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A ENIGMÁTICA QUESTÃO DA LONGITUDE NA NAVEGAÇÃO E


CARTOGRAFIA DA AMÉRICA PORTUGUESA
QUINHENTISTA

(The enigmatic question on the longitude in the navigation and


cartography of sixteenth century’s Portuguese America)

Renato Pereira Brandão*

Referência:
BRANDÃO, Renato P. A enigmática questão da longitude na navegação e cartografia
da América portuguesa quinhentista. Revista Pro-Ciência: Centro Universitário Moacyr
Sreder Bastos. Rio de Janeiro: Publicit, v.7, n. 9, p. 54-73, jan/jun 2012. ISNN 1413-
8344. Versão digital.

Resumo:

Este artigo analisa os diversos aspectos enigmáticos referentes à questão da longitude do meridiano divisório
estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas. Assinala que, apesar da conjuntura factual e documental nos apontar
para a consideração de que, quando das negociações do Tratado de Tordesilhas, D. João II já saberia da
existência de um novo continente a meio caminho da Índia, segundo o atual conhecimento que temos sobre a
cartografia quinhentista não seria possível que este monarca tivesse ainda o conhecimento de longitudes do
nosso litoral. Tal hipótese abre uma série de questionamentos para os quais não temos ainda respostas, o que nos
leva reconhecer a expansão ultramarina portuguesa como um espaço histórico que tem ainda muito a revelar.

Palavras-chaves:
Cartografia, Navegação, Longitude.

Abstract

This paper examines the various enigmatic aspects related to the longitude question of the dividing Meridian
established by the Treaty of Tordesillas. It remarks that, in spite of the facts and documents indicating the
hypothesis that D. João II already knew about the existence of a new continent half way to India when he
negotiated the Treaty of Tordesillas, the current knowledge we have about the sixteenth century cartography
suggest it would be impossible for the monarch to have any knowledge about the longitudes of Brazilian coast.
This hypothesis rises a series of questions that are still unanswered, leading us to recognize the Portuguese
overseas expansion as a historical space that still has much to reveal.

Keywords:
Cartography, Navigation, Longitude.

_________________
* Doutor em História – UFF. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá
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Introdução:

A expansão ultramarina portuguesa traz uma série de questões ainda pouco


compreendida, ou mesmo em aberto. Até o presente, não temos dados e explicações
suficientes que permitem o bom entendimento do processo que possibilitou este pequeno e
frágil reino ibérico formar um vasto império ultramarino, o único no período moderno a se
estender das Ilhas Atlânticas ao Extremo Oriente. Para a construção e manutenção deste vasto
império como também para a necessária defesa do Reino, frequentemente ameaçado em sua
independência pela Espanha, Portugal contou sempre com um reduzido contingente
populacional, não superior a 1,5 milhões de pessoas na época dos descobrimentos. Levando-
se em conta esta realidade demográfica, a nossa historiografia encontra-se ainda frente ao
desafio de melhor compreender o processo de expansão territorial da América Portuguesa,
que culminou na constituição do Brasil como o mais extenso espaço territorial contínuo unido
por uma única língua.
Dentre os diversos aspectos enigmáticos expressos neste conjunto temático,
abordamos aqui o referente à questão da longitude do meridiano divisório estabelecido pelo
Tratado de Tordesilhas, tendo por referências a navegação dos descobrimentos e a
representação do referido meridiano em uma obra cartográfica quinhentista.

Caravela e Astrolábio na Expansão Ultramarina Portuguesa.

Apesar de ter recebido a alcunha de “O Lavrador”, foi no reinado de D. Dinis, de


1279 a 1325, que foram dados os passos iniciais da transformação da economia de Portugal de
eminentemente agrária à marítima mercantil. Não só por ter mandado formar os “pinhais de
Leria”, que viria abastecer de madeiras a construção náutica portuguesa dos descobrimentos,
como também por ter chamado para se estabelecer no Reino experientes navegadores
genoveses, encabeçados por Manuel Pessagno, “a quem concedeu o cargo perpétuo e
hereditário de almirante” (Marques, 1975:176). D. Dinis é também conhecido por ter acolhido
os templários de Portugal sob o abrigo da Ordem de Cristo, criada, por sua interveniência
junto ao Papa, em 1317.
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No reinado de seu filho e sucessor, Afonso IV, “em ano anterior a 1336, mas
próximo dele, começam as expedições portuguesas às Canárias” (Cortesão, 1931:349).
Contudo, a consolidação da expansão ultramarina como política de Estado se deu somente
com a ascensão da dinastia de Avis, quando o trono de Portugal passou a ser ocupado pelo
filho bastardo do rei Pedro I e mestre da Ordem de Avis, D. João, em decorrência da crise
sucessória deflagrada com a morte de seu meio-irmão, o rei D. Fernando.
Coroado como D. João I em 1385, dois anos depois casou com Felipa de Lancaster,
neta do rei Eduardo III da Inglaterra e irmã do futuro rei Henrique IV. Em 1394 a rainha
Felipa deu a luz a seu terceiro filho, a quem deu também o nome de Henrique. Foi este Infante
o grande mentor e iniciador deste processo expansionista marítimo. Em 1415, o Infante D.
Henrique participou da conquista de Ceuta, na norte da África. Para a maior parte dos
historiadores, esta conquista representa o efetivo marco inicial da expansão ultramarina.
Consideramos, contudo, que a conquista de Ceuta insere-se mais, ainda que tardiamente, no
espírito da Reconquista do que da expansão ultramarina. A nosso ver, este marco situa-se
pouco tempo depois, em 1420, quando, em decorrência da morte do mestre da Ordem de
Cristo D. Lopo Dias de Sousa, o Infante D. Henrique é posto à frente desta ordem militar
pelo Papa Martinho V.
Personalizando a associação da Ordem de Cristo com a Casa de Avis, o Infante D.
Henrique põe definitivamente em curso o processo de expansão ultramarina portuguesa,
voltado para o descobrimento das Ilhas Atlânticas e exploração da costa africana. “É em 1421,
segundo Azurara, que começam as tentativas anuais de descobrimento ao longo da costa da
África, seguidas em 1424 do primeiro ensaio de conquista das Canárias” (Cortesão, idem:
361). A primeira ilha a ser descoberta no Arquipélago da Madeira foi Porto Santo, pouco
após de 1420. Na costa africana, o Cabo Não é ultrapassado por Gonçalo Velho em 1426. Em
1431 começa o reconhecimento do Arquipélago dos Açores
No falecimento do Infante D. Henrique, em 1460, as principais Ilhas Atlânticas já
estavam descobertas e a costa africana explorada até Cabo Verde, atingido em 1444 por Dinis
Dias. O Golfo da Guiné, contudo, só veio a ser atingido pelas caravelas portuguesas em 1475,
quinze anos após o falecimento do Infante D. Henrique.
Neste empreendimento marítimo foi imprescindível o desenvolvimento da afamada
caravela. Embarcação pequena, mas de grande navegabilidade, desenvolvida e apropriada
para a exploração náutica, mas não para o transporte de volumosas cargas. Para este fim era
necessário utilizar grandes e pesadas embarcações, genericamente denominadas naus, cuja
navegabilidade era altamente dependente não só dos regimes de ventos, mas também, e
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principalmente, das correntes marinhas. Assim, as caravelas tinham a função maior de


descobrir os “caminhos marítimos” por onde poderiam trafegar as naus.

Caravela Nau

No caso das travessias para as Ilhas Atlânticas, onde o afastamento da costa


impossibilitava a navegação por referenciais litorâneos, foi necessário desenvolver,
paralelamente às caravelas, a navegação astronômica, com a utilização do astrolábio náutico.
Versão simplificada da introduzida pelos árabes e utilizada pelos astrólogos/astrônomos em
terra firme, permitia aos navegadores obter a latitude local da embarcação pela altura de
determinadas estrelas ou da culminação do Sol (Cf. Albuquerque, 1983:51).
A grande adversidade na navegação astronômica dos descobrimentos estava,
contudo, na determinação da longitude. A rigor, esta não estava ao alcance dos navegantes até
a invenção do cronômetro de marinha em 1762, pelo o inglês John Harrison. Até então, os
pilotos só conseguiam calcular a longitude de forma estimada e muito pouco precisa pela
relação velocidade/tempo/rumo, ou seja, por correlação das distâncias percorridas em direções
determinadas. Como eram precários os instrumentos de terminação da velocidade da
embarcação e de tempo, e ser ainda pouco conhecidas as variações magnéticas locais, o
cálculo da longitude por estimativa resultava, na maior parte das vezes, em erros grosseiros.
Em terra firme, não era de todo impossível a determinação da longitude por
observação astronômica no século XVI, porém o método utilizado era dificultoso, pouco
preciso e restrito ao poucos astrólogos, únicos com conhecimentos astronômicos. Tendo por
base o fato de a Terra levar 24 horas para fazer um giro de 360°, correspondendo assim cada
diferença de hora a 15° de longitude, este cálculo era feito por determinação das diferenças
horárias de observações conjuntas de determinada conjunção astronômica, principalmente
eclipse da Lua. Apesar de aparentemente simples, a aplicação prática deste método esbarrava
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em grandes dificuldades decorrentes da inexistência de instrumental para a observação


astronômica e demarcação de tempo, além da necessidade em saber prever a ocorrência do
fenômeno astronômico a ser conjuntamente observado (Cf. Albuquerque, 1987:26).

A Navegação e Comércio Atlântico e o Tratado de Tordesilhas.

No início do século XV acreditava-se que a expansão portuguesa pela costa


ocidental africana teria como limite meridional o Golfo da Guiné, já que seu objetivo
mercantil maior estaria na concorrência com a rota das caravanas berberes. Partindo do
Sudão, atravessavam estas o Saara até a cidade de Tombucto, ou Timbucto, no atual Mali,
principal centro mercantil abastecedor dos entrepostos de especiarias do Norte da África,
dentre eles o de Tanger, de onde os Reinos Ibéricos eram abastecidos de ouro, escravos e
diversos produtos como cera, goma-arábica, incenso, tâmaras, penas de avestruzes, etc...
Tombucto estava ligada também ao litoral atlântico, principalmente aos portos situados na
atual Mauritânia e Senegal.
Logo após a descoberta da ilha de Arguim, na costa da Mauritânia, por Nuno Tristão
em 1443, o Infante D. Henrique mandou aí fazer uma fortaleza, a fim de instalar um
entreposto de onde os produtos trazidos de Tombucto pudessem ser diretamente enviados para
o porto de Lisboa. A fortaleza de Arguim foi concluída pelo rei Afonso V em 1461.
Até então, era crença que o Golfo da Guiné seria a fronteira natural para a expansão
da rede mercantil atlântica de Portugal, já que a partir deste a corrente marítima predominante
é a de Benguela que, a partir do Cabo da Boa Esperança, corre com forte empuxo na direção
norte, impedindo que as pesadas naus navegassem em direção ao sul da África.
Assim acreditando, em 1479 os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão
estabeleceram com Afonso V o Tratado de Alcáçovas-Toledo, onde ficou acordado que
Portugal renunciava a posse das Ilhas Canárias em troca do direito de posse exclusivo das
terras a serem descobertas ao sul deste arquipélago. Em 1481, o papa Sisto IV, pela bula
Aeternis Regis, confirma os termos deste tratado.
Com a morte de Afonso V, em 1481, seu filho e sucessor D. João II, sendo coerente
com o que seria o projeto de expansão marítimo mercantil na África, cria a feitoria de
Huadem, situada no deserto próximo a Tombucto, a fim de facilitar o abastecimento da
fortaleza de Arguim, fortalecendo assim a rota marítima concorrente com a das caravanas do
Norte da África (Cf. Matos, 1963:43). Avançando até o Golfo da Guiné, D. João II fez
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também instalar, em 1482, na atual Costa do Marfim, a fortaleza de São Jorge, conhecida
como São Jorge da Mina, de onde era enviado para Portugal principalmente ouro.
Até o presente momento, o processo de expansão ultramarina portuguesa se
desdobrava de forma lógica e coerente não só em relação às condicionantes conhecidas para a
navegação atlântica como também com a potencialidade demográfica de Portugal. Contudo,
ainda no ano de 1482, Diogo Cão ultrapassou o Golfo da Guiné e, enfrentando com caravela a
força contrária da Corrente de Benguela, conseguindo atingir a região do Congo.
Neste momento, se volta contra D. João II a alta nobreza, que se contrapunha a
continuidade da expansão ultramarina, principalmente por agravar a escassez do braço servil
lavrador. Mesmo a condenação à morte, em 1483, do Duque de Bragança, o nobre mais
poderoso do Reino, não deu fim à sedição da alta nobreza, o que levou D. João II, no ano
seguinte, a pessoalmente matar seu primo e cunhado D. Diogo, Duque de Viseu, irmão do
futuro rei D. Manuel.
Contida a conspiração, D. João II dá continuidade à exploração do litoral ocidental
africano, concluída em 1488, quando Bartolomeu Dias atinge seu ponto extremo meridional, o
Cabo das Tormentas, depois denominado da Boa Esperança.
Pouco após, em 1492, patrocinado pelos reis de Castela e Aragão, ainda não
unificados como Espanha, Colombo descobre a América. É preciso observar que é lendária a
interpretação de que ele, indo contra a concepção da época, procurava demonstrar a
esfericidade da Terra. Na verdade, a obra Almagesto, de autoria do célebre geógrafo
helenístico Claudius Ptolomeu, tinha já chegado ao Ocidente, traduzida do árabe para o latim.
Assim, no final do século XV os sábios e cartógrafos tinham não só conhecimento da
esfericidade da Terra como uma noção muito aproximada de sua dimensão real.
O enigmático nesta viagem descobridora, considerada a primeira travessia
transoceânica, é a maneira correta e segura com que Colombo navegou. Na ida, após deixar as
Canárias, tomou a direção oeste, se internando a uma região do Atlântico, que seria ainda para
ele desconhecida. Fazendo a navegação por latitude, procurou permanecer entre os paralelos
25º e 28º N, o que possibilitou ser impulsionado pela Corrente Norte Equatorial e pelos os
alísios de nordeste até à América. Porém, esta mesma rota não poderia ser tomada na viagem
de regresso, já que teria ventos e correntes contrárias. Surpreendentemente, Colombo soube
navegar em direção norte, até a altura aproximada do paralelo 40º N, onde a Corrente do
Golfo e ventos de sudoeste o impulsionou até a Ilha de Santa Maria, nos Açores, escala
imprescindível para todas as posteriores embarcações a vela que retornavam da América
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Central, já que era impossível atingir diretamente a Europa, sem ali serem reabastecidas. (Cf.
Chaunu, 1980:63).
Assim, tendo todo o ainda desconhecido Atlântico meridional a sua frente, Colombo
teria descoberto não só a América, mas também a rota única e exata que ligava a Europa a esta
porção do Novo Mundo.
Ao retornar, Colombo se dirigiu inicialmente, não a Espanha, mas a Portugal onde
informa a D. João II sua chegada “ao Oriente”. O rei de Portugal, contudo, teria então
discordado de Colombo, por considerar que teria ele chegado não ao Oriente, mais sim a um
arquipélago de ilhas atlânticas ainda desconhecidas. Assim, por estar este arquipélago situado
ao norte das Canárias, por força do Tratado de Alcáçovas-Toledo a descoberta de Colombo
favorecia não a Espanha, mas sim a Portugal..
Considerando que a região das Bahamas estava realmente sob a jurisdição e poder
da Coroa de Portugal, conforme estabelecido no tratado então vigente, a historiografia não
registra como D. João II poderia ter chegado a este preciso acerto baseado unicamente nas
informações fornecidas por Colombo, já que esta reivindicação só poderia ter fundamento se
tivesse sido informado não só da latitude correta das ilhas descobertas, de modo a saber que
estariam ao sul do paralelo das Canárias, como a extensão em longitude da navegação de
Colombo, de modo a saber que este não teria chegado a Cipango, conforme afirmava. ..
A intervenção do acaso, porém, veio a impedir que Portugal fosse o beneficiado
maior do descobrimento de Colombo. Pouco após deste, o papa Inocêncio VIII veio a falecer,
abrindo uma crise em sua sucessão com a disputa do trono pontífice entre dois poderosos
cardeais italianos das famílias Caraffa e Della Rovere. Como nenhum destes conseguia a
maioria dos votos no Colégio de Cardeais, Fernando de Aragão, se aproveitando do impasse,
patrocinou a candidatura de um cardeal espanhol “neutro”, a do valenciano Rodrigo Bórgia.
Eleito como Alexandre VI este novo papa espanhol, que viria ficar afamado como o mais
dissoluto de todo o papado, promulgou duas novas bulas alterando os termos do tratado
estabelecido, impedindo Portugal de tomar posse do descoberto por Colombo.
Denominadas igualmente de Inter Coetera, as bulas são datadas de 3 e 4 de maio de
1493. Nesta segunda, Alexandre VI concede aos Reis Católicos o domínio das terras a serem
descobertas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o ocidente e o meio-dia.

Ou seja, de forma totalmente incoerente com os saberes da astronomia de posição da


época, a linha divisória anteriormente estabelecida entre Portugal e Espanha tendo como
referência a latitude foi substituída por outra tendo por referência a longitude.
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Na recusa de D. João II em aceitar esta determinação papal, os representantes dos reis


de Castela e Aragão e de Portugal se reuniram na cidade de Tordesilhas em 1494, a fim de se
chegar a um consenso. Os representantes de Portugal propuseram que a linha divisória fosse
deslocada para oeste, passando de cem para 370 léguas de Cabo Verde. Como certamente os
representantes espanhóis sabiam que Colombo teria percorrido uma distância maior até a ilha
por ele descoberta, a proposta encaminhada em nome do rei de Portugal foi aceita, resultando
na assinatura do Tratado de Tordesilhas em 7 de junho de 1494.
Assim, este novo tratado não manteve referencial de latitude, conforme adotado no
tratado anterior, mas assim o incoerente referencial de longitude, conforme inicialmente
estabelecido por Alexandre VI em sua bula papal.

Do Atlântico ao Índico pela Corrente do Brasil

O posicionamento exato do meridiano divisório de Tordesilhas tinha como obstáculo


não só a dificuldade na determinação astronômica da longitude como também a não definição
de imprescindíveis referenciais cartográficos nos termos do referido tratado. Neste não se
encontra definida qual das diversas léguas seria a adotada, o posicionamento do ponto exato
do arquipélago onde iniciaria a contagem das 370 léguas, e se estas seriam contadas sobre o
paralelo do ponto tomado como referencial nos Açores ou sobre a linha do Equador (Cf.
Tratado de Tordesilhas. In Cortesão, 1956: 3-21). Assim, o tratado estabelece não uma linha
divisória, mas sim uma faixa onde a linha poderia varia.
Em outubro de 1495, pouco mais de um ano após a assinatura do Tratado de
Tordesilhas, D. João II veio a falecer, sendo sucedido por seu primo D. Manuel, Duque de
Beja. Após o momento inicial de seu reinado, quando havia dúvidas se o irmão do falecido
Duque de Viseu iria dar continuidade, ou abortar, a expansão ultramarina, partiu de Lisboa,
em oito de julho de 1497, uma pequena frota composta de quatro naus sob o comando de
Vasco da Gama. Esta frota conseguiu não só ultrapassar o Cabo da Boa Esperança como
atingir o Índico, proeza que fez de Vasco da Gama o “descobridor do caminho marítimo para
as Índias”. Em setembro de 1499, duas das quatro naus que partiram sob o comando de Vasco
da Gama conseguiram retornar, abarrotada de especiarias.
É preciso observar que, ao contrário do que se costuma afirmar, a queda de
Constantinopla não trouxe a interrupção de abastecimento do mercado europeu de especiarias
orientais. Além da rota do Sudão-Combusto-Tanger-Península Ibérica, o Ocidente permanecia
também atendido no consumo de especiarias pelos mercadores de Itália, principalmente
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venezianos, que se forneciam nos portos do Egito e Síria, abastecidos pelas respectivas rotas
do Mar Vermelho e Golfo Pérsico. Entende-se assim porque Quintella, (1839:247), ao se
referir à alta nobreza, diz que a partir da volta de Vasco da Gama “mudarão os discursos, que
os homens até alli fazião sobre as vantagens da descoberta, e conquista do Oriente, vendo em
Lisboa especiarias, aljafar, e pedraria, producções daquelles ricos Paizes, que antes olhavão
com admiração quando os Venezianos as trazião a este Reino”
Contudo, o volume das mercadorias orientais chegado ao porto de Lisboa pela rota do
Atlântico Sul era suficiente somente para atender às demandas do Reino, não trazendo ameaça
à rota veneziana, via Mediterrâneo.
Meses após, em março de 1500, partiu de Portugal com destino ao Oriente uma
poderosa frota onde a maioria das embarcações, nove de um total de treze, era de grandes e
pesadas naus, que precisavam ser impulsionadas não só por ventos favoráveis como também
por fortes correntes marítimas. Ao se dirigir ao Índico pelo Atlântico Sul, Cabral teria se
deparado com uma porção continental do Novo Mundo ainda desconhecida.
Cabral, ao trazer de volta a maior parte de sua frota abarrotada de pimenta, gengibre e
canela, além de algumas outras especiarias, demonstrou que os portugueses conseguiam fazer
com que pesadas naus navegassem pelo Atlântico Sul em demanda do Índico. O segredo, só
posteriormente desvendado, estava numa nova porção do “Novo Mundo” por ele
“incidentalmente descoberta”, o Brasil.
O Almirante Gago Coutinho, profundo conhecedor das condicionantes para a
navegação à vela do Atlântico Sul, demonstrou que não só Cabral, como também Vasco da
Gama, por estarem no comando de naus, tiveram que obedecer a imposição do regime de
ventos que os obrigava a navegar junto à costa brasileira, após “montar a terra saliente entre
os actuais cabos São Roque e Santo Agostinho” (Coutinho, 1969:114-5). 1
A necessidade de se aproximar da costa a partir do Cabo de Santo Agostinho se dava
não só em função do regime de ventos dominantes no Atlântico Sul, mas também por
imposição do regime de correntes marinhas. Da região equatorial da África parte uma

1
O almirante Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1950) fez, junto com Sacadura Cabral, a primeira
travessia área do Atlântico Sul, em 1922. Além de eminente navegador e cartógrafo, se dedicou à história
da navegação dos descobrimentos. A obra citada é uma coletânea de artigos, muitos publicados em
jornais, e conferência até então dispersos. As questões relativas ao descobrimento do Brasil foram
apresentadas em uma conferência proferida em 1943, no Liceu Literário Português do Rio de Janeiro.
Nesta, o iminente nauta descartou a possibilidade de Cabral ter “descoberto” o Brasil, ao demonstrar que
para se atingir a costa brasileira entre os cabos citados seria preciso ter conhecimentos precisos dos
condicionantes da navegação local e não simplesmente por querer “esquivar-se das calmarias da Guiné”,
conforme registrado pelos cronistas.
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corrente que se dirige à América do Sul, denominada Corrente Equatorial Sul. Essa corrente,
por sua vez, atinge o litoral brasileiro na altura do Cabo de São Roque, onde se divide em
duas ramificações. Uma delas, a Corrente da Guiana, toma a direção norte, e a outra, a
Corrente do Brasil, toma a direção sul. Esta corrente acompanha o litoral austral americano
até o encontro com a Corrente das Malvinas que, vinda do Pólo Sul, faz com que a Corrente
do Brasil tome a direção da África do Sul (Cf. Cortesão, 1956:567-69:). Deste modo, para que
as naus pudessem chegar ao Índico, fazia-se necessário que seguissem próximas ao litoral
brasileiro “hasta la latitud de la desembocadura del rio de La Plata (...) Sólo entonce , y
después de haber alcanzado com seguridad los vientos del Oeste em el hemisferio meridional,
debe el buque mirar al Este” (Ibidem: 574).
Por outro lado, é preciso destacar que a navegação por esta rota do Atlântico Sul,
depois conhecida como “volta do Brasil”, exigia todo um conhecimento prévio do calendário
de alterações dos ventos dominantes e do regime de correntes. Levando em conta estes
condicionantes para a navegação no Atlântico Sul, Gago Coutinho (1969:114-5) demonstra
que a partir de uma única viagem seria impossível não só Vasco da Gama “descobrir o
caminho marítimo para as Índias” como Cabral “descobrir o Brasil”, afirmando ainda que
“tanto a Terra (o Brasil) como o vento, já ambos haviam sido estudados, em várias épocas do
ano, antes de 1497”.
Apesar do desvio pela costa do Brasil da rota para o Índico ter sido ciosamente oculto
pelos cronistas portugueses quinhentistas, ao divulgarem a versão do descobrimento fortuito
do Brasil, constatamos que este “segredo” acabou vazando para a Espanha ainda ano século
XVI, onde foi revelado por Alonso de Santa Cruz2 em sua obra Islario general de todas las
islas del mundo, publicada como manuscrito em cerca de 1540. Nesta, informa que para
chegar a Calicute e Malaca, os portugueses “procuran de venirse a meter sobre esta costa del
Brasil y ponerse em altura de trynta e cinco a quarenta grados para dispues, com los ayres
frescos del pólo antártico, poder a su plazer doblar el dicho cabo da Buena Esperança” (Santa
Cruz, 1918:545). Ao considerar que a latitude da barra do Rio da Prata é de 35° S,

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Alonso, ou Alonzo, de Santa Cruz (1505-1567) foi um renomado cartógrafo e cosmógrafo das cortes de
Carlos I (V do Sacro Império) e Felipe II de Espanha. Fez parte do corpo de cartógrafos do Consejo de
Indias e de La Caza e Audiências de Indias, mas conhecida como Casa de Contratación, onde foi
responsável por uma das diversas versões do Padron Real, planisfério feito por determinação real em
1508. Esta primeira versão foi constantemente atualizada, a partir das novas informações trazidas pelos
pilotos espanhóis, sendo Santa Cruz responsável pela edição de 1542. A obra Islario general de todas las
islas del mundo foi produzida durante o reinado de Felipe II, sendo formada por um conjunto de mapas e
um texto descritivo.
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constatamos o quanto Santa Cruz estava bem informado das condicionantes de navegação no
Atlântico Sul.
Encontramos ainda em uma obra manuscrita quinhentista portuguesa a indicação desta
rota atlântica, única para as naus da Carreira das Índias. Trata-se do Roteiro de Lisboa a Goa,
de autoria do célebre navegador português D. João de Castro3. Ao tratar da “trauessa que há
da costa do Brasil até o cabo da bõa esperança”, informa ele que “as nossas naos se poem em
altura do cabo frio, e começão por a proa no cabo de boa esperança, fazendo a elle seu
caminho (...)” (Castro, 1882:241).
A princípio, esta informação estaria em contradição ao exposto por Santa Cruz, que
corretamente indica a latitude 35° S, correspondente ao Rio da Prata, como o ponto de desvio
em direção ao Cabo da Boa Esperança. Consideramos, contudo, que a razão de tal divergência
está no fato da costa brasileira sofrer uma flexão para o oeste exatamente em Cabo Frio.
Assim, ao contrário da quase totalidade desta costa, que corre na direção norte-sul, a maior
parte da costa fluminense corre na direção leste-oeste. Apesar de pouco extenso, este desvio
na direção da linha litorânea é suficiente para fazer com que os navegadores perdessem de
vista a costa partir deste ponto. Assim, apesar das naus permanecerem no bojo da Corrente do
Brasil até a barra do Rio da Prata, a linha costeira ficava fora do alcance de vista dos
navegadores a partir do Cabo Frio que, por esta razão, era um dos pontos de referência mais
importantes na navegação do Atlântico Sul.
Contudo, não bastava chegar com as naus portuguesas na Índia, mas também impedir
que as frotas venezianas mantivessem ativa a rota mediterrânea. Assim, logo após o
“descobrimento” do Brasil, a Coroa de Portugal deu início à ação de conquista do Índico
visando bloquear as rota de abastecimento de especiarias ao complexo mercantil
mediterrâneo. Em 1506 é conquistada a ilha de Socotorá, na entrada do Mar Vermelho. Em
1507 Afonso de Albuquerque ocupa Ormuz, entrada do Golfo Pérsico. Em 1509, a frota do
sultão turco, que em auxílio aos egípcios procurava impedir a consolidação do bloqueio do
Índico, é derrotada na batalha de Diu, pela frota comandada por Francisco de Almeida,

3
D. João de Castro (1500-1548) foi discípulo, juntamente com o Infante D. Luís, do matemático Pedro
Nunes, considerado um dos mais importantes sábios quinhentistas. Segundo Fontoura da Costa
(1939:313) três são os roteiros de sua autoria: de Lisboa a Goa (1538), de Goa a Diu (1538-1539) e do
Mar Roxo (1541). “três monumentos da Marinharia dos Descobrimentos, nos quais o nosso capitão
evidencia a sua grande cultura e o seu espírito de incomparável observador prático e investigador
científico do mar”.
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primeiro Vice-Rei das Índias. Esta batalha não só consolidou o domínio português no Índico
como deferiu um profundo e definitivo golpe no eixo mercantil Índico-Mediterrâneo.

Mapa do Curso das Naus. (In Brandão, 2006: 25)

Considerando que o complexo mediterrâneo fora, desde a Antiguidade, o “coração”


mercantil do Ocidente, acreditamos poder dizer que, do ponto de vista geopolítico, o
“descobrimento” do Brasil é um marco na construção da modernidade ocidental por estar
inserido na complexa estratégica geopolítica que alterou definitivamente o curso da História.

A Longitude de Tordesilhas e o Mapa de Cantino.

A princípio, esta conjuntura nos leva a acreditar que D. João II, já conhecedor da costa
brasileira e da Corrente do Brasil, reivindicou a extensão dos domínios de Portugal de 100
para as 370 léguas de Cabo Verde visando preservar para Portugal o domínio do estratégico
litoral brasileiro, imprescindível para o controle da rota do Oriente via Atlântico Sul. Ao se
considerar que as longitudes conhecidas da costa brasileira teriam sido determinadas, por
navegadores, pelo pouco preciso método da estima, seríamos levados ainda a acreditar que D.
João II teria sido agraciado pela sorte, ao reivindicar o correto deslocamento do meridiano
divisório.
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A mais antiga fonte cartográfica conhecida a representar a costa brasileira traz também
representada a linha divisória de Tordesilhas como delimitador da América Portuguesa.
Denominado Mapa de Cantino, é um belo planisfério medindo 1,05m x 2,20m cujo original
encontra-se na Biblioteca Esteense em Modena, na Itália, havendo uma reprodução em fac-
símile na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro.
Sua história foi revelada pelos estudos feitos pelo historiador americano H. Harrisse
das cartas de Hércules d’Este, Duque de Ferrara de 1471 a 1505. Assim, sabemos que foi feito
em princípio de 1502 por um cartógrafo ou alto funcionário desconhecido com acesso ao
acervo de mapa da Coroa de Portugal que se deixou corromper pelo representante comercial
de Ferrara em Lisboa, Alberto Cantino. Segundo as cartas, o duque encomendou, a preço de
12 ducados de ouro, o mapa mais completo possível das recentes descobertas ibéricas. Em 19
de novembro do mesmo ano, o mapa chegou às mãos do Duque de Ferrara.
Feito a partir de colagens de mapas diversos, nele a África encontra-se representada,
com grande precisão, em sua dimensão continental. A Índia já apresenta sua verdadeira forma
de península, e a configuração da costa da Índia à China é bastante aproximada da verdadeira.
O “Novo Mundo” é representado pelo perfil das ilhas das Índias Ocidentais, da costa das
Guianas, da Venezuela e do Brasil e por parte da costa oriental da América do Norte,
inclusive a Flórida, apesar desta não ter ser sido ainda oficialmente descoberta, o que só
aconteceria 11 anos depois, por Ponce de Leon.
Este planisfério traz ainda a particularidade de ser o primeiro conhecido a ser feito na
projeção cilíndrica, que tem como característica principal apresentar os meridianos como
linhas paralelas, que se cruzam de forma ortogonal com os paralelos. 4
Deste modo, o meridiano divisório de Tordesilhas está representado no
mapa de Cantino como uma linha reta, que cruza ortogonalmente com o Equador.
Tendo em conta esta característica cartográfica, fizemos a superposição do Mapa
de Cantino sobre um atual, também na projeção cilíndrica, onde traçamos o
meridiano de Tordesilhas posicionado em sua extensão máxima ocidental 5.

4
Ainda no século XVI a projeção cilíndrica foi aperfeiçoada por Gehard Mercator (1512-1594), matemático,
geógrafo flamengo. Devido sua característica de equivalência angular, possibilitando determinar os azimutes
das rotas diretamente nas cartas, passou a ser a predominante na confecção das cartas náuticas
5
Para o cálculo da extensão linear adotamos a antiga légua terrestre correspondente a 3 000 braças, e não uma
das léguas náuticas das utilizadas na época , e como ponto referencial a ponta ocidental da Ilha de Santo Antão,
a mais ocidental das de Cabo Verde. A partir destes referenciais e convertendo a distância linear em angular
sobre o paralelo da referida ponta da Ilha de Santo Antão, correspondente a 17° 04´ N, chegamos ao resultado de
48° 26´W (Cf. Brandão, 2000:129).
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A partir desta superposição constata-se que a porção mais oriental da costa


nordeste brasileira, a partir do ponto extremo oriental, encontra-se neste
perfeitamente cartografada, tanto em sua latitude como na longitude (Cf.
Brandão, 1999:100-1). Nota-se ainda, perfeitamente, que a representação da costa
brasileira foi elaborada tendo por base o levantamento cartográfico d e somente
parte da costa do Nordeste. O traçado foi então complementado por informações
sobre a rota de navegação que acompanhava esta costa, fazendo com que a linha
costeira fosse deslocada para o fluxo da Corrente do Brasil, e na parte extrema
meridional, correspondente ao estuário do Rio da Prata, já na Corrente das
Malvinas.

Mapa de Cantino

A constatação de que os cartógrafos responsáveis pelo traçado da costa brasileira


apresentado no Mapa de Cantino conseguiram posicionar corretamente o ponto extremo
oriental desta costa em relação ao meridiano do Tratado de Tordesilhas nos coloca frente a
uma espinhosa questão. Mesmo considerando que, na época, seria possível calcular o
correspondente em grau de longitude a distância de 370 léguas do Açores, seria ainda
impossível determinar a distância do meridiano divisório à costa brasileira, já que, para tal,
seria necessário ter sido feito preliminarmente levantamentos cartográficos e determinações
astronômicas de longitudes de pontos desta costa.
Sabemos ainda que a determinação astronômica da longitude só foi aperfeiçoado no
início do século XVII por obra de Galileu, tanto no aspecto instrumental, ao criar a luneta
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astronômica, quanto ao método, ao descobrir a existência dos satélites de Júpiter, cujas


conjunções ocorrem de forma previsível, o que possibilitou a Galileu desenvolver um novo
método do cálculo da longitude, a partir dos eclipses das luas de Júpiter. Porém, somente
depois de este método ter sido aperfeiçoado por Cassini, astrônomo e astrólogo do rei Luis
XIV e fundador do observatório de Paris, ao elaborar as efemérides de eclipses dos satélites
de Júpiter, conhecidas como “Tábuas de Cassini”, foi possível redesenhar os mapas da Europa
a partir das novas longitudes assim calculadas, o que acabou por revelar as grandes distorções
nas representações longitudinais dos mapas precedentes.
No Brasil, acredita-se que as primeiras observações voltadas para a determinação da
longitude tenham sido feitas pelo sábio naturalista germânico George Marcgrave em Recife,
onde esteve por convite do Conde de Nassau, de 1638 a 1644. Do observatório construído
por Nassau, o primeiro da América, Marcgrave fez diversas observações astronômicas, como
eclipses do Sol e da Lua e conjunções planetárias, que possibilitariam o cálculo da longitude
local. Porém, como até hoje estão perdidos dois dos três livros que compunham a obra que
reunia os seus trabalhos astronômicos e cartográficos feitos no Brasil por Macgrave, não
temos o registro de sua possível determinação da longitude de Recife (Cf. Lima, 2001:92-3).
Deste modo, datam somente do século XVIII as primeiras determinações de longitudes
comprovadamente feitas em solo brasileiro. Por alvará datado de 18 de novembro de 1729, D.
João V nomeou os padres Diogo Soares e Domingos Capassi da Companhia de Jesus,
identificados como peritos nas Matemáticas, para fazer levantamentos cartográficos no
Brasil. Dentre os diversos mapas feitos pelos jesuítas, Jaime Cortesão (1952: 9-10) destaca o
que tem por título Nova e primeira carta da Terra firme e costa do Brasil, ao meridiano do
Rio de Janeiro, desde o Rio da Prata, até Cabo Frio, com o novo caminho do Certão do Rio
Grande até a cidade de São Paulo, por ser o que abrange maior extensão e por oferecer a
graduação das longitudes. Ao fazer a sobreposição desta carta com uma atual, Cortesão
conclui ”que a sua exatidão, dada à vastidão do território abrangido, é quase sempre perfeita.
Não podemos restar a menor dúvida de que os dois Padres observaram um grande número de
longitudes”. Lembrando que La Condamine, considerado um dos maiores astrônomos e
geógrafos da época, ao calcular a longitude da foz do rio Napo, em 1742, cometeu um erro de
3°, considera que este erro “dá-nos a medida da competência dos dois Padres Matemáticos de
Dom João V e da justeza das suas observações” (Ibidem: 11).
Assim, em coerência com que atualmente consideramos para extensão do saber da
cartografia quinhentista, seria impraticável que cartógrafos portugueses no início do século
XVI pudessem traçar um mapa onde o ponto extremo ocidental e parte da costa brasileira
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estivesse corretamente posicionado em relação ao meridiano divisório de Tordesilhas.


Contudo, a superposição apresentada não nos deixa dúvidas de que foi realmente isto o
ocorrido.

Superposição, feita pelo autor, da linha costeira do Brasil conforme traçada no Mapa de
Cantino com a mesma traçada em um mapa atual na projeção cilíndrica, tomando como
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referências de superposição a linha do Equador e do meridiano divisório do Tratado de


Tordesilhas, traçada no mapa atual em sua extensão ocidental máxima.

Consideração Final

A partir dos estudos feitos ainda no meado do século passado por Jaime Cortesão e
pelo almirante Gago Coutinho não se teria como questionar o fato da Coroa de Portugal ter
não só conhecimento da porção litorânea brasileira no século XV, mas também dos regimes
de ventos e correntes marítimas predominantes na costa meridional do “Novo Mundo”.
Assim, em obediência ao princípio de que a rota das naus deveriam ser previamente traçadas
por caravelas, exploradoras, não há como duvidar de que diversas delas antecederam as naus
de Cabral na chegada ao Brasil. Como este contexto é demonstrável com muita segurança à
luz dos atuais conhecimentos sobre a náutica quinhentista, o surpreendente, do ponto de vista
historiográfico, é a permanência da infundada discussão se o “descobrimento” do Brasil teria
sido fruto da intencionalidade ou do acaso.
A questão da longitude aqui bordada se insere mais profundamente nesta discussão, já
que se a hipótese de explorações sigilosas dirigidas à costa brasileira ainda no século XV é
plenamente coerente com o nível de desenvolvimento das artes da construção náutica e da
navegação deste século, o mesmo não se pode dizer em relação à longitude.
Apesar da conjuntura factual e documental nos aponta para a consideração de que,
quando das negociações do Tratado de Tordesilhas, D. João II já saberia da existência de um
novo continente a meio caminho da Índia, segundo o atual conhecimento que temos sobre a
cartografia quinhentista não seria possível que este monarca tivesse ainda o conhecimento de
longitudes do nosso litoral de modo a reivindicar o deslocamento do meridiano divisório de
modo a possibilitar o domínio do litoral brasileiro e, consequentemente, o controle da rota das
naus para o Índico.
Contudo, a insistência dos negociadores portugueses em posicionar o meridiano
divisório a exatas 370 léguas de Cabo Verde, e não 350 ou 400 léguas e a precisão do
posicionamento deste meridiano no mapa de Cantino, conforme constatado pela superposição,
nos mostra que foi exatamente este o ocorrido.
Assim, este contexto nos faz considerar como fundamentada a hipótese de que os
nautas que aqui antecederam Cabral no estudo dos regimes de ventos e correntes marinhas
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estavam ainda acompanhados de cartógrafos e astrônomos, na época astrólogos, responsáveis


pelas precisas determinações de longitudes de pontos referenciais da costa do Brasil.
Evidente que tal hipótese abre uma série de questionamentos para os quais não temos
ainda respostas, o que nos leva reconhecer a expansão ultramarina portuguesa como um
espaço histórico que tem ainda muito a revelar.
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