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O endereçamento da arte – Dirk Baecker1


Tradução: Mônica Fichtner•, supervisionada pelo Prof. Dr. Michael Korfmann∗

Três concepções improváveis

Há apenas poucas constantes na discussão atual sobre a arte. Uma delas é o velho
topos de que a fala sobre a arte pouco tem a ver com a linguagem da arte. Isso sempre
pode ser constatado quando os artistas conversam sobre arte, pois os diálogos que um
pintor tem com um diretor de teatro, um escultor com um músico e um arquiteto com um
poeta são baseados em um entendimento de que a diferença entre a linguagem das
formas e o discurso sobre formas não pode ser suspensa. Freqüentemente tal diálogo é
simplesmente evitado, visto que cada frase, mesmo aquela que mal excede a descrição
dos contrastes de determinadas cores, a entonação de determinadas palavras, o efeito de
determinados movimentos no palco, é inevitavelmente desmascarada como flor de
retórica. Precisa-se de um marchand, um crítico ou um teórico de arte para se iniciar um
diálogo que pode ser mais ou menos generalizado. Interessante nesse topos não é só o
conhecido conselho de que, frente ao belo se recomenda o silêncio coletivo – sobre o
feio, sim, se poderia conversar; interessante em relação a esse assunto é que nenhum
desses artistas duvidará do fato de que a sua própria arte, bem como a dos seus colegas,
tem a ver com uma linguagem, embora com uma linguagem que justamente não se deixa
conceber em palavras, mas antes, exige a obra de arte em todos os seus aspectos.
Esse é meu ponto de partida. Gostaria de discutir a possibilidade de compreender a
arte como uma linguagem. Não procuro analisar a linguagem das formas da pintura, do
teatro, da música, da arquitetura, da literatura no sentido de tematizar: cor e linha,
expressão e movimento, som e ritmo, espaço e detalhe, entoação e variedade de
expressão. Procuro, sim, descrever a própria arte em todas as suas manifestações como
comunicações diferenciadas. Para o sociólogo, a arte é do mesmo modo comunicação
como a política ou a economia, a religião ou o direito, uma família ou uma organização,

1
BAECKER, Dirk. Die Adresse der Kunst. In: FOHRMANN, MÜLLER (Hrsg.) Systemtheorie der
Literatur. München: Wilhelm Fink Verlag, 1996, p.82-105.

Aluna de graduação IL/UFRGS

Professor IL/UFRGS
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visto que ela se realiza na sociedade e como uma ratificação social específica. Isso vale
então pelo menos, quando esse sociólogo trabalha com a teoria da comunicação e com
isso defende um outro princípio, diferente do teórico da ação ou de um estatístico.
Três concepções me servem como ponto de partida, todas igualmente improváveis
e distintas, podendo até ser designadas como mentiras exatas, no sentido de Ranulph
Glanvilles2. Essas mentiras têm o sentido de não só afirmar alguma coisa sobre o
assunto, o que pode então estar ou não equivocado, mas também, com essas afirmações,
apresentar simultaneamente o observador, que acredita poder afirmar tal coisa. Tem-se
então a opção de se informar mais detalhadamente sobre o assunto ou sobre o
observador; para isso precisa-se, no entanto, colocar-se como observador. A famosa
frase “Todo cretense mente” foi talvez uma das primeiras mentiras neste sentido.
Esse procedimento trata não só do equívoco ou do acerto, mas também da
amplificação, da expansão da incerteza, tanto em vista do chamado objeto como em
vista do chamado sujeito do (re) conhecimento. Nessa incerteza poderão ser inscritas
outras tentativas de ganho de conhecimento. Paradoxalmente a incerteza, a ambivalência
da atribuição é mais proveitosa para outras investigações do que a tentativa de escolha
entre o equívoco e o acerto, que deixa em aberto como isso poderia então continuar.
Contudo, se trata de mentiras, pois consiste na introdução de diferenciações, embora se
saiba que o conhecimento do mundo não se pode processar em forma destas. E isso já
não é possível, pelo simples fato, de que o mundo é a unidade de todas as diferenciações,
portanto ele mesmo não é uma diferenciação (afinal, o que ele poderia diferenciar?).
Mas não é de outra maneira senão com a ajuda das diferenciações, que este
conhecimento pode ser formulado. E é só dessa formulação que tratamos aqui.
Em outras palavras, a sociologia da arte coloca em questão não só a arte, mas
também a sociologia. Com isso se aumentam as possibilidades de se encontrar
continuidades como naturalmente também de se encontrar rejeições. As três concepções
das quais gostaria de tratar aqui se originam do interesse em relação ao endereçamento
da arte:
- a primeira concepção é de que esta se trata, junto à arte, de um sistema
funcional da sociedade, logo de um sistema social que opera no nível da comunicação e
preenche nesse nível uma determinada função na sociedade;

2
Veja GLANVILLE, Ranulph. Distinguierte und exakte Lügen. In: ders., Objekte. Berlin 1988, p.175-
194.
3

- a segunda concepção é de que só se pode então descrever arte como


comunicação, quando esta é compreendida como observação, mais precisamente ainda,
como observação de observações, como observação de segunda ordem;
- e a terceira concepção é de que as observações do sistema funcional “arte” se
referem a uma bem determinada diferença, que também desempenha um importante
papel em outras áreas da sociedade, mas na arte torna-se explicitamente um tema, um
problema e um endereçamento de comunicação. Essa diferença é a diferença entre
comunicação e consciência, entre sistemas sociais e sistemas psíquicos, ambos
operacionalmente fechados, portanto operados dentro da condição de que eles
reciprocamente não podem se alcançar e por isso, no lugar dessa impossibilidade,
precisam colocar outra coisa, como, por exemplo, a linguagem ou mesmo a arte. Isso
tem a ver com uma diferença ecológica, isto é, com uma intransponibilidade. A arte
responde ao problema de que as consciências não podem penetrar na comunicação e a
comunicação não pode comunicar para dentro da consciência. A consciência fica
sozinha com seus pensamentos, a comunicação com suas operações fica alheia à
consciência.
Essas concepções são mentiras no sentido anteriormente mencionado. Pois, como
se pode chegar à idéia que tudo que existe na sociedade de maneira mais variada,
interligada ou separada, na forma de artes, na forma de pintura, poesia, escultura,
literatura, arquitetura, teatro, cinema e música, pode ser trazido para um único sistema,
este ainda fechado e funcionalmente especificável?
O que poderia ser sistema em relação à arte, senão um interesse precipitado do
teórico na classificação, categorização, ou seja, na domesticação e na ordenação daquilo
que então não poderia mais se mostrar em toda a sua qualidade própria? Como se pode
seriamente designar arte como comunicação, quando ela trata da formação de coisas, do
uso de matéria e substância, da experiência com som, imagem, cheiro e forma e sua
dissipação, de um interesse em forma e medium, e sobretudo daquilo que escapa à
comunicação, daquilo que nos seus momentos mais bem sucedidos só pode ser
respondido com o silêncio, pois é belo e elevado, chocante e sublime, desconcertante e
sereno?
E qual observador pode ter a idéia de afirmar que, em relação à arte - como
comunicação – se trata de observações, enquanto a arte justamente se destaca pelo
interesse no inobservável, no invisível, no não registrado e naquilo que se esquiva?
4

E mesmo aquele disposto a aceitar tudo isso será contrário quando souber que a
pessoa, o indivíduo, o agens é afastado do centro da observação e, por causa da
diferença entre sistemas sociais e sistemas psíquicos, não é mais identificável, ou
melhor, o é apenas como ficção, como pressuposição de comunicação e consciência.
Será que estou a ponto de me esquivar do interesse na arte e na teoria da arte, e no
seu lugar propor as exigências de uma teoria sociológica, que se pode facilmente
reconhecer como aquela teoria do sistema, que Talcott Parsons começou e cujo
aperfeiçoamento sobretudo Niklas Luhmann empreendeu mais recentemente?
Quero tentar desenvolver essas três concepções que foram indexadas como “mentiras”, até
o ponto em que se possa reconhecer, se apesar de seu aparentemente “falso” ponto de
partida pode-se chegar ao “certo”, quer dizer, a resultados capazes de proporcionar
continuidade. Começo com a tese da arte como sistema funcional da sociedade.

Diferenciação social
A concepção de um sistema funcional da sociedade é parte de uma teoria social,
que é estruturada como teoria da diferenciação sob dois aspectos. Primeiro, a teoria da
sociedade é a teoria daquele “abrangente” sistema social, que diferencia toda a
comunicação de todas as outras coisas que não são comunicação. A sociedade não é
mais nada do que esta diferenciação, a distinção da comunicação de todo o resto. Talcott
Parsons acoplara este conceito de sociedade ainda a uma compreensão da cultura, que é
sobreposta à sociedade e equipada com um fundo de normas e valores. Em Niklas
Luhmann a cultura torna-se um “estoque de temas”, por meio do qual a sociedade se
auto-observa e se autodescreve. Como “cultura”, então, vale tudo aquilo que é
indiferenciável, mas ao qual se pode recorrer para se chegar a decisões. Essa inserção da
cultura na sociedade possibilita conceber o próprio conceito da sociedade não de forma
normativa e acoplá-lo mais fortemente ao conceito da comunicação. Sociedade acontece
sempre, quando acontece comunicação. A diferenciação que a sociedade realiza perante
o seu ambiente é essa diferenciação entre a comunicação e todas as outras coisas, como
a energia, a matéria, a vida, a natureza e a psique.
Nesse primeiro nível de uma teoria da diferenciação, a forma da sociedade é a
forma de uma diferenciação, que tem um lado interno e um lado externo, a saber,
comunicação do lado interno e todo o resto do lado externo. A sociedade se reproduz
5

como essa forma de diferenciação, portanto sob a suposição da vida sobre a terra, bem
como dos sistemas de consciência não transparentes e da mais acessível corporalidade
humana. Mas ela não liga as suas próprias operações a este ambiente, mas sim
exclusivamente a si própria. Há sempre sociedade, quando há comunicação, e há sempre
comunicação, quando a informação é compartilhada e quando é entendido que cada
informação pode ser comunicada de forma diferente e que cada comunicado pode se
dirigir para outras informações.3 Parecida com os jogos de palavras de Ludwig
Wittgenstein, a comunicação pressupõe esse saber - mais exatamente, essa
inevitabilidade - de contingência. Esta contingência possibilita à comunicação se
desacoplar do seu ambiente e abandonar correspondências exatas e colocar no lugar
dessa ligação ao ambiente, ligações de operações próprias a operações próprias. Com
referência à lingüística de Ferdinand Saussure, pode-se dizer, que uma imposição do
ambiente sobre o sistema da sociedade é “desmotivada”, para poder “remotivar” as
reconstruções do ambiente no sistema.
Esse primeiro conceito de diferenciação da sociedade nada mais é do que um
conceito de constituição da comunicação. A comunicação se realiza e se reproduz sem
que neste processo seja pressuposta ou até pretendida uma adaptação na natureza, um
respeito pela vida, uma intenção de pessoas. Tudo isto, adaptação, respeito, intenção,
são, quando muito, produtos da própria sociedade, resultados da operação da sociedade e
correspondentemente improváveis. A comunicação, e com isso, a sociedade, realiza-se e
reproduz-se sempre quando informações forem comunicadas e compreendidas, cujo
comunicado e entendimento é atribuído a duas black boxes - duas complexidades opacas
para si mesmas - para as quais a comunicação nos colocou à disposição designações
como pessoa, indivíduo e homem.
O segundo conceito de diferenciação da sociedade traz algumas das conseqüências
da primeira, e isto sob a hipótese de que a sociedade também precisa achar meios de
trabalhar a sua própria diferença frente ao ambiente, de tal modo que ela pode ser
mantida e seus problemas subseqüentes poderão ser trabalhados. Nesse segundo
conceito não se trata mais da constituição da comunicação, mas sim da sua
complexidade, não mais da diferenciação externa da sociedade, e sim da diferenciação
interna. Com referência às teorias sociais de Aristóteles até Auguste Comte, Karl Marx e

3
Para esse conceito de comunicação, veja LUHMANN, Niklas: Soziale Systeme: Grundriss einer
allgemeinen Theorie. Frankfurt am Main 1984.
6

Herbert Spencer, tanto Parson como Luhmann imaginam que a sociedade é diferenciada
internamente em sistemas parciais, que permitem reiterar a diferença entre sociedade e
ambiente internamente em certos aspectos selecionados (onde a diferença reiterada,
reintroduzida, não é mais a própria diferença) e torna essa diferença administrável dentro
da sociedade.
A diferenciação da sociedade em várias tribos, por conseguinte uma diferenciação
em partes iguais ou pelo menos semelhantes, é a primeira forma desta diferenciação –
diferenciação segmentada. Com a complexidade crescente da sociedade, essa forma
torna-se insuficiente e a sociedade se transforma em uma sociedade de camadas sociais,
que se diferencia em partes desiguais, em partes inferiores e superiores; assim
diferencia-se o camponês do clero, o clero do nobre. Com isso, encontra-se dificuldade
somente no instante em que o burguês começa a romper o princípio da hierarquia e no
seu lugar colocar redes como a política, ou a economia, ou a educação, que não se
orientam mais em pessoas, mas sim em temas. A sociedade implanta o princípio da
assim chamada diferenciação funcional, isto é, uma diferenciação em sistemas parciais
da sociedade, onde cada um realiza uma determinada função para esta última.
A política assume a função de tomar decisões obrigatórias para a coletividade, sob
a condição de ameaça de força. A economia se preocupa em assegurar no presente a
possibilidade de futuras satisfações de necessidades. A religião disponibiliza uma idéia
de transcendência, por meio da qual se pode pensar - mais exatamente acreditar – em
algo que excede a imanência da sociedade. O direito cuida normativamente da função da
implantação, isso implica também na manutenção de expectativa, em caso de decepção.
A ciência põe à disposição formas de comunicação, com as quais podem ser realizados
ganhos de conhecimento, mesmo quando todos os pontos de partida são hipotéticos e
quando todo resultado aumenta e não diminui a incerteza. A educação é o empenho pela
socialização do contingente de pessoas da sociedade, que não ocorre apenas de forma
secundária, mas sim de forma intencional e reconhecível como tal. Por isso a família
empenha-se em disponibilizar pelo menos um sistema social, no qual as pessoas da
sociedade existem não apenas sob aspectos parciais e de maneira fragmentada – nas
palavras de Georg Simmel – mas também sob a premissa da integridade e onde possam
ser levadas a sério. Todos esses sistemas funcionais dessa lista incompleta operam
autonomamente, auto-referencialmente e operacionalmente fechados, da mesma maneira
que a sociedade. Eles desmotivam o acesso da sociedade a esses sistemas parciais, para
7

que estes possam se remotivar, sob o ponto de vista das suas funções, nas suas próprias
operações, ou seja, na forma específica da sua comunicação.
Todos estes sistemas funcionais tendem a sobreestimar sua função. A política
acredita poder solucionar todos os problemas da sociedade dentro de um cálculo de
poder; a economia valoriza sobre tudo o interesse no dinheiro; o direito propaga normas
para regulamentação de todas as diferenças; a ciência não aceita nenhum
desconhecimento que não possa ser transformado em conhecimento; a religião procura
ainda, nos momentos mais improváveis, uma possibilidade de achar bom aquilo que se
faz; a educação aposta em formação, até em mudanças da consciência; e a família se
valoriza como um grupo unido que realiza controle social por meio de um trato
permissivo com restrições.
De fato, a característica da sociedade moderna é que, por um lado, ela concede a
todos esses sistemas sua própria sobreestima e, por outro lado, coloca como contrapeso o
fato de que ela se diferencia em uma multiplicidade de sistemas funcionais, que
precisam se presumir mutuamente para poderem se especializar nas suas próprias
operações. Isso tem conseqüências drásticas, na medida em que a política só pode se
preocupar com a sua função e não com as funções da economia, do direito ou da
educação. O mesmo vale para a economia, que não pode se colocar no lugar da política,
nem tampouco no lugar da religião. Uma vez que a sociedade tomou essa posição
arriscada da diferenciação funcional, ela pode apenas substituir cada um dos seus
sistemas pelo seu próprio sistema, portanto a política apenas pode ser substituída pela
política, a economia apenas pela economia, a ciência apenas pela ciência, e assim por
diante. A sociedade que não aceita isto e que coloca como absolutos quaisquer de seus
sistemas parciais não é punida pela vida, mas sim pela própria sociedade.
Essa é, portanto, a sociedade, com a qual a arte também lida. Enquanto a arte
aposta na comunicação, ela mesma é uma parte desta sociedade4, e precisamente uma
parte que é diferenciada como sistema funcional e como tal tende a se sobreestimar,

4
Veja os seguintes artigos de LUHMANN, Niklas: Ist Kunst codierbar? In: Siegfried J. Schmidt
(Hrsg.), “schön”: Zur Diskussion eines umstrittenen Begriffs. München 1976, p.60-95; Das
Kunstwerk und die Selbstreproduktion der Kunst. In: Hans Ulrich Gumbrecht und K. Ludwig
Pfeiffer (Hrsg.), Stil: Geschichten und Funktionen eines kulturwissenschaftlichen
Diskurselements. Frankfurt am Main 1986, p.620-672; Das Medium der Kunst. In: Delfin VII,
1986, p.6-15; Weltkunst. In: ders., Frederick D. Bunsen und Dirk Baecker: Unbeobachtbare Welt:
Über Kunst und Architektur. Bielefeld 1990, p.7-45; Wahrnehmung und Kommunikation an Hand
von Kunstwerken. In: Harm Lux, Philip Ursprung (Hrsg.), Stillstand switches: Gedankenaustausch
zur Gegenwartkunst. Zürich 1992, p.65-74. Veja detalhadamente: LUHMANN, Niklas, Die Kunst
der Gesellschaft. Frankfurt am Main 1995.Livro publicado posteriormente a este artigo.
8

tendência que apenas pode ser contrabalançada pelo fato de que, paralelamente, se
comunica de outra forma em outros lugares. Antes que se comece a protestar agora
contra esta aparente tentativa de apropriação da arte pela sociedade, deve-se olhar o que
implica uma tal tese da arte como sistema funcional.
Antes de tudo, essa tese implica que a arte dentro da sociedade opera
autonomamente como qualquer outro sistema funcional e com isso como o seu próprio
soberano: ela opera conforme as suas próprias leis e as obtém da transgressão, do
distanciamento e da reformulação, da desmotivação e da remotivação das leis, cujo
cumprimento ou descumprimento ela pode observar no seu ambiente social e natural5.
Além do mais, o sistema da arte opera auto-referencialmente, isto é, ele obtém todos os
critérios de suas operações somente de si próprio. Opera não trivialmente, ou seja, para
todas as operações que o sistema realiza, estão sempre em jogo os estados dependentes
da sua própria história, de tal modo que o sistema não reagirá identicamente a dois
acontecimentos. E ele é igualmente intransparente e imprevisível para a observação
externa e para a auto-observação, visto que só o sistema como um todo e nenhum de
seus acontecimentos singulares (um quadro, um romance, uma sonata) e nenhum
observador privilegiado (artistas, galerias, museus, críticos, teóricos) é suficiente para
descrever os estados nos quais o sistema se encontra atualmente.

Tudo isso, porém, acontece dentro da sociedade e não fora. A arte não possui o
privilégio de poder observar a sociedade do lado de fora. Ela apenas pode observá-la a
partir do lado de dentro como se a observasse de fora – assim como cada sistema parcial
da sociedade compreende seu ambiente social a partir da sua própria perspectiva. E isso
significa que a arte é forçada a se realizar como sociedade, ainda que em aspectos
específicos, apenas válidos para a arte. A arte, então a tese, não pode não ser sociedade.
Mas ela é sociedade de um modo bem particular – assim como a religião, a ciência, a
economia, também são respectivamente sociedade, ainda que cada uma de um modo
particular.

Poderá perguntar-se, portanto, com referência à sociedade, ou seja, com referência


à forma de dois lados da comunicação em diferenciação a todas as outras, que função a

5
Uma tentativa de integrar Autonomia e Soberania encontra-se em: MENKE, Christoph: Die
Souveränität der Kunst: Ästhetische Erfahrungen nach Adorno und Derrida. Frankfurt am Main
1991.
9

arte desempenha na sociedade. Seria insuficiente compreender essa função como uma
tarefa delegada à arte pela sociedade e à qual a arte pode se dedicar ou se recusar. Que a
arte “tem” uma função não significa que as suas operações sejam determinadas, mas sim
que ela, em relação a toda a sociedade, é tratada por esta sociedade bem como por ela
mesma como uma variável que pode aceitar, conforme os valores existentes da
sociedade, um número infinito de valores6. Já que a arte, pelo seu lado, é parte da
sociedade, ela é, entre outras, uma função de si mesma, ou seja, ela própria realiza-se
sob os valores que determinam quais valores ela assume. Isso já assegura à sua
determinabilidade uma suficiente indeterminabilidade. Quando ainda se acrescenta a
idéia de que, na própria sociedade, há sempre incertezas e novas discussões referentes à
questão de quais valores a sociedade assume, e que a incerteza desta questão dentro da
observação da sociedade tanto pode ser aumentada como diminuída pela arte, o conceito
de função transforma-se de um conceito de determinação em um conceito de
reacoplação, em perspectivas do problema, mas não em diretrizes para solucionar a
própria localização social da arte.

A função é o ponto de referência que regula, dentro da arte e para a arte, sua
relação com a totalidade da sociedade e dessa relação ganha uma estrutura e uma
semântica da comunicação, com a qual a arte “ataca” a sociedade. Essa referência não é
a unidade da sociedade nas respectivas formas do seu auto-entendimento, mas sim a
diferença da sociedade para com seu ambiente, isto é, o problema da constituição da
comunicação, assim como a diferenciação interna da comunicação, que acolhe os
problemas resultantes dessa constituição. Não por último, a arte pode, em relação a essa
função, tornar-se um problema para si mesma, pois a arte refere-se a uma sociedade em
que a própria arte acontece novamente como um sistema social, cuja função não pode
ser preenchida de um modo inequívoco, mas sempre de modos alternativos. Essa é a
razão pela qual a crítica de arte, no sentido da concepção romântica descrita por Walter
Benjamin, pertence ao sistema arte7. Mas essa é também a razão para o fato de que na
arte nada é mais discutido do que a própria arte. A função da arte não é predeterminar
para si própria uma perspectiva de calmaria, mas sim um aspecto de problematização. A

6
Veja sobre esse conceito de função KORZYBSKI, Alfred: Science and Sanity: An Introduction to
Non-Aristotelian Systems and General Semantics. Lakeville, Conn, 1958, p.133 et seq.
7
Veja BENJAMIN, Walter: Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik. In: Gesammelte
Schriften I.1. Frankfurt am Main 1974, p.7-122.
10

função opõe-se a toda ideologização, toda incorporação pela sociedade ou por um dos
seus sistemas parciais, que acreditam poder segurar como unidade àquilo que somente
existe como diferença. E embora cada obra de arte singular procure ser tão bem sucedida
que ela mesma preencha a função, precisa-se de outras obras de arte para poder ver até
que ponto ela de fato é bem sucedida ou não. Não é a operação singular do sistema arte
que preenche a função, mas sim a observação dessa operação em rede com outras
observações.

Não há na sociologia nenhuma resposta indiscutível para a questão sobre a função


da arte. A sociologia também é uma ciência, isso quer dizer que, para todo ganho de
conhecimento, implica aumento da incerteza. Quero olhar a questão em um determinado
aspecto apenas o colocando em discussão e longe de ser elaborado e examinado da
maneira necessária. O ponto de partida da teoria social da diferenciação sugere uma
busca à questão nos lugares onde está em jogo a diferença da sociedade para com o
resto: energia, matéria, vida, consciência. De que maneira se pode imaginar que a arte,
entendida como sistema social, reintroduz essa diferença na sociedade e a torna seu
próprio tema, isto é, o tratamento desta diferença em um determinado aspecto em
relação à sua função? É necessário mais um desvio para poder tratar dessa questão.

Comunicação como observação

Esse desvio leva à nossa segunda concepção, que é o entendimento da


comunicação como observação. Essa concepção postula que a comunicação não deve ser
entendida como a transferência de informação de um emissor para um receptor,
recorrendo a determinados canais e sendo impregnado não só pela qualidade específica
desses canais, como ainda através das práticas de codificação e decodificação ou pelas
limitações decodificadoras dos emissores e dos receptores8. Em vez disso a comunicação
é entendida como a síntese improvável de informação, de comunicado e de compreensão
obtida como síntese a partir de uma base materialista altamente complexa e que se
transforma, na forma desta síntese, em um acontecimento (“emerge”), que aflora e
novamente logo desaparece, ganhando exclusivamente qualidade de continuidade para

8
Compare ainda neste sentido, as reflexões sugestivas de LOTMAN, Jurij M: Die Struktur des
künstlerischen Textes. Frankfurt am Main 1973.
11

as comunicações que seguem. Cada uma dessas comunicações é uma observação que
realiza uma determinada diferença, por exemplo, informar-se sobre isso e não sobre
aquilo, ter feito um comunicado disso e não daquilo e ser entendido assim e não de outra
forma e como tal observação não pode ser atribuída a nada no ambiente da comunicação.
Não é o objeto que informa sobre si mesmo, nem é uma pessoa que, independentemente
do fato de que a comunicação lhe concede isso, poderia realizar um comunicado;
também não se pode compreender tudo isso de outra maneira a não ser pelo recorrer a
comunicações realizadas anteriormente e pela antecipação de comunicações que possam
acontecer posteriormente. A comunicação é uma observação de caráter acontecível,
que, como síntese de informação, comunicado e compreensão, pode ser atribuída
diferentemente, isto é, de maneira auto-referencial ou como referência externa e daí
decorre sua contingência, sua mobilidade e sua grande inquietação endógena,
trabalhável e explorável somente por ela mesma.

Descrevendo assim a comunicação como observação, que realiza uma


diferenciação que pode ser essa ou aquela diferenciação, conforme a comunicação - por
conseguinte uma observação - posterior, isso significa por ora que as comunicações não
podem aparecer sozinhas, como comunicações singulares, mas apenas em rede com
outras comunicações. Pode-se supor que a compreensão que Jacques Derrida tem da
escritura, com referência a cada comunicação singular e presente, remete ao fato que
esta recorre e antecipa outras comunicações, portanto acrescenta e adia referências a si
mesma, e não seria o que ela é fora dessas retomadas e antecipações9. Esse conceito de
escritura, como também de uma maneira muito análoga o conceito de sentido de
Luhmann10 remete, de sua parte, à análise de Husserl da retenção e protensão de
vivências da consciência, contudo esse conceito não mais atribui a essa consciência a
capacidade de efetuar as referências, mas a atribui sim à dimensão do social, à sociedade
e à comunicação.

Cada comunicação pode ser compreendida como uma observação que realiza uma
diferença, que pode ser observada em relação aos seus dois lados no sentido do cálculo

9
Compare sobretudo DERRIDA, Jacques: Grammatologie. Frankfurt am Main 1974.
10
Compare LUHMANN, Niklas: Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. Frankfurt
am Main 1984. Cap. 2.
12

da forma de G. Spencer Brown11. Conforme esse cálculo lógico e matemático, cada


observação tem dois lados, um lado interno, um marked state (área marcada), que
designa, o que é designado, e um lado externo, um unmarked state (área não marcada),
que permanece sem designação, mas que, como lado não marcado, acompanha todas as
operações de diferenciação. Quando se quer dar continuidade a uma observação (e isso é
o cerne do problema, quando as comunicações são acontecimentos que emergem e
depois desaparecem), tem-se a escolha de designar o lado interno, portanto reiterar a
diferenciação como tal, ou designar o lado externo e então ficar com as mãos abanando.
Enquanto está sendo comunicado, é comunicado. Quando se muda para o lado externo
da diferenciação da comunicação (mas quem se muda?), perde-se em um espaço vazio
pressuposto e co-produzido como tal pela comunicação.

Parece que podemos somente escolher entre a repetição e a meditação. No entanto,


o cálculo da forma de Spencer Brown prevê uma terceira possibilidade de ligar uma
observação a uma diferenciação que realiza uma observação prévia. Essa terceira
possibilidade é a reintrodução da forma da diferenciação no campo designado pela
diferenciação. Um exemplo disso seria uma comunicação sobre a forma de dois lados da
sociedade, que designa comunicação no seu lado interno e deixa sem designação, no seu
lado externo, todo o resto, por exemplo, pessoas e consciências, significando a não
distinção destas em relação a operações de continuidade. Somente através dessa
reintrodução nota-se que se trata, em relação a uma diferenciação, de uma forma de dois
lados que exclui aquilo que ela exclui para poder incluir aquilo que ela inclui. Somente
por meio dessa reintrodução observa-se que cada inclusão pressupõe uma exclusão, o
que precisa valer também para a reinclusão do excluído no incluído realizado pela
reintrodução. Portanto, a reintrodução exclui o que ela precisa excluir, para ser aquilo
que ela é.

Comunicação sobre a percepção

Quando se descreve a comunicação da arte como uma comunicação no sentido de


uma observação que realiza uma diferenciação, e quando se considera ao mesmo tempo
com referência à arte, que se trata também de um sistema funcional da sociedade

11
Veja BROWN, G. Spencer: Laws of Form. New York 1977.
13

moderna que, de sua maneira específica, reflete e cuida da diferenciação da sociedade


referente a seu ambiente - quando se juntam essas duas mentiras distintas ou, em
resumo, essas duas distinções – qual seria então a função da arte?

Pode-se supor que a arte cuida de uma forma particular da reinclusão do excluído e
a reproduz em todas as suas operações. Quando se acrescentam a essa suposição
evidências do dia a dia, das quais a teoria dos sistemas sociais não apenas depende, mas
até procura, desmotivando-as e remotivando-as, e quando se reflete sobre o fato de que
se trata, nas artes, de formas da Aisthesis, ou seja, de formas de acesso à percepção,
então fica clara a seguinte tese: a função da arte consiste em desenvolver e experimentar
formas de comunicação, nas quais a exclusão das operações da consciência – presente
em todas as comunicações - pode ser comunicada como tal. Na arte, a comunicação
“dirige-se” à percepção12.

Essa tese recorre a terceira concepção que designei, isto é, a concepção - já contida
na primeira concepção da diferenciação da sociedade - de uma diferença ecológica, não
conciliadora, mas sim uma diferença intransponível entre comunicação e consciência13.
Essa concepção torna-se controversa, pelo fato de que tanto os sistemas sociais, como os
sistemas psíquicos funcionam operacionalmente fechados (ou seja, os primeiros podem
somente comunicar e os últimos somente pensar); sob tal condição, precisa-se também
supor que os sistemas sociais não têm capacidade de perceber. Percepção é uma
operação dos sistemas de consciência. A comunicação não pode perceber, ela pode
somente acoplar comunicação com comunicação e, ao mesmo tempo, limitado e

12
Deve-se discutir esta tese no contexto da Flilosofia do Sublime de Kant, a que Jean-François
Lyotard recorre para relacionar as nuanças, os timbres, a diferença de cores e tons aos quais a
arte moderna se refere, à diferença entre matéria e espírito (mind, portanto tanto percepção
como pensamento). Conforme Lyotard, na arte o sublime acontece no momento em que o
espírito compreende a matéria como algo que não se deixa capturar e que não quer capturá-lo.
No lugar em que Lyotard reflete sobre a diferença entre matéria e espírito, a tese desenvolvida
no texto reflete a respeito da diferença entre comunicação e percepção. Isso permite
compreender que a arte não apenas é experiência, como também é experiência comunicada, e
na qualidade dessa experiência comunicada permite tratar aquela re-inclusão da matéria
excluída, da qual fala Lyotard: After the Sublime: The State of Aesthetics. In: David Carrol
(Hrsg.), The States of “Theory”: History, Art, and Critical Discourse. New York 1990, p.297 – 304.
13
Para mais detalhes, veja LUHMANN, Niklas: Die operative Geschlossenheit psychischer und
sozialer Systeme. In: Hans Rudi Fischer, Arnold Retzer, Jochen Schweitzer (Hrsg.), Das Ende
der großen Entwürfe. Frankfurt am Main 1992, p.117-131; BAECKER, Dirk: Die Unterscheidung
zwischen Kommunikation und Bewußtsein. In: Wolfgang Krohn und Günter Küppers (Hrsg.),
Emergenz: Die Entstehung von Ordnung, Organisation und Bedeutung, Frankfurt am Main 1992,
p.217-268; FUCHS, Peter: Die Erreichbarkeit der Gesellschaft: Zur Konstitution und Imagination
gesellschaftlicher Einheit. Frankfurt am Main 1992.
14

possibilitado por esse modo operacional, comunicar sobre percepção. A comunicação


depende do fato de que os sistemas de consciência – recorrendo a seus corpos - não
fazem apenas ruídos, que a comunicação pode tratar como comunicação, bem como do
fato de que esses ruídos possibilitam também conclusões sobre a percepção. E aqui
também vale o fato de que a comunicação desmotiva a aceitação direta dos conteúdos da
consciência e, em vez disso, remotiva-se para reconstruções próprias de consciência e de
percepção.

Todos os sistemas funcionais da sociedade e também os outros tipos de sistemas


parciais da sociedade, portanto interações e organizações, desenvolvem seu próprio
acesso à percepção dos sistemas de consciência envolvidos. Para os sistemas funcionais
da sociedade, Luhmann desenvolveu - para a descrição desses acessos - o conceito de
“mecanismos simbióticos”14. Tais mecanismos são: a ameaça de força para a política, as
necessidades para a economia, a sexualidade para o amor, os métodos empíricos para a
ciência. A interação encontra seu apoio na percepção ao pressupor a presença para a
comunicação. E a organização supõe formas perceptíveis de técnicas de produção, de
procedimentos burocráticos, de aumentos de membros, das manifestações de aprovação
do público, do disciplinamento dos alunos e presos, bem como da recuperação de
pacientes. Todas essas recorrências à percepção funcionam - de modo mais ou menos
normalizado e imposto de modo mais ou menos dispendioso - em toda a sociedade.

Mas é apenas em um sistema social que a exclusão da percepção pela


comunicação, como tal torna-se tema, problema e endereçamento da comunicação: na
arte. Nas comunicações da arte, a reintrodução da diferença entre comunicação e
percepção na comunicação torna-se um acontecimento. A arte não se comunica sobre
outra coisa senão sobre a reinclusão da percepção excluída na comunicação15. Ela choca,

14
Veja LUHMANN, Niklas: Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. Frankfurt am
Main 1984, p.337 et seq
15
Quando se fala no texto de ”reintrodução” e “reinclusão”, o prefixo “re” pode induzir ao erro, pois
pressupõe que a percepção na comunicação era contida de algum modo, mas que ela foi
excluída e agora é reintroduzida. Aqui é efetuado um equívoco entre a operação de exclusão do
teórico que trabalha na sua teoria da comunicação e a operação de exclusão da comunicação,
que trabalha na sua própria emergência. O “re” é então o consolo que o teórico tem a oferecer,
que precisa determinar como e onde reaparece aquilo que, há muito tempo, é integrado – na
posição não teórica. Se o texto, apesar disso, permanece com o “re”, então isso pode ser lido
como indicação da situação precária de cada diferença e da possibilidade de emergência
experimentada em cada operação de um sistema operacionalmente fechado (portanto, não
material, não energético, nem causal).
15

seduz e fascina os sistemas da consciência no ambiente da sociedade, com a ajuda das


comunicações, que são endereçadas à percepção desses sistemas da consciência e obtêm
esse endereçamento na recorrência a comunicações anteriores e na antecipação de
comunicações futuras. O endereçamento dessa comunicação depende da transgressão de
toda comunicação e, mesmo assim, nessa transgressão referia-se à comunicação,
portanto ser ao mesmo tempo apóstrofo e communicatio16 .

Com isso, a arte se realiza em um empreendimento extremamente paradoxal, pois


ela tem que eliminar - na sua própria operação de reintrodução da percepção excluída na
comunicação - o fato de que essa percepção reintroduzida não é a própria percepção, que
permanece assunto insustentável dos sistemas da consciência, mas sim uma percepção
reconstruída comunicativamente, uma especulação da comunicação sobre a percepção,
no mais verdadeiro sentido da palavra. Essa paradoxia não pode se sobressair. Ou ela
pode, se preciso for se sobressair até um ponto em que os sistemas da consciência
podem se fascinar com essa paradoxia, portanto até um ponto em que a paradoxia torna
a comunicação perceptível na sua qualidade singular, ou seja, como exclusão da
percepção. Por isso, a comunicação da arte procura sempre alcançar aquele ponto no
qual ela se coloca em risco, no qual ela se arrisca como comunicação, ou seja,
desencorajar todo tipo de continuidade comunicativa. E em vez disso, faz de conta que
ela mesma, como comunicação, possa ser continuada apenas no interior dos sistemas da
consciência endereçados e, lá, em forma de percepção. Nada desencoraja mais a arte do
que a descoberta de que, os pontos nos quais ela se arrisca são imitados pelas
continuidades comunicativas da arte e reproduzidos em forma de receitas, cujos
produtos todo mundo reconhece como resultados da comunicação, intenção da
representação.

Todavia a comunicação da arte desenvolveu uma maneira relativamente eficaz de


invisibilizar ou desdobrar a paradoxia na qual ela se baseia e ao mesmo tempo utilizá-la
nos limites dados, ou seja, como resultado – a obra de arte. A obra de arte é aquela
comunicação que reclama ser mais ou menos que um acontecimento, de qualquer

16
Veja, além disso, STANITZEK, Georg: Kommunikation (Apostrophe & Communicatio
einbegriffen). In: Jürgen Fohrmann und Harro Muller (Hrsg.), Literaturwissenschaft. München
1995, p13-30.
16

maneira – não apenas um acontecimento17. Na obra de arte, a comunicação se imobiliza,


coloca-se contra a emersão e o desaparecimento de acontecimentos comunicativos e
finge ser algo que ganha uma perceptibilidade própria, idêntica a si mesma e que, como
tal, povoa o mundo para consolar e encorajar as pessoas irritadas pela comunicação.

Essa imobilização da comunicação na obra de arte vale para o quadro na pintura,


na qual a arte comunica o fato de quão dependente a percepção dos sistemas da
consciência é da linguagem das linhas e cores oferecida pela comunicação, e de quanto a
percepção dos sistemas da consciência não pode, de modo algum, ser determinada por
essa linguagem das linhas e cores. Basta pensar no fato de que distinguimos apenas as
cores cujos nomes conhecemos e que precisamos conhecer essas diferenças moldadas
em nomes, para podermos reconhecer como estas diferenças não fazem jus as nuanças
das cores.

Essa imobilização da comunicação na obra de arte vale também, de maneiras


diferentes, para o romance, para a poesia, para o conto. Na literatura, a arte comunica o
fato de que a forma lingüística da comunicação, como tal, não é apenas um assunto da
comunicação, mas também um assunto da percepção. A língua é um dos mecanismos
mais importantes do acoplamento estrutural entre a comunicação e a consciência18. A
consciência, que não se manifesta por si mesma, quando se acredita na introspecção e na
tese da “solidão da vida anímica” de Husserl19, pode, mesmo assim, recorrer à língua
para a estruturação dos próprios pensamentos. Em razão disso, a consciência nota na
língua o quanto as suas próprias operações e a estrutura destas se desviam das da
comunicação. A literatura comunica sobre a percepção da comunicação pela consciência
e experimenta, no contexto dessa comunicação, tanto a oportunidade de integração como
as oportunidades de diferenciação entre comunicação e consciência, confiando no fato
de que os relógios biológicos dos sistemas sociais e psíquicos cuidam para que não haja
sobreposições.

17
A respeito deste problema, veja, nesta publicação, In: FOHRMANN, MÜLLER (Hrsg.)
Systemtheorie der Literatur. München: Wilhelm Fink Verlag, 1996, o artigo de STANITZEK,
Georg: Was ist Kommunikation?
18
Veja LUHMANN, Niklas: Wie ist Bewußtsein an Kommunikation beteiligt? In: Hans Ulrich
Gumbrecht und K. Ludwig Pfeifer (Hrsg.), Materialität der Kommunikation. Frankfurt am Main
1988, p.884-905.
19
Veja HUSSERL, Edmundl: Logische Untersuchungen: Untersuchungen zur Phänomenologie und
Theorie der Erkenntnis. Bd 2. In: Husserliana Bd XIX/1, The Hague 1984, § 8.
17

Isso, aliás, diferencia a literatura e a arte em geral, do entretenimento: no


entretenimento são encenadas experiências de identidade entre comunicação e
consciência; na arte ao contrário, são encenadas experiências de diferenciação. Pois
apenas como experiência de diferenciação os sistemas da consciência acreditam no fato
de que a comunicação da arte endereça-se a eles e não os quer absorver – mesmo que em
casos concretos possa haver dúvidas quanto a essa distinção. A distinção entre arte e
entretenimento não exclui, mas sim inclui, o fato de que, nos programas de
entretenimento na televisão acontecem experiências de arte e nas inaugurações de
exposições de arte acontecem experiências de entretenimento. Pois não nos referimos às
classificações de gêneros de arte e entretenimento correntes na sociedade, quando se
trata da distinção das experiências de diferenciação e de identidade, mas nos referimos a
certos tipos de trato com a diferença entre comunicação e consciência. A comunicação
da exclusão da percepção pela comunicação pode mesmo funcionar no “Blauen Bock”20,
provavelmente como exceção e dependendo de técnicas incomuns de compreensão. E
ela pode falhar em um romance artístico, quando este coloca sinais pelos quais a
consciência reconhece que ela deveria “engajar-se”.

O teatro também imobiliza a comunicação, na medida em que ele consegue utilizar


sua própria dramática ou a renúncia desta para permitir que a voz, o corpo, o
movimento, o espaço e a luz se tornem acontecimentos que ocupam o lugar da
comunicação que se tornou “fluída” na direção da observação de segunda ordem e assim
mostram mais nitidamente (fazer-se observável) qual ambiente a comunicação cria, ao
diferenciar-se dele.

A imobilização da comunicação na obra de arte também vale para as sonatas, as


sinfonias, as óperas e as canções21 – aqui, porém, na forma duplamente paradoxal da
obra temporal. Em peças musicais, a arte comunica qual complexidade própria - não
esgotável pela comunicação e não fixável em seqüência - demonstra uma consciência
que procura formas para a sua própria inquietação, nas quais ela pode ressoar ou pode

20
N.Tr.: Programa popular na televisão alemã.
21
Para mais detalhe, veja também FUCHS, Peter: Vom Zeitzauber der Musik – Eine
Diskussionsanregung. In: Dirk Baecker u.a. (Hrsg.), Theorie als Passion: Niklas Luhmann zum
60. Geburstag. Frankfurt am Main 1987, p.214-237; e BAECKER, Dirk: Wieviel Zeit verträgt das
Sein? Eine Anmerkung zum Free Jazz. In: Bernhard Dotzler, Hermar Schramm (Hrsg.),
Cachaça: Fragmente zur Geschichte von Poesie und Imagination. Berlin 1996. p.144-148.
18

reencontrar, nas fricções, dobras e dissonâncias, a sua própria observação da dissonância


da comunicação, da sociedade.

E essa imobilização de comunicação na obra de arte vale até para as imagens em


movimento dos filmes22. A obra visual talvez seja uma das poucas formas que temos
para transformar a intransparência da comunicação para a consciência e a
intransparência da consciência para a comunicação em acontecimento comunicável, bem
como perceptível. O movimento das imagens imita as seqüências da comunicação, e
cada imagem endereça-se às capacidades perceptivas de simultaneidade pertencentes à
consciência. E na forma de filme torna-se saliente e trabalhável por meio de técnicas de
cortes quão pouco uma coisa tem a ver com a outra, quão seletivamente a seqüência lida
com a percepção simultânea e quão improvável é a possibilidade de que a percepção se
submeta aos ritmos da seqüência, ou, dito de outra forma, que esteja disposta a seguir a
comunicação da comunicação.

Em todas essas artes fica, contudo, o fato de que a imobilização da comunicação


apenas pode ser fingida. É sobretudo isso que constitui a ficcionalidade da arte, uma
ficcionalidade na qual nada pode ser inscrito além de referências à realidade da
realidade, ao objeto e seu destino, ao homem e sua idéia. Essa ficção também continua
dependendo do fato de que a ela se recorre, como tudo que permite imaginar a
comunicação como objeto (e sujeito)23. Na medida em que adquiri objetividade, a arte
não é outra coisa senão a precaução para a possibilidade de recorrer a ela, que postula a
identidade e realiza a diferença, pois cada retorno é um acontecimento que já se
diferencia em relação à sua própria importância daquilo que importa24. Qualquer obra de
arte precisa suportar essa tensão entre identidade e diferença, e a arte obtém dessa tensão
sua própria capacidade de sempre registrar outros aspectos na função que ela
desempenha.

22
Para mais detalhes, veja BAECKER, Dirk, The Reality of Montion Pictures. In: Modern Language
Notes 1996.
23
Para mais detalhes, veja FOERSTER, Heinz von : Gegenstände: greifbare Symbole für (Eigen-)
Verhalten. In: ders.: Wissen und Gewissen: Versuch einer Brücke. Frankfurt am Main 1993,
p.103-115.
24
Nesse contexto poderia se discutir as reflexões de Benjamin referente à aura. Para mais
detalhes, veja BAECKER, Dirk, The Unique Appearance of Distance. Publicado em: Hans Ulrich
Gumbrecht, Michael Marrinan (Hrsg.), Mapping Benjamin: The Work of Art in the Digital Age.
Standford.
19

Talvez hoje tenhamos alcançado um ponto no desenvolvimento da arte, no qual a


imobilização da comunicação convence tão pouco como nunca antes o fez. Parece ser
cada vez mais importante realizar a imobilização juntamente com a sua impossibilidade
e obter formas de arte a partir dessa diferença. A arte despede-se novamente de formas
que significam algo diferente delas mesmas, e procura deixar as formas se
autodesignarem. Ela desconfia da imagem que representa e do signo que significa, e
procura a forma que nada mais é do que a diferença da qual ela resulta25. Não lhe
interessa mais colocar signos que se confundem com a unidade a qual eles remetem, mas
sim achar formas que impeçam esse equívoco. O gesto abstrato na pintura, a linguagem
da consciência na literatura, a redução a movimento e luz no teatro, a concentração no
ruído na música e no corte no cinema são técnicas que apresentam a própria
operacionalização da diferença e que apresentam, na comunicação, não apenas a
exclusão da percepção, mas também a reinclusão e a artificialidade desta.

Cada vez mais a arte torna-se visível não apenas como forma, mas também como
medium de si mesma, reflete-se na arte em direção à diferença entre a arte e todo o resto
e essa reflexão não é mais utilizada apenas para a crítica da arte26, mas também para a
produção das próprias obras de arte. A obra de arte tende para Gesamtkunstwerk, a obra
de arte total, que clama reintroduzir todas as diferenças na sociedade e com ela na
própria obra de arte – suas diferenças constitutivas - e tenta, em última instancia, reduzir
a própria sociedade a uma obra de arte27; ou ela retira-se e afirma-se não mais como
reinclusão da percepção excluída, mas sim como apresentação das operações da
reintrodução, nas quais a qualidade própria da comunicação, bem como tudo que é
possível de ser refletido por ela como percepção, pode tornar-se visível e invisível. Nos
dois casos a obra de arte torna-se medium que não se apresenta mais como ficção da
imobilização da comunicação, mas sim como a própria comunicação e para tal consome
o tempo que pode ser utilizado para os três momentos da diferença entre comunicação e
percepção: para a exclusão da percepção, para a sua reinclusão e para a observação da
diferença entre comunicação e percepção. A arte torna-se medium de si mesma, no qual,

25
Para mais detalhes, veja FOCILLON, Henri: The Life of Forms in Art. Reprint New York 1989,
p.34.
26
Veja novamente BENJAMIN, Walter: Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik. In:
Gesammelte Schriften I.1. Frankfurt am Main 1974, p.7-122.
.
20

frente à diferença não atribuível entre comunicação e percepção, as indiferenciabilidades


(comunicação ou percepção? Em que consiste a unidade da diferença?)28, podem ser
apresentadas, perante as quais cada forma singular precisa poder se afirmar como
decisão (e freqüentemente recusar esta decisão).

Em princípio, deveria-se, neste ponto, entrar na discussão sobre as diversas artes e


fazer uma análise mais precisa de obras de arte selecionadas e dos media nos quais elas
são realizadas. Poderia-se também perguntar mais detalhadamente sobre a evolução da
arte dentro da sociedade. Veria-se, nesse caso, uma abundância de formas de
endereçamento à percepção pela comunicação, que mesmo assim não pode ocultar o fato
de que se trata de comunicações que criam as suas próprias maneiras de lidar com a
percepção. A sociedade moderna tem se colocado em estados muito improváveis de
complexidade e se comprometido com uma estabilidade dinâmica, cuja adequabilidade
para com os sistemas de consciência dos envolvidos é uma questão em aberto. Não nos
encontramos somente perante o fim, mas também perante o início da arte. Pois que outro
sistema social cuida tão eficazmente da absorção, da formulação e da estruturação da
inquietação que acomete a consciência das pessoas perante essa sociedade?

27
Para mais detalhes, veja, por exemplo, Boris Groys: Gesamtkunstwerk Stalin: Die gespaltene
Kultur in der Sowjetunion. München 1988.
28
O fato que a reflexão sobre a indeterminabilidade supõe desgaste de tempo é resultado do
cálculo de Spencer Brown, seja na forma de oscilação, seja na forma de memória, veja BROWN,
Spencer, Laws of Form. New York 1977, especialmente p.54 et seq.

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