Mulheres Com Deficiência e Sua Dupla Vulnerabilidade: Contribuições para A Construção Da Integralidade em Saúde

Você também pode gostar

Você está na página 1de 10

863

TEMAS LIVRES FREE THEMES


Mulheres com deficiência e sua dupla vulnerabilidade:
contribuições para a construção da integralidade em saúde

Women with disabilities and their double vulnerability:


contributions for setting up comprehensive health care practices

Stella Maris Nicolau 1


Lilia Blima Schraiber 2
José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres 2

Abstract Women with disabilities have few mea- Resumo Mulheres com deficiência contam com
sures geared to their needs in the primary health ações inexpressivas nos serviços de atenção básica
care services. Despite the attention given to the em saúde, que embora historicamente privilegiem
female population in these facilities, they still fail a clientela feminina, pouco reconhecem os aspec-
to address specificities of women with disabili- tos relativos aos direitos sexuais e reprodutivos e à
ties, such as issues related to their sexual and re- dupla vulnerabilidade que as acometem por serem
productive rights and their double vulnerability, mulheres e portarem deficiências. Este estudo é
both as women and as disabled individuals. This parte de uma pesquisa qualitativa que objetiva
research is part of a qualitative study to identify identificar dimensões individuais, sociais e pro-
the individual, social and programmed double gramáticas da dupla vulnerabilidade de quinze
vulnerability of fifteen women with different types mulheres com diferentes tipos e graus de deficiên-
and degrees of disabilities, who are frequenters of cia, usuárias de três serviços de atenção básica em
three primary health care facilities in São Paulo saúde na cidade de São Paulo. Destacam-se em suas
city. The women’s narratives highlighted experi- narrativas vivências de rejeição ou superproteção
ences of rejection or overprotection in their fam- familiar, dificuldades em adquirir equipamentos
ily relationships, difficulties in obtaining equip- para sua autonomia, pouco investimento no estu-
ment for their autonomy, poor education and lack do e na qualificação profissional, menor partici-
of professional qualification, lower social partic- pação social, obstáculos à vivencia da sexualidade
ipation, obstacles in their sex lives and mother- e da maternidade, falta de acessibilidade física, co-
hood. They face physical and communication municacional e atitudes pouco receptivas nos ser-
barriers and poor care from primary health care viços de saúde, caracterizando total vulnerabili-
services. All of the dimensions of vulnerability dade. Problematizá-la possibilita a construção de
are present and addressing them makes it possible práticas integrais de saúde que incorporem a di-
to build comprehensive health care practices that mensão dos direitos humanos de grupos que histo-
ensure the human rights of groups that histori- ricamente experimentam a violação dos mesmos:
1
cally experience violations, namely women and mulheres e pessoas com deficiência.
Universidade Federal de
São Carlos. Rod. disabled persons. Palavras-chave Gênero e deficiência, Pessoas com
Washington Luiz km 235. Key words Gender and disability, Disabled per- deficiência, Atenção integral à saúde, Saúde da
13565-905 São Carlos SP.
sons, Comprehensive health care, Women’s health, mulher, Atenção primária à saúde, Vulnerabili-
vawbr@usp.br
2
Faculdade de Medicina, Vulnerability dade
Universidade de São Paulo.
864
Nicolau SM et al.

Introdução olhar atento às demandas referidas e também


àquelas ainda não referidas, mas passíveis de uma
Mulheres com deficiência estão presentes em to- ação preventiva ou de um diagnóstico precoce11,13.
das as faixas etárias, etnias, raças, religiões, es- E, nesse sentido, a integralidade funcionará para
tratos econômicos e orientação sexual. Histori- a atenção primária à saúde não apenas como
camente ficaram à margem do próprio movi- modo assistencial de responder às demandas dos
mento de mulheres e do movimento pelos direi- usuários, mas como ‘contexto instaurador de
tos civis das pessoas com deficiência1-3. novas necessidades de saúde’13, dando, desta for-
No Brasil, segundo dados do Censo de 2000, ma, visibilidade a questões socioculturais aban-
14,5% da população brasileira referiu ser porta- donadas pela redução biomédica na assistência
dora de algum tipo de deficiência, sendo que médica individual5.
53,58% desta população é do sexo feminino. En- Operar com a integralidade representa a apro-
tre as pessoas com mais de 60 anos, 49,64% de- ximação mais fecunda para explorar as situa-
clararam ter alguma deficiência, e entre crianças ções de vulnerabilidade a que as mulheres com
até quatro anos essa cifra é de 2,26%4. Isto revela deficiência estão submetidas, invisíveis aos servi-
que o acúmulo dos anos de vida tem estreita re- ços de saúde pela ausência de sua abordagem
lação com a aquisição de deficiências, e se for pelos profissionais.
considerado que a esperança de vida para as A dupla vulnerabilidade dessas mulheres é
mulheres é maior do que para os homens, mes- discutida pelos estudos sobre a deficiência (disa-
mo sob iguais condições socioeconômicas5, é bility studies) que surgem nos anos 1970, no Rei-
possível afirmar que a questão da deficiência tende no Unido e Estados Unidos. Analogamente ao
a ser uma relevante problemática de saúde coleti- feminismo, concebem a deficiência como uma
va e de saúde da mulher ao longo de seu ciclo de forma de opressão sofrida por uma diferença
vida. Trata-se de um segmento da população que corporal e que deve ser combatida. Diferenciam,
conta com ações inexpressivas voltadas para as pois, como nos estudos feministas, a condição
suas necessidades nos serviços de atenção pri- natural de lesões, de uma construção sociocultu-
mária em saúde, que embora historicamente pri- ral que necessariamente a vê como deficiência14.
vilegiem a clientela feminina6,7, pouco reconhe- Já estudos feministas sobre a deficiência (fe-
cem os aspectos relativos aos direitos sexuais e minist disability studies) emergem em um segun-
reprodutivos e à dupla vulnerabilidade que as do momento e apresentam convergências e di-
acometem por serem mulheres e portarem defi- vergências em relação aos disability studies. As
ciências. Esta condição é corroborada na litera- convergências dizem respeito à definição de defi-
tura internacional sob a perspectiva da desvan- ciência como um fenômeno sociológico e ao fato
tagem8: as mulheres com deficiência apresentam da subalternidade dos deficientes não poder ser
duas desvantagens na vida social. explicada somente pela presença de uma lesão,
Trabalharemos essa dupla desvantagem pelo mas pelos obstáculos que enfrentam na vida so-
conceito de vulnerabilidade9. Este permite abar- cial e política. As divergências referem-se às de-
car diferentes dimensões da experiência vivida mandas e aos diferentes pontos de vista em rela-
relativamente às necessidades de saúde e à aten- ção à experiência da deficiência: os primeiros teó-
ção dos serviços. Essa dupla vulnerabilidade da ricos eram em sua maioria homens com deficiên-
mulher com deficiência será discutida com base cias motoras que lutavam pela independência e
na integralidade em saúde, já que este princípio inserção no mundo do trabalho a partir da reti-
levaria as práticas a oferecerem respostas mais rada das barreiras sociais que os impediam de
abrangentes às necessidades de saúde, abordan- exercer um papel produtivo. As teóricas feminis-
do-as de modo mais holístico, ao articular a di- tas (em geral mulheres com deficiência) buscam
mensão curativa à prevenção e à promoção da revelar como o gênero opera no universo da de-
saúde. A integralidade designa um conjunto de ficiência15 e também passam a dar visibilidade ao
valores pelos quais o movimento social em saú- trabalho das cuidadoras das pessoas com defici-
de lutou e pretende lutar; uma imagem-objetivo ência mais gravemente acometidas.
das características desejáveis do Sistema Único De um lado, postulam que todos somos “cor-
de Saúde10-12. pos temporariamente aptos”, sendo poucas as
No plano das práticas profissionais, a inte- fases da vida em que não necessitamos de cuida-
gralidade diz respeito a uma boa prática que se do ou apoio social14. De outro, analisando as re-
inicia pela apreensão ampliada das necessidades presentações culturais em relação às mulheres
no encontro profissional-usuário, a partir de um com deficiência e por estarem implicados com o
865

Ciência & Saúde Coletiva, 18(3):863-872, 2013


ativismo político, buscam recuperar a identidade pelas mulheres com deficiência, a resposta dada
feminina que a cultura lhes nega, além de uma pelos serviços a essas necessidades e a relação
política que preserve o direito de definirem suas estabelecida entre as mulheres e os serviços fa-
diferenças físicas e sua feminilidade por si mes- cultando tal ou qual modo de uso dos mesmos.
mas, ao invés de receberem interpretações de ou- Deste conjunto, abordaremos aqui o ponto de
tros sobre seus corpos15,16. Também buscam iden- vista das mulheres, quanto às suas situações de
tificar e denunciar o modo discriminatório com vida em que as necessidades de saúde são gera-
que os estudos científicos, sobretudo aqueles do das, ao reconhecimento destas e ao modo como
campo da medicina, referem-se tanto às mulhe- se relacionam com os serviços de atenção primá-
res como às pessoas com deficiência, consideran- ria dos quais são usuárias.
do-as semelhantes: puro corpo, objetos do olhar
fixo e do espetáculo que pode ser tanto a exposi-
ção das aberrações nas atrações circenses como Metodologia
os concursos de beleza e a exposição do corpo da
mulher na mídia15. Além disso, apontam que a Buscamos uma aproximação que desse voz a
mulher é definida como uma versão inferiorizada mulheres com deficiência usuárias de três distin-
do corpo masculino. Essa concepção é reiterada tas unidades básicas de saúde localizadas na re-
nos estudos médicos a partir do século XVIII, gião oeste da cidade de São Paulo. Esses serviços
quando a medicina se apodera do corpo femini- integraram um subprojeto da pesquisa “Cami-
no para responder aos interesses demográficos nhos da Integralidade: levantamento e análise de
da sociedade moderna capitalista17. tecnologias de cuidado integral à saúde em servi-
Nessa perspectiva, o corpo da mulher e da ços de atenção em região metropolitana”, apro-
pessoa com deficiência deve ser regulado pelas vada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Uni-
políticas de medicalização através de procedimen- versidade e da Secretaria Municipal de Saúde.
tos disciplinares para sua normalização, como Os três serviços ora considerados seguiram
as cirurgias corretivas e as políticas de aparência critérios dessa pesquisa maior, e, adicionalmente,
que sustentam a instituição do cosmético e da o fato de terem usuárias mulheres com deficiên-
cirurgia plástica, pois, a beleza, em nossa socie- cia, pois representaram a forma de captação de
dade, consiste em um sistema de valor, uma ide- usuárias a serem entrevistadas e o contexto de
ologia cultural coercitiva que relaciona determi- atenção primária concretamente por elas utiliza-
nada aparência corporal como pré-requisito para do. As entrevistas ocorreram entre 2009 e 2010,
ganhar amor, status e reconhecimento, e revela o totalizando 15 usuárias (cinco de cada serviço).
paradoxo de que a mulher emancipou-se politi- Recrutamos mulheres na faixa etária repro-
camente, mas não se liberou do mandato social dutiva, ou próxima, e com deficiências variadas:
de perseguir beleza15. visual, auditiva, intelectual e motora; congênitas
Dois eixos enfatizados na reflexão feminista ou adquiridas. A idade variou entre 19 a 54 anos,
são a discriminação socioeconômica (mulheres sendo que 11 entrevistadas tinham 30 ou mais
com deficiência trabalham em ocupações menos anos. Essa faixa etária permitiu explorar ques-
qualificadas e recebem menos do que homens tões da autonomia, sexualidade, trabalho, casa-
com deficiência e mulheres sem deficiência) e a mento e maternidade. Quanto à diversidade das
excessiva medicalização da deficiência, que vê esta deficiências, não foi possível encontrar mulheres
condição como doença1,2,18. com deficiência auditiva, o que pode ser conse-
Tendo em vista os poucos estudos sobre quência da presença menor desses casos na aten-
mulheres com deficiência no Brasil, realizamos ção primária.
uma pesquisa em serviços de atenção primária, Para encontrar as usuárias, contamos com a
em que profissionais e mulheres usuárias com indicação dos profissionais dos serviços e tam-
deficiência foram investigados. Objetivamos co- bém com a indicação das primeiras mulheres
nhecer como essas mulheres faziam uso desses entrevistadas. Foi realizado contato telefônico ou
serviços, examinado-lhes a condição de ser mu- visita domiciliar para realizar o convite e agendar
lher e ser portadora de deficiência, tendo em vis- o encontro que poderia ocorrer em data e local
ta o próprio conjunto de necessidades que reco- mais conveniente para a entrevistada.
nheciam como suas; e como, segundo elas e tam- As mulheres com deficiência intelectual ou com
bém segundo os profissionais, foram acolhidas dificuldades de comunicação verbal foram entre-
e cuidadas. Para tal, a pesquisa produziu dados vistadas juntamente com suas cuidadoras, que
em três direções: as necessidades identificadas em três situações foram suas mães e em um caso
866
Nicolau SM et al.

a irmã. Houve uma entrevista que foi realizada periências de superproteção ou rejeição familiar,
somente com a cuidadora (mãe) pelo fato de se pela falta de acesso a serviços de saúde e reabili-
tratar de pessoa com quadro severo de deficiência tação, pela privação de recursos materiais que
motora associado à deficiência intelectual. impediu ou dificultou a aquisição de equipamen-
As entrevistas foram do tipo semiestrutura- tos que garantissem maior autonomia, pela falta
do, gravadas e posteriormente transcritas com de investimento em sua educação e habilitação/
conferência de fidelidade e totalizaram cerca de reabilitação profissional, e, pela vivência em um
10 horas, com uma média de 40 minutos cada meio familiar com atitudes hostis e que desqua-
entrevista. Os nomes citados são fictícios. lificam mulheres e pessoas com deficiência.
Para a análise dos dados, usamos o referen- Neusa (50 anos, deficiência motora) e Mi-
cial da vulnerabilidade, definida como “resultan- riam (39 anos, deficiência intelectual) nasceram
te de um conjunto de fragilidades individuais e em área rural, nunca frequentaram serviços de
precariedades sociais que atingem um sujeito reabilitação, cresceram em famílias com poucas
cujas condições de vida e saúde são influenciadas informações sobre a deficiência, em uma cultura
ou determinadas pelo social e pela história”19. tradicional de gênero e paternalista. Neusa rece-
Ou como esclarece Ayres12: beu sua primeira cadeira de rodas aos 13 anos,
“De modo sumário, os estudos de vulnerabi- idade com a qual ingressou na escola, onde per-
lidade buscam compreender como indivíduos e maneceu por pouco tempo. Adriana (33 anos,
grupos de indivíduos se expõem a dado agravo à deficiência motora) adquiriu artrite reumatoide
saúde a partir de totalidades conformadas por aos 10 anos e abandonou a escola pela dificulda-
sínteses pragmaticamente construídas com base de de locomoção. Luciana (32 anos, deficiência
em três dimensões analíticas: aspectos individu- motora) por sua vez, recebeu grande investimen-
alizáveis (biológicos, comportamentais e afeti- to em sua reabilitação e escolarização por parte
vos), que implicam exposição e suscetibilidade da família, mas revela que a superproteção por
ao agravo em questão; características próprias a parte dos familiares tolheu sua autonomia, pois
contextos e relações socialmente configurados, por ter baixa estatura e fragilidade óssea, sempre
que sobredeterminam aqueles aspectos e, parti- foi tratada por estes como uma criança indefesa,
cularizando a partir destes últimos, o modo e o mesmo após a idade adulta:
sentido em que as tecnologias já operantes nestes Porque a minha infância foi muito regrada,
contextos (políticas, programas, serviços, ações) muito cuidada, muito mimo. Então eu sempre tive
interferem sobre a situação – chamadas, respec- a família presente até demais. Eu fui o tempo todo
tivamente, de dimensão individual, social ou pro- cuidada como uma boneca de louça pela minha
gramática”. deficiência e isso me prejudicou no desenvolvimen-
Nossa análise adota as três dimensões de vul- to. Apesar que também eu sou uma pessoa muito
nerabilidade referidas pelo autor, examinando as alegre, muito enérgica, muito disposta e tenho uma
situações de vulnerabilidades em que nossas vontade de viver muito grande, eu sempre, sempre
mulheres estão inseridas e interpretando suas fui bem precoce, aí com cinco anos eu estudei em
percepções acerca dessas situações. colégio regular, [...] e foi o melhor momento da
minha vida que eu convivia com crianças que não
tinham deficiências e eu me sentia super bem, mas
Resultados e discussão por um lado, ainda era aquela situação, que eu
não me assumia como pessoa com deficiência, e
Das quinze mulheres entrevistadas, oito nasce- das limitações e dos deveres. Eu achava que ia ter
ram com uma deficiência ou a adquiriram ainda uma coisa, que ia acontecer alguma coisa que eu ia
na primeira infância, antes dos dois anos de ida- ficar diferente, sabe, no fundo, no fundo talvez ti-
de, e sete delas adquiriram a deficiência no de- vesse um pouco isso. E a minha família sempre me
correr do ciclo da vida, seja no início da adoles- superprotegeu (Luciana).
cência ou na idade adulta. Embora haja diferen- Via de regra, portanto, a maior autonomia
ças significativas entre conviver com uma defici- raramente foi buscada pelos familiares, como no
ência congênita e com uma deficiência adquirida, caso de Fernanda (39 anos, deficiência motora)
os relatos apontam esforços adaptativos impor- que frequentou instituição educacional especia-
tantes para lidar com esta situação nos dois gru- lizada na infância e início da adolescência, aban-
pos de mulheres. donando-a sem concluir o ensino fundamental,
Pode-se apreender a dimensão individual da com anuência da família, como igualmente rela-
dupla vulnerabilidade dessas mulheres pelas ex- ta Renata (43 anos, deficiência visual):
867

Ciência & Saúde Coletiva, 18(3):863-872, 2013


Aí eu vim morar aqui com seis anos, nesse lu- regulamentado, a benefícios sociais, à cultura, ao
gar aqui [...] que daí as freiras do colégio que tinha lazer e demais bens sociais que promovam a equi-
aqui atrás elas sempre me observavam brincando dade de gênero e o desenvolvimento humano de
lá da janela e era muito difícil porque tinha muito pessoas com deficiência.
buraco, muito morro e elas ficavam me olhando e A acessibilidade é o princípio de tudo, porque
vieram aqui em casa, conversaram com a minha sem acessibilidade eu não tenho educação, sem aces-
mãe e arrumaram um colégio pra mim estudar lá sibilidade eu não tenho saúde, sem acessibilidade
no Ipiranga, no Instituto Padre Chico e condição eu não tenho esporte, não tenho lazer, não tenho
eu não tinha mas elas me deram tudo porque pra nada. Então eu acredito que a acessibilidade é o
ir pra lá precisava levar tudo, eles davam só comi- fundamental pra um deficiente porque ele começa
da, cama e o estudo. Eu tinha que levar pratica- na acessibilidade saindo do portão da casa dele,
mente um enxoval, toda a roupa, toda a roupa de então ele vai encontrando obstáculo pra todo lu-
cama, o material pra estudar eles me deram tudo gar. Dependendo do deficiente, se ele não conseguir
[...] Eu ficava lá com todas as outras pessoas, tinha pegar um [ônibus] adaptado e não tiver adaptado
muita gente lá.[...] Eu fui com quase sete anos [para na linha, ele não vai a lugar nenhum. Então eu
lá]. Lá eu aprendi muita coisa, tinha natação e acho que acessibilidade é o início do caminho de
depois eu comecei a aprender o braile [...], eu vi- um deficiente. [...] Por exemplo, eu saio daqui, eu
nha todo final de semana [para casa], era obriga- vou num teatro; eu chego lá no teatro, ele tem uma
tório, mas tinha muita gente lá que ia pra casa só peça maravilhosa que eu quero assistir, só que tem
nas férias, que morava muito longe, em outros es- uma escadaria imensa [...] Eu vou chamar, vou
tados, mas era bom. Eles levavam a gente pra pas- procurar o segurança, o responsável da área, vou
sear, levavam a gente nos parques, nas bibliotecas, chegar e vou falar: “olha, eu quero assistir, como é
levavam até na praia. [...] O tempo de ficar assim, que a gente faz?”. Outro dia eu fui numa peça de
longe de casa no começo era ruim, mas depois eu teatro aqui na Paulista e eles colocaram umas bar-
fui me acostumando e eu gostava de ficar lá.[...] ra lá em cima[...] Eu fui com [um amigo], nós
[Eu saí de lá] porque lá quando a gente entrava na dois cadeirantes. Aí o segurança catou a gente lá
quinta série, eles começavam a ensinar locomoção em cima, eles fizeram uma barra, umas barras de
e eu coloquei na minha cabeça que eu não queria ferro porque os cadeirantes fica ali, então, quer
fazer, não queria andar de bengala, que, sei lá, o dizer, aquelas barra fica na frente do olho da gente.
negócio não combina comigo.[...] E minha família A distância é muito longe pra enxergar (Neusa).
também não fez nada pra que eu mudasse de ideia, Chama a atenção nos relatos o fato de que
apoiou o que eu escolhi.[...] Eu acho que eu não poucas entrevistadas entraram no mercado for-
tenho habilidade, é claro que eles iam ensinar tudo mal de trabalho, sobretudo aquelas com defi-
e inclusive hoje tem pessoas que estudaram junto ciência congênita. Todas encontravam-se sem em-
comigo que eu conheço que tem uma vida ativa, prego, algumas vivendo do benefício de presta-
trabalham, que vão pra aonde querem, que saem, ção continuada do INSS e/ou realizando traba-
viajam sozinhos. [...] Eu acho que eu perdi muito lho informal, tal como confecção de artesanato,
da minha vida, que eu podia ter uma vida comple- venda de produtos, prestação de serviços. Ou-
tamente diferente e hoje eu penso assim que eu tras dependiam financeiramente de seus familia-
nunca posso fazer tudo o que eu quero, na hora res e, Luciana, por exemplo, jornalista e única
que eu quero, eu sempre tenho que precisar de al- com curso universitário, buscava emprego na sua
guém. [Minha dependência é] pra sair de casa por- área. Mas referiu que as editoras não estão dis-
que aqui dentro pra mim é normal, eu faço tudo, postas a adaptar seu espaço físico para empre-
eu vou no portão, eu vou em qualquer lugar aqui gar cadeirantes, e já foi empregada em funções
[...], o problema é na rua, e eu não consigo andar aquém de sua qualificação profissional, além de
na rua do lado de uma pessoa, eu não consigo. Eu alocada em postos de trabalho nos quais ficava
tenho que segurar na mão ou no braço. Se eu não ‘escondida’, considerando isso um tipo de discri-
segurar eu não me sinto segura (Renata). minação.
A dimensão social da dupla vulnerabilidade Algumas mulheres enfrentam preconceitos
das mulheres com deficiência diz respeito a vi- para viver a sexualidade e a maternidade, na
vências em um meio social no qual mulheres e medida em que habitam um corpo que destoa
pessoas com deficiência têm uma posição social dos padrões estéticos vigentes e enfrentam a des-
menos qualificada e experimentam menores pos- crença da sociedade de que possam correspon-
sibilidades de participação social e política, aces- der às expectativas de gênero, como assumir os
so à educação, à justiça, à saúde, ao trabalho papéis de cuidadora, esposa e mãe.
868
Nicolau SM et al.

Aí os meus irmãos [...] começaram a dizer que social que possa proporcionar-lhes lazer, diver-
a minha gravidez era psicológica; que eu não ia são e possibilidade de relacionamentos afetivo-
engravidar nunca. Imagina, que eu era tão louca sexuais, o que é corroborado pela ausência de
pra engravidar e pra ser mãe, que eu tava com gra- espaços de convivência que sejam receptivos às
videz psicológica. Daí eu fui, peguei o resultado, pessoas com deficiência intelectual fora das insti-
mostrei pro meu marido, li, ficou feliz também, mas tuições especializadas. As cuidadoras se queixam
não mostrou aquela felicidade... aquela coisa... que, que os familiares não se envolvem nessas deman-
de repente, talvez até ele mesmo duvidasse disso, das e por isso elas se sentem sozinhas para res-
porque se ele não duvidasse, ele ia tá ali, vibrando ponder a todas essas necessidades.
junto, daí eu segurei. Quando os meus irmãos vi- A dificuldade em acessar os direitos está rela-
ram a minha barriga, e que eu tava grávida real- cionada à dimensão social da vulnerabilidade.
mente, começaram a falar que o meu filho podia Embora o Brasil conte com um importante apa-
nascer aleijado igual eu, se eu já tinha pensado nes- rato jurídico para promover a equidade de gêne-
sa possibilidade, porque eu tava sonhando muito ro e a inclusão de pessoas com deficiência na vida
alto, e eu era a grávida mais coruja do mundo, eu social, a realidade apresentada pelas entrevista-
conversava com o meu filho o tempo todo na mi- das ainda é marcada por iniquidades.
nha barriga, e eles ficavam: “você só tá pensando no O Brasil é signatário desde 2008 da Conven-
melhor, você não sabe o vai acontecer; e se essa cri- ção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, um
ança vim aleijada como você?”[...] O primeiro dia tratado internacional de direitos humanos com
que eu fui fazer o exame de gravidez, o meu ex- maior força jurídica vinculante que os anterio-
marido me levou [...] Quando eu saí, o médico fez res, e que representa um marco na mudança de
eu voltar e perguntou o que tinha acontecido comi- paradigma em relação às pessoas com deficiên-
go. Daí eu falei que era pólio; daí, pelo espanto dele, cia, pois rompe com uma abordagem baseada
eu fiquei preocupada, aí eu perguntei se tinha algu- na assistência e incorpora a dimensão dos direi-
ma coisa; ele falou que não, se fosse de nascença, tos, especialmente os civis e os políticos21.
sim, mas a pólio não tinha nenhuma interferência, Das mulheres entrevistadas somente três de-
então eu fiquei tranquila. E, depois que eu fiquei na las apresentam um discurso sobre si no qual se
gravidez do filho, a gravidez dos nove meses, eu tive reconhecem como cidadãs, pessoas com direitos
uma gravidez maravilhosa, nunca tive problema e responsabilidades, e que se engajaram em mo-
nenhum na gravidez [...] [O parto] foi cesária, vimentos em prol das pessoas com deficiência.
porque ele era muito grande, eu era muito peque- Duas delas citam a Convenção, mas ainda com
ninha... E, eu sei que próximo do meu bebê nascer, certo ceticismo em relação ao seu cumprimento.
cada um falava uma coisa, teve um dia que eu en- Agora a partir de agora o Brasil é obrigado a
trei na paranoia e chorei o dia inteiro, porque eu cumprir a Convenção, o que significa isso, que to-
tinha preparado o berço do nenê, pra me internar e das as leis federais, estaduais e municipais têm que
chegar com ele todo bonitinho, e não sei quem que seguir a Convenção. Mas a gente sabe que isso não
falou se eu já tinha pensado na possibilidade desse acontece porque hoje de todas as leis, a única que
nenê não vir aqui pra casa. Ele podia nascer morto, existe sanção, que tem multa mesmo é a lei de cotas
podia ficar por lá mesmo, então quer dizer, eu me das empresas. As demais leis de acessibilidade, por
tranquei naquele dia, eu chorei que nem louca, exemplo, que os postos de saúde sejam acessíveis,
então eu fiquei o dia inteiro desesperada. Aí, quan- não existe multa, e não existe multa nem fiscaliza-
do o meu marido chegou, aí ele falou “não pensa ção. Tudo bem, o Brasil hoje é um dos países que
besteira, não é por aí as coisas”; daí eu levantei e tem uma das melhores legislações em relação à pes-
continuei de cabeça erguida. Até que, ele nasceu, soa com deficiência, um dos melhores mesmo, com-
nasceu um menino muito grande, bonito (Neusa). parado até aos Estados Unidos, o problema é que
A experiência da maternidade para algumas não tem fiscalização (Luciana).
mulheres com deficiência possibilita a “recaptura” As demais associam seus direitos às possibi-
da identidade feminina perdida. Entretanto, elas lidades de acessarem benefícios sociais, como a
relatam empreender grandes esforços para corres- isenção na tarifa do transporte coletivo e o bene-
ponder às expectativas sociais de serem mães ade- fício de um salário mínimo do INSS caso vivam
quadas, pois, como bem mostrou Neusa, enfren- em situação de pobreza. Nesse sentido, reivindi-
tam o ceticismo do meio social quanto às suas ca- cam menos a participação política e mais uma
pacidades de gerar e cuidar de um filho20. ação assistencial do Estado em relação a elas.
As mulheres com deficiência intelectual, como Os direitos que até agora eu tive foi receber
Tainá e Miriam, relatam o desejo de ter uma rede [...] Eu sou aposentada.[...] Fui [atrás disso] mais
869

Ciência & Saúde Coletiva, 18(3):863-872, 2013


minha prima [ela me orientou][...] Ela sabia, tem então eu quero ser atendida aqui, eu não vou su-
esse direito, aí dei entrada umas três vezes, fiquei bir”. Aí a diretora veio, acharam, a maca tava
pensando que eu não tinha direito, mas quando enfiada dentro de um depósito lá com um monte de
foi na quarta vez a gente conseguiu.[...] Eu acho coisa, tiraram a maca, limparam, passaram álcool
que um direito é quando eu vou também andar na hora e me atenderam. Esse dia eu fiz, daí o meu
nos ônibus, eles respeita é muito [...] Nem pago, e filho falou “mas cê gosta de causar”. Não é que eu
quando eu entro eles veem que eu tô dentro, eles já gosto de causar, ela tava aí, eu pedi, e não sou só eu
se levanta, me dão o assento.[...] Tenho carteiri- que preciso. Tem muitos deficientes no bairro, tem
nha prá mim e o acompanhante (Marcia, defici- idoso, tem obeso, só que aí agora eu não tenho
ente visual) acompanhado mais (Neusa).
Já a vulnerabilidade programática diz respei- Luciana relata o quanto os profissionais são
to à falta de políticas assistenciais que contem- despreparados em relação às questões ligadas à
plem as especificidades das mulheres com defici- sexualidade das mulheres com deficiência. Por
ência, à falta de acessibilidade física e comunica- outro lado, das 15 mulheres entrevistadas, cinco
cional nos serviços regulares de saúde – como as são separadas (três após a aquisição da deficiên-
unidades básicas de saúde, ambulatórios e hos- cia), duas são casadas e oito são solteiras. Oito
pitais – à falta de sensibilização e capacitação dos mulheres não têm filhos e sete são mães de mais
profissionais de saúde, à falta de reconhecimen- de um filho. Das sete mulheres com filhos, três
to nos serviços dos direitos humanos das mu- tiveram filhos após a aquisição da deficiência, o
lheres com deficiência, a fim de protegê-los e pro- que corrobora o fato de que mulheres com defi-
movê-los, como bem relata Neusa: ciência querem ter vida sexual ativa e necessitam
E o papanicolaou até hoje a gente tem proble- de atenção em relação à sua saúde sexual e re-
ma porque a sala de gineco é lá em cima, tem esca- produtiva.
da, e eu já fiz entrevista com o pessoal do serviço, A primeira ginecologista que eu fui que foi uma
veio um grupo aqui uma vez olhar a acessibilidade pessoa da família [...] tive uma experiência em re-
e a gente questionou isso. Aí teve uma época que lação à ginecologia muito triste. Eu fui numa mé-
como eu era conselheira do conselho de saúde aqui dica indicada pela família, na verdade eu fui leva-
[da região], [...] que a gente batalhou isso porque da, na verdade eu fui carregada, nem me falaram
tinha, a gente brigava muito, daí a gente conse- direito o que era. [Tinha] dezenove anos [...] quan-
guiu junto com a subprefeitura uma sala embaixo. do eu comecei a namorar um garoto com 18-19
Como eu sempre atuei na parte de acessibilidade anos, quando minha família ficou sabendo, fica-
eu testei a maca do gineco, tinha que cortar, por- ram desesperados, aí me levaram no médico e foi
que daí eu pedi essa sala prá deficiente, idoso e uma situação horrível, porque a ginecologista co-
obeso, e eles fizeram tudo bonitinho, só que assim, locou um livro de anatomia na minha cara, olhou
eu fiz um exame só e não fui mais, aí o pessoal falou e falou, tá vendo isso daqui, você não pode usar!
que ia tirar porque os deficientes não tavam usan- Falou assim: ‘olha, você tem tudo igual, você sabe o
do.[...] Agora tá assim, agora tem um grupo do que é o aparelho reprodutor? Então você tem que
PSF, acho que tá melhorando que eu espero que ele saber que você não pode fazer nada com o seu cor-
continue. Só que eu não tenho feito o papanico- po. Foram essas as palavras que ela usou.[...]
laou agora com esse grupo. Só que a última vez que [Quem me levou] foi uma tia da família. Uma
eu fui no posto, antes de implantar o PSF, foi o senhora de idade, com uma certa preocupação, ló-
maior show porque a médica não quis colher o gico, mas, é importante registrar isso porque as-
meu papanicolaou. Por que tem uma lei que obri- sim, independente da situação da família, a profis-
ga o médico a descer se o deficiente tá aqui embai- sional em nenhum momento poderia ter agido des-
xo ele tem que descer, porque eu não posso subir até sa forma. Em nenhum momento! Nem que a famí-
ele de escada. Aí ela desceu, só que não tinha maca lia tivesse falado pra ela: ‘Faça assim! Fale desse
pra colher o papanicolaou. Aí eu fiz o maior show. jeito’, ela teria que conversar com a família e falar
“Cadê? Tem. Eu acompanhei e essa maca existe! ‘eu enquanto profissional não posso ser antiética,
Prá onde que ela foi?” Daí chamaram a diretora não posso agir dessa forma’. Então, assim, me trau-
do posto, a diretora veio toda preocupada, como matizou muito. [...] Foi uma situação chatíssima,
que ia fazer, daí a médica disse: “Ó se você quiser muito dolorosa, porque eu fui pensando que eu ia
nós pede pro segurança levar você lá encima”. Eu esclarecer dúvidas, porque eu tinha um monte de
falei “não, meu filho tá aqui comigo, só que eu não pergunta, e assim: não pediu nenhum exame, nem
quero ter que subir lá encima, eu quero o direito sequer pensou na minha situação de saúde. Não
de ser atendida aqui embaixo. Esse é o meu direito, pediu nada. Não pensou na questão da saúde, só
870
Nicolau SM et al.

pensou na questão da relação sexual. Que eu nem permite uma ampliação do nosso olhar para além
sonhava ainda!! Porque eu ainda tava no começo de demandas relativas a alterações morfofunci-
do namoro, sabe, ainda tava em beijos e abraços, onais de seus corpos, assim como para as distin-
imagina, não tinha uma coisa, e se tivesse eu iria ções, que constituem efetivamente desigualdades,
perguntar, eu nunca iria fazer nada, porque eu sou ou discriminações médico-sanitárias, inscritas em
uma pessoa muito responsável, até demais, e mes- suas condições de usuárias de serviços públicos
mo assim não justifica uma atitude dessas. [...] Eu de atenção primária à saúde.
quando fui no médico agora que eu te falei que fiz Tate e Weston18 e Rao3 apontam que as mu-
os últimos exames, foi um homem. O cara não quis lheres com deficiência sofrem discriminação em
nem tocar em mim. Ficou olhando assim, parecia diferentes culturas e sociedades, sendo maior nos
que ficou assustado, aí timidamente ele pergun- países mais pobres e geralmente incrustrada em
tou, depois que perguntou das partes de saúde e tal, valores tradicionais que restringem as chances
falou dos exames, aí ele perguntou: ‘Ah mas você de desenvolvimento pessoal às mulheres. As au-
usa preservativo? cê toma pílula? não sei o que. Em toras apontam a necessidade de investimentos
vez dele logo falar ‘você tem vida sexual ativa?’ na educação e qualificação profissional das mu-
Como é que faz, tem algum problema, tem alguma lheres com deficiência a fim de que consigam
dúvida, tá precisando de alguma coisa? (Luciana) autonomia financeira, além da necessidade de
Outro aspecto levantado diz respeito à atitu- mudanças nas atitudes frente a elas, pois em al-
de do serviço em relação às mulheres com defici- gumas sociedades tradicionais as mulheres só
ência, como a falta de prioridade no atendimen- adquirem uma maior participação na vida social
to, o despreparo e a falta de interesse dos profis- após o casamento, e aquelas com deficiências
sionais às suas demandas específicas. geralmente experimentam o isolamento domici-
Falta um pouquinho de preparação [...] ele liar desde a infância e na vida adulta são mais
devia perguntar: “- É cadeirante? Não é?” Ver se o rejeitadas como esposas.
Posto, às vezes, pode atender.[...] Eu acho que [o Acreditamos ser urgente, portanto, a instau-
serviço não se empenha] porque [...] chega lá, ela ração de outro olhar e outros contextos assisten-
é deficiente, ela não anda, tem problema mental, ciais, regidos por práticas de saúde ampliadas, para
ela não tem tolerância a chegar num Posto de Saú- que os serviços e a equipe de seus profissionais
de e ficar esperando todo mundo passar pra depois possam se aproximar do conjunto diverso de ques-
chegar a vez dela. Ela não. Ela já quer passar [...] tões que se situam nas necessidades de saúde des-
Ninguém passa ela na frente. Tem que aguardar lá. sas mulheres. Olhar para os seus contextos de vida
Esperar. Eles não passam [...] Teve uma vez lá que faz com que as preocupações das práticas de saú-
ela começou a ficar nervosa, começou pedir: “- Eu de se voltem para dimensões da vida relacional
quero ir embora. Eu quero ir embora. Eu quero ir dessas mulheres, captando com maior riqueza
embora.” Aí eu tive que pedir pra pessoa que tava tanto aspectos psicossociais como socioculturais.
na frente, deixar eu passar ela porque... Aí eu falei Nesse sentido, abordagens concebidas a partir dos
com o médico e o médico passou. Porque o [aten- pressupostos da integralidade em saúde nos pare-
dente] lá da frente, eles não colocam, assim, a ficha cem as mais potentes no enfrentamento e supera-
dela. Aí ela fica, ela não tem paciência de chegar e ção das diversas vulnerabilidades às quais as mu-
esperar. Aí já começa: “- Eu quero ir embora. Eu lheres com deficiência estão submetidas.
quero ir embora.” E já começa. Começa a beliscar, Um dos aspectos, porém, que ainda é pouco
apertar a gente, agarrar as pessoas que passam. E estudado e raramente detalhado nas formula-
fica assim. (mãe da Diana). ções de uma atenção integral, é o da incorpora-
ção de conhecimentos, formas de identificação e
ações de promoção dos direitos humanos e soci-
Considerações finais ais nas práticas de saúde cotidianamente desen-
volvidas nos serviços. Embora a pauta dos direi-
Retomando a discriminação socioeconômica e a tos seja sempre lembrada nas políticas de saúde e
excessiva medicalização da deficiência enquanto permeia o discurso programático da atenção in-
os dois eixos enfatizados pela literatura no estu- tegral5,19, pouco se sabe acerca do modo como os
do das mulheres com deficiência, constatamos o direitos são articulados nos processos assisten-
quanto estão presentes nas situações relatadas ciais e nas ações de prevenção ou promoção da
pelas nossas entrevistadas. Por outro lado, a iden- saúde nos serviços.
tificação das diferentes dimensões da vulnerabi- O relatório sobre a situação mundial das pes-
lidade na experiência cotidiana dessas mulheres soas com deficiência22 aponta três razões que jus-
871

Ciência & Saúde Coletiva, 18(3):863-872, 2013


tificam a deficiência como uma questão de direi-
tos humanos: a experiência da desigualdade no
acesso a saúde, educação, emprego e participa-
ção política; uma maior sujeição a situações de
violação da dignidade pelo abuso, violência, pre-
conceito e desrespeito; e, a negação da autono-
mia das pessoas com deficiência quando sujeitas
à esterilização involuntária, confinadas em insti-
tuições contra a sua vontade, e/ou vistas como
legalmente incompetentes.
Não obstante, a questão dos direitos é mui-
tas vezes tratada de modo reduzido a dificulda-
des de obtenção de alguns dos benefícios sociais,
formulados pela legislação trabalhista ou outras
de assistência social. O reconhecimento das ini-
quidades e sua correção pela afirmação dos di-
reitos das mulheres com deficiência, nesta dupla
situação de desigualdade, pouco se revela, ainda,
como uma forma de corrigir, na saúde, as vulne-
rabilidades dessas mulheres.

Colaboradores

SM Nicolau, LB Schraiber e JRCM Ayres partici-


param igualmente de todas as etapas de elabora-
ção do artigo.
872
Nicolau SM et al.

Referências

1. Lewis AN, Brubaker SJ, Armstron AJ. Gender and 13. Schraiber LB, Mendes-Gonçalves RB. Necessida-
disability: a first look at rehabilitation syllabi and a des de saúde e atenção primária. In: Schraiber LB,
call to action. Rev disabil stud 2009; 5(2):3-13. Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB, organizado-
2. Lloyd M. Does she boil eggs? Towards a feminist res. Saúde de adulto: programas e ações na unidade
model of disability. Disabil Soc. 1992; 7(3):207-221. básica. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 29-47.
3. Rao I. Equity to women with disabilities in India. 14. Diniz D. Modelo social da deficiência: a crítica femi-
Bangalore 2004; CBR Network. [acessado 2011 out nista. Brasília: Letraslivres; 2003. (Série Anis, n. 28).
28]. Disponível em: http://v1.dpi.org/lang-en/re- 15. Garland-Thomson R. Re-shaping, re-thinking, re-
sources/details.php?page=90 defining: feminist disability studies. Washington:
4. Neri M, Pinto A, Soares W, Costilla H. Retratos da Center for women policy studies; 2001.
deficiência no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Ge- 16. Fine M, Asch A, editores. Women with disabilities:
túlio Vargas, Instituto Brasileiro de Economia, Cen- Essays in psychology, culture, and politics. Philadel-
tro de Políticas Sociais; 2003. phia: Temple University Press; 1988.
5. Figueiredo WS. Masculinidades e cuidado: diversi- 17. Vieira EM. A medicalização do corpo feminino. Rio
dade e necessidades de saúde dos homens na aten- de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2002.
ção primária [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de 18. Tate DG, Weston NH. Women with disabilities: an
Medicina da Universidade de São Paulo; 2008. international perspective. Rehabil Lit 1982; 46(7-
6. Mota A, Schraiber LB. Atenção Primária no Siste- 8):222-227.
ma de Saúde: debates paulistas numa perspectiva 19. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Direitos sexuais e
histórica. Saúde Soc 2011; 20(4):837-852. reprodutivos na integralidade de atenção à saúde de
7. Gomes R, Moreira MCN, Nascimento EF, Rebello pessoas com deficiência/Ministério da Saúde. Secreta-
LEFS, Couto MT, Schraiber LB. Os homens não ria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações
vêm! Ausência e/ou invisibilidade masculina na Programáticas Estratégicas. Brasília: MS; 2009.
atenção primária. Cien Saude Colet 2011; 16(Supl. 20. Grue L, Laerum KT. “Doing motherhood”: some
1):983-992. experiences of mothers with physical disabilities.
8. Hanna WJ, Rogovsky B. Women with disabilities: Disabil Soc 2002; 17(6):671-683.
two handicaps plus. Disabil Soc 1991; 6(1):49-63. 21. Dhanda A. Construindo um novo léxico dos direi-
9. Ayres JRCM, Calazans GJ, Saletti-Filho HC, França- tos humanos: Convenção sobre os direitos das Pes-
Junior I. Risco, vulnerabilidade e práticas de pre- soas com Deficiências. Sur: Rev. Int. de Direitos
venção e promoção da saúde. In: Souza GW, Mi- Humanos 2008; 5(8):43-59.
nayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, orga- 22. World Health Organization/The World Bank. World
nizadores. Tratado de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, report on disability. 2011 [acessado 2011 jul 25]. Dis-
São Paulo: Fiocruz, Hucitec; 2006: 375-417. ponível em: http://www.who.int/disabilities/world_
10. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas report/2011/report/en/index.html.
reflexões acerca de valores que merecem ser de-
fendidos. [acessado 2011 jul 18] [cerca de 16p.]
Disponível em: http://www.lappis.org.br/media/
artigo_ruben1.pdf
11. Mattos RA. A integralidade na prática (ou sobre a
prática da integralidade). Cad Saude Publica 2004;
20(5):1411-1416.
12. Ayres JRCM. Organização das Ações de Atenção à Artigo apresentado em 15/09/2011
Saúde: modelos e práticas. Saúde Soc 2009; 18(Supl. Aprovado em 20/10/2011
2):11-22. Versão final apresentada em 16/11/2011

Você também pode gostar