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Teoria Dos Sistemas o Enderecamento Da Arte PDF
Teoria Dos Sistemas o Enderecamento Da Arte PDF
Há apenas poucas constantes na discussão atual sobre a arte. Uma delas é o velho
topos de que a fala sobre a arte pouco tem a ver com a linguagem da arte. Isso sempre
pode ser constatado quando os artistas conversam sobre arte, pois os diálogos que um
pintor tem com um diretor de teatro, um escultor com um músico e um arquiteto com um
poeta são baseados em um entendimento de que a diferença entre a linguagem das
formas e o discurso sobre formas não pode ser suspensa. Freqüentemente tal diálogo é
simplesmente evitado, visto que cada frase, mesmo aquela que mal excede a descrição
dos contrastes de determinadas cores, a entonação de determinadas palavras, o efeito de
determinados movimentos no palco, é inevitavelmente desmascarada como flor de
retórica. Precisa-se de um marchand, um crítico ou um teórico de arte para se iniciar um
diálogo que pode ser mais ou menos generalizado. Interessante nesse topos não é só o
conhecido conselho de que, frente ao belo se recomenda o silêncio coletivo – sobre o
feio, sim, se poderia conversar; interessante em relação a esse assunto é que nenhum
desses artistas duvidará do fato de que a sua própria arte, bem como a dos seus colegas,
tem a ver com uma linguagem, embora com uma linguagem que justamente não se deixa
conceber em palavras, mas antes, exige a obra de arte em todos os seus aspectos.
Esse é meu ponto de partida. Gostaria de discutir a possibilidade de compreender a
arte como uma linguagem. Não procuro analisar a linguagem das formas da pintura, do
teatro, da música, da arquitetura, da literatura no sentido de tematizar: cor e linha,
expressão e movimento, som e ritmo, espaço e detalhe, entoação e variedade de
expressão. Procuro, sim, descrever a própria arte em todas as suas manifestações como
comunicações diferenciadas. Para o sociólogo, a arte é do mesmo modo comunicação
como a política ou a economia, a religião ou o direito, uma família ou uma organização,
1
BAECKER, Dirk. Die Adresse der Kunst. In: FOHRMANN, MÜLLER (Hrsg.) Systemtheorie der
Literatur. München: Wilhelm Fink Verlag, 1996, p.82-105.
•
Aluna de graduação IL/UFRGS
∗
Professor IL/UFRGS
2
visto que ela se realiza na sociedade e como uma ratificação social específica. Isso vale
então pelo menos, quando esse sociólogo trabalha com a teoria da comunicação e com
isso defende um outro princípio, diferente do teórico da ação ou de um estatístico.
Três concepções me servem como ponto de partida, todas igualmente improváveis
e distintas, podendo até ser designadas como mentiras exatas, no sentido de Ranulph
Glanvilles2. Essas mentiras têm o sentido de não só afirmar alguma coisa sobre o
assunto, o que pode então estar ou não equivocado, mas também, com essas afirmações,
apresentar simultaneamente o observador, que acredita poder afirmar tal coisa. Tem-se
então a opção de se informar mais detalhadamente sobre o assunto ou sobre o
observador; para isso precisa-se, no entanto, colocar-se como observador. A famosa
frase “Todo cretense mente” foi talvez uma das primeiras mentiras neste sentido.
Esse procedimento trata não só do equívoco ou do acerto, mas também da
amplificação, da expansão da incerteza, tanto em vista do chamado objeto como em
vista do chamado sujeito do (re) conhecimento. Nessa incerteza poderão ser inscritas
outras tentativas de ganho de conhecimento. Paradoxalmente a incerteza, a ambivalência
da atribuição é mais proveitosa para outras investigações do que a tentativa de escolha
entre o equívoco e o acerto, que deixa em aberto como isso poderia então continuar.
Contudo, se trata de mentiras, pois consiste na introdução de diferenciações, embora se
saiba que o conhecimento do mundo não se pode processar em forma destas. E isso já
não é possível, pelo simples fato, de que o mundo é a unidade de todas as diferenciações,
portanto ele mesmo não é uma diferenciação (afinal, o que ele poderia diferenciar?).
Mas não é de outra maneira senão com a ajuda das diferenciações, que este
conhecimento pode ser formulado. E é só dessa formulação que tratamos aqui.
Em outras palavras, a sociologia da arte coloca em questão não só a arte, mas
também a sociologia. Com isso se aumentam as possibilidades de se encontrar
continuidades como naturalmente também de se encontrar rejeições. As três concepções
das quais gostaria de tratar aqui se originam do interesse em relação ao endereçamento
da arte:
- a primeira concepção é de que esta se trata, junto à arte, de um sistema
funcional da sociedade, logo de um sistema social que opera no nível da comunicação e
preenche nesse nível uma determinada função na sociedade;
2
Veja GLANVILLE, Ranulph. Distinguierte und exakte Lügen. In: ders., Objekte. Berlin 1988, p.175-
194.
3
E mesmo aquele disposto a aceitar tudo isso será contrário quando souber que a
pessoa, o indivíduo, o agens é afastado do centro da observação e, por causa da
diferença entre sistemas sociais e sistemas psíquicos, não é mais identificável, ou
melhor, o é apenas como ficção, como pressuposição de comunicação e consciência.
Será que estou a ponto de me esquivar do interesse na arte e na teoria da arte, e no
seu lugar propor as exigências de uma teoria sociológica, que se pode facilmente
reconhecer como aquela teoria do sistema, que Talcott Parsons começou e cujo
aperfeiçoamento sobretudo Niklas Luhmann empreendeu mais recentemente?
Quero tentar desenvolver essas três concepções que foram indexadas como “mentiras”, até
o ponto em que se possa reconhecer, se apesar de seu aparentemente “falso” ponto de
partida pode-se chegar ao “certo”, quer dizer, a resultados capazes de proporcionar
continuidade. Começo com a tese da arte como sistema funcional da sociedade.
Diferenciação social
A concepção de um sistema funcional da sociedade é parte de uma teoria social,
que é estruturada como teoria da diferenciação sob dois aspectos. Primeiro, a teoria da
sociedade é a teoria daquele “abrangente” sistema social, que diferencia toda a
comunicação de todas as outras coisas que não são comunicação. A sociedade não é
mais nada do que esta diferenciação, a distinção da comunicação de todo o resto. Talcott
Parsons acoplara este conceito de sociedade ainda a uma compreensão da cultura, que é
sobreposta à sociedade e equipada com um fundo de normas e valores. Em Niklas
Luhmann a cultura torna-se um “estoque de temas”, por meio do qual a sociedade se
auto-observa e se autodescreve. Como “cultura”, então, vale tudo aquilo que é
indiferenciável, mas ao qual se pode recorrer para se chegar a decisões. Essa inserção da
cultura na sociedade possibilita conceber o próprio conceito da sociedade não de forma
normativa e acoplá-lo mais fortemente ao conceito da comunicação. Sociedade acontece
sempre, quando acontece comunicação. A diferenciação que a sociedade realiza perante
o seu ambiente é essa diferenciação entre a comunicação e todas as outras coisas, como
a energia, a matéria, a vida, a natureza e a psique.
Nesse primeiro nível de uma teoria da diferenciação, a forma da sociedade é a
forma de uma diferenciação, que tem um lado interno e um lado externo, a saber,
comunicação do lado interno e todo o resto do lado externo. A sociedade se reproduz
5
como essa forma de diferenciação, portanto sob a suposição da vida sobre a terra, bem
como dos sistemas de consciência não transparentes e da mais acessível corporalidade
humana. Mas ela não liga as suas próprias operações a este ambiente, mas sim
exclusivamente a si própria. Há sempre sociedade, quando há comunicação, e há sempre
comunicação, quando a informação é compartilhada e quando é entendido que cada
informação pode ser comunicada de forma diferente e que cada comunicado pode se
dirigir para outras informações.3 Parecida com os jogos de palavras de Ludwig
Wittgenstein, a comunicação pressupõe esse saber - mais exatamente, essa
inevitabilidade - de contingência. Esta contingência possibilita à comunicação se
desacoplar do seu ambiente e abandonar correspondências exatas e colocar no lugar
dessa ligação ao ambiente, ligações de operações próprias a operações próprias. Com
referência à lingüística de Ferdinand Saussure, pode-se dizer, que uma imposição do
ambiente sobre o sistema da sociedade é “desmotivada”, para poder “remotivar” as
reconstruções do ambiente no sistema.
Esse primeiro conceito de diferenciação da sociedade nada mais é do que um
conceito de constituição da comunicação. A comunicação se realiza e se reproduz sem
que neste processo seja pressuposta ou até pretendida uma adaptação na natureza, um
respeito pela vida, uma intenção de pessoas. Tudo isto, adaptação, respeito, intenção,
são, quando muito, produtos da própria sociedade, resultados da operação da sociedade e
correspondentemente improváveis. A comunicação, e com isso, a sociedade, realiza-se e
reproduz-se sempre quando informações forem comunicadas e compreendidas, cujo
comunicado e entendimento é atribuído a duas black boxes - duas complexidades opacas
para si mesmas - para as quais a comunicação nos colocou à disposição designações
como pessoa, indivíduo e homem.
O segundo conceito de diferenciação da sociedade traz algumas das conseqüências
da primeira, e isto sob a hipótese de que a sociedade também precisa achar meios de
trabalhar a sua própria diferença frente ao ambiente, de tal modo que ela pode ser
mantida e seus problemas subseqüentes poderão ser trabalhados. Nesse segundo
conceito não se trata mais da constituição da comunicação, mas sim da sua
complexidade, não mais da diferenciação externa da sociedade, e sim da diferenciação
interna. Com referência às teorias sociais de Aristóteles até Auguste Comte, Karl Marx e
3
Para esse conceito de comunicação, veja LUHMANN, Niklas: Soziale Systeme: Grundriss einer
allgemeinen Theorie. Frankfurt am Main 1984.
6
Herbert Spencer, tanto Parson como Luhmann imaginam que a sociedade é diferenciada
internamente em sistemas parciais, que permitem reiterar a diferença entre sociedade e
ambiente internamente em certos aspectos selecionados (onde a diferença reiterada,
reintroduzida, não é mais a própria diferença) e torna essa diferença administrável dentro
da sociedade.
A diferenciação da sociedade em várias tribos, por conseguinte uma diferenciação
em partes iguais ou pelo menos semelhantes, é a primeira forma desta diferenciação –
diferenciação segmentada. Com a complexidade crescente da sociedade, essa forma
torna-se insuficiente e a sociedade se transforma em uma sociedade de camadas sociais,
que se diferencia em partes desiguais, em partes inferiores e superiores; assim
diferencia-se o camponês do clero, o clero do nobre. Com isso, encontra-se dificuldade
somente no instante em que o burguês começa a romper o princípio da hierarquia e no
seu lugar colocar redes como a política, ou a economia, ou a educação, que não se
orientam mais em pessoas, mas sim em temas. A sociedade implanta o princípio da
assim chamada diferenciação funcional, isto é, uma diferenciação em sistemas parciais
da sociedade, onde cada um realiza uma determinada função para esta última.
A política assume a função de tomar decisões obrigatórias para a coletividade, sob
a condição de ameaça de força. A economia se preocupa em assegurar no presente a
possibilidade de futuras satisfações de necessidades. A religião disponibiliza uma idéia
de transcendência, por meio da qual se pode pensar - mais exatamente acreditar – em
algo que excede a imanência da sociedade. O direito cuida normativamente da função da
implantação, isso implica também na manutenção de expectativa, em caso de decepção.
A ciência põe à disposição formas de comunicação, com as quais podem ser realizados
ganhos de conhecimento, mesmo quando todos os pontos de partida são hipotéticos e
quando todo resultado aumenta e não diminui a incerteza. A educação é o empenho pela
socialização do contingente de pessoas da sociedade, que não ocorre apenas de forma
secundária, mas sim de forma intencional e reconhecível como tal. Por isso a família
empenha-se em disponibilizar pelo menos um sistema social, no qual as pessoas da
sociedade existem não apenas sob aspectos parciais e de maneira fragmentada – nas
palavras de Georg Simmel – mas também sob a premissa da integridade e onde possam
ser levadas a sério. Todos esses sistemas funcionais dessa lista incompleta operam
autonomamente, auto-referencialmente e operacionalmente fechados, da mesma maneira
que a sociedade. Eles desmotivam o acesso da sociedade a esses sistemas parciais, para
7
que estes possam se remotivar, sob o ponto de vista das suas funções, nas suas próprias
operações, ou seja, na forma específica da sua comunicação.
Todos estes sistemas funcionais tendem a sobreestimar sua função. A política
acredita poder solucionar todos os problemas da sociedade dentro de um cálculo de
poder; a economia valoriza sobre tudo o interesse no dinheiro; o direito propaga normas
para regulamentação de todas as diferenças; a ciência não aceita nenhum
desconhecimento que não possa ser transformado em conhecimento; a religião procura
ainda, nos momentos mais improváveis, uma possibilidade de achar bom aquilo que se
faz; a educação aposta em formação, até em mudanças da consciência; e a família se
valoriza como um grupo unido que realiza controle social por meio de um trato
permissivo com restrições.
De fato, a característica da sociedade moderna é que, por um lado, ela concede a
todos esses sistemas sua própria sobreestima e, por outro lado, coloca como contrapeso o
fato de que ela se diferencia em uma multiplicidade de sistemas funcionais, que
precisam se presumir mutuamente para poderem se especializar nas suas próprias
operações. Isso tem conseqüências drásticas, na medida em que a política só pode se
preocupar com a sua função e não com as funções da economia, do direito ou da
educação. O mesmo vale para a economia, que não pode se colocar no lugar da política,
nem tampouco no lugar da religião. Uma vez que a sociedade tomou essa posição
arriscada da diferenciação funcional, ela pode apenas substituir cada um dos seus
sistemas pelo seu próprio sistema, portanto a política apenas pode ser substituída pela
política, a economia apenas pela economia, a ciência apenas pela ciência, e assim por
diante. A sociedade que não aceita isto e que coloca como absolutos quaisquer de seus
sistemas parciais não é punida pela vida, mas sim pela própria sociedade.
Essa é, portanto, a sociedade, com a qual a arte também lida. Enquanto a arte
aposta na comunicação, ela mesma é uma parte desta sociedade4, e precisamente uma
parte que é diferenciada como sistema funcional e como tal tende a se sobreestimar,
4
Veja os seguintes artigos de LUHMANN, Niklas: Ist Kunst codierbar? In: Siegfried J. Schmidt
(Hrsg.), “schön”: Zur Diskussion eines umstrittenen Begriffs. München 1976, p.60-95; Das
Kunstwerk und die Selbstreproduktion der Kunst. In: Hans Ulrich Gumbrecht und K. Ludwig
Pfeiffer (Hrsg.), Stil: Geschichten und Funktionen eines kulturwissenschaftlichen
Diskurselements. Frankfurt am Main 1986, p.620-672; Das Medium der Kunst. In: Delfin VII,
1986, p.6-15; Weltkunst. In: ders., Frederick D. Bunsen und Dirk Baecker: Unbeobachtbare Welt:
Über Kunst und Architektur. Bielefeld 1990, p.7-45; Wahrnehmung und Kommunikation an Hand
von Kunstwerken. In: Harm Lux, Philip Ursprung (Hrsg.), Stillstand switches: Gedankenaustausch
zur Gegenwartkunst. Zürich 1992, p.65-74. Veja detalhadamente: LUHMANN, Niklas, Die Kunst
der Gesellschaft. Frankfurt am Main 1995.Livro publicado posteriormente a este artigo.
8
tendência que apenas pode ser contrabalançada pelo fato de que, paralelamente, se
comunica de outra forma em outros lugares. Antes que se comece a protestar agora
contra esta aparente tentativa de apropriação da arte pela sociedade, deve-se olhar o que
implica uma tal tese da arte como sistema funcional.
Antes de tudo, essa tese implica que a arte dentro da sociedade opera
autonomamente como qualquer outro sistema funcional e com isso como o seu próprio
soberano: ela opera conforme as suas próprias leis e as obtém da transgressão, do
distanciamento e da reformulação, da desmotivação e da remotivação das leis, cujo
cumprimento ou descumprimento ela pode observar no seu ambiente social e natural5.
Além do mais, o sistema da arte opera auto-referencialmente, isto é, ele obtém todos os
critérios de suas operações somente de si próprio. Opera não trivialmente, ou seja, para
todas as operações que o sistema realiza, estão sempre em jogo os estados dependentes
da sua própria história, de tal modo que o sistema não reagirá identicamente a dois
acontecimentos. E ele é igualmente intransparente e imprevisível para a observação
externa e para a auto-observação, visto que só o sistema como um todo e nenhum de
seus acontecimentos singulares (um quadro, um romance, uma sonata) e nenhum
observador privilegiado (artistas, galerias, museus, críticos, teóricos) é suficiente para
descrever os estados nos quais o sistema se encontra atualmente.
Tudo isso, porém, acontece dentro da sociedade e não fora. A arte não possui o
privilégio de poder observar a sociedade do lado de fora. Ela apenas pode observá-la a
partir do lado de dentro como se a observasse de fora – assim como cada sistema parcial
da sociedade compreende seu ambiente social a partir da sua própria perspectiva. E isso
significa que a arte é forçada a se realizar como sociedade, ainda que em aspectos
específicos, apenas válidos para a arte. A arte, então a tese, não pode não ser sociedade.
Mas ela é sociedade de um modo bem particular – assim como a religião, a ciência, a
economia, também são respectivamente sociedade, ainda que cada uma de um modo
particular.
5
Uma tentativa de integrar Autonomia e Soberania encontra-se em: MENKE, Christoph: Die
Souveränität der Kunst: Ästhetische Erfahrungen nach Adorno und Derrida. Frankfurt am Main
1991.
9
arte desempenha na sociedade. Seria insuficiente compreender essa função como uma
tarefa delegada à arte pela sociedade e à qual a arte pode se dedicar ou se recusar. Que a
arte “tem” uma função não significa que as suas operações sejam determinadas, mas sim
que ela, em relação a toda a sociedade, é tratada por esta sociedade bem como por ela
mesma como uma variável que pode aceitar, conforme os valores existentes da
sociedade, um número infinito de valores6. Já que a arte, pelo seu lado, é parte da
sociedade, ela é, entre outras, uma função de si mesma, ou seja, ela própria realiza-se
sob os valores que determinam quais valores ela assume. Isso já assegura à sua
determinabilidade uma suficiente indeterminabilidade. Quando ainda se acrescenta a
idéia de que, na própria sociedade, há sempre incertezas e novas discussões referentes à
questão de quais valores a sociedade assume, e que a incerteza desta questão dentro da
observação da sociedade tanto pode ser aumentada como diminuída pela arte, o conceito
de função transforma-se de um conceito de determinação em um conceito de
reacoplação, em perspectivas do problema, mas não em diretrizes para solucionar a
própria localização social da arte.
A função é o ponto de referência que regula, dentro da arte e para a arte, sua
relação com a totalidade da sociedade e dessa relação ganha uma estrutura e uma
semântica da comunicação, com a qual a arte “ataca” a sociedade. Essa referência não é
a unidade da sociedade nas respectivas formas do seu auto-entendimento, mas sim a
diferença da sociedade para com seu ambiente, isto é, o problema da constituição da
comunicação, assim como a diferenciação interna da comunicação, que acolhe os
problemas resultantes dessa constituição. Não por último, a arte pode, em relação a essa
função, tornar-se um problema para si mesma, pois a arte refere-se a uma sociedade em
que a própria arte acontece novamente como um sistema social, cuja função não pode
ser preenchida de um modo inequívoco, mas sempre de modos alternativos. Essa é a
razão pela qual a crítica de arte, no sentido da concepção romântica descrita por Walter
Benjamin, pertence ao sistema arte7. Mas essa é também a razão para o fato de que na
arte nada é mais discutido do que a própria arte. A função da arte não é predeterminar
para si própria uma perspectiva de calmaria, mas sim um aspecto de problematização. A
6
Veja sobre esse conceito de função KORZYBSKI, Alfred: Science and Sanity: An Introduction to
Non-Aristotelian Systems and General Semantics. Lakeville, Conn, 1958, p.133 et seq.
7
Veja BENJAMIN, Walter: Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik. In: Gesammelte
Schriften I.1. Frankfurt am Main 1974, p.7-122.
10
função opõe-se a toda ideologização, toda incorporação pela sociedade ou por um dos
seus sistemas parciais, que acreditam poder segurar como unidade àquilo que somente
existe como diferença. E embora cada obra de arte singular procure ser tão bem sucedida
que ela mesma preencha a função, precisa-se de outras obras de arte para poder ver até
que ponto ela de fato é bem sucedida ou não. Não é a operação singular do sistema arte
que preenche a função, mas sim a observação dessa operação em rede com outras
observações.
8
Compare ainda neste sentido, as reflexões sugestivas de LOTMAN, Jurij M: Die Struktur des
künstlerischen Textes. Frankfurt am Main 1973.
11
as comunicações que seguem. Cada uma dessas comunicações é uma observação que
realiza uma determinada diferença, por exemplo, informar-se sobre isso e não sobre
aquilo, ter feito um comunicado disso e não daquilo e ser entendido assim e não de outra
forma e como tal observação não pode ser atribuída a nada no ambiente da comunicação.
Não é o objeto que informa sobre si mesmo, nem é uma pessoa que, independentemente
do fato de que a comunicação lhe concede isso, poderia realizar um comunicado;
também não se pode compreender tudo isso de outra maneira a não ser pelo recorrer a
comunicações realizadas anteriormente e pela antecipação de comunicações que possam
acontecer posteriormente. A comunicação é uma observação de caráter acontecível,
que, como síntese de informação, comunicado e compreensão, pode ser atribuída
diferentemente, isto é, de maneira auto-referencial ou como referência externa e daí
decorre sua contingência, sua mobilidade e sua grande inquietação endógena,
trabalhável e explorável somente por ela mesma.
Cada comunicação pode ser compreendida como uma observação que realiza uma
diferença, que pode ser observada em relação aos seus dois lados no sentido do cálculo
9
Compare sobretudo DERRIDA, Jacques: Grammatologie. Frankfurt am Main 1974.
10
Compare LUHMANN, Niklas: Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. Frankfurt
am Main 1984. Cap. 2.
12
11
Veja BROWN, G. Spencer: Laws of Form. New York 1977.
13
Pode-se supor que a arte cuida de uma forma particular da reinclusão do excluído e
a reproduz em todas as suas operações. Quando se acrescentam a essa suposição
evidências do dia a dia, das quais a teoria dos sistemas sociais não apenas depende, mas
até procura, desmotivando-as e remotivando-as, e quando se reflete sobre o fato de que
se trata, nas artes, de formas da Aisthesis, ou seja, de formas de acesso à percepção,
então fica clara a seguinte tese: a função da arte consiste em desenvolver e experimentar
formas de comunicação, nas quais a exclusão das operações da consciência – presente
em todas as comunicações - pode ser comunicada como tal. Na arte, a comunicação
“dirige-se” à percepção12.
Essa tese recorre a terceira concepção que designei, isto é, a concepção - já contida
na primeira concepção da diferenciação da sociedade - de uma diferença ecológica, não
conciliadora, mas sim uma diferença intransponível entre comunicação e consciência13.
Essa concepção torna-se controversa, pelo fato de que tanto os sistemas sociais, como os
sistemas psíquicos funcionam operacionalmente fechados (ou seja, os primeiros podem
somente comunicar e os últimos somente pensar); sob tal condição, precisa-se também
supor que os sistemas sociais não têm capacidade de perceber. Percepção é uma
operação dos sistemas de consciência. A comunicação não pode perceber, ela pode
somente acoplar comunicação com comunicação e, ao mesmo tempo, limitado e
12
Deve-se discutir esta tese no contexto da Flilosofia do Sublime de Kant, a que Jean-François
Lyotard recorre para relacionar as nuanças, os timbres, a diferença de cores e tons aos quais a
arte moderna se refere, à diferença entre matéria e espírito (mind, portanto tanto percepção
como pensamento). Conforme Lyotard, na arte o sublime acontece no momento em que o
espírito compreende a matéria como algo que não se deixa capturar e que não quer capturá-lo.
No lugar em que Lyotard reflete sobre a diferença entre matéria e espírito, a tese desenvolvida
no texto reflete a respeito da diferença entre comunicação e percepção. Isso permite
compreender que a arte não apenas é experiência, como também é experiência comunicada, e
na qualidade dessa experiência comunicada permite tratar aquela re-inclusão da matéria
excluída, da qual fala Lyotard: After the Sublime: The State of Aesthetics. In: David Carrol
(Hrsg.), The States of “Theory”: History, Art, and Critical Discourse. New York 1990, p.297 – 304.
13
Para mais detalhes, veja LUHMANN, Niklas: Die operative Geschlossenheit psychischer und
sozialer Systeme. In: Hans Rudi Fischer, Arnold Retzer, Jochen Schweitzer (Hrsg.), Das Ende
der großen Entwürfe. Frankfurt am Main 1992, p.117-131; BAECKER, Dirk: Die Unterscheidung
zwischen Kommunikation und Bewußtsein. In: Wolfgang Krohn und Günter Küppers (Hrsg.),
Emergenz: Die Entstehung von Ordnung, Organisation und Bedeutung, Frankfurt am Main 1992,
p.217-268; FUCHS, Peter: Die Erreichbarkeit der Gesellschaft: Zur Konstitution und Imagination
gesellschaftlicher Einheit. Frankfurt am Main 1992.
14
14
Veja LUHMANN, Niklas: Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. Frankfurt am
Main 1984, p.337 et seq
15
Quando se fala no texto de ”reintrodução” e “reinclusão”, o prefixo “re” pode induzir ao erro, pois
pressupõe que a percepção na comunicação era contida de algum modo, mas que ela foi
excluída e agora é reintroduzida. Aqui é efetuado um equívoco entre a operação de exclusão do
teórico que trabalha na sua teoria da comunicação e a operação de exclusão da comunicação,
que trabalha na sua própria emergência. O “re” é então o consolo que o teórico tem a oferecer,
que precisa determinar como e onde reaparece aquilo que, há muito tempo, é integrado – na
posição não teórica. Se o texto, apesar disso, permanece com o “re”, então isso pode ser lido
como indicação da situação precária de cada diferença e da possibilidade de emergência
experimentada em cada operação de um sistema operacionalmente fechado (portanto, não
material, não energético, nem causal).
15
16
Veja, além disso, STANITZEK, Georg: Kommunikation (Apostrophe & Communicatio
einbegriffen). In: Jürgen Fohrmann und Harro Muller (Hrsg.), Literaturwissenschaft. München
1995, p13-30.
16
17
A respeito deste problema, veja, nesta publicação, In: FOHRMANN, MÜLLER (Hrsg.)
Systemtheorie der Literatur. München: Wilhelm Fink Verlag, 1996, o artigo de STANITZEK,
Georg: Was ist Kommunikation?
18
Veja LUHMANN, Niklas: Wie ist Bewußtsein an Kommunikation beteiligt? In: Hans Ulrich
Gumbrecht und K. Ludwig Pfeifer (Hrsg.), Materialität der Kommunikation. Frankfurt am Main
1988, p.884-905.
19
Veja HUSSERL, Edmundl: Logische Untersuchungen: Untersuchungen zur Phänomenologie und
Theorie der Erkenntnis. Bd 2. In: Husserliana Bd XIX/1, The Hague 1984, § 8.
17
20
N.Tr.: Programa popular na televisão alemã.
21
Para mais detalhe, veja também FUCHS, Peter: Vom Zeitzauber der Musik – Eine
Diskussionsanregung. In: Dirk Baecker u.a. (Hrsg.), Theorie als Passion: Niklas Luhmann zum
60. Geburstag. Frankfurt am Main 1987, p.214-237; e BAECKER, Dirk: Wieviel Zeit verträgt das
Sein? Eine Anmerkung zum Free Jazz. In: Bernhard Dotzler, Hermar Schramm (Hrsg.),
Cachaça: Fragmente zur Geschichte von Poesie und Imagination. Berlin 1996. p.144-148.
18
22
Para mais detalhes, veja BAECKER, Dirk, The Reality of Montion Pictures. In: Modern Language
Notes 1996.
23
Para mais detalhes, veja FOERSTER, Heinz von : Gegenstände: greifbare Symbole für (Eigen-)
Verhalten. In: ders.: Wissen und Gewissen: Versuch einer Brücke. Frankfurt am Main 1993,
p.103-115.
24
Nesse contexto poderia se discutir as reflexões de Benjamin referente à aura. Para mais
detalhes, veja BAECKER, Dirk, The Unique Appearance of Distance. Publicado em: Hans Ulrich
Gumbrecht, Michael Marrinan (Hrsg.), Mapping Benjamin: The Work of Art in the Digital Age.
Standford.
19
Cada vez mais a arte torna-se visível não apenas como forma, mas também como
medium de si mesma, reflete-se na arte em direção à diferença entre a arte e todo o resto
e essa reflexão não é mais utilizada apenas para a crítica da arte26, mas também para a
produção das próprias obras de arte. A obra de arte tende para Gesamtkunstwerk, a obra
de arte total, que clama reintroduzir todas as diferenças na sociedade e com ela na
própria obra de arte – suas diferenças constitutivas - e tenta, em última instancia, reduzir
a própria sociedade a uma obra de arte27; ou ela retira-se e afirma-se não mais como
reinclusão da percepção excluída, mas sim como apresentação das operações da
reintrodução, nas quais a qualidade própria da comunicação, bem como tudo que é
possível de ser refletido por ela como percepção, pode tornar-se visível e invisível. Nos
dois casos a obra de arte torna-se medium que não se apresenta mais como ficção da
imobilização da comunicação, mas sim como a própria comunicação e para tal consome
o tempo que pode ser utilizado para os três momentos da diferença entre comunicação e
percepção: para a exclusão da percepção, para a sua reinclusão e para a observação da
diferença entre comunicação e percepção. A arte torna-se medium de si mesma, no qual,
25
Para mais detalhes, veja FOCILLON, Henri: The Life of Forms in Art. Reprint New York 1989,
p.34.
26
Veja novamente BENJAMIN, Walter: Der Begriff der Kunstkritik in der deutschen Romantik. In:
Gesammelte Schriften I.1. Frankfurt am Main 1974, p.7-122.
.
20
27
Para mais detalhes, veja, por exemplo, Boris Groys: Gesamtkunstwerk Stalin: Die gespaltene
Kultur in der Sowjetunion. München 1988.
28
O fato que a reflexão sobre a indeterminabilidade supõe desgaste de tempo é resultado do
cálculo de Spencer Brown, seja na forma de oscilação, seja na forma de memória, veja BROWN,
Spencer, Laws of Form. New York 1977, especialmente p.54 et seq.