidas diferentes. Eles
determinam sua posição social não por meio de seus interesses econômicos, mas pelo
poder aquisitivo.

Não para a nova maioria

Em terceiro lugar, a nova maioria, o “trabalhador de conhecimento”, não se encaixa em


nenhuma definição de grupo de interesse. Os trabalhadores de conhecimento não são
agricultores, operários ou empresários; eles são empregados de organizações. No
entanto, não são “proletários” e não se sentem uma classe “explorada”. Coletivamente e
através de seus fundos de pensão, são os únicos “capitalistas”. Muitos são chefes e têm
“subordinados”. No entanto, eles mesmos também se reportam a um chefe. Também não
pertencem à classe média. Eles pertencem, inventando uma palavra, a uma “uniclasse”
— embora alguns ganhem mais que outros. Não faz absolutamente nenhuma diferença
para sua posição social ou econômica se trabalham para uma empresa, hospital ou
universidade. Trabalhadores de conhecimento que passam do departamento de
contabilidade de uma empresa para o de um hospital não estão mudando de posição
social ou econômica. Estão mudando de emprego.
Quase todos os integrantes de sociedades modernas e desenvolvidas são empregados de
organizações e quanto maior seu grau de instrução, maior a probabilidade de passarem
toda sua vida profissional nessa mesma condição. No entanto, essa condição não
envolve uma cultura ou interesse social ou econômico específicos, e indica muito pouco
interesse em questões controvertidas. Esses indivíduos simplesmente desafiam o
conceito de sociedade no qual foram baseados os EUA de Mark Hanna e Roosevelt.
Tampouco, até agora, não há conceito ou integração política que se adapte a eles.

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I3 - Do Estado-nação ao Megaestado*

(Um beco sem saída)

Na sociedade pós-capitalista, as mudanças na estrutura política e no Estado (para usar o


termo antigo, mas perfeito para sociedade política e sistema político) são tão
significativas quanto as ocorridas na sociedade e na estrutura social. São de âmbito
mundial e são um fato totalmente consumado. A ordem social mundial do passado está
desaparecendo rapidamente, e a do futuro ainda está por surgir. Na verdade, não
estamos enfrentando a “nova ordem mundial” alardeada com tanta freqüência pelos
políticos; mais exatamente, estamos enfrentado uma nova desordem mundial — e
ninguém sabe por quanto tempo. No que se refere ‘a estrutura política e ao Estado,
também estamos avançando para uma era “pós”, a era do Estado pós-soberano. Já
conhecemos as novas influências — e elas são muito diferentes das que dominaram o
Estado e a estrutura política durante os últimos quatrocentos anos. Conhecemos as
novas exigências e podemos descrever algumas, talvez a maioria. Não conhecemos,
contudo, as respostas, as soluções e as novas integrações. Ainda mais do que ocorre na
sociedade e estrutura social, os atores no palco — políticos, diplomatas, funcionários
públicos, cientistas e cronistas políticos — falam e escrevem usando termos do passado.
E, de modo geral, agem — na verdade, precisam fazê-lo — com base nas hipóteses e
nas realidades do passado. * Este capítulo foi extraído de Post-capitalistsociety,
publicado em 1993.

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Os fracassos dos impérios coloniais e dos superestados

Todos sabem — e todos os livros de história ensinam — que os últimos quatrocentos


anos da história mundial foram os séculos do Estado-nação ocidental. E desta
vez, o que todos sabem é verdade, mas uma verdade paradoxal. Pois as importantes
ofensivas políticas perpetradas durante esses quatro séculos foram tentativas de superar
o Estado-nação e substituí-lo por um sistema político trans- nacional, quer fosse um
império colonial ou um superestado europeu (ou asiático). Esses foram os séculos em
que surgiram e sucumbiram os grandes impérios coloniais: os impérios espanhol e
português que surgiram no século XVI e ruiram no início do século )UX; a seguir,
começando no século XVII e prosseguindo no século XX, os impérios inglês, holandês,
francês e russo. Durante esses quatro séculos, assim que aparecia um novo personagem
de destaque no palco da história mundial, ele imediatamente punha-se a superar o
Estado-nação e a transformá-lo num império — Alemanha e Itália, unidas há pouco,
partiram para a expansão colonial entre 1880 e a Primeira Guerra Mundial, sendo que a
Itália tentou novamente na década de 1930. Até mesmo os EUA tornaram-se uma
potência colonial no início do século XX, e o mesmo ocorreu com o Japão, o único país
não-ocidental a se tornar um Estado-nação. Na própria Europa, o berço do Estado-
nação, esses quatro séculos foram dominados por tentativas sucessivas de estabelecer
um superestado transnacional. Por seis vezes nesse período, um Estado-nação procurou
tornar-se soberano na Europa e transformar o continente em um superestado europeu
sob seu controle e domínio. Na verdade, não foi o Estado-nação que deu origem aos
impérios. O próprio Estado-nação surgiu como uma resposta às tendências
transnacionais. O Império Espanhol nas Américas produziu tanto ouro e prata que a
Espanha, sob reinado de Felipe II, filho e sucessor de Carlos V, pôde financiar o
primeiro exército permanente desde as legiões romanas, a Infantaria Espanhola —
possivelmente a primeira organização “moderna”. Assim equipada, a Espanha lançou a
primeira campanha para dominar a Europa, a primeira tentativa para unificá-la sob o
jugo espanhol. Combater a ameaça espanhola tornou-se a motivação e o objetivo
dedarado do inventor do Estado-nação, o advogado e político francês Jean Bodin, em
sua obra Six livres de Li Republique (1576). Foi a ameaça espanhola que tornou o
Estado-nação de Bodin a causa “progressista” em toda a Europa. E as recomendações de
Bodin somente foram aceitas por que a ameaça era muito grande e real. No final do
século XVI, o modelo de Bodin de Estado-nação parecia pura fantasia. Ele
recomendava o controle central do serviço público, subordinado somente ao soberano; o
controle central de um exército permanente comandado por soldados profissionais
selecionados por um governo central e subordinados a ele; o controle central da
cunhagem de moedas, dos impostos, da alfândega; um magistrado nomeado pelo
governo central, em vez de tribunais com funcionários indicados por magnatas locais.
Todas essas recomendações eram o oposto do que vinha existindo há mil anos, ou seja,
desde a queda do Império Romano. Todas ameaçavam “interesses especiais”
intensamente arraigados: uma igreja autônoma, bispados e abadias livres
Pagina 128

senhores de terra de todos os portes, cada qual com seus próprios servos armados
devendo lealdade somente a eles, e cada qual com sua própria jurisdição e seus próprios
poderes de tributação; cidades livres e associações de comércio independentes; e vários
outros. Mas a tentativa da Espanha de dominar a Europa não deixou alternativa: a opção
era submeter-se ao soberano nacional ou ser dominado por um soberano estrangeiro. A
partir de então, praticamente todas as mudanças na estrutura política do Estado-nação
europeu foram causadas — ou, pelo menos, desencadeadas — por tentativas
semelhantes de dominar a Europa e substituir o Estado-nação por um superestado
controlado, por sua vez, pela França, Alemanha ou Rússia.

Poder-se-ia esperar, portanto, que os cientistas políticos tivessem estudado o império


colonial e desenvolvido uma teoria política sobre ele. Pois eles não fizeram nem uma
coisa nem outra. Em vez disso, eles concentraram-se na teoria política e nas instituições
do Estado-nação. Poder-se-ia esperar que os historiadores tivessem, da mesma forma,
estudado os superestados europeus, mas em todas as universidades as prestigiosas
cátedras de história tratam de história nacional. Os livros famosos de história falam de
Estado-nação seja da Inglaterra, da França, dos EUA, ou da Espanha, da Alemanha, da
Itália ou da Rússia. Mesmo na Grã-Bretanha, governante do maior e, por muitos anos,
mais bem-sucedido império colonial, o estudo e o ensino de história ainda está centrado
no Estado-nação. Um dos motivos para tal negligência quanto ao império e o
superestado é que estes não criaram instituições. Os “impérios” coloniais não foram
ficção, mas não foram “impérios”. Eles foram Estados-nação com possessões coloniais.
Basta comparálos à estrutura política da qual tomaram o nome: o Império Romano. O
período dos impérios coloniais durou quatrocentos anos, quase tanto quanto o Império
Romano, o que deveria ter sido tempo mais que suficiente para que ocorresse a
integração política, social e econômica da mãe-pátria e o império. Porém, nem ao menos
tentou-se realizar essa tarefa. Havia muitos colonizadores nas treze colônias americanas
que se consideravam ingleses e não americanos durante a Guerra da Independência, a
primeira ruptura ocorrida em um dos impérios modernos, mas esses “legalistas”
americanos eram uma exceção. Poucos “colonos” no México, Colômbia ou Brasil
lamentaram o fim dos impérios espanhol e português e um número ainda menor
lamentou o desaparecimento dos impérios do século XX da Grã-Bretanha, França,
Holanda e Japão. A soberania britânica na Índia originou uma classe superior
notavelmente numerosa e distinta de pessoas versadas nas duas culturas, muitas delas
educadas nas melhores universidades inglesas e todas dotadas de profundos
conhecimentos de poesia, direito, filosofia e história ingleses. No entanto, nenhum
desses homens continuou a apoiar o império ou a ligação imperial. Nenhum tentou
encontrar uma solução constitucional, a fim de preservar a comunidade cultural do
império, ao mesmo tempo em que estabelecia uma autonomia política indiana. Em vez
disso, eles se tornaram os agitadores mais dedicados e inflexíveis a favor da
independência da Índia e de um estado nacional indiano independente.

Pagina 129

E, no entanto, a partir do momento em que uma potência européia dava sinais de


fraqueza, seu império ruía e ela se transformava em um Estado-nação. O mesmo
ocorreu com o Japão. Mesmo os assim-chamados “domínios brancos” do império
britânico — a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia — embora orgulhosos de sua
herança e tradição cultural inglesa, tornaram-se Estado-nação no momento em que
deixaram de ser colônias. Nenhuma outra forma de integração política estava
disponível. Faltava poder de integração ao império moderno, O Estado-nação poderia,
por si só, integrar, formar um Estado — uma sociedade política — poderia criar
cidadania. Também na Europa nenhum dos supostos conquistadores pôde integrar o
superestado a uma estrutura política. Tudo que puderam fazer — de Felipe II a Stalin
— foi subjugar pela força bruta. Todos os impérios modernos e todos os superestados
fracassaram devido a sua incapacidade de transcender o Estado-nação, ou em se
tornarem seus sucessores. Mas, embora o Estado-nação tenha, dessa forma, sido a única
realidade política durante os séculos de impérios e superestados, ele se transformou
profundamente nos últimos 100 anos. Ele passou por um processo de mutação e
tornou-se um megaestado.

Do Estado-nação ao Megaestado

Em 1870, o Estado-nação triunfou em toda parte: até mesmo a Áustria havia se tornado
a Áustro-Hungria, uma federação de dois Estados-nação. E os Estados-nação de 1870
ainda se pareciam com o Estado-nação criado por Bodin trezentos anos antes e
funcionavam da mesma forma.

Mas o Estado-nação de 1970, um século depois, apresentava pouca semelhança com o


estado de Bodin ou, precisamente, com o Estado-nação de 1870. Ele havia se
transformado no Megaestado — da mesma espécie, talvez, que seu progenitor de 1870,
mas totalmente diferente na essência.

O estado nacional foi planejado para ser o guardião da sociedade civil e o Megaestado
tornou-se seu líder, e em sua forma extremada e totalitária, substituiu totalmente a
sociedade civil. No totalitarismo, todas as sociedades tornaram-se políticas.
O estado nacional foi planejado para proteger a vida, a liberdade e a propriedade dos
cidadãos contra atos arbitrários do soberano, O Megaestado, mesmo sob sua forma
anglo-americana menos extremada, julga que a propriedade do cidadão pode ser
confiscada por uma simples decisão do coletor de impostos. Como Joseph Schumpeter
primeiramente ressaltou em seu ensaio Der Steuerstaat (O Estado Fiscal, 1918), o
Megaestado afirma que os cidadãos possuem apenas o que o Estado, expressa ou
tacitamente, permitir que conservem.

A função primordial do estado nacional de Bodin era a proteção da sociedade civil,


especialmente em tempos de guerra. Isto é, na verdade, o que significava “defesa”. O
Megaestado apagou progressivamente a diferença entre tempos de paz e de guerra. Em
vez de paz, existe a “guerra fria”.

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A criação do Estado controlador

A mudança do estado nacional para o Megaestado começou nas últimas décadas do


século XIX. O primeiro e tímido passo na direção do Megaestado foi dado por
Bismarck nos anos de 1880 durante o estado do bem-estar social. A meta de Bismarck
era combater a tendência socialista que crescia rapidamente. Foi uma resposta à ameaça
da luta de classes. Anteriormente, o governo era encarado apenas como um agente
político. Bismarck o transformou num agente social. Suas próprias medidas visando o
bem-estar social — seguro-saúde, seguro contra acidentes de trabalho, pensão para
idosos (seguidas trinta anos mais tarde, após a Primeira Guerra Mundial, pela criação
britânica do seguro-desemprego) — eram bastante modestas, mas o princípio era
radical. E foi esse princípio que exerceu um efeito maior do que as ações individuais
praticadas em seu nome.
Nas décadas de 1920 e de 1930, comunistas, fascistas e nazistas assumiram o comando
das instituições sociais. Mas nas democracias, o governo apenas garantia seguro ou, no
máximo, algum pagamento. De modo geral, ele ainda se esquivava do verdadeiro
trabalho social ou de obrigar os cidadãos a manter um comportamento social adequado.
Esse quadro mudou rapidamente após a Segunda Guerra Mundial. De provedor, o
Estado passou a administrador. A última das medidas tradicionais do estado do bem-
estar — e possivelmente a mais bem-sucedida — foi a Declaração de Direitos do
Soldado Americano, adotada logo após a Segunda Guerra Mundial. Ela proporcionava
aos veteranos que retornavam aos EUA os meios de freqüentar uma faculdade e
melhorar o grau de instrução. Entretanto, o governo não procurou impor a escolha da
faculdade ao veterano, tampouco tentou administrar qualquer faculdade. Ele oferecia
dinheiro caso o soldado escolhesse continuar os estudos e este, então, decidia o quê e
onde estudar. E nenhuma faculdade era obrigada a aceitar nenhum candidato.
Outro programa social importante do período pós-guerra, o Serviço Nacional de Saúde
Britânico, foi o primeiro (fora dos países totalitários) a levar o governo a ultrapassar o
papel de segurador ou provedor, mas só em parte. No que se refere ao atendimento
médico padrão, o governo no Serviço Nacional de Saúde é uma seguradora:
ele reembolsa o médico que atende o paciente. Este, porém, não se torna um empregado
do governo, tampouco o paciente fica limitado a escolher este ou aquele médico. Por
outro lado, hospitais e clínicas designados pelo Serviço Nacional de Saúde passaram a
ser controlados pelo governo. As pessoas que neles trabalhavam tornaram-se
funcionários do governo e é ele que realmente administra os hospitais. Esse foi o
primeiro passo na direção de uma mudança no papel desempenhado pelo governo na
esfera social. O governo deixou de ser quem estabelecia as normas, o facilitador, o
segurador, o agente de pagamentos e tornou-se o executor e o administrador.
Em 1960, todos os países desenvolvidos passaram a aceitar o princípio de que o
governo é o agente apropriado para tratar de todos os problemas e tarefas sociais. De
fato, a atividade privada, não-governamental, na esfera social tornou-se suspeita; os
assim-chamados “liberais” consideravam-na “reacionária” ou “discriminatória”.
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O Megaestado soberano na economia


No final do século XIX, o Estado-nação estava se tornando um órgão econômico, Os
primeiros passos nessa direção foram dados nos EUA, que criaram a regulamentação
governamental das empresas e a participação do governo nas novas empresas dentro de
uma economia capitalista. A partir da década de 1870, foi gradualmente estabelecida nos
EUA a regulamentação de empresas — bancos, ferrovias, energia elétrica, telefonia.
Essa regulamentação do governo — uma das criações políticas mais originais do século
XIX e, no início, um enorme sucesso — foi nitidamente vista desde o princípio como
uma “terceira via” entre o socialismo e o capitalismo “liberto”, e como uma resposta às
tensões e problemas criados pela rápida expansão do capitalismo e da tecnologia.
Alguns anos mais tarde, os EUA começaram a estatizar empresas — primeiro na década
de 1880, no estado de Nebrasca, sob a liderança de William Jennings Bryan. Poucos
anos depois, entre 1897 e 1900, KarI Lueger (1844-1910), prefeito de Viena,
desapropriou e municipalizou as empresas de bondes, de energia elétrica e de gás da
capital austríaca. Como Bismarck, que havia tomado medidas para combater o
socialismo, nem Bryan nem Lueger eram socialistas; ambos eram o que os EUA
chamam de “populistas”. Ambos viam principalmente na participação do governo um
meio para amenizar a luta de classes, que tomava vulto rapidamente, entre “capital” e
“trabalho” Mesmo assim, poucas pessoas no século XIX— de fato, poucas antes de
1929 — acreditavam que o governo pudesse ou devesse controlar a economia, muito
menos as recessões e depressões. A maioria dos economistas acreditava que uma
economia de mercado fosse “auto-reguladora”. Mesmo os socialistas acreditavam que a
economia seria regulamentada por si própria quando a propriedade privada tivesse sido
abolida. Considerava-se que a tarefa do Estado-nação e de seu governo era manter o
“clima” que favorecesse o crescimento e a prosperidade econômica — por meio de uma
moeda estável, impostos baixos e pelo encorajamento da economia e da poupança. As
“variações do tempo” na economia, ou seja, as oscilações econômicas, estavam além do
controle de todos, mesmo porque a causa dessas oscilações provavelmente era
decorrente de acontecimentos ocorridos no mercado mundial e não dos ocorridos dentro
do próprio Estado-nação.
A Grande Depressão fez surgir a crença de que o governo da nação tinha — e deveria
ter — controle sobre oscilações na economia. O economista inglês John Maynard
Keynes (1883-1946) foi o primeiro a afirmar que a economia nacional está isolada da
mundial, pelo menos em países grandes e médios. Ele alegava que essa economia
nacional isolada é totalmente definida pela política governamental e parte pelos gastos
do governo. Por mais que os economistas modernos não concordem com Keynes,
Friedman e seus seguidores, os adeptos da economia da oferta e outros pós-keynesianos
concordam com ele nesses dois pontos. Todos consideram o Estado-nação e seu governo
o soberano da economia nacional e o controlador de suas oscilações econômicas.

pagina 132

A transformação em Estado fiscal

As duas guerras mundiais ocorridas neste século transformaram o Estado-nação


em um “Estado fiscal”. Até a Primeira Guerra Mundial, nenhum governo na história
havia sido capaz — mesmo em tempo de guerra — de obter do povo mais do que uma
diminuta fração da renda nacional do país, talvez 5% ou 6%. Durante a Primeira Guerra,
porém, todas as nações envolvidas, até as mais pobres, constataram que praticamente
não havia limites para o que o governo podia extrair da população. Quando eclodiu a
Primeira Guerra, as economias dos países combatentes estavam totalmente mone
tarizadas Como resultado, os dois países mais pobres, a Austro-Hungria e a Rússia,
durante os vários anos de guerra, puderam cobrar impostos e tomar emprestado mais
que a renda total anual de suas respectivas populações. Eles conseguiram liquidar o
capital acumulado ao longo de décadas e transformá-lo em material bélico.
Joseph Schumpeter, que então ainda vivia na Austria, compreendeu imediatamente o
que ocorrera, mas os demais economistas e a maioria dos governos precisavam de uma
segunda lição: a Segunda Guerra Mundial. Desde então, contudo, todos os países
desenvolvidos e muitos países em desenvolvimento tornaram-se “estados fiscais”.
Todos passaram a acreditar que não há limites econômicos para os impostos cobrados e
empréstimos feitos pelo governo e, conseqüentemente, não há limites econômicos para
os seus gastos.
Schumpeter salientou que, desde que existem governos, o processo orçamentário
sempre começou com uma avaliação das receitas disponíveis. E desde que a oferta de
“boas causas” é inesgotável e, portanto, a demanda para gastar, infinita, o processo
orçamentário consiste principalmente em decidir quando dizer não. Enquanto se sabia
que as receitas eram limitadas, os governos, quer fossem democracias ou monarquias
absolutas, como a dos czares russos, operavam com limitações extremas que
impossibilitavam ao governo atuar como um órgão social ou econômico.
Desde a Primeira Guerra Mundial, porém — e ainda mais visivelmente desde a
Segunda Guerra — o processo orçamentário significou, de fato, dizer sim a tudo.
Tradicionalmente, o governo e a sociedade política tinham a sua disposição apenas os
meios que lhes eram concedidos pela sociedade civil, que portanto eram limitados a uns
poucos pontos percentuais da renda nacional, e que era tudo que podia ser convertido
em moeda. Somente aquela quantia podia ser transformada em impostos e empréstimos
e, assim, em receita para o governo. Sob o novo sistema que pressupõe não haver
limites econômicos para as receitas que podem ser obtidas, o governo torna-se o
soberano da sociedade civil, capaz de moldá-la e formá-la. Acima de tudo, ao usar
impostos e dispêndios, o governo pode redistribuir a renda da sociedade. Por intermédio
do poder do dinheiro, ele pode moldar a sociedade à imagem dos políticos.
Porém, também de acordo com o novo sistema, é extremamente fácil ver a
renda nacional como propriedade do governo, tendo os indivíduos direito apenas

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àquilo que o governo está disposto a lhes conceder. Antes de 1914 — na verdade, antes
de 1946 — não se falava de “brecha fiscal” (para escapar ao pagamento de impostos).
Antigamente, partia-se do princípio de que tudo pertencia ao indivíduo, a menos que
tivesse sido expressamente transferido ao governo — absolutista ou parlamentar —
pelos representantes políticos dos contribuintes.

Entretanto, o termo “brecha fiscal” implica que tudo pertence ao governo, a menos que
haja uma determinação específica para que seja conservado pelo contribuinte. E, seja o
que for que ele conserve, ele o faz apenas porque o governo, em sua sabedoria e
generosidade, está disposto em permitir que o faça. Naturalmente, esse quadro tornou-se
explícito somente nos países comunistas. Mas mesmo nos EUA, principalmente na era
Kennedy, acreditava-se em Washington, especialmente entre os burocratas, que toda a
renda pertencia ao governo, exceto o que ele expressa e explicitamente permitia ao
contribuinte manter.

O Estado da “guerra fria”

O Estado do bem-estar social, o governo como soberano da economia e o Estado fiscal,


todos resultaram de teorias e problemas sociais e econômicos. A última das mutações
que criou o Megaestado, o Estado da “guerra fria”, foi uma resposta à tecnologia.
Ele se originou da decisão alemã, na década de 1890, de construir em tempo de paz um
sólido esquema de defesa naval. Esse fato deu início à corrida armamentista. Os
alemães sabiam que estavam enfrentando um sério risco político; de fato, a maioria dos
políticos resistiu à decisão, mas os almirantes alemães estavam convencidos de que a
tecnologia não lhes deixava outra escolha. Uma marinha moderna significava navios
blindados, e tais navios tinham de ser construídos em tempos de paz. Esperar pela
deflagração de uma guerra, como ordenava a política tradicional, significaria esperar
demais.

A defesa, dizia o principal argumento dos alemães, não significava mais manter as
operações militares longe da sociedade civil e da economia pública. Com a moderna
tecnologia, defesa significa uma sociedade e uma economia permanentemente voltadas
para a guerra; significa “Estado de guerra fria”.

O mais perspicaz observador político na ocasião da virada do século, o líder socialista


francês Jean Jaurês (1859-1914), compreendeu esse fato mesmo antes da Primeira
Guerra Mundial. O presidente Woodrow Wilson (1859-1924) aprendeu-o na Primeira
Guerra e usou-o para fundamentar sua proposta para a Liga das Nações, isto é, uma
organização de monitoramento permanente dos armamentos nacionais. A primeira
tentativa de usar formações militares como meio de controlar armas foi a malograda
Conferência de Armamentos Navais de Washington, em 1923.

Porém, mesmo antes da Segunda Guerra Mundial, durante alguns anos os EUA
tentaram retornar a um Estado “normal” de tempos de paz. Eles procuraram proceder a
uma desmilitarização o mais rápida e completa possível. A chegada da “guerra fria” nos
anos de Truman e Eisenhower mudou todo esse quadro. Desde então, o
Estado da “guerra fria” foi a organização dominante na política internacional.
Em 1960, o Megaestado tornou-se uma realidade política em países desenvolvidos sob
todos os aspectos: como órgão social, como soberano da economia, como
Estado fiscal e, na maioria dos países, como Estado da “guerra

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fria”.

O Estado da demagogia política

O mais grave nessa situação é o fato de o estado fiscal ter se tornado um “Estado de
demagogia”. Não há disciplina fiscal se a preparação do orçamento começa com gastos;
as despesas do governo tornam-se um meio para a compra de votos pelos políticos. O
fato de o rei usar o dinheiro público para enriquecer seus súditos favoritos foi o mais
sólido argumento contra o ancien régime, a monarquia absoluta do século XVIII. A
necessidade de prestar contas, principalmente a de prestar contas orçamentárias para
com um legislativo eleito, foi estabelecida para criar responsabilidade fiscal dentro do
governo e evitar que os súditos saqueassem a nação. No Estado fiscal, o saque é feito
por políticos para garantir a própria eleição.

Uma parcela ainda maior de orçamentos americanos — federal, estadual e municipal —


é gasta em subsídios para grupos muito pequenos de eleitores locais: um punhado de
produtores de tabaco da Carolina do Norte, um grupo ainda menor de plantadores de
amendoim da Geórgia, produtores de cana-de-açúcar da Louisiana; indústrias obsoletas
de um estado do meio-oeste, os 5% mais ricos aposentados pelo Seguro Social, donos
de terras desapropriadas para a construção de um canal ou uma represa que não atender
a qualquer necessidade econômica, ou a pequena cidade próxima a uma base do exército
sem nenhuma importância militar. Não se sabe ao certo quanto dos gastos totais do
governo americano que não atendem a nenhum objetivo público — e que, em muitos
casos, são totalmente incompatíveis com a política pública destina-se a favorecer
eleitores. Mas é uma parcela bastante elevada, tanto no orçamento federal quanto no
estadual — muito mais elevada que a maioria das pessoas imagina. E no Japão a
crescente atuação do político que desvia grandes somas de dinheiro público para um
pequeno número de eleitores tornou-se um escândalo público.
Porém, o mais desavergonhado e maior exemplo de demagogia política ocorreu na
Alemanha no outono de 1990, quando o chanceler Helmut Kohl deixou para o país a
maior dívida pública já assumida a fim de comprar — com sucesso — os votos de seus
novos eleitores da ex-Alemanha Oriental. Esse procedimento foi bastante popular na
época. Apenas dois anos depois, no outono de 1992, ele desencadeou a mais grave crise
financeira e monetária na Europa desde a Grande Depressão.

O governo democrático fundamenta-se na crença de que a principal tarefa dos


representantes eleitos é defender seus eleitores contra um governo ganancioso. Assim, o
Estado demagógico abala os alicerces de uma sociedade livre. Os representantes eleitos
espoliam seus eleitores a fim de enriquecer grupos de interesse especial e, forma,

Pagina 135

comprar seus votos. Esta é uma forma de negação do conceito de cidadania — e está
começando a ser vista como tal, O fato que está desestabilizando os alicerces de um
governo representativo fica evidente no número cada vez menor de cidadãos que
participam das eleições e também, em todos os países, pela contínua diminuição do
interesse na função do governo, nos problemas, na política. Em vez disso, cada vez mais
os eleitores votam tendo em mente “o que eu vou ganhar com isso”
Em 1918, Joseph Schumpeter preveniu que o Estado fiscal terminaria por abalar a
capacidade administrativa do governo. Quinze anos mais tarde, Keynes anunciou o
Estado fiscal como o grande libertador, O governo do Estado fiscal, não mais limitado a
restrições de gastos, poderia governar com eficiência, defendeu ele. Sabemos hoje que
Schumpeter estava certo.

Pagina 136

14 - A política em uma sociedade de idosos*

(Um possível realinhamento)


Se a definição de “socialismo” é “o domínio dos meios de produção pelos
trabalhadores” — e esta é a definição ortodoxa e precisa — então os EUA é o primeiro
país genuinamente “socialista”. De fato, além da agricultura, outro setor da economia
nos EUA — maior do que aquele que Allende estatizou para fazer do Chile um “país
socialista”, do que aquele que Cuba, de Castro, recentemente nacionalizou, ou do que
aquele que foi estatizado na Hungria ou na Polônia no ápice do stalinismo — está
atualmente nas mãos do trabalhador americano por intermédio de seu agente de
investimentos, o fundo de pensão.

Sob a ótica da teoria socialista, os trabalhadores dos EUA são os únicos verdadeiros
“proprietários” dos meios de produção. Apenas nos EUA os trabalhadores possuem e
obtêm os lucros, na forma de pensões, como parte da renda salarial. Apenas nos EUAos
trabalhadores, por intermédio de seus fundos de pensão, também se tornam os
proprietários legais, investidores e a força controladora no mercado de capitais.
Em outras palavras, mesmo inconscientemente, os EUA “socializou” a economia, sem
“nacionalizá-la”. O socialismo não chegou aos EUA através das urnas ou pela luta de
classes, muito menos por meio de uma insurreição, tampouco como resultado da
“desapropriação dos desapropriadores” ou por uma “crise” provocada pelas
“contradições do capitalismo”. De fato, ele foi introduzido pelo mais improvável dos
revolucionários,

Pagina 137

o presidente da maior fábrica dos EUA, a General Motors. Há 26 anos, em abril de


1950, Charles Wilson, então presidente da GM, propôs ao Sindicato dos Operários da
Indústria Automobilística (United Automobile Workers Union) — a criação de um
fundo de pensão para seus operários. A oferta de Wilson era extremamente tentadora,
principalmente para o crescente número de operários mais antigos do UAWLJ. Assim,
em outubro de 1950, o Fundo de Pensão da GM começou a funcionar. * Este capítulo
foi extraído de Thepensionfind revolution, publicado em 1995. Devido à abordagem
inovadora e ao senso de oportunidade, o plano da GM exerceu um impacto totalmente
sem precedentes. Um ano depois de sua criação, 8.000 novos planos foram implantados
— um número quatro vezes superior a todos os pianos organizados nos 100 anos
precedentes. Todos os novos planos copiaram a inovação revolucionária da GM que,
desde então, também foi incorporada à maioria dos planos mais antigos de outras
empresas. O plano da GM deveria funcionar como uma “sociedade de investimento”,
investindo no mercado de capitais, especialmente em ações.

Praticamente todos os planos anteriores haviam sido planos de “anuidade”, e eram


aplicados em investimentos como seguros de vida, títulos do governo, hipotecas e
outros títulos de renda fixa. O fundo da Beil System, por exemplo, investiu durante
décadas exclusivamente em títulos do governo americano, auferindo juros mínimos.
Wilson rejeitou esse método por vários motivos. Ele considerava financeiramente pouco
atrativo, mesmo impossível, que um sistema de pensão que abrangia um grupo
relativamente grande de trabalhadores se baseasse exclusivamente no rendimento das
obrigações das dívidas. Na sua opinião, isso significaria uma carga insuportável para o
país e sua indústria ou forçaria a queda das taxas de juros de tal maneira que reduziria
drasticamente a perspectiva de rendimentos das pensões dos trabalhadores no futuro.
Um plano de pensão diversificado deveria “investir nos EUA” — em seus bens
produtivos e em sua capacidade de produção e crescimento.

Igualdade versus igualdade

Os fundos de pensão surgiram concomitantemente, embora de forma bastante


independente, à tendência a oferecer igualdade de oportunidades, de modo geral, e
oferecer igualdade de oportunidades e direitos específicos para as “minorias” do país.
Como resultado, a discriminação no trabalho por idade, raça, religião ou sexo hoje é
proibida por lei. Porém, a discriminação no trabalho por idade mais severa é a
representada pelas penalidades do Seguro Social previstas em lei para trabalhadores
acima de 65 anos, e a aposentadoria compulsória em uma idade arbitrária, incorporada à
maioria dos planos de pensão. Essa pode ser a mais flagrante “negação de oportunidades
iguais” nos EUA atualmente; certamente, é a mais praticada.

O rápido crescimento no número de idosos, e de fundos de pensão, também coincide


com o surgimento da milítância em prol da igualdade de renda e condições
— em lugar de igualdade de direitos e oportunidades — para todos, mas especial-

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mente para as “minorias desprivilegiadas”. O igualitarismo tornou-se uma paixão
motivadora nos países desenvolvidos. Apenas o nacionalismo possui capacidade de
exercer impacto maior na atmosfera política das sociedades modernas. Porém, de todas
as “minorias”, a dos idosos e aposentados é a que, universalmente, sofre a maior
desigualdade em termos de renda.

Ela poderá chegar a equiparar-se no final da década de 1970 e início da de 1980 com o
“Movimento pela Libertação da Mulher”, enquanto questão política e legal. Pois os
idosos e aposentados (e pessoas em idade de se aposentar que não querem fazê-lo) são,
decididamente, a mais ampla “minoria” — mais numeroso do que pobres, negros ou
qualquer outro grupo minoritário na sociedade americana (ou em qualquer outra
sociedade desenvolvida). Eles também são o grupo “desprivilegiado” que cresce mais
rapidamente. Essa minoria interage com todas as outras e, além de ser a mais
representativa, faz parte do grupo a que todos esperam se reunir. Envelhecer pode não
ser uma alternativa altamente desejável, mas a maioria das pessoas a prefere à outra
alternativa possível. Os integrantes dessa minoria são desprivilegiados não por falha
própria, tampouco por falha de terceiros. Ninguém está tirando alguma coisa ou se
beneficiando às custas deles, oprimindo-os ou explorando-os. Eles não são
considerados, como todas as outras minorias (ou maiorias) desprivilegiadas, “vítimas da
sociedade”. No entanto, fazem parte de uma verdadeira minoria e sofrem com uma
desigualdade de renda real. Numa sociedade tão sensível à desigualdade quanto a nossa
afirma ser, a desigualdade dos idosos e aposentados simplesmente não pode passar
desapercebida. Essas pessoas são numerosas e possuem o poder de voto para se fazerem
ouvir; a natureza igualitária de nossa época garante que eles serão atendidos.
Além disso, a desigualdade desse grupo é fundamentalmente diferente de qualquer
outro, e as soluções tradicionais para lidar com a desigualdade no caso, ou são
inadequadas ou podem agravá-la. Em toda a história, a solução costumeira para a
desigualdade era criar “igualdade de oportunidades” ou, em outras palavras,
proporcionar a todos o mesmo acesso a direitos, empregos, educação, e assim por
diante. Logicamente, a igualdade de oportunidades não levaria à igualdade de
remuneração. O desempenho e as habilidades desiguais seriam remuneradas de modo
desigual, e é esse o significado que os filósofos moralistas sempre conferiram à
“justiça”. Mas, em primeiro lugar, remover barreiras à igualdade de oportunidades
resultaria num grande aumento do desempenho social e econômico (o argumento
remonta a Adam Smith e, muito antes dele, a David Rume, se não ao Antigo
Testamento). Tirar as barreiras, portanto, seria um meio para o exercício da
“compaixão”, para se lidar com essas pessoas e grupos aos quais falta habilidade a
ponto de precisar de apoio social; e, é claro, tornaria controlável o problema da
desigualdade — limitando-o àqueles cuja “desigualdade de condições” resulta de uma
verdadeira, inata, irreversível e séria desigualdade de dons naturais.

Pagina 139

Karl Marx provavelmente foi o representante mais coerente dessa tradicional


abordagem. O “socialismo”, para Marx, era o único meio de criar a verdadeira
“igualdade de oportunidades” para todos, liberando tal explosão de produtividade e
produção e dando início a uma era de verdadeira abundância. Nesse momento, e só
então, o problema da “desigualdade de condições” resultante da falta de uma
“habilidade natural” seria abordado; e, assim, não representaria um problema.
Entretanto, qualquer pessoa que exigisse “igualdade de condições” (por exemplo, de
renda) antes desse momento, era considerada uma “contra-revolucionária” e inimiga da
verdadeira igualdade — esta questão causou a ruptura de Marx com todos os
contemporâneos partidários do igualitarismo, como na célebre e feroz desavença com
Bakunin e os anarquistas.

Durante todo esse período, porém, tem havido uma outra abordagem que se concentra
na “igualdade de condições”, principalmente na “igualdade de renda”, como sendo a
verdadeira igualdade, e que considera a “igualdade de oportunidades” uma desigualdade
extrema. Na expressão clássica dessa abordagem, a habilidade superior, sendo em
última instância um acidente de nascença, não deveria mais dar direito ao homem a
remunerações maiores do que riqueza, posição ou cor da pele herdada. E é essa
abordagem que tem predominado nas últimas décadas em países desenvolvidos. O tema
foi tratado com dureza no recente livro de grande aceitação Uma teoria dajustiça*, do
filósofo de Harvard, John Rawls. Segundo ele, a igualdade de oportunidades é uma
ilusão, a menos que produza igualdade de resultados, isto é, de renda. Esse pensamento
faz Rawls concluir que o que os filósofos moralistas — e todas as principais religiões —
sempre consideraram como sendo “justiça” é, na verdade, injustiça, isto é, recompensas
(e punições) segundo mérito e desempenho. A justiça, ao contrário, consiste em oferecer
compensações (Rawls as chama de “reparações”) àqueles que têm menos condições de
igualdade, especialmente se a causa for uma falta de “bens naturais”, quer se trate de
falta de habilidade ou de motivação. Ao contrário dos primeiros defensores da igualdade
total de condições, Rawls não argumenta que as pessoas são inerentemente iguais,
muito pelo contrário, insiste em que a sociedade deve ser totalmente igual e mesmo
favorecer os inerentemente menos iguais. A deficiência genética pode não ser falha da
sociedade, mas a desigualdade dela resultante é, segundo Rawls, uma negação da justiça
e um delito social.

Esse tipo de igualdade, de renda ou de condições, não considera o desempenho


econômico essencial. De fato, seus defensores aceitam o elevado custo econômico como
inevitável. Novamente, a declaração mais coerente proferida recentemente a esse
respeito está em Equality and efficiency, the big trade-off de Arthur M. Okun,
economista muito respeitado e membro do Conselho de Consultores Econômicos do
presidente Johnson. Okun se declara como um igualitário convicto — mas apresenta
uma novidade entre economistas que, quase sem exceção, consideram a igualdade de
oportunidades mais justa e eficiente. Okun, embora “preferisse acima de tudo * John
Rawls, Brasília, Universidade de Brasília, 1981,

Pagina 141

igualdade total de renda”, enfatiza que a igualdade de condições envolve custos que a
igualdade de oportunidades não acarreta. Qualquer avanço em direção à igualdade de
renda que não seja resultado de uma maior igualdade de oportunidades representa uma
perda de eficiência e produtividade. “Qualquer insistência em dividir o bolo em fatias
iguais reduziria o seu tamanho.” Portanto, uma política igualitária deve examinar a troca
entre igualdade e eficiência; e a sociedade pode — na verdade, deve — aceitar algum
grau de desigualdade de renda como um “aspecto prático”. Igualdade de oportunidades
significa “elevar o nível”, embora apenas gradativamente, não para todos, e talvez nem
mesmo para muitos num determinado momento. Igualdade de condições, contudo,
significa “abaixar o nível” para a maioria. O único ponto a ser discutido é qual
abordagem de igualdade — seja de oportunidades ou de renda e condições — é a
verdadeira “igualdade” e satisfaz as exigências de justiça, imparcialidade e moralidade.
Mas nenhuma abordagem pode ser aplicada à desigualdade do novo centro de gravidade
demográfica da população, os idosos. Devemos proporcionar mais igualdade de
oportunidades aos idosos e aposentados, e não negar-lhes o direito de trabalhar como
agora fazemos. Mas isso talvez apenas atenue o problema, pois não é uma solução. O
conceito de “igualdade de oportunidades” traz implícita a convicção de que, uma vez
que se tenha proporcionado condições iguais de acesso, o indivíduo será capaz de se
tornar “igual” quanto às condições e à renda. Sua desigualdade desaparecerá, qualquer
que seja a sua causa. Isso também indica que, pelo menos para o indivíduo — embora
talvez não para grupos inteiros — a “igualdade de oportunidades” soluciona, e
realmente elimina, o problema da “desigualdade”. Porém, mesmo que consigamos
abolir a aposentadoria compulsória em qualquer idade, a desigualdade para os idosos
será apenas adiada, exceto para os que morrerem.

A desigualdade de condições dos idosos

Não sabemos quantos idosos gostariam de trabalhar, por quanto tempo e em que tipo de
emprego, mas sabemos que muitos são capazes de fazê-lo. Em 1900, afinal, 1/3 das
pessoas que estava empregada antes de completar 65 anos continuou a trabalhar depois
do que hoje é considerada a “idade de aposentadoria” — e suas condições físicas eram
muito piores do que as pessoas que atingem essa idade atualmente, e seus empregos
exigiam muito mais delas fisicamente. Hoje, apenas 1/7 (14%) da antiga força de
trabalho continua ativa depois dos 65 anos — ou, pelo menos, declara seus rendimentos,
o que pode não ser exatamente a mesma coisa, considerando-se as penalidades impostas
pelo Seguro Social a quem ganha mais alguns centavos depois dessa idade. Em 1900,
com certeza, muitos dos trabalhadores prefeririam ter se aposentado se tivessem
condições financeiras para tanto. Hoje, ao contrário, muitos que não trabalham
prefeririam fazê-lo se os regulamentos do Seguro Social o permitisse e se não fossem
impedidos por uma aposentadoria compulsória numa idade determinada.

Pagina 141

De fato, entre os trabalhadores manuais há muitos que não sentem falta do emprego, do
companheirismo ou do estímulo — eles sentem falta apenas do salário. Porém, para
profissionais liberais, executivos e técnicos de todos os níveis, e para trabalhadores
especializados e artesãos, a aposentadoria, mesmo sendo uma renda satisfatória,
representa mais uma ameaça do que algo que se deva esperar com ansiedade.
Mas mesmo que a participação das pessoas com mais de 65 anos na força de trabalho
ultrapassasse o total de 1/3 calculado em 1900 — e isso é muito provável — a parcela
de pessoas ainda ativas com 70, 80 ou 90 anos certamente é muito menor. E, a partir de
agora, o aumento do número de idosos será resultado da longevidade e não de um
crescimento no número de pessoas que atingem a idade de 65 anos. E é também nos
grupos dos mais idosos — com a redução dos benefícios de aposentadoria quando os
cônjuges falecem, o provável gasto da poupança, o aumento da solidão e a maior
necessidade de assistência médica — que a desigualdade em que vivem torna-se maior e
é sentida com mais intensidade.

Porém, a única forma de tornar a renda dos idosos mais equilibrada, e realmente evitar
que seus rendimentos se tornem mais desiguais, é aumentar a “eficiência”. Qualquer
“troca” entre igualdade e eficiência somente pode tornar sua desigualdade maior. Nesse
aspecto, a situação dos idosos difere fundamentalmente da de qualquer outro grupo
“desprivilegiado”: “abaixar o nível” só pode prejudicá-los, nunca beneficiálos.
Aumentar sua igualdade sacrificando “eficiência” é economicamente insustentável e
politicamente impossível, além de moralmente incorreto, mesmo para o mais convicto
dos partidários do igualitarismo, como John Rawls, por exemplo. Um dos motivos é a
dimensão da necessidade. Mesmo para manter os idosos e aposentados em seu estado
atual de relativa desigualdade será necessário um aumento significativo de
produtividade. Numericamente, eles aumentarão tanto quanto a força de trabalho;
mesmo se as barreiras à sua igualdade de acesso e de oportunidade forem eliminadas —
isto é, se as penalidades sobre sua continuação no trabalho forem reduzidas ou
removidas — pode-se apenas, na melhor das hipóteses, evitar que o índice de
dependência se deteriore ainda mais. Portanto, medidas que favoreçam a igualdade de
renda dos idosos à custa da “eficiência”, isto é, da produtividade podem apenas diminuir
a parcela da renda nacional disponível para sustentar os mais velhos e aposentados —
por meio da inflação, o que seria mais provável, ou por meio de cortes em suas pensões.

Politicamente também parece muito improvável (se não impossível) aumentar as verbas
disponíveis para idosos e aposentados reduzindo o tamanho “da fatia do bolo” destinada
à população economicamente ativa. Nestes últimos vinte anos, as pessoas empregadas
deixaram claro que apenas aceitarão maiores encargos destinados às pensões, seja na
forma de aumento nos impostos de Seguro Social ou nos pagamentos para fundos de
pensão privados, se a própria renda subir na mesma proporção. E os trabalhadores
ativos são os únicos que podem financiar rendimentos reais mais elevados para os
aposentados. Não há nenhuma outra fonte de renda ou riqueza disponível.

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Podemos, portanto, testemunhar o surgimento de dois tipos de “igualitarismo”, ambos


reivindicando “igualdade de renda”, em vez de “igualdade de oportunidades”, mas
divergindo quanto aos meios pelos quais pretendem obter essa maior igualdade. Os
tradicionais grupos “desprivilegiados” — por exemplo, os muito pobres ou negros
carentes da sociedade americana — podem continuar a exigir igualdade à custa da
eficiência, por meio da “discriminação inversa” que proporciona segurança financeira,
empregos, promoções e renda como “reparação” por privações do passado ou, segundo
o professor Rawls, porque possuem “menor quantidade de bens naturais” ou “nasceram
em posições sociais menos favorecidas”, O novo “grupo desprivilegiado”, os idosos
aposentados, não quer “reparação”; ele precisa de maior igualdade baseada em maior
eficiência.

Conseqüentemente, igualdade versus igualdade pode muito bem se tornar uma questão
essencial no socialismo de fundo de pensões — com uma igualdade baseada numa
“eficiência” maior e numa igualdade baseada na “reparação” que gerem políticas muito
diferentes e cisões acirradas dos dois grupos.

Não vislumbramos nenhuma solução completa ou perfeita. Trata-se de uma questão de


“direito” contra “direito”, na qual é difícil até mesmo fazer concessões, porém é muito
improvável que ela possa ser adiada por muito tempo, muito menos evitada por
completo, seja nos EUA ou em qualquer outro país desenvolvido. A capacidade
produtiva simplesmente não é suficiente para satisfazer ambas as demandas por
“igualdade”. A verdadeira questão é saber quanto resta para os “desprivilegiados” e para
as “reparações” e quanta “eficiência” a sociedade e a economia estarão dispostas a
sacrificar para satisfazê-los. Porque na economia e na política — e talvez até na
consciência — as exigências dos idosos, isto é, as exigências que só podem ser
satisfeitas por meio de uma “eficiência” maior, certamente serão predominantes.

Inflação versus desemprego: qual o mal menor?

Desde a Grande Depressão, o desemprego tem sido visto como uma doença endêmica e
a mais perigosa da sociedade e economia modernas. No socialismo de fundos de
pensão, pode-se esperar que a inflação assuma os dois papéis. O desemprego, mal
menor, aceito e tolerado socialmente, como forma de controlar a inflação, pode se tornar
uma questão política essencial. O socialismo de fundos de pensão e as mudanças
demográficas que o fundamentam, colaboram para a inflação da economia de duas
maneiras. Uma, claro, é a tentativa de aumentar o salário do trabalhador e suas
contribuições para a aposentadoria (ou a pensão do aposentado), sem um aumento
correspondente na produtividade total. E, já que o trabalhador empregado não aceitará
pagar uma contribuição maior para o Seguro Social ou o fundo de pensão, sem um
aumento compensador em seu salário, esse perigo está sempre presente.

Pagina 144

O segundo risco de inflação origina-se na transferência regular da “poupança” para uma


“pseudopoupança”, isto é, para o consumo dos aposentados. A menos que isso seja
compensado por um aumento real na formação de capital, resultará no que os britânicos
chamam de “estagflação”: estagnação econômica por falta de investimento de capital
acompanhada de pressões de consumo inflacionárias sobre os preços. A inflação
representa a maior ameaça às pensões dos aposentados, e é igualmente perigosa para os
trabalhadores com mais de 50 anos, colocando em risco o futuro poder aquisitivo de
seus benefícios de aposentadoria. Juntos, esses dois grupos constituem quase a maioria
da população adulta; em 1985, eles serão realmente a maioria. Esses dois grupos, como
resultado do socialismo do fundo de pensões, têm um interesse, jamais testemunhado
antes, em evitar a inflação. Um eleitorado importante como esse que partilha um
interesse comum é, por definição, um importante “grupo de interesse” e uma vigorosa
força política no sistema político americano. Mas à medida que o truste de pensões
desencadeia um desempenho econômico que atenda necessidades sociais, a inflação não
pode mais sequer ser economicamente justificada. Mesmo uma “pequena inflação”, a
taxas que os economistas “liberais” considerariam mínima, representa uma ameaça aos
aposentados e aos que entraram na meia-idade. Ao mesmo tempo e esse é um fato
bastante novo o desemprego representa uma ameaça muito menor, se é que podemos
considerá-lo uma ameaça, para o “eleitorado” dos fundos de pensão, isto é, os
aposentados e trabalhadores mais velhos. Obviamente, os que já se aposentaram não são
diretamente (nem mesmo indiretamente) ameaçados pelo desemprego. Trabalhadores
mais velhos com mais de 50 anos, com tempo de serviço considerável e, portanto,
protegidos contra uma demissão, e que já reuniram uma boa parcela de benefícios de
aposentadoria encontram-se em situação semelhante. Economistas e políticos, como um
todo, tenderiam a considerar a inflação um mal menor “controlável”. Mas os eleitores
beneficiários do socialismo de fundos de pensão concordariam com eles?

Novos alinhamentos

Vimos que o socialismo de fundos de pensão e as mudanças demográficas que o


fundamentam vão criar novos problemas e exigir novas políticas. Esses fatos vão criar
novos objetos de discussão e, previsivelmente, tornar irrelevantes muitas das questões
mais notórias da última geração. Eles afetarão fundamentalmente a disposição, o humor,
os valores e o comportamento da sociedade americana e, com isso, sua política.
Também observamos que o socialismo dos fundos de pensão está em vias de criar
um genuíno e novo “grupo de interesse”. E que, por intermédio dos fundos de pensão,
está criando as instituições ao redor das quais esse grupo pode se organizar, instituições

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que representam as preocupações e prioridades do novo centro de gravidade


populacional e social: idosos aposentados e empregados mais antigos (com 50 anos ou
mais) para os quais as provisões para aposentadoria estão se tornando cada vez mais
importantes.

Porém, esse novo grupo de interesses também conduzirá a um realinhamento na política


americana? Ele possui todas as qualificações para tornar-se um novo centro político e é
um grupo de interesse que pode reunir opiniões diversas. Ele é formado por brancos e
negros, homens e mulheres, pela classe média, pelo administrador e pelo operário.
Conseqüentemente, é capaz de integrar pessoas de todas as áreas da sociedade
americana e mobilizá-las a fim de que participem de uma ação conjunta visando um
interesse em comum. Trata-se de um grupo com interesses claramente definidos. No
entanto, esses interesses não causam dissensão, mas sim integração — eles possibilitam
às pessoas, antes separadas por suas preocupações particulares, unir- se num esforço
comum. Dessa forma, esse grupo pode servir como um foco unificador, o centro da
política americana. Além disso, trata-se de um grupo com interesses próprios — mas
não “egoístas”— nitidamente definidos, O lema “O que é bom para os idosos é bom
para os RUA” pode não ser o mais atraente, mas é plausível. Como grupo de interesse, o
novo centro de gravidade populacional pode, portanto, afirmar estar agindo em prol dos
melhores interesses de toda a sociedade. Afinal, quase todo integrante adulto dessa
sociedade — certamente a grande maioria que está empregada e trabalhando — acabará
por se incluir como um membro do novo grupo. O que é bom para o grupo pode não ser
bom para ele de imediato, mas também não contraria seus interesses de longo prazo.
“Longo prazo” significa, afinal, somente alguns anos para o grande e crescente
segmento da população economicamente ativa atingir a idade em que o sustento,
representado pela aposentadoria, já é uma preocupação significativa, e em que o direito
à pensão é, sem dúvida, seu bem maior e sua propriedade mais valiosa.
Essa maioria também teria importantes interesses em comum quanto ao desempenho
econômico, à igualdade baseada em eficiência e à estabilidade da moeda. E teria o que
todo grupo político permanente precisa: inimigos comuns — a “burocracia” e
“pagamentos estornados” para os que não contribuem com seus ganhos para os fundos
de pensão e aposentadoria da maioria, mas que esperam ser sustentados por eles. Assim,
ela seria capaz de desenvolver uma plataforma política e um programa econômico.
Essa maioria não seria “conservadora”. Na verdade, ela seguiria, sob muitos aspectos,
uma forte tendência radical, por exemplo, quanto a assistência médica, moradia e
direitos iguais para as mulheres. Mas os problemas que consideraria cruciais
— as emoções que sente, as coisas que considera importantes — seriam muito
diferentes dos que são vistos, sentidos e considerados igualmente importantes
atualmente por “liberais” e “conservadores”. E as questões que certamente fará serão
totalmente diferentes. Em outras palavras, esse alinhamento, se houver, será
genuinamente “novo” e não será mais parecido com o alinhamento conservador dos dias
que antecederam o New Deal nem com o alinhamento liberal dos últimos quarenta anos.
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Atualmente, a existência de tal maioria pode parecer extremamente improvável, mas


não mais improvável do que a “maioria” de Mark Hanna — a maioria que levou o
Partido Republicano ao poder em 1896 e depois se manteve unida durante 35 anos —
deve ter parecido à opinião geral na época de Cleveland, de Bryan ou dos tradicionais
republicanos do “GOP”* de 1890.

Essa nova maioria exigirá uma liderança política representativa, mas ela também
poderia ser reunida pelos protestos demagógicos contra os sábios “burocratas”.
Prever um novo alinhamento para a política americana é um dos nossos esportes
políticos mais antigos. Desde os primeiros dias da República, todo alinhamento político
e toda “maioria” pareciam ser precários, frágeis, desordenados, à beira de desintegração.
No entanto, uma vez estabelecidos, esses alinhamentos mostraram um enorme poder de
resistência na política americana. Eles mudaram com muito menos freqüência do que
em qualquer outro país — talvez por não seguirem uma ideologia e por serem
francamente baseados em interesses. Os alinhamentos políticos existentes nos EUA são
particularmente resistentes à teoria política e não só sobrevivem às derrotas; ao
contrário da maioria das coalizões, sejam políticas ou militares, os alinhamentos
políticos americanos sobrevivem até mesmo às suas vitórias.

Mas os realinhamentos ocorrem, geralmente devido a mudanças fundamentais na


estrutura e no centro de gravidade da populacão. Via de regra, os alinhamentos políticos
americanos mudam quando surgem novas instituições importantes em conseqüência de
alterações fundamentais na estrutura de domínio e controle dos recursos de produção
representativos. Portanto, o realinhamento na política americana é desencadeado
precisamente pelo tipo de evolução que constitui a “revolução invisível”, o tipo de
evolução que trouxe o socialismo de fundo de pensões para os EUA.
Conseqüentemente, o surgimento dos fundos de pensão oferece a possibilidade
— talvez pela primeira vez desde a década de 1930 — de um genuíno realinhamento na
política americana, um realinhamento baseado na percepção de que os EUA atingiram
seu próprio estilo específico de “socialismo” . * GOP — Grand O/a’ Party (Velho
Grande Partido) — cognome do Partido Republicano desde 1880 (N. do T.).
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PARTE 4 - CONHECIMENTO E EDUCAÇÃO

15 - A política do conhecimento

(Uma responsabilidade para os homens de conhecimento)

As áreas do conhecimento estão em constante mudança. As faculdades, departamentos e


disciplinas existentes não serão adequadas por muito tempo. E, antes de
mais nada, é claro, poucas são antigas. Há cem anos não existia a bioquímica, a
genética e até mesmo a biologia dava seus primeiros passos. Havia a zoologia e a
botânica. Portanto, não deve representar surpresa para nós que a diferença entre química
orgânica e inorgânica não seja mais muito importante. Da mesma forma, as linhas que
antes separavam a fisiologia e a psicologia são cada vez menos significativas, assim
como as existentes entre economia e governo, sociologia e ciências comportamentais,
entre lógica, matemática, estatística e lingüística, e assim por diante. A hipótese mais
provável é que cada uma das antigas demarcações, disciplinas e faculdades acabarão por
ser obsoletas e barreiras para o aprendizado e o conhecimento, O fato de estarmos
passando rapidamente de uma visão cartesiana do Universo, na qual são enfatizados
partes e elementos, para uma visão estrutural, com ênfase no todo e nos padrões, desafia
todas as linhas que dividem os campos de estudo e conhecimento. Até o século XIX,
praticamente não havia contato entre o conhecimento e a ação. O conhecimento atendia
ao “intelecto”, enquanto a ação baseava-se em experiência e nas habilidades dela
resultantes. Até a segunda metade do século XIX, toda a tecnologia estava separada da
ciência e era adquirida por meio do aprendizado prático. * Este capítulo foi extraído de
The age of díscontinuity, publicado em 1969.

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Portanto, a busca do conhecimento, assim como seu ensino, têm sido tradicional- mente
dissociados de sua aplicação. Ambos foram organizados por temas, isto é, segundo o
que parecia ser a lógica do próprio conhecimento. As faculdades e os departamentos das
universidades, títulos acadêmicos, especializações e, na verdade, toda a organização do
ensino superior, têm se concentrado nos temas. Elas têm se baseado, para usar a
linguagem dos especialistas em organização, no “produto”, e não no “mercado” ou no
“uso final”.

Aplicação do conhecimento

Atualmente, o conhecimento e sua busca estão sendo cada vez mais organizados em
torno de áreas de aplicação, e não ao redor das áreas que são objetos das disciplinas. O
trabalho interdisciplinar tem crescido rapidamente em todos os lugares nestes últimos
tempos. Como exemplo, temos os muitos institutos de estudos em áreas específicas,
quer seja na África, na Rússia ou em modernas metrópoles e que reúnem pessoas
dedicadas a todas as disciplinas, de economia a psiquiatria e de agronomia a história da
arte. Esse trabalho interdisciplinar mobiliza cada vez mais as energias das universidades
e define sua direção. Esse é um sintoma da mudança no significado do conhecimento,
passando de um fim em si mesmo para um recurso, isto é, um meio de atingir
determinado resultado. O que antes era conhecimento está se transformando em
informação. O que era tecnologia está se tornando conhecimento. O conhecimento
como a energia central da sociedade moderna existe em conjunto com sua aplicação e
quando é submetido ao trabalho, O trabalho, contudo, não pode ser definido em termos
de disciplinas. Os resultados finais são, necessariamente, interdisciplinares.
O fato de o conhecimento ter se tornado o principal recurso da sociedade moderna
acrescenta uma terceira função às tarefas tradicionais da universidade. Às funções
de ensino e pesquisa, ele acrescenta a do serviço comunitário, ou seja, a conversão do
conhecimento em ação e resultados na comunidade.

Hoje em dia ouve-se falar muito sobre a ênfase dada à pesquisa e sua incompatibilidade
com o ensino e as necessidades dos alunos. Provavelmente trata-se de um mal-
entendido, pois o verdadeiro dilema é causado pela crescente orientação do trabalho da
universidade para o serviço comunitário. As pessoas mais capazes da faculdade? são as
mais propensas a se engajar no trabalho interdisciplinar, além de serem procuradas para
prestar consultoria — pelo governo e sistemas de ensino, empresas e hospitais, pelas
forças armadas, assim como por outras faculdades e departamentos da própria
universidade. O consultor pratica ostensivamente sua especialidade, mas sua
preocupação é com os resultados de seus clientes. Ele é membro, em regime de meio
expediente, de uma equipe concentrada nos resultados finais da aplicação, e não na
lógica de qualquer disciplina. O simples fato de se esperar cada vez mais que a
universidade mobilize suas energias de conhecimento para aplicação e resultados na
comunidade, pode nos esti

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mular ainda mais a reestruturar o ensino de acordo com as principais áreas de aplicação,
e não segundo a lógica da disciplina. É isso que os alunos rebeldes querem. A exigência
de uma “universidade crítica” por parte de alunos radicais, da qual se ouve falar em
Berkeley, Berlim e Tóquio, é uma exigência por um aprendizado organizado ao redor de
importantes áreas voltadas para resultados. O aluno vê o professor empregando seu
conhecimento em problemas referentes a metrópole, desenvolvimento econômico,
conservação do meio ambiente, e pergunta: “Por que nós deveremos nos entediar com
informações insignificantes, sem aplicação e sem relação com as necessidades
importantes que nós e toda a sociedade temos”? Evidentemente os educadores têm uma
resposta. Eles dizem, “Vocês precisam conhecer os instrumentos antes de usá-los”.
Parece plausível, mas de fato faz sentido? Se as matérias que ensinamos aos alunos
realmente são instrumentos, nesse caso serão mais bem aprendidas na prática. De fato, a
única forma de se aprender a usar um instrumento é usando-o numa tarefa específica e
significativa que apresente pelo menos alguns resultados.

E, no entanto, ainda precisaremos de especialistas, isto é, pessoas que aprenderam a


realizar uma tarefa relativamente pequena excepcionalmente bem. Os acadêmicos que
se concentram nos alunos de graduação em um campo muito limitado não estão errados,
mas vêem apenas um lado da questão.

A organização capacitada, e com ela a organização da universidade está,


necessariamente, tornando-se mais complexa e mais controvertida. A existência de uma
organização simples não é mais possível. Para ensinar, devemos nos organizar
considerando as principais áreas de aplicação (que sempre são interdisciplinares) e a
especialização em uma área limitada. Na primeira, devemos nos certificar de que o
aluno leve em consideração a análise profunda necessária, isto é, a contribuição do
especialista. Na segunda, o especialista deverá antes de mais nada aprender que utiliza
só um instrumento que, isoladamente, atinge resultados limitados. Então, deverá
aprender como relacionar essa especialização ao universo do conhecimento e como
estabelecer ligações com sua aplicação, ou seja, como combiná-la com outras
especialidades para atingir resultados. Hoje não sabe- / mos como realizar nenhuma
dessas tarefas — o que explica por que os alunos da/ atualidade estão de tal maneira
confusos. Ao mesmo tëmpo, teremos de reconhecer que a pesquisa gera informações
não conhecimento, e que precisaremos nos organizar para aplicar as informações e
obter resultados, que são o que nós cada vez mais denominamos conhecimento.
Não precisamos de apenas um tipo de pessoa nas universidades, mas de muitos. O PhD
hoje exigido para qualquer emprego, isto é, que o candidato tenha um alto grau numa
disciplina especializada, na qual supostamente realizou pesquisas (ou seja, reuniu
informações), não passa de ignorância. Certamente precisamos de pessoas desse tipo,
mas apenas de algumas em qualquer área. Mais necessário é o homem que possa
desenvolver e ensinar a aplicação do conhecimento e das informações extraídos de
diversas disciplinas, para obter resultados finais.

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Precisamos ainda mais do homem que, em seu próprio trabalho, reúna conhecimento e
habilidades de várias disciplinas e as integre em uma aplicação efetiva fora da
universidade. Atualmente, ele não é oficialmente reconhecido — mas é o verdadeiro
“astro” da grande universidade moderna. Finalmente, precisamos de algo cuja
necessidade o ensino superior nunca reconheceu: administradores. Os vários tipos de
pessoas das faculdades devem organizar- se em uma instituição. No entanto, devem
organizar-se para realizar diversas funções. Cada um desses homens terá de ser capaz de
atingir os próprios objetivos e de extrair a própria satisfação de seu trabalho. E, assim,
as necessidades e desejos dos alunos deverão se integrar a outras fun ções da
universidade. Isso requer uma elevada capacidade administrativa. A universidade pode
oferecer a mais desafiadora, a mais difícil, mas também a mais necessária entre todas as
tarefas administrativas existentes atualmente. Tradicionalmente, acostumamo-nos a opor
um conceito elitista de conhecimento e de educação a um conceito de massa.
Acostumamo-nos a supor que é possível concentrar-se ou na criação de uns poucos
líderes, ou na de uma grande quantidade de seguidores, mas a sociedade moderna
precisa de ambos. Conseqüentemente, a sociedade não pode permitir na educação a
“instituição de uma elite” que detém o monopólio da posição social, do prestígio e das
posições de comando na sociedade e na economia. Oxford e Cambridge são importantes
razões para a debandada de profissionais qualificados da Inglaterra. Uma das principais
razões para a defasagem tecnológica é a Grande École, como a École Polytechnique ou
a École Normale. Essas instituições de elite fazem um excelente trabalho educativo, mas
somente os que ali se formam chegam a posições de comando. Apenas suas faculdades
“têm importância”. Tal atitude restringe e empobrece toda a sociedade. Obviamente,
como em qualquer outra área, na do conhecimento as pessoas apresentam diferentes
habilidades e interesses. E nas universidades, como em todas as demais instituições, há
diferenças de qualidade. Porém, negar a qualquer trabalha dor de conhecimento a
oportunidade de especializar-se é uma atitude incompatível com a natureza do
conhecimento e com as necessidades da sociedade moderna. Onde ele adquiriu seu
conhecimento e onde o aplica deveria ser irrelevante cinco anos após sua formatura. Da
mesma forma, é incompatível com a natureza do conhecimento e com as exigências da
sociedade que se confira uma posição de monopólio a qualquer instituição do
conhecimento. Nós simplesmente precisamos de um grande número de pessoas
qualificadas a fim de estreitar o canal que leva à realização, à oportunidade e ao
progresso. Uma das formas de aumentar a quantidade de mestres é educar o maior
número possível de artífices para atingir um alto nível. Isso foi demonstrado nas artes
— na Renascença italiana, por exemplo, na grande explosão de criatividade do período
Momoyama, no Japão do século XVI, ou nos Países Baixos, na época de Rembrandt e
Rubens.

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É impossível identificar com antecedência as pessoas que apresentarão bom


desempenho ao longo de suas vidas profissionais. O único teste verdadeiro é o
desempenho no trabalho, sendo que o teste de desempenho na escola é o menos
confiável. A história está repleta de nomes de grandes homens responsáveis por notáveis
feitos intelectuais cujo desempenho na escola foi medíocre. Winston Churchill é apenas
um exemplo — Goethe, outro. Via de regra, a história não guarda um registro dos
alunos brilhantes cuja vida foi um retumbante fracasso — mas eles são igualmente
comuns.
A habilidade intelectual é distribuída como qualquer outra, isto é, com base na
probabilidade. Quanto mais pessoas expusermos ao conhecimento, mais líderes
intelectuais surgirão. Não existe conflito entre educação de massa e educação de
qualidade. Devemos educar as grandes massas para conseguirmos a grande quantidade
de pessoas de qualidade de que precisamos. Necessitamos de padrões elevados para as
massas não só para obtermos um grande número de trabalhadores e seguidores
competentes para a força de trabalho qualificado, mas também para encontrar e
estimular o maior número de mestres para o futuro.

A política do conhecimento

Quanto mais o conhecimento se tornar fundamental para a sociedade, maior será a


importância da diversidade, da flexibilidade e da competição. Esse fato também
suscitará questões políticas significativas sobre o conhecimento e fará com que
alternativas para a política do conhecimento se façam cada vez mais necessárias.
Enfrentamos uma situação sem precedentes na qual teremos de estabelecer prioridades
na busca de novos conhecimentos. Enfrentamos a necessidade de tomar decisões
referentes ao rumo do conhecimento e suas consequências.

Esse fato é totalmente novo, não apenas para os homens de conhecimento.


Nunca pensamos no conhecimento e em sua busca como sendo a necessidade de
uma diretriz, muito menos de prioridades e limitações.

Está ficando cada vez mais claro que o conhecimento não é um bem absoluto em si mais
do que qualquer outra coisa, O conhecimento pode ser neutro, mas a neutralidade não se
aplica de modo algum ao que fazemos com ele. Deve-se estimular a busca pelo
conhecimento que poderia ser usado apenas para controlar e manipular mentes — como
ocorre com grande parte da pesquisa nas ciências comportamentais? Ou trata-se de uma
caixa de Pandora, da qual só poderá sair o mal? E quanto às pesquisas sobre a guerra
bacteriológica? Ainda é válida e aceitável a desculpa de que, se não o fizermos, outro o
fará? A questão das prioridades é ainda mais inevitável e incômoda. Estamos
encontrando limitações físicas na busca pelo conhecimento. Devemos poupar nossos
recursos. Não é dinheiro que faltará pois ele, afinal, não realiza as pesquisas, mas sim o
homem. E a quantidade de homens capazes de produzir novos conhecimentos está se
esgotando rapidamente em todos os países desenvolvidos. Nas ciências naturais, na
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medicina, nas ciências sociais e humanas, os resultados das pesquisas já estão


diminuindo à medida que precisamos empregar recursos humanos menos úteis.
A necessidade de estabelecer prioridades provavelmente é maior nas ciências políticas e
comportamentais, na economia e na política, na psicologia e na sociologia.
Aparentemente, nessas áreas o talento para o trabalho produtivo é menos comum e se
desenvolve com maior lentidão do que nas ciências naturais. Hoje, no entanto, em
alguns campos das ciências naturais dispomos de mais conhecimentos do que podemos
empregar, embora tenhamos uma enorme necessidade de reflexão, conhecimento e
novas idéias no governo e na sociedade. A natureza, que não criamos, não sofreu
alterações, mas o ambiente gerado pelo homem, nossas comunidades, nossas sociedades
e nossos governos têm mudado muito mais depressa do que nossa capacidade de
compreendê-los.

Quais são as prioridades na busca pelo conhecimento? Em que tipo de trabalho devemos
empregar nossos escassos recursos de pessoal treinado, experiente e testado? E quem
deve tomar as decisões? As conseqüências dessas decisões são alarmantes, pois elas
envolvem mais risco do que jamais enfrentamos na alocação de recursos em
expectativas econômicas. No entanto, sabemos muito menos sobre elas do que sobre as
decisões e os riscos econômicos. Até o momento, não dispomos de meios para optar
racionalmente entre diferentes linhas de investigação e pesquisa. Mesmo que
pudéssemos admitir uma relação definida entre esforço e resultados nesse trabalho, não
há como fazer uma escolha racional entre os diferentes resultados.

A que se deve dar prioridade: à pesquisa para curar uma doença infantil relativamente
rara, ou para melhorar a expectativa de vida e a saúde dos idosos? Precisamos mais: de
métodos de aprendizado de línguas estrangeiras fáceis e rápidos ou de melhores
métodos para acelerar o desenvolvimento socioeconômico? Devemos destinar recursos
escassos à melhoria do potencial de defesa que pode representar a diferença entre
derrota e sobrevivência, ou devemos empregar os mesmos recursos em transporte
urbano? Está claro que a decisão não se baseará em fundamentos “científicos”,
tampouco “factuais”. Ela deve ser uma escolha entre valores e basear-se em avaliações
altamente subjetivas sobre o futuro. Em outras palavras, não se trata de uma decisão
científica, mas sim política. Essas decisões sobre prioridades surgem não-somente no
âmbito internacional ou nacional, mas dentro de todos os departamentos de
universidades e faculdades, e em todos os laboratórios de pesquisa. No entanto, as
pessoas de conhecimento, principalmente os intelectuais e cientistas de nossas
universidades, raramente percebem a necessidade de tomar essas decisões. A maioria
ainda acredita que o governo (ou a universidade) tem o dever de apoiar qualquer projeto
de pesquisa apresentado por um acadêmico respeitável e não compreende que isso é
impossível do ponto de vista físico e muito menos do econômico.

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Qualquer decisão sobre prioridades deve considerar as habilidades e inclinações do


acadêmico e pesquisador como um fator importante. Em primeiro lugar, pesquisa- dores
e cientistas desempenham melhor suas tarefas quando trabalham no que querem e não
no que lhes é mandado fazer. Porém, as incertezas da decisão também são de tal modo
significativas que se deve dar o maior peso possível à intuição do homem experiente
que tenha provado ser capaz de apresentar um bom desempenho. Ao mesmo tempo, a
maioria dos acadêmicos e pesquisadores realiza um trabalho melhor se for orientada na
direção de uma meta e se seus esforços forem organizados. Apenas o homem
excepcional trabalha bem sem essa orientação. A produtividade da pesquisa dirigida foi
mostrada na criação da bomba atômica, em que a maioria dos participantes teve boa
atuação, embora nem ao menos soubesse em que trabalhava e conhecesse apenas a
tarefa específica que lhe era ordenada. E os russos provaram o mesmo, repetidas vezes.
Se necessário, podemos tomar decisões sem a participação voluntária e do cientista e
sem que ele seja informado do fato — embora corramos o risco de tomar muitas
decisões inadequadas, O cientista, contudo, talvez não possa tomar tais decisões
sozinho, pois são decisões políticas, isto é, escolhas entre valores não-científicos e
nãofactuais. Decisões políticas devem ser tomadas por políticos. A decisão exige,
portanto, um novo relacionamento entre o homem de conhecimento e os que tomam
decisões — e, até agora, nenhum dos dois pensou muito sobre o assunto. De modo
geral, a necessidade de elaborar e estabelecer as prioridades para o conhecimento, de
dirigir o conhecimento e de assumir riscos conduz o conhecimento, bem como sua
orientação, suas metas e seus resultados cada vez mais em direção à política. Não
podemos mais preservar a tradicional linha divisória entre a “vil política” e o
“conhecimento imaculado”. A mudança da habilidade manual para conhecimento como
base para o trabalho e o desempenho significa, portanto, que o conhecimento em si está
sendo cada vez mais “influenciado pelo interesse público”. As principais decisões da
sociedade do conhecimento são decisões sobre o conhecimento. As questões essenciais
em tal sociedade são questões de conhecimento. É provável que a necessidade de
estabelecer prioridades para o conhecimento e para os esforços de encontrar novos
conhecimentos imponha um debate sobre o objetivo, o rumo e o significado do
conhecimento de modo geral. A pergunta, “Esse novo conhecimento é necessário ou
desejável, ou seria mais desejável e necessário um outro tipo de conhecimento”? quase
que fatalmente conduzirá a uma outra pergunta, “O conhecimento é, em geral,
necessário ou desejável”? A tecnologia ainda será considerada necessária e desejável
por muito tempo, ainda que grupos representativos da sociedade (por exemplo, os
“românticos” da nova esquerda) se oponham a ela. Continuaremos a nos empenhar na
tecnologia, quer gostemos ou não. As pressões competitivas da economia dos tempos de
paz, assim como a necessidade de um rápido desenvolvimento econômico das nações
pobres nos obrigarão a dar prosseguimento ao trabalho tecnológico em ritmo acelerado.
E eu temo que o mesmo acontecerá com a competição da defesa das nações.

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Mas, e o conhecimento? Nesse aspecto, é possível que nossas palavras e atos se tornem
ambíguas. Quando tentamos estabelecer uma diferença entre diversos tipos de
conhecimento, classificando-o como “bom”, “neutro” ou “perigoso”, podemos
começara nos perguntar se mais conhecimento é desejável ou necessário.
É possível que nos tornemos céticos quando um tipo de conhecimento considerado
absolutamente necessário por determinado grupo de especialistas é julgado inútil por
outro. Isso certamente acontecerá com bastante regularidade, uma vez que somos
obrigados a estabelecer prioridades e a discutir que rumo deveremos dar ao esforço pelo
conhecimento. (Isso já aconteceu com respeito à física de partículas de alta energia, que
é especialmente cara.)
Se chegarmos a questionar o valor do conhecimento, será a primeira vez que o faremos
desde que Sócrates o definiu como a origem do pensamento e da visão do mundo
ocidental há 2.400 anos. Desde então, o conhecimento foi considerado um fato natural
pelos ocidentais. Teólogos de várias doutrinas religiosas, do cristianismo bizantino ao
marxismo, procuraram repetidas vezes controlar o que é ou deveria ser o “verdadeiro”
conhecimento. Porém, depois dos gregos poucas pessoas no ocidente rejeitaram o
conhecimento em si ou questionaram seu valor e sua virtude. O conhecimento foi
combatido pelos místicos franciscanos do século XIII, mas retomado pela grande síntese
do conhecimento de São Tomás de Aquino. E, nessa ocasião, seu contemporâneo, São
Boaventura, ele mesmo um franciscano, determinou sua atual posição: todo o
conhecimento, ensinava, leva ao conhecimento fundamental da Verdade; todo
conhecimento é santificado e santifica. Estaremos prestes a abandonar essa crença, a
fundação sobre a qual foi construído o ocidente moderno?
É provável que questionemos o valor do conhecimento precisamente devido ao seu
sucesso. O conhecimento está se tornando ambíguo porque passou a ser a base dos
recursos econômicos da sociedade moderna. Sócrates estabeleceu que o conhecimento
era bom ao afirmar, em oposição aos sofistas, que o mesmo não se aplica à ação, que, na
verdade, empregá-lo em ações é usá-lo de forma errada. O objetivo do conhecimento
era o conhecimento e sua prova, a sabedoria. Hoje, porém, quaisquer que sejam as
palavras que empreguemos, nossos atos tornam claro que nosso objetivo é a aplicação
prática, ou pelo menos a prova do conhecimento. A posição socrática não é mais
suficiente. Como resultado, é bastante plausível que os grandes “ismos” do futuro sejam
ideologias sobre o conhecimento. É possível que o conhecimento passe a ocupar lugar
de destaque nas filosofias intelectuais e políticas de amanhã que a propriedade, isto é, os
objetos, ocuparam no capitalismo e no marxismo. Mas isso são conjeturas e tudo que se
pode dizer atualmente é que a aplicação tornou-se o centro do conhecimento, do esforço
pelo conhecimento e de sua busca organizada. Como resultado, o conhecimento passou
a ser a verdadeira base da economia e da sociedade modernas, e o verdadeiro princípio

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da ação social. Essa mudança é de tal maneira significativa que deve exercer um grande
impacto no próprio conhecimento e deve transformá-lo numa questão filosófica e
política fundamental na sociedade do conhecimento.
O conhecimento tem futuro?

O principal problema moralda sociedade do conhecimento será o da responsabilidade


dos homens capacitados, de conhecimento. Historicamente, os homens de conhecimento
não tiveram o poder nas mãos, pelo menos não no ocidente, pois eram meros adornos.
Se desempenharam qualquer papel junto aos poderosos, foi o de bobos da corte.
Historicamente, o ditado “a pena é mais poderosa do que a espada” é de tal maneira
destituído de verdade que só pode ser considerado o “ópio dos intelectuais”, O
conhecimento era algo bom, um alívio para os aflitos e uma alegria para os ricos que
tinham acesso a ele, mas não representava poder. De fato, até recentemente, o
conhecimento preparava apenas para a posição de servo dos poderosos. Oxford e
Cambridge, até meados do século XIX, instruíam os clérigos, e as universidades
européias, os funcionários públicos. As escolas de administração nos EUA, criadas há
menos de um século, têm preparado funcionários bem treinados em vez de empresários.
Mas agora o conhecimento é poderoso. Ele controla o acesso à oportunidade e ao
progresso. Cientistas e acadêmicos não estão mais meramente “à disposição”, eles estão
no comando. Eles precisam ser ouvidos pelos que elaboram as políticas. Em geral, são
eles que determinam que políticas devem ser levadas em consideração em áreas
fundamentais como defesa e economia. De modo geral, são eles que estão a cargo da
formação dos jovens. As pessoas cultas já não são pobres. Pelo contrário, são as
verdadeiras “capitalistas” da sociedade do conhecimento. Os salários subiram
rapidamente nas escolas. Atualmente, uma sociedade que ainda remunera mal seus
professores, quer pertençam à escola primária, secundária ou à universidade, é uma
sociedade “retrógrada” em termos educacionais. Em tal sociedade os intelectuais partem
em busca de melhores oportunidades ou há uma defasagem tecnológica. Cada vez mais,
também, o homem de conhecimento encontra oportunidades de ganhos fora da
Academia, por intermédio de subvenções para pesquisas ou como consultor.
Porém, poder e riqueza impõem responsabilidade. As pessoas de conhecimento podem
saber mais que as demais, mas raramente o aprendizado proporciona sabedoria.
Conseqüentemente, não causa surpresa o fato de que os homens instruídos não
percebam a necessidade de adquirir responsabilidade o quanto antes. Eles não são
diferentes de qualquer outro grupo que já participou do poder. Eles também acreditam
que devem suas posições à sua virtude e não precisam de nenhuma outra justificativa
além da “pureza de suas intenções”. Eles também acreditam que qualquer um que
questione seus motivos deve ser um tolo ou um

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vilão, um “antiintelectual” ou “macarthista”. Mas os homens de conhecimento também


constatarão que o poder justifica-se somente por meio da responsabilidade. Os homens
de conhecimento encontrarão dificuldade em aceitar que as decisões básicas referentes
ao conhecimento são políticas e não de conhecimento em si e, portanto, não estão em
suas mãos. Eles relutarão ainda mais em aceitar que nós os consideremos responsáveis
por essas decisões, embora não possam controlá-las. No entanto, a menos que aceitem
esse fato, não terão muita voz ativa nessas decisões. Elas precisam ser tomadas, e a
única saída para os homens de conhecimento é participar delas com responsabilidade ou
vê-las impostas por terceiros. Da mesma forma, vamos exigir que os homens de
conhecimento sigam um rígido código de moral. Tal exigência representará para eles
uma surpresa ainda maior, pois sempre se orgulharam de sua objetividade e da
moralidade da ciência. Eles costumam considerar-se receptáculos de virtudes, mas o que
pode ter sido perfeitamente adequado como moralidade particular, quando o
conhecimento não dispunha de poder algum, é totalmente irrelevante para um grupo que
se encontra no poder. De fato, os homens de conhecimento se encontram hoje na
situação em que estava o homem de negócios no final do século XIX, que pressupunha
que a moralidade nos negócios era um “assunto particular”. Para um grupo que se
encontra no poder, a hipótese superficial da correção moral contanto que o coração seja
puro e a causa, justa é uma rematada imoralidade. Os médicos americanos de Nova
York que, conforme foi constatado em 1967, injetaram drogas perigosas e não-testadas
em pacientes terminais de câncer sem seu consentimento ou conhecimento, ficaram
magoados e chocados quando seu comportamento foi questionado (mesmo tendo
infringido princípios de ética médica estabelecidos e divulgados, além de leis estaduais),
Afinal, alegaram, não auferiram ganho algum com tais experimentos. Eles apenas
tentavam obter um conhecimento que pudesse ajudar a humanidade sofredora. Criticá-
los era o mais grave de todos os crimes: a interferência de leigos em pesquisa médica na
qual apenas colegas pesquisa- dores têm direito a opinar e, mesmo assim, somente sobre
a validade científica de suas descobertas. A moralidade do conhecimento deve, de fato,
ser determinada e controlada por pessoas do mesmo ramo de atividade e deve ser
controlada por si própria, como ocorre em toda profissão digna. Mas se as pessoas de
conhecimento recusam-se a lidar com o problema, se se recusam a admitir que ele existe
(como costumam fazer com freqüência), a comunidade inevitavelmente tentará resolvê-
lo — assim como puniu os médicos de Nova York, em vez de deixar essa tarefa a cargo
da comunidade médica. Pois o poder sempre causa problemas de moralidade. Não se
deve perdoar a imoralidade simplesmente porque não proporciona lucros a ninguém.
Este é apenas um exemplo, e somente de uma área, sobre a qual devemos pensar na
moralidade do poder do conhecimento. O que dizer da moralidade das restrições com
que a comunidade do conhecimento, e especialmente os educadores, cercam e protegem
seu monopólio? Pode-se justificar a exigência do título de PHD

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(exceto talvez nas ciências físicas)? Há qualquer prova de que tal título torne alguém um
professor melhor ou mesmo um acadêmico melhor? Ou o principal motivo para essa
exigência será o fato de ela assegurar acesso a nomeações e lucros a pessoas que
dedicaram tempo e dinheiro à universidade? Um cargo vitalício poderá mesmo ser
moralmente justificado? Precisamos de uma defesa contra a pressão política e a tirania
administrativa exercida nas faculdades, mas não será a defesa do cargo vitalício talvez
ainda pior do que a ameaça das pressões políticas e administrativas? Não poderíamos
idealizar uma forma de proteger o indivíduo contra essas pressões e ainda proteger a
comunidade, a escola e o aluno contra a indolência e a incompetência? Por que não criar
um comitê consultivo formado por acadêmicos visitantes, que fiscalizariam o
desempenho e os serviços de todos os membros da faculdade, a cada três ou cinco anos?
Temos hoje, nos EUA, mais de 2 mil faculdades e universidades e cerca de 80 mil
estabelecimentos de ensino. Certamente não é difícil para um professor competente
encontrar outro bom emprego caso seja demitido sem justa causa. Nossas faculdades
estão abarrotadas de pessoas fisicamente capacitadas que pararam de lecionar no
momento em que se tornaram professores-adj untos ou catedráticos e assumiram um
cargo vitalício. E há poucas queixas de pressões ou perseguições indevidas nos
laboratórios de pesquisa industrial, onde os cargos não são permanentes.

Enquanto os homens de conhecimento não tinham poder, problemas como esses,


embora existissem, não tinham importância. Eles interessavam somente aos integrantes
do grupo. Mas com os homens de conhecimento no centro do poder, esses não são mais
“assuntos particulares”. O grupo que está no poder assume a responsabilidade por sua
moralidade, ou é corrupto e corrompe. É igualmente indispensável que os homens de
conhecimento, os instruídos, assumam a responsabilidade pela satisfação, pelo padrão,
pela qualidade, pelo desempenho e pelos impactos exercidos pela educação.
O diploma não é algo que as pessoas devam cobiçar, como tantas fazem. Elas devem
sim, torná-lo socialmente produtivo ou eliminá-lo. A baixa produtividade da educação é
um desafio para sua responsabilidade. Não basta pedir mais dinheiro e queixar-se
quando este não se torne imediatamente disponível. Acima de tudo, os homens de
conhecimento precisam assumir a responsabilidade pelo desempenho da educação. Não
é mais admissível culpar os alunos por não conseguirem aprender. O aluno que não
aprende representa um fracasso da escola, e o aluno que não quer aprender é uma
vergonha para a escola e uma acusação tanto para a escola quanto para o professor.
É uma atitude ingênua esperar que as pessoas instruídas aceitem tal responsabilidade
voluntariamente. Elas seriam o primeiro grupo na história a fazê-lo. Entretanto, assim
como outros grupos antes desses, o dos instruídos em breve será desafiado a assumir
essa responsabilidade. É altamente provável que a próxima grande onda de crítica,
indignação e revolta popular nos EUA venha a ser provocada pela arrogância das
pessoas instruídas. Os jovens já se encontram em estado de plena revolta.

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Das descontinuidades que nos cercam, a mudança de posição e de poder do


conhecimento é a maior. Há 7 mil anos, ou mais, o homem descobriu a habilidade.
Houve grandes artistas antes dessa descoberta. Nunca houve pintores melhores do que
os homens pré-históricos que nos legaram as pinturas nas cavernas da França e Espanha,
ou as pinturas rupestres no Saara. Porém, não havia artífices hábeis naquele período. A
habilidade forneceu os instrumentos para que pessoas destituídas de genialidade
pudessem atingir um desempenho previsível e competente, e fossem capazes de se
aprimorar de geração em geração por meio de um aprendizado organizado e sistemático.
A habilidade criou a divisão do trabalho e, conseqüentemente, possibilitou o
desempenho econômico. Aproximadamente no ano de 2000 a.C., nossos ancestrais
pertencentes às civilizações que irrigavam a terra na região oriental do Mediterrâneo
desenvolveram todas as instituições básicas sociais, políticas e econômicas da
sociedade, e todas as nossas ocupações e a maioria dos instrumentos que o homem tinha
a sua disposição até 200 anos atrás. A descoberta da habilidade criou a civilização.
Agora estamos prestes a dar outro passo importante. Estamos começando a aplicar o
conhecimento ao trabalho. Ainda não estamos muito à frente, admito, de nossos antigos
ancestrais que foram os primeiros a tornar a caça uma ocupação especializada, na qual
se empregavam instrumentos especiais e que exigia uma habilidade a ser adquirida num
longo e árduo aprendizado. Porém, desde os primeiros passos vacilantes que demos,
ficou evidente que a aplicação do conhecimento ao trabalho é uma idéia excelente e
muito estimulante e que pode representar um potencial tão grande quanto o da
descoberta da habilidade. Seu desenvolvimento pode levar igualmente tanto tempo, mas
os impactos já são intensos — e as mudanças que envolvem são, de fato,
extraordinárias.

Tão grandes e profundos como qualquer desses impactos gerados pelo conhecimento
são os impactos exercidos sobre ele. Acima de tudo, as transformações do conhecimento
em base do trabalho e do desempenho, impõem responsabilidades ao homem de
conhecimento. De que forma ele aceitará tal responsabilidade, e como a colocará em
prática, será em grande parte, determinante, para o futuro do conhecimento pode até
mesmo determinar se o conhecimento terá futuro.

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16 - A escola responsável

(Mudanças radicais)

A revolução tecnológica — computadores e transmissão via satélite diretamente para a


sala de aula — está engolindo nossas escolas. Ela transformará a forma de aprendizado
e de ensino, dentro de poucas décadas, e também os aspectos econômicos da educação.
As escolas, praticamente intensivas de mão-de-obra, passarão a ser altamente intensivas
de capital. Porém, ainda mais drásticas — embora raramente discutidas até o momento
— serão as mudanças na posição social e no papel da escola. Há muito uma instituição
essencial, a escola tem sido “da sociedade”, em vez de estar “presente na sociedade”.
Ela se preocupou com os jovens que ainda não eram cidadãos responsáveis e ainda não
faziam parte da força de trabalho. Na sociedade do conhecimento, a escola se torna uma
instituição também de adultos e, principalmente, de adultos de elevado nível de
escolaridade. Na sociedade do conhecimento, a escola passa a ser, acima de tudo,
responsável por desempenho e resultados. Essas especificações exigem uma escola tão
diferente da que existe atualmente, quanto a escola “moderna” — para a qual Comenius
elaborou as especificações há 50 anos — diferia da escola que existia antes do livro
impresso. Eis as novas especificações:

• A escola de que precisamos deve proporcionar instrução universal de alto nível —


muito além do que “instrução” significa hoje.

• Ela deve imbuir os alunos de todos os níveis e de todas as idades de motivação para
aprender e de disciplina para o aprendizado contínuo.

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• Ela deve ser um sistema aberto, acessível às pessoas de elevado grau de instrução e às
pessoas que por qualquer motivo não tiveram acesso à instrução avançada quando
jovens.

• Ela deve proporcionar o conhecimento sob a forma de conteúdo e processo — o que


os alemães diferenciam como Wissen e Kiinnen.

• Finalmente, as escolas não podem mais monopolizar o ensino. A educação na


sociedade pós-capitalista deve permear toda a sociedade. Organizações empregadoras
de todos os tipos — empresas, órgãos do governo, organizações sem fins lucrativos —
também precisam tornar-se instituições de aprendizado e de ensino. As escolas, cada vez
mais, devem trabalhar em parceria com empregadores e organizações empregadoras.

As novas exzências de desempenho


A primeira prioridade é atingir uma instrução universal de alto nível. Isso é
fundamental. Sem essa base, nenhuma sociedade pode almejar um bom desempenho no
mundo pós-capitalista e em sua sociedade do conhecimento. Equipar individualmente os
estudantes com os instrumentos que lhe permitam atuar, contribuir e que sejam
empregáveis é o primeiro dever social de qualquer sistema pedagógico.
A nova tecnologia de aprendizado exercerá seu primeiro impacto sobre a instrução
universal. A maioria das escolas, ao longo dos tempos, gastou horas intermináveis
tentando ensinar o que era mais fácil aprender do que ensinar, ou seja, o que é aprendido
e por meio de comportamentos, exercícios, repetição, feedback. A esse grupo pertence a
maioria das matérias ensinadas na escola de primeiro grau, mas também muitas das
matérias ensinadas em estágios posteriores do processo educacional. Tais matérias
— seja redação e leitura, aritmética, fatos históricos, biologia, ortografia e mesmo
matérias avançadas como neurocirurgia, diagnóstico médico e grande parte da
engenharia — são melhor aprendidas por meio de programas de computador. O
professor motiva, orienta, estimula e, na verdade, torna-se um líder e um recurso.
Na escola do futuro, os alunos serão seus próprios instrutores, tendo um programa de
computador como ferramenta. De fato, quanto mais jovens são os estudantes, mais o
computador os atrai, e maior é o sucesso com que os guia e os instrui. Historicamente, a
escola de primeiro grau foi totalmente intensiva de mão-de-obra. A escola de primeiro
grau do futuro será altamente intensiva de capital.

Apesar da tecnologia disponível, o aprendizado universal enfrenta imensos desafios. Os


conceitos tradicionais de instrução já não são suficientes. Ler, escrever e calcular serão
tão necessários como hoje, mas a instrução deverá ir muito além dessas bases. Ela exige
que se saiba usar números, que se tenha uma compreensão básica da ciência e da
dinâmicada tecnologia, um conhecimento de línguas estrangeiras. E também exige que
se aprenda a ser um membro eficiente de uma organização como empregado.
Instrução universal implica um nítido comprometimento à prioridade que representa o
ensino. Ela exige que a escola — principalmente a escola para iniciantes,

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as crianças — subordine tudo o mais à aquisição das habilidades básicas. A menos que
a escola seja bem-sucedida em proporcionar essas habilidades ao jovem estudante, ela
terá falhado em sua principal missão: a de proporcionar autoconfiança e competência
aos iniciantes, e dar-lhes condições para que, daqui a alguns anos, tenham bom
desempenho e sucesso na sociedade pós-capitalista, a sociedade do conhecimento.
“Instrução” tradicionalmente significava conhecimento subjetivo, por exempio, a
capacidade de multiplicar ou alguns conhecimentos de história. Mas a sociedade do
conhecimento precisa igualmente de conhecimento de processos — algo que as escolas
raramente tentaram ensinar.

Na sociedade do conhecimento, as pessoas precisam aprender a aprender. De fato, na


sociedade do conhecimento, é possível que as matérias tenham menos importância do
que a capacidade de o aluno continuar a aprender e sua motivação para fazê-lo. A
sociedade pós-capitalista exige um aprendizado que dure toda a vida e, para tanto, é
preciso disciplina.

Realmente, nós sabemos o que fazer. Na verdade, durante centenas, se não milhares de
anos estamos criando motivação para o aprendizado contínuo e a necessária disciplina.
Os bons mestres dos artistas agem dessa forma; os bons treinadores de atletas,
igualmente; e também os bons “mentores” nas organizações empresariais das quais
ouvimos falar tanto ultimamente na literatura de desenvolvimento de gestão. Eles
conduzem seus alunos a feitos tão significativos a ponto de surpreender seu realizador,
criando estímulo e motivação — especialmente para realizar a prática e o trabalho
rigorosos, disciplinados e persistentes que o aprendizado contínuo exige.
Há poucas coisas mais monótonas que a prática de escalas. No entanto, quanto mais
talentosos e perfeitos são os pianistas, mais eles as praticam, hora após hora, dia após
dia, semana após semana. Da mesma forma, quanto mais habilidosos são os cirurgiões,
maior é o cuidado com que praticam as suturas, hora após hora, dia após dia, semana
após semana. Os pianistas praticam suas escalas meses a fio para atingir uma melhoria
infinitamente pequena em sua habilidade técnica. Porém, essa prática lhes permite
alcançar o resultado musical que já podem ouvir internamente. Os cirurgiões fazem
suturas durante meses sem fim para obter uma melhoria infinitamente pequena em sua
destreza manual. Porém, tal prática lhes permite acelerar uma operação e, assim, salvar
uma vida. A realização vicia, porém, tal realização não significa obter um resultado um
pouco menos insatisfatório em alguma tarefa na qual não se é especialmente talentoso.
A realização que motiva é a que permite fazer excepcionalmente bem algo para o qual já
se demonstra talento. A realização precisa basear-se nos esforços do aluno — como já é
do conhecimento de todos os mestres de artistas, técnicos de atletas e mentores há
milênios. De fato, encontrar os pontos fortes dos alunos e orientá-los para a realização é
o que melhor define o professor e o ensino. É a definição que consta do Dialogue on the
Teacher, de um dos maiores professores do Ocidente, Santo Agostinho de Hipona

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Naturalmente, as escolas e seus professores também estão cientes deste fato, mas eles
raramente puderam concentrar-se nos pontos fortes dos alunos e desaflálos. Em vez
disso, foram obrigados a concentrar-se nas fraquezas. Nas tradicionais escolas do
ocidente praticamente todo o tempo — pelo menos até a universidade — é gasto em
solucionar fraquezas e em produzir uma respeitável mediocridade.

Os alunos precisam adquirir um mínimo de competência em habilidades essenciais;


precisam de trabalho corretivo e, também, se habituar à mediocridade. Mas na escola
tradicional, praticamente não há tempo para nada mais. Os produtos mais prodigiosos da
escola tradicional, “os alunos nota dez” são os que satisfazem totalmente padrões
medíocres. Eles não são os que realizam, são os que obedecem. Mas, repetindo, a escola
tradicional não tem opção. A principal tarefa é conferir aos alunos a possibilidade de se
adequar às habilidades básicas e ela só pode ser atingida — mesmo em classes pequenas
— concentrando-se nas fraquezas dos alunos e então, solucionando-as. É possível que,
nesse aspecto, as novas tecnologias façam uma grande diferença, pois elas liberam os
professores de gastar a maior parte de seu tempo, quando não todo ele, em aprendizado
rotineiro, corretivo e repetitivo. Essas atividades ainda precisarão da orientação dos
professores; mas a maior parte de seu tempo costuma ser gasto em acompanhamento; os
professores, para citarmos uma antiga frase, passam a maior parte de seu tempo como
“assistentes de professores” e essa tarefa, na verdade, pode ser realizada melhor pelo
computador do que pelo ser humano. Esperamos que, dessa forma, os professores
tenham cada vez mais tempo para identificar os pontos fortes dos indivíduos,
concentrar-se neles e conduzir os alunos para a realização. E esperamos que eles
também tenham tempo para ensinar.

A escola na sociedade
A escola é uma instituição social essencial há muito tempo — no ocidente pelo menos
desde a Renascença, e ainda há mais tempo no oriente. Mas ela tradicionalmente é “da
sociedade”, em vez de estar “presente na sociedade”. Ela sempre foi uma instituição
independente que raramente, talvez nunca, se associou a nenhuma outra instituição. As
primeiras escolas no ocidente, os mosteiros beneditinos do início da Idade Média,
treinavam principalmente futuros monges e não os leigos.

A escola não se destinava aos adultos; a raiz da palavra “pedagogia” —paidos — é


“menino” em grego. Portanto, o fato de a escola hoje estar cada vez mais presente na
sociedade pode representar uma mudança tão radical quanto qualquer mudança nos
métodos de ensino e de aprendizado, nas matérias, ou no processo de ensino e de
aprendizado. A escola continuará a ensinar os jovens, porém, à medida que aprendizado
se torne uma atividade duradoura e não algo que é interrompido quando se “cresce”, ela
terá de se organizar para o aprendizado contínuo. As escolas terão de se tornar “sistemas
abertos”.

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Em quase todos os lugares, as escolas são organizadss a partir do princípio que


o aluno deve iniciar cada nível numa determinada idade, com um preparo determinado
e padronizado. Inicia-se o jardim da infância aos 5 anos, o primeiro grau aos 6, o
segundo grau aos 15, a faculdade aos 18, e assim por diante. Se alguém perde uma
dessas etapas (exceto o jardim da infância), fica eternamente fora de compasso e
raramente consegue retomar os estudos. Para a escola tradicional, esse é um axioma
incontestável, quase uma lei natural, mas é incompatível com a natureza do
conhecimento e com as exigências da sociedade do conhecimento, a sociedade pós-
capitalista. É necessário, agora, um novo axioma: “Quanto maior o grau de instrução de
uma pessoa, maior será a freqüência com que ela precisará de mais instrução”.
Nos EUA, espera-se cada vez mais que médicos, advogados, engenheiros e executivos
voltem à escola, de tempos em tempos, a fim de que seus conhecimentos não se tornem
obsoletos. Fora dos EUA, contudo, a volta de adultos à escola formal ainda é uma
exceção — e especialmente a volta dos adultos ao ensino avançado nos campos em que
já adquiriram conhecimentos significativos e uma graduação elevada. No Japão, esse
fenômeno ainda é quase desconhecido, mas também na França, na Itália e, de modo
geral, na Alemanha, na Grã-Bretanha e na Escandinávia, mas terá de se tornar uma
norma em todos os países desenvolvidos.
Mais nova ainda é a necessidade de conferir ao sistema educacional um caráter
liberal, isto é, permitir que as pessoas ingressem nos diversos níveis escolares com
qualquer idade. Mesmo em países como os EUA e Japão em que um grande número de
jovens freqüentam a universidade, muitos mais interrompem os estudos quando chegam
aos 16 ou 18 anos. Não há razão para acreditar que a maioria das pessoas seja pouco
dotada para realizar um trabalho mais qualificado. Toda nossa experiência prova o
contrário. O que os diferencia dos jovens que vão para a faculdade muitas vezes é
apenas falta de dinheiro. Vários jovens muito inteligentes não ingressam na
universidade porque são maduros aos 18 anos e querem ser adultos em vez de continuar
no casulo da adolescência. Dez anos depois, muitos desejam retomar seus estudos.
Então — como todos os professores poderão testemunhar — tornam-se alunos
estimulantes, mesmo que seja só por causa de sua grande motivação. Eles agora querem
assumir um trabalho avançado; os jovens de 19 anos o fazem por que o mesmo lhes foi
ordenado. E o mais importante: manter aberto o acesso ao ensino mais adiantado,
independentemente da idade ou do nível de escolaridade anteriores é uma necessidade
social. Os indivíduos devem poder, em qualquer estágio de suas vidas, continuar sua
educação formal e capacitar-se para o trabalho qualificado. A sociedade precisa estar
disposta a aceitar que as pessoas ingressem em qualquer tipo de trabalho para o qual
estejam qualificadas, independentemente de sua idade.

O ensino deixará de ser função apenas das escolas para ser, cada vez mais, um
empreendimento conjunto, no qual as escolas são parceiras e não as detentoras do
monopólio. Em muitas áreas, as escolas serão apenas uma entre as muitas instituições

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de ensino e aprendizado disponíveis, concorrendo com outros provedores de


ensino e aprendizado.

Como já dissemos, a escola costumava ser o lugar onde se aprende e o emprego o lugar
onde se trabalha. A linha que os separa está se tornando menos evidente. Com
freqüência cada vez maior, a escola será o local em que os adultos continuam a
aprender, mesmo trabalhando em período integral. Eles voltarão à escola para um
seminário de três dias de duração, para um curso de fim de semana ou intensivo de três
semanas, ou assistirão às aulas duas noites por semana durante vários anos até se
formar.

No entanto, o emprego também será o local em que os adultos continuarão a aprender. É


claro que cursos de treinamento não representam nenhuma novidade, mas costumavam
se restringir a novatos. Cada vez mais, o treinamento, de uma maneira ou de outra,
também será contínuo. O adulto — especialmente o adulto com conhecimento avançado
— será tanto instrutor como trainee, tanto professor como aluno. Nos EUA, os
empregadores já gastam quase tanto dinheiro no treinamento de funcionários adultos
quanto o país gasta com a educação dos jovens na escola formal.
No futuro ainda testemunharemos uma parceria entre escolas e instituições
empregadoras. Nos programas de ensino da Alemanha, as escolas e as empresas vêm
trabalhando em conjunto há mais de 150 anos para treinar os jovens. Porém, cada vez
mais, as escolas e instituições empregadoras terão de aprender a trabalhar em conjunto
também no ensino mais adiantado para adultos. Essa tarefa — seja a do ensino
adiantado para pessoas com alto nível de escolaridade ou a do ensino alternativo para
pessoas que por uma razão ou outra não puderam ter acesso ao nível superior quando
jovens — será executada por meio de todos os tipos de parceria, alianças, estágios, nos
quais as escolas e outras organizações trabalharão em conjunto. As escolas precisam do
estímulo de trabalhar com adultos e organizações empregadoras, tanto quanto os adultos
e suas organizações empregadoras precisam do estímulo de trabalhar com as escolas.

A escola responsável

Falamos sobre “escolas boas e ruins”, sobre “escolas de prestígio” e “escolas de


qualidade inferior”. No Japão, algumas universidades — de Tóquio, Kioto, Keio,
Waseda, Hitotsubashi — determinam, em grande parte, o acesso a carreiras em
importantes companhias e órgãos governamentais. Na França, as Grandes Écoles
desfrutam de posição de poder e prestígio semelhantes. E, embora não mais monarcas
absolutos da Academia, Oxford e Cambridge ainda são as superpotências do ensino
superior na Inglaterra.
Nós também nos interessamos por todos os tipos de números: a porcentagem
de graduados de uma determinada faculdade de ciências humanas que fará doutorado; a
quantidade de livros da biblioteca de uma faculdade; a quantidade de gradua

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dos de uma escola de segundo grau num subúrbio dos EUA que é aceita pela faculdade
de sua preferência; a popularidade das diferentes universidades entre os estudantes. Mas
só agora estamos começando a perguntar: Quais são os resultados nessa escola? E quais
deveriam ser? Essas questões teriam surgido de qualquer maneira. No século XX, a
educação tornou-se cara demais para não ser avaliada. Os gastos do sistema educacional
nos países desenvolvidos dispararam de 2% do PNB por volta de 1913, para 10% oito
anos depois.

Porém, as escolas também estão se tornando importantes demais para não serem
consideradas responsáveis — para não refletir sobre quais deveriam ser seus resultados,
assim como por seu desempenho em atingi-los. Certamente, diferentes sistemas de
ensino oferecerão diferentes respostas a essas perguntas, mas todos os sistemas de
ensino e todas as escolas em breve terão de ter respostas e levá-las a sério. Não
aceitaremos mais a velha desculpa para um desempenho medíocre: “Os alunos são
preguiçosos e obtusos”. Sendo o conhecimento o principal recurso da sociedade, alunos
preguiçosos ou fracos são responsabilidade da escola. Então, haverá somente escolas
que funcionam ou que não funcionam.

As escolas já estão perdendo o monopólio como provedoras de ensino, mas cada vez
mais a concorrência se dará entre escolas e “não-escolas”, com diversos tipos de
instituições ingressando no ramo, cada qual oferecendo uma abordagem diferente de
ensino.

À medida que o conhecimento se torna um recurso da sociedade pós-capitalista, a


posição social da escola como “produtora” e “canal de distribuição” de conhecimento e
seu monopólio fatalmente serão desafiados — e alguns dos concorrentes certamente
terão êxito.
O que será ensinado e aprendido; como será ensinado e aprendido; quem fará uso do
ensino; e a posição da escola na sociedade — tudo isso sofrerá grandes mudanças
durante as próximas décadas. De fato, nenhuma outra instituição enfrenta desafios tão
radicais quanto os que transformarão a escola.

O maior desafio, porém — e o que estamos menos preparados para enfrentar — está no
compromisso que a escola terá de assumir em relação a resultados. Ela terá de
estabelecer qual será seu “resultado final”, o desempenho pelo qual deverá se tornar
responsável e pelo qual está sendo paga. A escola finalmente se tornará responsável.

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17 - Da análise à percepção

(A nova visão do mundo)

Aproximadamente em 1680, um físico francês, Denis Papin, que trabalhava na


Alemanha — como era protestante, havia sido obrigado a deixar sua pátria — inventou
a máquina a vapor. Não sabemos se realmente construiu uma, mas ele a projetou e, com
efeito, montou a primeira válvula de segurança. Uma geração depois, em 1712, Thomas
Newcomen instalou a primeira máquina a vapor numa mina de carvão inglesa. Com
isso, foi possível explorar as minas de carvão — até então, as águas subterrâneas sempre
inundavam as minas inglesas. Com a máquina de Newcomen iniciava-se a era da
máquina a vapor. Daí em diante, durante 250 anos, o modelo de tecnologia foio
mecânico. Os combustíveis naturais rapidamente tornaram-se a principal fonte de
energia e finalmente, a fonte de força motriz tornou-se a que ocorre no interior de uma
estrela, isto, é o sol. Em 1945, a fissão atômica e, alguns anos mais tarde, a fusão
nuclear, reproduziram o que ocorre no sol. Não há como ir além. Em 1945, a era em que
o modelo era o universo mecânico chegou ao fim. Apenas um ano depois, em 1946,
iniciou-se a produção do primeiro computador, o ENIAC e com ele iniciou-se uma era
na qual a informação seria o princípio organizacional do trabalho. A informação,
contudo, é o princípio básico de processos biológicos, e não mecânicos.
Poucos acontecimentos exerceram um impacto tão significativo sobre a civilização
quanto a mudança no princípio de organização do trabalho. Até 800 ou 900
d.C, a China estava muito adiantada em relação ao ocidente no que concerne a
tecnologia, ciência, cultura e civilização de modo geral. Nessa época, os monges
beneditinos no norte da Europa descobriram novas fontes de energia. Até então,

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a principal fonte de energia, se não a única, havia sido uma animal de duas pernas
chamado homem. Era a mulher do lavrador que puxava o arado. O arreio para cavalos
permitiu, pela primeira vez, substituir a mulher do fazendeiro pela força animal. E os
beneditinos também transformaram o que havia sido brinquedo na antiguidade, a roda-
d’água e o moinho de vento, nas primeiras máquinas. Num período de duzentos anos, a
liderança tecnológica passou da China para o ocidente. Setecentos anos mais tarde, a
máquina a vapor de Papin criou uma nova tecnologia e, com ela, uma nova visão do
mundo — o universo mecânico. Em 1946, com a chegada do computador, a informação
tornou-se o princípio organizacional de produção. Assim, surgia uma nova civilização
básica.

Os impactos sociais exercidos pela informação

Muito tem se falado e escrito ultimamente (quase excessivamente) sobre o impacto que
as tecnologias de informação exercem sobre a civilização material, sobre os bens,
serviços e as empresas. Os impactos sociais são, contudo, igualmente ou, de fato, até
mais importantes. Um desses impactos é perfeitamente observável: qualquer uma dessas
mudanças desencadeiam uma explosão de empreendimentos. De fato, a onda de
empreendimentos que começou nos EUA no final da década de 1970 e que, depois de
dez anos, havia se espalhado para todos os países não-comunistas desenvolvidos, foi a
quarta ocorrida desde a época de Papin, há trezentos anos. A primeira iniciou-se em
meados do século XVII e prosseguiu até os primeiros dias do século XVIII e foi
desencadeada pela “Revolução Comercial”, a expressiva expansão do comércio que se
seguiu à fabricação do primeiro cargueiro transoceânico verdadeiramente capaz de
conduzir pesadas cargas por grandes distâncias. A segunda onda empresarial — que
começou em meados do século XVIII e prosseguiu até meados do século seguinte — foi
o que comumente chamamos de “Revolução Industrial”. Então, aproximadamente em
1870, foi desencadeada a terceira onda pela criação de novas indústrias — as primeiras
que não só empregavam um diferente tipo de força motriz, mas que realmente
fabricavam produtos que nunca antes haviam sido feitos, ou que eram produzidos
somente em quantidades limitadas: eletricidade, telefone, produtos eletrônicos, aço,
produtos químicos e farmacêuticos, automóveis e aviões.

Atualmente vivemos uma quarta onda, desencadeada pela informação e pela biologia.
Assim como ocorreu nas demais, a presente onda não está limitada à “alta tecnologia”,
mas abrange igualmente a “média” e a “baixa” tecnologias e também o “não-
tecnológico”. Como ocorreu nas primeiras, ela não está restrita a pequenas ou novas
empresas, mas também é sustentada por empresas de grande porte — e muitas vezes
com maiores impactos e eficiência. E, como nas ondas anteriores, não está limitada a
“invenções”, isto é, à tecnologia. As inovações sociais são dotadas de igual “espírito
empreendedor” e importância. Algumas das inovações sociais produzidas pela
Revolução Industrial — o exército moderno, o serviço público, os correios, os

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bancos comerciais — certamente exerceram tanto impacto quanto as ferrovias ou os


navios a vapor. Da mesma forma, a atual era empreendedora será tão importante pelas
inovações sociais — e principalmente inovações na política, no governo, na educação e
na economia — quanto por quaisquer novos produtos ou tecnologias.
Há também outro importante impacto social gerado pela informação que é evidente e
que está sendo amplamente discutido: o impacto exercido sobre o estado nacional e, em
especial, sobre a hipertrofia desse estado ocorrida no século XX, o regime totalitário.
Por ser uma criação da mídia moderna, dos jornais, do cinema e do rádio, ele somente
pode existir se controlar totalmente as informações. Porém, num mundo em que todos
podem receber informações em casa diretamente via satélite — e em receptores já tão
diminutos que não podem ser localizados por nenhuma polícia secreta — não é mais
possível ao governo controlar as informações. De fato, as informações hoje são
transnacionais e, como o dinheiro, não têm pátria.
Já que as informações desconhecem fronteiras, elas também formarão novas
comunidades “transnacionais” de pessoas que, talvez mesmo sem nunca se terem visto
pessoalmente, estão unidas pela comunicação. A economia mundial, principalmente a
“economia simbólica” do dinheiro e do crédito, já é uma das comunidades
transnacionais não-nacionais.

Outros impactos sociais são igualmente importantes, mas raramente vistos ou


discutidos. Um deles é a provável transformação das cidades do século XX. A cidade
moderna foi criada pelos grandes avanços ocorridos no século XIX: a capacidade de
transportar as pessoas para o trabalho por trem, bonde, bicicleta e automóvel. Ela será
transformada pelo grande avanço do século XX: a capacidade de levar para o trabalho
as pessoas deslocando idéias e informações. De fato, as cidades — o centro de Tóquio,
Nova York, Los Angeles, Londres, Paris, Bombaim — já não nos proporcionam
benefícios. Não é mais possível transportar pessoas para dentro e fora delas, como o
demonstram os trajetos de duas horas em trens lotados para atingir o escritório em
Tóquio ou Nova York, o caos de Picadilly Circus, em Londres, os longos
congestionamentos nas rodovias de Los Angeles, pela manhã e no fim de tarde. Já
começamos a levar as informações para onde se encontram as pessoas — fora das
cidades — para realizar tarefas como a manipulação de cartões de crédito, projetos de
engenharia, apólices e pagamentos de seguros ou registros médicos. Um número cada
vez maior de pessoas trabalhará em suas casas ou, mais provavelmente, em pequenos
“escritórios-satélites” fora dos apinhados centros das cidades. O fax, o telefone, as
internets, o telex e as teleconferências também estão tomando o lugar das ferrovias, dos
automóveis e dos aviões. A explosão imobiliária em todas as grandes cidades nas
décadas de 1970 e 1980, e o conseqüente aumento de arranha-céus não são sinais de
vigor, mas sim do começo do fim das grandes cidades. A queda poderá ser lenta, mas
não precisamos mais desse grande empreendimento. A cidade centralizada, pelo menos
não em sua forma atual.

A cidade pode tornar-se um centro de informações em vez de um centro de


trabalho — o local do qual as informações (notícias, dados, música) são distribuídas.

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Ela poderá lembrar as catedrais medievais em que os lavradores dos arredores se
reuniam vez ou outra nos importantes feriados religiosos; entre uma festa e outra, ficava
vazia, exceto pela presença dos clérigos eruditos e dos alunos da escola. E será a
universidade do futuro um “centro de conhecimento” que transmitirá informações, e não
mais um lugar que terá a efetiva presença dos alunos? O local em que o trabalho é
realizado também determina, em grande parte, como ele é feito, e influi muito no tipo de
trabalho executado. É certo de que haverá grandes mudanças, mas como e quando
ocorrerão não podemos sequer adivinhar.

Forma e função

A questão da quantidade ou do tamanho ideais de uma determinada tarefa ou


organização se tornará um importante desafio. Obtém-se o melhor desempenho de um
sistema mecânico aumentando sua capacidade. Mais poder significa mais produção:
maior é melhor. Isso, porém, não se aplica a sistemas biológicos, pois suas dimensões
dependem das funções.

Certamente seria contraproducente para a barata ser grande e para o elefante ser
pequeno. Os biólogos gostam de dizer, “O rato sabe de tudo que precisa para ser um
rato bem-sucedido”. Ë uma tolice querer saber se o rato é mais inteligente do que o
homem; no que se refere a se dar bem como um rato, ele está muito além de qualquer
outro animal, incluindo o ser humano.

Numa sociedade baseada em informações, a grandeza torna-se uma “função” e uma


variável dependente, não independente. De fato, as características das informações
indicam que o menor tamanho eficiente será o melhor. “Maior” e “mais” serão “melhor”
apenas se a tarefa não puder ser realizada de outra forma.

Precisamos de informação e significado para que a comunicação seja eficiente, e


significado requer comunhão. Se uma pessoa me telefona e fala uma língua que eu
desconheço, o fato de a ligação estar ótima não vai me ajudar. Não existe “significado”,
a menos que eu compreenda a linguagem — a mensagem que o meteorologista
compreende perfeitamente é incoerente para o químico. Entretanto, a comunhão passa a
ser insatisfatória se o grupo for muito grande. Ela precisa de constante reiteração, de
habilidade de interpretação, de uma comunidade. “Eu sei qual é o significado dessa
mensagem porque sei como pensa o nosso pessoal em Tóquio, Londres ou Pequim.” Eu
sei é o catalisador que transforma “informação” em “comunicação”.

Durante cinqüenta anos, desde os primeiros dias da Grande Depressão até a década de
1970, a centralização e a grandeza eram as tendências em vigor. Antes de 1929, os
médicos apenas internavam os pacientes em caso de cirurgia. Muito poucos bebês
nasciam em hospitais antes da década de 1920; a maioria nascia em casa. O interesse no
ensino superior nos EUA no final da década de 1930 estava voltado para

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as pequenas e médias faculdades de ciência humanas. Após a Segunda Guerra Mundial,


ele passou progressivamente para a grande universidade e para a “universidade de
pesquisa”, ainda maior. O mesmo ocorreu no governo. E, depois da Segunda Guerra, a
grandeza passou a ser uma obsessão nos negócios, e todas as empresas tinham de se
tornar “corporações de um bilhão de dólares”.

Na década de 1970, a tendência mudou. Ser maior não é mais a marca de um bom
governo. No que se refere à assistência médica, afirmamos hoje que é melhor fazer em
outros lugares tudo que puder ser feito fora dos hospitais. Antes da década de 1970,
achava-se que até mesmo pessoas com leves problemas mentais estariam melhor se
internadas em manicômios. Desde então, os doentes mentais que não representam
ameaça a outras pessoas vêm sendo tirados dos hospitais (nem sempre com bons
resultados). Não mais veneramos a grandeza que caracterizou os primeiros 3/4 do
século XX e, especialmente o período imediatamente posterior à Segunda Guerra
Mundial. Estamos reestruturando e despojando as grandes empresas. Estamos
descentralizando as tarefas governamentais e deslocando-as para governos locais,
especialmente nos EUA. Estamos “privatizando” e terceirizando tarefas
governamentais, especialmente na comunidade local, para pequenas empresas
particulares.

Conseqüentemente, cada vez mais a questão do tamanho ideal de uma tarefa torna-se
essencial. Essa tarefa será mais bem realizada por uma abelha, um beija-flor, um rato,
um cervo ou um elefante? Todos são necessários, mas cada qual para uma diferente
tarefa e em um ambiente diferente, O tamanho certo será cada vez mais o que manipula
com mais eficiência a informação necessária para a tarefa e a função. Enquanto a
organização tradicional se consolidava por meio do comando e do controle, a
“estrutura” da organização baseada em informações era um excelente sistema de
informações.

Da análise à percepção

A tecnologia não é natural, mas criada pelo homem; ela não trata de ferramentas, mas de
como o homem trabalha. Ela diz respeito igualmente à maneira como o homem vive e
pensa. Há uma frase de Alfred Russel Wallace, que juntamente com Charles Darwin
elaborou a teoria da evolução, que diz, “O homem é o único animal capaz de evoluir de
forma dirigida e intencional; ele fabrica ferramentas”. Porém, exatamente porque a
tecnologia é uma extensão do homem, mudanças tecnológicas básicas sempre
expressam nossa visão de mundo e, por sua vez, o transformam. O computador é, de
certa forma, a mais importante expressão da visão de mundo analítica e conceitual de
um universo mecânico que surgiu com Papin, no final do século XVII. Em última
análise, ele se baseia na descoberta de um contemporâneo e amigo de Papin, o filósofo-
matemático Gottfried Leibniz, de que todos os números podem ser expressos
“digitalmente”, isto é, pelos dígitos 1 e 0. O computador tornou-se possível devido à
expansão dessa análise além dos números até a lógica, em

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Principia Mathematica, de Bertrand Russel e Alfred N. Whitehead (publicado de 1910 a


1913), que mostrou que qualquer conceito pode ser expresso pelos dígitos 1 e O se for
inequívoco e transformado em “dados” Porém, embora seja o triunfo do modelo
analítico e conceitual que remonta ao próprio mestre de Papin, René Descartes, o
computador também nos obriga a transcender esse modelo. A própria “informação” é,
de fato, analítica e conceitual, mas ela é o princípio organizador de todo o processo
biológico. A biologia moderna afirma que a vida está incorporada a um “código
genético”, ou seja, a informações programadas. De fato, a única descrição dessa
realidade misteriosa em que a vida não evoca o sobrenatural é a de que a matéria é
organizada por informações. E o processo biológico não é analítico. Em um fenômeno
mecânico, o todo é igual à soma de suas partes e, portanto, capaz de ser compreendido
por meio da análise. Os fenômenos biológicos são, contudo, “todos”; eles são diferentes
da soma de suas partes. A informação, é, na verdade, conceitual, mas não o significado.
Este deriva da percepção.

Na visão do mundo segundo os matemáticos e filósofos, formulada por Denis Papín e


seus contemporâneos, a percepção era “intuição”, e portanto, espúria ou mística,
indefinível, misteriosa. A ciência não negava sua existência (embora muitos cientistas o
fizessem). Ela negava sua validade. A “intuição”, afirmavam os analistas, não pode ser
ensinada ou treinada. A percepção, afirma a visão do mundo mecânico, não é “séria”,
mas está relegada às coisas mais refinadas da “vida”, às coisas supérfluas. Ensinamos
“apreciação da arte” em nossas escolas como uma concessão ao prazer. Não ensinamos
arte como a disciplina rigorosa e exigente que é para o artista.

No universo biológico, entretanto, a percepção ocupa posição central e pode — na


verdade, deve — ser treinada e desenvolvida. Não ouvimos “G” “A” “T” “O”, ouvimos
“gato”. “G” “A” “T” “O” são bits, para usar uma terminologia moderna; eles
representam a análise. De fato, o computador não pode fazer nada que exija significado,
a menos que ultrapasse os bits. É disso que tratam os “sistemas especialistas”, que
procuram inserir na lógica do computador e no processo analítico, a percepção da
experiência originada da compreensão de uma tarefa ou assunto como um todo.
Na verdade, começamos a caminhar em direção à percepção muito antes do surgimento
do computador. Há quase um século, na década de 1890, a psicologia da forma (Gestalt)
foi a primeira a perceber que ouvimos “gato”, e não “G” “A” “T” “O”. Ela foi a
primeira a compreender a percepção. Desde então, quase todas as correntes da
psicologia — seja a do desenvolvimento, a comportamental ou a clínica — passaram da
análise à percepção. Mesmo a “psicanálise” pós-freudiana está se transformando em
“psicopercepção” e procura compreender a pessoa em vez de seus mecanismos, os
“impulsos”. Em planejamento governamental ou empresarial, falamos cada vez mais
sobre “cenários” nos quais a percepção é o ponto de partida. Em ecologia, o “todo” deve
ser visto e compreendido e as “partes” existem apenas em relação ao todo.
Quando, há cerca de cinqüenta anos, a primeira faculdade americana — Bennington, em
Vermont — começou a ensinar arte (pintura, escultura, cerâmica, música) como parte
integrante de uma educação em ciências humanas, isso foi consi

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derado uma novidade herética e ultrajante que desafiava todas as convenções


acadêmicas respeitáveis. Hoje, todos as faculdades americanas seguem seu exemplo. Há
quarenta anos, o público rejeitava, de modo geral, a pintura moderna não-objetiva. Hoje,
os museus e galerias que exibem esse tipo de pintura estão lotados e suas obras atingem
preços exorbitantes. O “moderno” na pintura moderna é a tentativa de mostrar o que o
pintor, e não o observador, vê. É significado não descrição.

Há trezentos anos, Descartes disse: “Penso, portanto existo”. Agora temos de dizer
também: “¼jo, portanto existo”. Desde Descartes, a ênfase foi colocada no conceitual.
Agora, cada vez mais estabelecemos um equilíbrio entre o conceitual e o perceptivo. Na
verdade, as novas realidades com que lida este livro são configurações e como tal
exigem percepção tanto quanto análise: o desequilíbrio dinâmico dos novos pluralismos,
por exemplo; a ecologia e economia transnacional multifacetada; o novo arquétipo da
“pessoa capacitada” que é tão necessário. E este livro procura tanto nos fazer ver quanto
pensar.

Passaram-se mais de 100 anos desde que Descartes e seu contemporâneo, Galileu,
lançaram os alicerces para a ciência do universo mecânico, desde que Emanuel Kant
criou a metafísica que codificou a nova visão do mundo. Sua obra Kritik der reinen
Vernunfi (Crítica da razão pura, 1781) então dominou a filosofia ocidental por mais de
um século. Ela definiu questões significativas mesmo para adversários de Kant, como
Friedrich Nietzche. De fato, Kant definiu “conhecimento” até para Ludwig Wittgenstein
na primeira metade deste século. Mas os filósofos contemporâneos não mais enfocam os
interesses de Kant. Eles lidam com configurações — com sipais e símbolos, padrões,
mitos, linguagem. Eles lidam com percepção. Assim, a mudança do universo mecânico
para o biológico acabará por exigir uma nova síntese filosófica. Kant poderia tê-la
chamado de Einsicht, ou uma Crítica da percepção pura.

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APÊNDICE

Além da sociedade*

(O antiquado Kierkegaard)

O grande impacto de Kierkegaard ocorrido nos últimos anos mostra os primeiros sinais
de cansaço e, pelo bem do filósofo, espero que termine em breve, O Kierkegaard da
moda literária é perspicaz e moderno, diferente dos outros intelectuais especialmente
por ter vivido 100 anos antes. No entanto, esse Kierkegaard dos psicólogos,
existencialistas e todas as linhagens ex-marxistas tem pouca semelhança com o
verdadeiro Kierkegaard, que não se interessava nem um pouco por psicologia ou
dialéticas (exceto para mostrar o quanto eram inadequadas e irrelevantes), mas
preocupava-se somente com a experiência religiosa. E é este verdadeiro Kierkegaard
que em sua agonia é significativo para o mundo moderno. Não dispomos nem de santos
nem de poetas para reunir os fragmentos de nossas experiências; temos, em
Kierkegaard, pelo menos, um profeta. Como todos os pensadores religiosos,
Kierkegaard privilegia a questão, “De que maneira é possível a existência humana”?
Em todo o século XIX, essa pergunta — antes no centro do pensamento ocidental —
não só era extremamente antiquada, mas parecia sem sentido e irrelevante. A época era
dominada por uma pergunta radicalmente diferente, “De que maneira a sociedade é
possível?” Rousseau, Hegel e os economistas a proferiam. Marx a respondeu de uma
forma, o protestantismo liberal de outra. Porém, independentemente da maneira pela
qual é proferida, sempre leva a uma resposta que nega que a existência humana seja
possível fora da sociedade.

* Este apêndice, que na edição brasileira teve revisão técnica de Ivo da Silva Júnior, foi
extraído de Sewanee review, de 1949.
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Rousseau formulou sua resposta para toda uma época de progresso: seja qual for a
existência humana; e seja qual for a liberdade, o direito e os deveres que o indivíduo
tenha; seja qual for o significado da vida individual — tudo é determinado pela
sociedade segundo sua necessidade objetiva de sobrevivência. Em outras palavras, o
indivíduo não é autônomo, mas sim determinado pela sociedade. Ele é livre somente em
questões sem importância. Ele tem direitos somente porque a sociedade os concede a
ele. Ele é dono da própria vontade apenas se desejar o que a sociedade precisa. Sua vida
tem significado somente se estiver relacionada ao significado social e enquanto
satisfazer a si mesma ao satisfazer a meta objetiva da sociedade. Resumindo, não há
existência humana, só há existência social. Não há o indivíduo; só há o cidadão.
Dificilmente será possível exagerar as diferenças entre a “Vontade Geral”, de Rousseau,
o conceito de Hegel sobre a História como o desdobramento de idéias, e a teoria
marxiana da determinação do indivíduo pela sua condição de classe objetivamente dada.
Porém, todos apresentaram a mesma resposta à questão da existência humana: não
existe tal coisa, não existe tal problema. Existem idéias e cidadãos, mas não seres
humanos. Somente é possível a realização das idéias na sociedade e por seu intermédio.
Pois, se partirmos da questão, “De que maneira é possível a sociedade?”, sem ao mesmo
tempo perguntar, “De que maneira é possível a existência humana?”, chegaremos
inevitavelmente a um conceito negativo da existência do indivíduo e da liberdade: a
liberdade do indivíduo é, portanto, o que não perturba a sociedade. Assim, a liberdade
torna-se algo sem função e sem uma existência autônoma própria. Ela se torna uma
conveniência, uma questão de estratégia política, ou um slogan demagógico. Não se
trata de nada vital. Definir liberdade como algo destituído de função é, todavia, negar
sua existência, pois nada sobrevive na sociedade sem ter uma função. Contudo o século
XIX considerava-se por demais seguro da posse da liberdade para atentar a esse fato. A
opinião predominante não notou que negar a relevância da pergunta, “De que maneira é
possível a existência humana?”, significava negar a relevância da liberdade humana. Na
realidade, esse século viu na questão, “De que maneira é possível a sociedade?” a chave
para o princípio da liberdade — principalmente porque visava à igualdade social. E o
rompimento dos antigos grilhões da desigualdade parecia equivalente à implantação da
liberdade. Hoje sabemos que o século XIX estava equivocado, O nazismo e o
comunismo foram lições caras — mais, talvez, do que pudemos suportar; mas, pelo
menos, aprendemos que não podemos conseguir liberdade se nos limitarmos à questão
“De que maneira é possível a sociedade?”. Talvez seja verdade que a existência humana
livre não é possível; o que, de fato, Hitler e também os comunistas, assim como, de
modo mais velado todos os “engenheiros sociais” bem-intencionados que acreditam em
psicologia social, propaganda, reeducação ou administração afirmavam, para poderem
moldar e formar o indivíduo. No entanto, pelo menos

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a questão, “De que maneira é possível a existência humana?”, não pode mais ser
considerada irrelevante. Para os que alegam acreditar na liberdade, não há indagação
mais importante.

Não dizemos que Kierkegaard foi o único pensador do século XIX que constatou a
direção para a qual Rousseau levava o mundo ocidental. Houve também os romancistas,
alguns dos quais, principalmente na França, sentiram o que estava por vir. Houve a
revolta inútil e suicida de Nietzsche um Sansão cujo tremendo poder destruiu somente a
si mesmo. Houve, principalmente, Balzac, que analisou a sociedade na qual uma
existência humana não era mais possível e descreveu um Inferno mais terrível que o de
Dante, visto que nem ao menos tinha um Purgatório acima dele. Embora todos fizessem
a pergunta, “De que maneira é possível a existência humana?”, ninguém, a não ser
Kierkegaard, a respondeu.

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A existência humana

A resposta de Kierkegaard é simples: a existência humana é possível apenas no conflito


— um conflito entre a vida simultânea do homem como indivíduo no espírito e como
um cidadão na sociedade. Kierkegaard expressou o conflito fundamental de várias
formas em suas obras mais clara e centralmente e quando descreveu o conflito como
conseqüência da existência simultânea do homem na eternidade e na temporalidade.
Essa formulação foi baseada em Santo Agostinho, sendo o clímax intelectual de as
Confissões. Kierkegaard, porém, conferiu à antítese um significado que ultrapassa em
muito a especulação de Santo Agostinho na lógica dialética.

A existência temporal é a existência como cidadão deste mundo. Na temporalidade,


comemos, bebemos, dormimos, lutamos em busca de conquistas ou por nossas vidas,
criamos filhos e sociedades, triunfamos ou fracassamos. Mas também morremos. E na
existência temporal não sobra nada de nós após nossa morte. Por conseguinte,
temporalmente não existimos como indivíduos, somos apenas membros da espécie, elos
em uma cadeia de gerações. Na temporalidade, a espécie tem uma vida autônoma,
características específicas, uma meta autônoma; porém, fora da espécie, um membro é
destituído de vida, de características e de objetivos. Ele existe apenas como espécie e
através dela. A cadeia tem começo e fim, mas cada elo serve somente para unir os elos
do passado aos do futuro; fora da cadeia existem somente restos. A roda do tempo
continua a girar, mas suas engrenagens são substituíveis e intercambiáveis. A morte do
indivíduo não põe fim à espécie ou à sociedade, mas à sua vida temporal. A existência
humana não é possível na temporalidade; nela, somente a sociedade é possível.
Na eternidade, contudo, na esfera do espírito, “perante Deus”, para usar uma das
expressões preferidas de Kierkegaard, é a sociedade que não existe, que não é possível.
Na eternidade, existe somente o indivíduo. Na eternidade, cada indivíduo é único, e ele
só, totalmente só, sem vizinhos e amigos, sem mulher e filhos, defronta-se com o
espírito. Na temporalidade, na esfera da sociedade, nenhum homem começa do início e
termina com o fim; cada um recebe dos antecessores a herança dos séculos e a conduz
por um breve instante para entregá-la aos que nos sucedem. Mas em espírito, cada
homem é começo e fim. Nada do que seus pais vivenciaram pode servir-lhe. Numa
solidão terrível, num isolamento completo e único, ele se defronta consigo mesmo como
se não houvesse mais nada no Universo além de si mesmo e seu espírito. A existência
humana é, pois, uma existência em dois níveis — existência em conflito.
É impossível nos aproximarmos da eternidade até mesmo acumulando tempo; o simples
tempo, mesmo em uma duração infinitamente maior, continuará sendo somente tempo.
E também é impossível alcançar o tempo subdividindo a eternidade, pois esta não pode
ser separada ou medida. No entanto, a existência humana é possível apenas como
existência simultânea nos dois planos, em espírito e em sociedade. Santo Agostinho
disse que o temporal está na eternidade, é criado por ela, está suspenso nela.
Kierkegaard, porém, sabia que ambos se encontram em diferentes planos, antitéticos e
mutuamente incompatíveis. E ele chegou a essa conclusão não apenas pela lógica e pela
introspecção, mas pela observação das verdades do século XIX.

E essa resposta que forma o paradoxo essencial da experiência religiosa. Dizer que a
existência humana é possível somente no conflito entre a existência na eternidade e a
existência temporal é dizer que a existência humana só é possível se for impossível: que
o que ela exige em um nível é proibido pela existência no outro. Por exemplo, a
existência em sociedade requer que a necessidade objetiva de sobrevivência da
sociedade determine as funções e as ações dos indivíduos. A existência em espírito,
porém, só é possível se não houver leis ou normas, exceto as do indivíduo, consigo
mesmo e com seu Deus. Como o homem precisa existir em sociedade, não pode haver
liberdade exceto em questões sem importância; mas como o homem precisa existir em
espírito, não pode haver regras ou limitações sociais em questões de importância. Em
sociedade, o homem pode existir apenas como ser social — como marido, pai, filho,
vizinho, cidadão. Em espírito, o homem pode existir apenas individualmente — só,
isolado, completamente emparedado em sua própria consciência.

A existência em sociedade exige que o homem aceite a esfera dos valores e crenças,
recompensas e punições sociais como reais. Porém, a existência em espírito, “perante
Deus”, exige que o homem considere todos os valores e crenças sociais como pura
ilusão, vaidades, falsidades, inválidas e irreais. Kierkegaard cita Lucas, 14:26, “Se
alguém vem a mim, e não odeia seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e
ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo”. O Evangelho do Amor não diz:
ame-os menos que a mim; ele diz odeie. Afirmar que a existência só é possível
simultaneamente na temporalidade e na eternidade é, portanto, afirmar que ela só é
possível como uma existência esmagada entre dois princípios éticos incompatíveis. E
isso significa

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(se for mais que a zombaria de deuses cruéis): a existência humana é possível apenas
como existência trágica. É a existência no temor e no tremor, no pavor e na ansiedade e,
acima de tudo, no desespero.
O otimismo do século XIX

Essa visão da existência humana parece muito sombria e pessimista, não valendo a pena
ser alimentada. Para o século XIX, ela manifestava-se como uma aberração patológica.
Vejamos para onde nos leva o otimismo desse século, já que é a análise desse otimismo
e a predição de seu resultado final que conferiu contornos à obra de Kierkegaard.
A essência das doutrinas do século XIX concentrava-se nos fatos de que a eternidade
pode e será atingida na temporalidade; que a verdade pode ser estabelecida na sociedade
e por meio da decisão da maioria; que a permanência pode ser obtida através da
mudança. Esta é a crença num progresso inevitável, que representava o século XIX e dá
sua própria contribuição ao pensamento humano. Podemos interpretar a doutrina do
progresso de um ponto de vista mais ingênuo e, portanto, mais sedutor — com a
convicção de que o homem, automaticamente e por meio de sua permanência
temporária na temporalidade, torna-se melhor, mais perfeito, aproximando-se do divino.
Podemos interpretar a doutrina em sua forma mais sofisticada — com os esquemas
dialéticos de Hegel e Marx em que a verdade se revela na síntese entre tese e antítese,
cada síntese tornando-se, por sua vez, a tese de uma nova integração dialética em um
nível mais elevado e próximo à perfeição. Ou pode-se seguir a doutrina de aparência
pseudocientífica da teoria da evolução por meio da seleção natural. Em cada forma, a
substância da doutrina é a mesma: uma fervorosa crença de que, ao acumularmos
tempo, atingiremos a eternidade; ao acumularmos matéria, nos transformaremos em
espírito; ao acumularmos mudanças, nos tornaremos eternos; ao acumularmos tentativas
e erros, encontraremos a verdade. Para Kierkegaard, o problema do valor final era o
conflito irredutível entre qualidades contraditórias. Para o século XIX, o problema era
de quantidade. No ponto em que Kierkegaard concebe a situação humana como
essencial- mente trágica, o século XIX esbanjava otimismo. Desde o ano 1000, quando
toda a Europa aguardava o Segundo Advento, nunca houve uma geração que se sentisse
tão próxima da completude temporal como o homem do século XIX. Certamente havia
impurezas na estrutura da sociedade, mas os liberais esperavam confiantemente que elas
fossem eliminadas em uma geração ou, no máximo, em um século por meio do diário
fortalecimento da luz da razão. O progresso era automático e, embora as forças da
ignorância e da superstição parecessem vencer algumas vezes, eram somente ilusões
momentâneas. “E sempre mais escuro antes do amanhecer” diz uma máxima
verdadeiramente liberal (e, por acaso, tão falsa em seu significado literal quanto
metafórico). O apogeu desse otimismo ingênuo

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manifestou-se no livro que o famoso biólogo alemão Ernst Haeckel escreveu


imediatamente antes da virada do século — e que previa que todas as questões
remanescentes seriam final e decisivamente respondidas em uma geração pela biologia
de Darwin e a física de Newton. Talvez o fato de o Weltraetsel, de Haeckel, ter vendido
milhões de exemplares na geração de nossos avós (e ainda poder ser encontrado,
escondido em velhas estantes de livros) no exato momento em que o universo da
biologia darwiniana e da física newtoniana desintegrava-se completamente, seja a
melhor ilustração sobre o destino dessa doutrina do século )UX. Para aqueles que não
ficaram satisfeitos com o otimismo do liberalismo ou o darwinismo, Marx ofereceu uma
análise mais complexa, mas também infinitamente mais profunda de um milênio a que
chegaríamos necessariamente, haja vista a imensa corrupção e imperfeição do mundo. A
sua mensagem era verdadeiramente apocalíptica, na qual o impossível, — a obtenção de
uma perfeição permanente numa sociedade sem classes, — era prometido exatamente
por ser impossível. Com Marx, o otimismo do século XIX admite sua derrota, apenas
para usá-la como prova de uma vitória certa. Nessa doutrina de perfeição iminente, na
qual todo avanço no tempo significava um avanço em direção à eternidade, à
continuidade e à verdade, não havia espaço para a tragédia (o conflito de duas forças, de
duas leis absolutas). Não havia nem mesmo espaço para a catástrofe. Na tradição do
século XIX, o trágico é sempre exorcizado e a catástrofe, suprimida. Um bom exemplo
disso é a tentativa — bastante popular nesses últimos anos — de explicar um fenômeno
tão cataclísmico quanto o hitlerismo em termos de um “ajuste psicológico falho”, isto é,
como algo que nada tem a ver com o espírito, mas é exclusivamente uma questão
técnica. Ou, numa esfera totalmente diferente, se compararmos Antonio e Cleópatra, de
Shakespeare, e Madame Bovary, de Flaubert, veremos como o “eros” essencialmente
trágico se transforma em puro “sexo” — psicologia, fisiologia, mesmo paixão, mas não
mais um conflito trágico, ou seja, insolúvel. Ou podemos, como um dos triunfos da
tentativa de suprimir a catástrofe, citar a explicação inicial do nazismo dada pelo
comunismo como “apenas um estágio necessário na inevitável vitória do proletariado”.
Aqui temos, na sua forma mais pura, a doutrina oficial de que tudo o que acontece na
temporalidade deve ser bom, por mais perverso que seja. Não pode existir a catástrofe,
tampouco a tragédia. Nunca houve na história ocidental um século tão afastado da
percepção do trágico como este que nos legou duas guerras mundiais.
Aproximadamente, há duzentos anos — em 1775, para ser exato — a morte de 15 mil
pessoas no terremoto de Lisboa foi suficiente para derrubar a oscilante estrutura da fé
cristã na Europa. Os contemporâneos não podiam compreender; não podiam conciliar
tal horror com o conceito de um Deus todo-misericordioso; não podiam encontrar
nenhuma resposta para o paradoxo de uma catástrofe de tal magnitude. Agora, por
muitos anos temos testemunhado diariamente devastações maiores, em que povos
inteiros são exterminados ou morrem de fome. E é muito mais difícil

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compreender essas catástrofes provocadas pelo homem em termos de nossa


racionalidade moderna do que foi para o século XIX compreender o terremoto de
Lisboa em termos do cristianismo tradicional. No entanto, nossas catástrofes não
diminuem o otimismo de milhares de comitês dedicados à convicção de que a paz e a
prosperidade permanentes irão se sobrepor “inevitavelmente” aos horrores atuais. Com
certeza, eles estão conscientes dos fatos que os afrontam. Recusam- se, no entanto, a vê-
los como catástrofes, pois foram treinados para negar a existência da tragédia.

A morte

Por mais bem-sucedido que o século XIX tenha sido em conter o trágico, há um fato
que não poderia ser suprimido, pois permanece alheio à temporalidade: a morte. É o
único fato que não pode ser generalizado e que continua incomparável; o único que não
pode ser socializado, e que permanece pessoal. O século XIX empenhou-se ao máximo
para despojar a morte de seu aspecto individual, único e qualitativo. Tornou a morte um
incidente em estatísticas vitais, mensurável quantitativamente, previsível de acordo com
as leis atuariais da probabilidade. Procurou contornar a morte organizando suas
conseqüências. O seguro de vida talvez seja a instituição mais significativa da
metafísica do século XIX; sua proposição de “desdobrar os riscos” mostra com bastante
clareza a natureza da tentativa de considerar a morte um incidente na vida humana, e
não o seu término. E o século XIX criou o espiritualismo — uma tentativa de controlar
a vida após a morte com recursos mecânicos. No entanto, a morte persiste. A sociedade
pode transformá-la em um tabu, pode convencionar que não é elegante falar sobre ela,
pode substituir aqueles terríveis funerais públicos pela cremação, mais “higiênica”, e
pode chamar coveiros de agentes funerários, O erudito professor Haeckel pôde dar a
entender, que a biologia darwiniana estava prestes a nos fazer viver eternamente; mas
ele não foi bem-sucedido em sua promessa. E, enquanto a morte persistir, o indivíduo
continua com um pólo de sua existência fora da sociedade e com outro fora da
temporalidade.

Enquanto a morte persistir, o conceito otimista de vida, a crença de que a eternidade


pode ser atingida através da temporalidade e de que o indivíduo pode encontrar sua
realização na sociedade, conduzirá somente a um resultado — o desespero.
Repentinamente, todo o homem se depara com a morte e, nesse ponto, encontra-se
totalmente só em sua individualidade. Se sua existência se dá exclusivamente na
sociedade, ele está perdido — pois nesse momento sua existência perde o significado.
Kierkegaard diagnosticou esse fenômeno e chamou-o de “desespero por não querer ser
um indivíduo”. Superficialmente, o indivíduo pode recuperar-se desse confronto com o
problema da existência na eternidade, e pode até esquecê-lo por uns momentos, mas
nunca poderá recuperar a confiança em sua existência na sociedade. Basicamente, ele
permanece em desespero.

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Se a sociedade quiser que o homem seja capaz de viver exclusivamente nela deve
possibilitar a ele morrer sem desespero. E a única forma de fazê-lo é tirando o
significado da vida individual. Quando não se é nada além de uma folha na árvore
genealógica, uma célula no corpo da sociedade, a morte não é realmente morte; é
possível referir-se a ela como um processo de regeneração coletiva. Mas então, é claro,
a vida também não é uma vida real, é apenas um processo funcional dentro da vida do
todo, destituída de qualquer significado que não esteja atrelado ao todo. Assim, como
Kierkegaard previu há 100 anos, um otimismo que vincula a existência humana à
existência na sociedade conduz diretamente ao desespero que, por sua vez, pode
somente levar ao totalitarismo. Pois o totalitarismo — e essa é a característica que o
diferencia tão nitidamente das tiranias do passado — baseia-se na afirmação da falta de
sentido da vida e da não- existência da pessoa. Por essa razão, a doutrina do
totalitarismo não enfatiza a maneira como se vive, mas como se morre; para tornar a
morte suportável, foi preciso que a vida individual se transformasse em algo inútil e sem
significado. A doutrina otimista, que de início conferiu à vida nesse mundo um
significado integral, conduziu diretamente à glorificação da auto-imolação nazista como
o único ato em que o homem pode existir significativamente. O desespero torna-se a
essência da própria vida.

A saída por meio de um estado ético

O século XIX chegou no mesmo ponto que o mundo pagão do Império Romano havia
chegado e, como na antiguidade, tentou encontrar uma saída puramente ética —
baseando a virtude na razão humana, O grande sistema filosófico do idealismo alemão
— principalmente o de Kant, mas também o de Hegel — dominavam aquela época por
identificarem a razão com a virtude e a boa vida. A cultura ética e aquele ramo do
protestantismo liberal que considera Jesus “o melhor homem que já existiu”, com seus
slogans sobre as normas essenciais, o “imperativo categórico” e a satisfação em servir
— essas e outras éticas a elas relacionadas tornaram-se tão conhecidas no século XIX
quanto haviam sido em sua maioria, na antiguidade. E elas falharam em proporcionar a
base para a existência humana na modernidade, assim como haviam falhado há dois mil
anos. Nas melhores doutrinas, o conceito ético leva, de fato, à integridade e à grandeza
moral, O humanismo do século XIX, baseado em Plutarco, por um lado e em Newton
por outro, poderia ser algo nobre. (Basta lembrar os grandes homens da última geração
desse século, como Woodrow Wilson, Masaryk, Jaurès ou Mommsen.) O próprio
Kierkegaard sentia-se mais atraído por esse humanismo do que imaginava. Embora
lutasse incansavelmente, nunca pôde libertar-se da influência de Hegel; e Sócrates,
símbolo da vida ética, continuou representando para ele o apogeu da história natural do
homem. Kierkegaard, no entanto, também percebeu que o conceito ético, embora
possa conferir integridade, coragem e constância, não pode prover significado —

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nem à vida, nem à morte. Tudo o que ele pode oferecer é uma resignação estóica.
Kierkegaard considerou essa posição mais desesperadora do que a otimista; chamou- a
de “desespero por desejar ser um indivíduo”. E, freqüentemente, uma posição ética não
conduz a nada tão nobre e consistente quanto a filosofia estóica, mas transforma-se no
ouro que doura a pílula do totalitarismo. Esta é, acredito, a posição de muitos que fazem
a apologia da União Soviética; eles supõem que o homem encontre a realização
individual numa tentativa ética de fazer seu vizinho feliz e que isso seja suficiente para
compensar a realidade do totalitarismo. Ou a posição ética se torna puro
sentimentalismo — a posição dos que acreditam que o mal pode ser abolido e a
harmonia estabelecida por meio de boas intenções. E em todos os casos a posição ética
está fadada a degenerar em relativismo. Pois, se a virtude deve ser encontrada no
homem, tudo que o homem aceitar deve necessariamente ser virtuoso. Assim, uma
posição que principia — como fizeram Rousseau e Kant há cerca de duzentos anos — a
estabelecer princípios éticos criados pelo homem deve terminar na completa negação
dos princípios e, assim, na total negação da possibilidade de uma posição
verdadeiramente ética. Dessa forma, não há como escapar ao desespero.
Podemos dizer então que a única conclusão é a de que a existência humana somente
pode ser uma existência trágica e desesperada? Estarão certos os sábios orientais que
vêem a única resposta na destruição do próprio ser, na imersão do homem no nirvana,
no nada?

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A resposta de Kierkegaard

Kierkegaard tem outra resposta: a existência humana é possível como existência, não no
desespero, não na tragédia, mas na fé. O oposto do pecado (para usar o termo tradicional
para uma existência puramente na sociedade) não é a virtude, mas sim a fé.
A fé é a crença de que em Deus o impossível é possível, de que nEle a temporal e a
eternidade são uma só, de que tanto a vida quanto a morte têm significado. A fé é o
conhecimento de que o homem é uma criatura — não-autônoma, não o mestre, não o
fim, não o centro — e, no entanto, responsável e livre. É a aceitação da solidão essencial
do homem a ser superada pela certeza de que Deus está sempre com ele, mesmo “na
hora de nossa morte”. Entre os livros de Kierkegaard está o meu favorito, um pequeno
volume chamado Temor e tremor, no qual ele formula a pergunta: O que diferencia a
disposição de Abraão em sacrificar o filho, Isaac, de um assassinato comum? Se Abraão
nunca tivesse tido a intenção de levar a cabo o sacrifício, mas pretendesse todo o tempo
apenas exibir sua obediência a Deus, então, de fato, Abraão não teria sido um assassino,
mas algo mais desprezível: um trapaceiro e impostor. Se ele não tivesse amado Isaac e
lhe fosse indiferente, estaria disposto a ser um assassino. No entanto, Abraão era um
homem santo, e a ordem de Deus era para ele uma ordem absoluta a ser executada sem
ressalvas; e sabemos que ele amava a Isaac mais do que a si próprio. A resposta é que
Abraão tinha fé e acreditava que em Deus o impossível se tornaria possível — e que ele
poderia obedecer a ordem dele e ainda conservar Isaac. Abraão foi um símbolo para o
próprio Kierkegaard, e o sacrifício de Isaac o símbolo para seu segredo mais profundo,
seu grande e trágico amor — um amor que ele aniquilou embora amasse mais que a si
próprio. Porém, a alusão autobiográfica é apenas incidental. A história de Abraão é um
símbolo universal da existência humana que é possível somente na fé. Na fé o indivíduo
torna-se universal, deixa de estar isolado, torna-se expressivo e absoluto; por
conseguinte, na fé existe a verdadeira ética, e na fé a existência em sociedade também
se reveste de significado, como existência na verdadeira caridade.

A fé não é o que hoje, com freqüência, chamamos de “experiência mística” — algo que
aparentemente pode ser induzido por exercícios respiratórios adequados ou por uma
prolongada exposição à música de Bach. A fé somente pode ser alcançada por meio de
desespero, sofrimento, lutas dolorosas e intermináveis. Não é irracional, sentimental,
emocional ou espontânea. É resultado de uma reflexão e aprendizado sério, de uma
disciplina rígida, de sobriedade total, humildade e subordinação do ego a uma vontade
superior e absoluta. O conhecimento interior da própria unificação em Deus — o que
São Paulo chamou de esperança e nós chamamos de santidade — só pode ser atingida
por poucos, mas todos os homens são capazes de alcançar a fé, pois todos os homens
conhecem o desespero. Kierkegaard, situa-se claramente na significativa tradição da
experiência religiosa, a tradição de Santo Agostinho e São Boaventura, de Lutero, São
João da Cruz, e Pascal. O que o torna diferente e lhe confere hoje uma importância pecu
liar é sua ênfase sobre o significado da vida dentro da temporalidade e da sociedade
para o homem de fé, o cristão. Kierkegaard é “moderno”, não porque emprega o
vocabulário moderno da psicologia, da estética e da dialética — peculiaridades efêmeras
que a grande repercussão dos conceitos de Kierkegaard tornou famosas
— mas porque se preocupa com o mal específico do ocidente moderno: a desintegração
da existência humana, a negação da simultaneidade da vida no espírito e da vida na
carne, a negação do significado de cada um em função do outro.

Em vez disso, temos hoje uma total separação, a justaposição de “iogue” e “comissário”
— os termos são, naturalmente, de Arthur Koestler — como possibilidades que se
excluem mutuamente: uma escolha obrigatória entre temporalidade e eternidade,
caridade e fé, na qual um dos pólos da dupla existência do homem se torna absoluto. Tal
situação significa abdicar totalmente da fé: o “comissário” desiste totalmente da esfera
espiritual em prol do poder e da eficiência; o “iogue” atribui a existência humana na
temporalidade (isto é, a vida social) ao demônio e está disposto a ver milhões perderem
suas vidas e suas almas contanto que seu próprio “eu” seja salvo. É impossível que um
homem religioso aceite qualquer

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uma dessas posições, principalmente o Cristão, que deve viver no espírito e, ainda,
afirmar que a verdadeira fé é eficaz na caridade e por meio dela (isto é, na
responsabilidade social e por meio dela). Pelo menos, porém, ambas são posições
honestas, admitindo com sinceridade sua falência ao contrário da tentativa de fugir ao
problema por um dos vários partidos políticos “cristãos” na Europa, católicos e
protestantes, ou o movimento pelo “Cristianismo Social” ainda poderoso nos EUA. Pois
essas tentativas colocam a moralidade e as boas intenções como molas mestras da ação
em lugar da fé e da experiência religiosa. E os partidos, embora sinceros e zelosos,
embora apoiados e, às vezes, guiados por homens bons e até santos, não precisam
somente ser tão ineficazes na política quanto os “iogues” mas também precisam falhar,
como o “comissário”, para proporcionar uma vida espiritual; pois eles comprometem a
vida na temporalidade e na eternidade, O clérigo austríaco e líder do partido católico
que, em 1930, defendeu Hitler com o argumento de que, “pelo menos ele se opõe a
banhos mistos”, era uma caricatura horrível do moralista cristão na política; ele
representava uma caricatura de algo que ocorre sempre que a moralidade é confundida
com a fé. Kierkegaard não oferece uma saída fácil. De fato, dele poderia ser dito, como
de todos os pensadores religiosos que se concentram na experiência e não na razão e no
dogma, que enfatiza excessivamente a vida no espírito, deixando, assim, de integrar os
dois pólos da existência humana em um todo. Ele, porém, não só apontou a dificuldade,
mas também mostrou com sua própria vida e com suas obras que não há meios de
escapar da realidade da existência humana, existência essa que se encontra em situação
de conflito. Não foi por acidente que foi o livro Discursos edificantes a única parte da
imensa produção literária de Kierkegaard a não ser publicada sob pseudônimo, mas com
seu próprio nome. Não que ele quisesse ocultar a autoria dos outros livros — o
pseudônimo não poderia enganar ninguém — mas somente os livros “edificantes”
transformavam a fé em eficiência social e eram, portanto, verdadeiramente religiosos e
não apenas “iogues”. Também não foi por acidente que toda a obra de Kierkegaard, seus
vinte anos de isolamento, de produção literária, reflexão, oração e sofrimento tenham
sido apenas uma preparação para a violenta ação política à qual ele dedicou os últimos
meses de vida — uma guerra tempestuosa de um homem só, contra a igreja estabelecida
da Dinamarca e seu clero, por confundir moralidade e tradição com caridade e fé.
Embora a fé de Kierkegaard não possa superar a horrível solidão, o isolamento e a
dissonância da existência humana, ela pode torná-la suportável ao torná-la significativa.
A filosofia das doutrinas totalitaristas tornam o homem apto a morrer. E perigoso
subestimar a força de tal filosofia, pois, em uma época de aflição e sofrimento, de
catástrofes e horror (ou seja, nosso tempo), é ótimo poder morrer. No entanto, isso não é
suficiente. A fé de Kierkegaard, igualmente, torna o homem apto a morrer, mas também
a viver.

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- Peter Drucker on theprofrssion ofmanagement, 1998. [A profissão de administrador.
São Paulo: Pioneira, 1998.]
- Management chalienges for the2lst. Century, 1999. [Desafios gerenciais para
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estão sendo determinadas hoje. São Paulo: Liv. Pioneira Ed., 1989.]
The new realities in government and politics, in economjcs and business, in
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economia e nas empresas, na sociedade e na visão do mundo. 4.ed. São
Paulo: Pioneira, 1997.]

Managing the nonprofit organization: practices and principles, 1990.


[Administração de organizações sem fins lucrativos: princípios e práticas. 5.ed.
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futuro: os anos 90 e a virada do século. 6.ed. São Paulo: Pioneira, 1998.]

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grandes mudanças. São Paulo: Pioneira: Publifolha, 1999.]

Drucker on Asia: the Drucker-Nakauchi dialogue, 1996. [Drucker na Ásia: um


diálogo envolvente entre Peter Drucker e um dos maiores empresários do
Japão. São Paulo: Pioneira, 1997.]

Peter Drucker on theprofrssion ofmanagement, 1998. [A profissão de


administrador. São Paulo: Pioneira, 1998.]

Management challenges for the2lst. Century, 1999. [Desafios gerenciais para o


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