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08.10.

10 - BRASIL
Eleição, aborto e a infantilização da religião

Jung Mo Sung *

Adital -
Por que bispos, padres e grupo religiosos que sempre defenderam a separação radical entre a religião e
política, que sempre criticaram a discussão política no âmbito da Igreja ou até mesmo a relação "fé e
política", estão fazendo, até mesmo nas missas, campanha aberta contra Dilma?

Uma primeira resposta poderia ser: hipocrisia. Respostas moralistas podem satisfazer o "juiz moralista"
que todos nós carregamos no mais profundo do nosso ser, mas não são boas para nos ajudar a entender o
que está acontecendo.

Esta campanha contra a candidatura da Dilma, e com isso o apoio explícito ou implícito à candidatura do
Serra, está sendo feita de várias formas, mas com um elemento comum: os católicos e os "crentes" não
devem votar nela porque ela seria a favor do aborto e, por isso, contra a vida. Alguns agregam também a
acusação de que, se ela for eleita, as TVs católicas e evangélicas seriam proibidas de veicular os
programas religiosos ou obrigadas a diminuir o seu tempo de duração. É a velha acusação de que
"comunistas" são contra a religião.

Essas duas acusações são expressas e justificadas através de lógicas religiosas, e não a partir da
"racionalidade leiga" que deve caracterizar a discussão sobre a política hoje. Esses grupos não admitem a
distinção entre a religião e a política, ou melhor, não admitem a "autonomia relativa" do campo político e
de outros campos -como o econômico- que se emanciparam da esfera religiosa no mundo moderno. Por
isso, eram e são contra "fé e política" ou o debate sobre a política no campo religioso, pois esses debates
são feitos normalmente a partir do princípio da autonomia relativa da política. Isto é, a discussão sobre
questões políticas são feitas com argumentos de racionalidade sócio-política e não submetidos ao discurso
meramente religioso.

Para esses grupos (é preciso reconhecer que ocorre também em outros grupos político-religiosos), os
valores religiosos (do seu grupo) devem ser aplicados diretamente a todos os campos da vida pessoal e
social. E, em casos graves como aborto, ser impostos sobre toda a sociedade através das leis do Estado.
Nesses casos, não seria misturar a religião com a política, mas seria a "defesa" dos mandamentos e
valores religiosos; ou colocar a política a serviço dos valores religiosos (nessa discussão apresentados
como "a serviço da vida"). Pois, nada estaria acima dos "mandamentos de Deus". Desta forma não se
reconhece a autonomia relativa do campo político, a dificuldade de se passar do princípio ético abstrato
(do tipo "defenda a vida") para as políticas sociais concretas, e muito menos se aceita a pluralidade de
religiões com valores diversos e propostas de ação divergentes e conflitantes.

Esta é a razão pela qual esses grupos não entendem e nem aceitam a resposta dada por Dilma de que ela,
pessoalmente, é contra o aborto, mas que ela vai tratar esse tema como um problema de saúde pública.
Para ouvidos daqueles que crêem que não há ou não deve haver separação entre a saúde pública (o campo
da política social) e a opção religiosa pessoal do governante, a resposta da Dilma soa como eu não sou
contra o aborto, que logo é traduzido na sua mente como "eu sou a favor do aborto".

E se ela é a favor do aborto, ela é contra a vida e, portanto, ela é do "mal". Enquanto que, por oposição, o
outro candidato seria do "bem".

Reduzir toda a complexidade da "defesa da vida" -a que um/a presidente deve estar comprometido/a- à
manutenção da criminalização do aborto (que é o que está discutido de fato neste debate sobre ser a favor
ou contra o aborto) é uma simplificação mais do que exagerada. Simplificação que deixa fora do debate,
por ex., toda a discussão sobre políticas econômicas e sociais que afetam a vida e a morte de milhões de
pessoas. Mas é compreensível quando os cristãos têm muita dificuldade em perceber quais são os
caminhos concretos e possíveis para viver a sua fé na sociedade, perceber em que a sua fé pode fazer
diferença na vida social. Diante de tanta complexidade, a tentação mais fácil é simplificar o máximo para
separar "os do bem" de "os do mal".

Essa simplificação me lembra a pergunta que os meus filhos, quando muito pequenos, me faziam ao
assistir um filme: "pai, ele é do bem?" Se sim, eles torciam por aquele que "é do bem" contra o "do mal".
Essa necessidade de separar os do bem e os do mal faz parte da condição mais primária do ser humano. O
problema é que reduzir toda a complexidade da luta em favor da vida ao tema de ser favor ou contra a
manutenção da criminalização do aborto é infantilizar a discussão política e, o que é pior, é infantilizar a
própria religião que professa.

[Autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece na luta em favor dos
pobres"].

* Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo

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