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Cristiano Perius 1
A leitura da leitura
Blaise Pascal
Prólogo
de Hamlet outro cenário, onde se apresenta uma tragédia que é mais ou menos
guerra contra os demônios. No livro final, os filhos de Rama, não sabendo quem
é seu pai, buscam amparo em uma selva, onde um asceta os ensina a ler. Esse
1 Pós-doutorado USP/FAPESP
ordena um sacrifício de cavalos; a essa festa se apresenta Valmiki com seus alunos.
Estes, acompanhados pelo alaúde, cantam o Ramayana. Rama ouve sua própria
história, reconhece seus filhos e logo recompensa o poeta... Algo parecido ocorre
mas sem reatar suas realidades, e o efeito (que deveria ser profundo) é superficial,
como uma alfombra persa. É conhecida a história liminar dessa série: o desolado
juramento do rei, que cada noite desposa uma virgem a ser decapitada no dia
seguinte, e a resolução de Sherazade, que o distrai com suas fábulas, até que por
ambos se tenham passado mil e uma noites... e ela lhe mostra o filho. A necessidade
Nesta, o rei ouve da boca da rainha a sua própria história. Ouve o princípio da
aquela desta noite. Intui claramente o leitor a vasta possibilidade dessa noite, o
espantoso perigo? Que a rainha persista e o imóvel rei ouvirá para sempre a
filosofia não são menos fantásticas do que as da arte: Josiah Royce, no primeiro
volume da obra The word and the individual (1899), formulou a seguinte idéia:
detalhe do solo da Inglaterra, por diminuto que seja, que não esteja registrado no
mapa. Tudo tem aí correspondência. Esse mapa, em todo caso, deve conter um
mapa do mapa, que deve conter um mapa do mapa do mapa, e assim ao infinito. 2
O que devemos ler nessa passagem de Borges, que nos serve de prólogo, é
a possibilidade ficcional de se abrir uma fenda no texto e inscrevê-lo em abis-
mo, como Hamlet deslumbra, no interior da tragédia, o drama do drama, e
Sherazade, numa noite emblemática, a história da história. Possibilidade que
vislumbra, na superfície do livro, outro livro em rubrica, miniatura do pri-
meiro e insigne do todo. Se é assim, isto é, se As mil e uma noites estão contidas
em uma noite, e Hamlet se percebe espectador do espetáculo no pequeno
drama dentro do grande , e Dom Quixote é leitor de Dom Quixote, há uma
inversão, permitida pela literatura, que coloca o autor no lugar do leitor, esta-
belecendo no tempo uma máquina do tempo, capaz dos mais impossíveis
deslocamentos.
O mapa do mapa
Gramática e retórica
não o real, a representação se enlaça no que representa e ilude aquele que a usa.
alma, da razão sobre a paixão, da clareza sobre a vitalidade, para guardar a exigência
8 Como era o ponto de vista prático ou político o primeiro objeto da análise de Bento em sua
leitura de trás para frente, como ele mesmo sugere, começando pelo último capítulo do En-
saio. Cf. A força da voz e a violência das coisas (Prado Jr, 1988).
9 Derrida, De la grammatologie (1967: 56).
186 Cristiano Perius
pela norma de uma verdade ética: a crítica da linguagem não é mais a das ilusões
Completando o périplo
10 Mais ou menos como nas expressões populares: Olhei, mas não vi; ouvi, mas não entendi...
(Melhor dito em francês: entendre = ouvir, no sentido de prestar atenção, compreender,
entender quando já se emprestou as orelhas.) Há uma passagem do lógos à ratio, do fenômeno
de ver à idéia, razão pela qual Heidegger sublinha que, nos poetas, o falar é um ouvir. Cf.
Souche-Dagues, 1999.
11 Prado Jr, 1988: 14.
A leitura da leitura 187
primeiras, a verdade de toda experiência, (...) e aquela que sonha com uma
linguagem tão pouco refletida, tão pouco construída e tão natural, que poderia
12 Idem: 27.
13 Cf. o capítulo XX do Ensaio sobre a origem das línguas: As sociedades adquiriram sua última
forma: nelas só se transforma algo com artilharia ou escudos; e como nada mais se tem a dizer
para o povo, a não ser dai dinheiro, dizêmo-lo com cartazes nas esquinas ou soldados nas casas.
(Rousseau: 1988).
188 Cristiano Perius
Tortuosa ipseidade
14 Ricoeur, 1991.
15 Em Sobre Deleuze: uma entrevista. In Prado Jr, 2004: 251.
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de-coisa. Tudo se passa, enfim, como se essa figura do sujeito, como limite da
como o olho não está dentro do campo de visão), fosse a forma terminal de um
16 E quanto mais se poderia pensar na idéia de Abgrund, de Heidegger, abismo, fundamento sem
fundo, como se caminhássemos do eu penso cartesiano, fundamento do sujeito, até cair no
precipício.
17 Descartes e o último Wittgenstein: o argumento do sonho revisitado (Ibid: 97).
18 Prado Jr, Plano de imanência e vida (ibid: 146).
19 Cf. Où je suis: topique du corps et de l´esprit (Audi, 2004).
190 Cristiano Perius
Sem fronteiras
Tudo isso para dizer que, no mapa filosófico de Bento, as fronteiras são facil-
mente atravessadas. Vejamos dois exemplos. O primeiro deles a propósito de
RyleSartre, quando da análise da imaginação.
O texto do parágrafo acima, Descartes e o último Wittgenstein, já ofere-
ce uma passagem de O imaginário, de Sartre. Vamos a ela:
Um juízo do tipo eu sonho é no limite impossível ou contraditório; num mes-
mo instante não podem coincidir ou conviver essas duas consciências [eu sonho,
eu penso que sonho]. O único juízo que podemos formular, diz Sartre, é jai revé
21
[eu sonhei].
20 Descartes e o último Wittgenstein: o argumento do sonho revisitado (Prado Jr, ibid: 101).
21 Ibid: 93.
A leitura da leitura 191
A prova de que a sentença eu estou dormindo não é suscetível de uso correto,
como presente do indicativo, reduz-se à prova de que não pode exprimir uma
22
possibilidade.
ção como a intenção que visa um objeto na sua ausência. Pouco importa a diferen-
teoria da má-fé, no Ser e o nada, desenvolve uma teoria da simulação que parece
22 Ibidem.
23 Prado Jr, A imaginação: fenomenologia e filosofia analítica (2000a: 62).
24 Ibid: 53.
192 Cristiano Perius
filosofia, ou seja, a pergunta: por que há o Ser e não o Nada? Os textos cruciais
lógica como psicológica, que nada mais exprime do que um déficit ao mesmo
O resultado dessa análise recai, como sabemos, tanto para Bergson quanto
para Wittgenstein, na dissolução dos problemas da filosofia. Porque são re-
solvidos? Não. Porque não são colocados. Mas, se é verdade que Bento atra-
vessa facilmente as fronteiras da História da Filosofia trocando em miúdos,
25 Ibid: 54.
26 Ibid: 58.
27 Tratava-se, ali, da psicanálise e do behaviorismo, a partir do caso especial da esquizoanálise. Cf.
Hume, Freud, Skinner (em torno de um parágrafo de Deleuze). Prado Jr, 2000a.
28 Prado Jr, Bergson, 110 anos depois (2004: 262-263).
A leitura da leitura 193
Tecnicidade X significação
renovação da visão da filosofia de Waisman [ou a boa leitura que ele faz de
Wittgenstein] transformaria seguramente a totalidade da cena intelectual pós-
wittgensteiniana tanto as auto-imagens dos soi-disants filósofos analíticos
quanto seu être-pour-autrui.32 A abertura desse texto, que rememora, como
sabemos, a publicação da tese sobre Bergson, dezesseis anos depois, é um
livro velho para leitores novos, dada a decadência do tempo presente:
Se meu livro levasse um leitor a reler Bergson particularmente nestes tempos
tratava para mim, na ocasião, de um simples gesto retórico: com essa última frase
Ready-made paper
É preciso ler e reler os ensaios de Sartre. É preciso fazê-lo sem pressa, muito devagar,
para poder retomar a questão, agora em nova forma, já que não se pode mais falar
sequer de uma crise do ensaio. Esse gênero está, hoje, em estado terminal,
agonizante. Ele foi substituído pelo gênero trash do paper [Em nota: Logo logo
ou científica e ela sofre dos mesmos males perpétuos. Mas jamais alguém viu aparecer
nem Heidegger nem Sartre em um congresso. E existem reuniões não formais: Heidegger
veio a Cerisy, os ingleses a Royaumont, portanto o Ocidente filosófico não está somente
dividido, como é natural, mas separado: o positivismo lógico reina em países anglo-
Por que? É uma idéia americana e uma idéia temerária crer que a claridade
Paramos por aqui o estrondo das frases que arrepiam os cabelos de qual-
quer ser vivo acadêmico (sem perder a polêmica em torno dos índices de
produtividade, da CAPES e do CNPQ coeficientes da tecnicidade, inver-
samente proporcional, em filosofia, ao interesse e significação... , que cor-
tam as cabeças, distribuem o dinheiro e classificam os alunos, professores e
departamentos).
Merleau-Ponty
Uma vez evocada, in nuce, a crítica ao modelo de pesquisa que usa critérios
positivos na política de gestão dos recursos para a filosofia, queremos apro-
ximar ainda mais os apontamentos de Bento e Merleau-Ponty. O sentido
dessa aproximação conclui a reflexão sobre o valor acadêmico do trabalho
filosófico, de um lado, cujo modelo é o trabalho técnico, científico, e o
valor ensaístico, de outro (no melhor sentido da palavra: tentativa, ex-
perimento, exercício).
Nas Notas de curso, Merleau-Ponty diz:
Não faço História da Filosofia: rememoração do passado em si mesmo, mas o
passado evocado para compreender o que pensamos. Por que esse retorno? Porque
filosofia explícita. [Em nota: e que mesmo a recusa: quer ser não-filosofia, e no
38
entanto não é extra-filosófica.]
Mais tarde, nas Notas de curso sobre a Origem da Geometria de Husserl, que foi
seu último curso em vida, Merleau-Ponty falará de um vazio determinado:
uma falta, uma privação, uma dimensão (novo tipo de existência intelectual),
[...] evidência lateral, entre os atos, e tudo isso porque pensar não é ter, mas
não ter.39 Numa palavra, qual é o ponto, isto é, o que estamos exatamente
procurando? A força heurística, ligada à descoberta do conceito, pois um tra-
balho de filosofia não deveria provar o que nós já sabemos. Nesse momento
não se quer abolir o rigor técnico, em benefício de não sei qual recurso esté-
tico, de efeito artístico, mas constatar que, entregues à sorte das bancas ou
reduzidos aos papers, acabaremos por escrever cada vez mais sobre menos,
ocupados com a técnica do pensamento e não com a experiência do
pensamento, como diria um Heidegger do fundo do poço, depois da maldi-
ção das filosofias analíticas. Não se trata de multiplicar, também a atropelo, a
favor de Heidegger (como se tivéssemos que escolher entre ser pró ou ser
contra), sua linguagem ad nauseam, e nesse sentido a crítica da filosofia analí-
tica a ele endereçada tem algum sentido. Ao lado de Benedito Nunes, Bento
está livre do efeito Heidegger, mas nem por isso o deixava de lado, como é o
caso em 1999: Estou relendo a obra de Heidegger, dizia. Não que Bento
adorasse Heidegger (preferia Merleau-Ponty), mas não ignorava os efeitos de
sua filosofia e por isso a conhecia (especialmente o texto Kant e o problema
da metafísica, e Época da imagem do mundo, do Holzwege). Não pense-
mos, por isso, que desconsiderava a filosofia de Descartes e Kant, em relação
a Heidegger, Wittgenstein, Merleau-Ponty. Não é o fundamento que sustenta
o edifício, é o edifício que sustenta o fundamento. Com essa afirmação de
Bento, podemos compreender por que passava meses na ordem das razões
de Descartes e de Espinosa, jamais perdendo de vista os juízos sintéticos de
Kant. Ali, a profundidade era completa. Fiel ao espírito de Merleau-Ponty,
não separava os filósofos em dogmáticos e metafísicos, esperando dos ultra-
modernos as luzes que faltam. Talvez porque tanto para um, quanto para
outro (Bento e Merleau-Ponty), a História da Filosofia nunca acaba, e nesse
sentido perdemos de vista (nós: seus alunos, em qualquer que fosse a discipli-
na) a freqüência com que ia e voltava, jamais satisfeito do fim. Bento tinha
razão quanto a isso: a filosofia não é jamais um affair técnico, mas de compre-
ensão intuitiva, atualizada, revivida, reinventada, de maneira infinita, todos
os dias.
Drummond
nítido em seu perfil, mas ele é escuro, maciço, espesso e pesado. Forma natural,
morro fala e tem sentido; como as coisas da natureza, ele é e transcende o falar
humano. Essa estranha união nos faz pensar nos artefacta: pois é no objeto técnico
remete a outro objeto ambíguo. Pois a pirâmide é mais que um objeto técnico, é
mais que um edifício ou que uma sepultura. Limiar entre a vida e a morte, a
que torna possível o comércio entre o homem e os deuses, que possuem o segredo
do destino. É por isso que o destino do homem passa por esse espaço e é por isso
Não é preciso dizer que podemos ler, nessa pirâmide, por detrás do morro
assombroso de Guimarães Rosa, nas veredas secretas de Cordisburgo
(Maquiné?), o destino cifrado de outra pedra colossal. Drummond:
O Enigma
As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o
Mas a coisa sombria desmesurada, por sua vez aí está, à maneira dos
travou o avanço das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por igual às
árvores, enquanto não chega o dia dos ventos, e o dos pássaros, e o do ar pululante
paralisar o mundo.
Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas fibras, mas não se
menos favorecidas.
e antecipa uma verdade que é mais que literária. Há uma verdade própria da
quotidiana até então insuspeitado. Ela funciona como uma psicanálise da práxis,
que ela recalca; a literatura não cria ex nihilo seus significados, mas interrompe
sua circulação anônima no seio da vida social e lança luz sobre eles. Escrever é
justamente deter essas vagas anônimas que atravessam sem encontrar resistência
a consciência espontânea, fixar seu perfil fugidio e reconstruir os elos que unem
reorganiza sua face visível segundo sua verdade secreta; empresa de clarificação e
com o sentido geral de sua prática, leitor e escritor percorrem o mesmo itinerário
De volta ao prólogo
tenham sido enunciadas alguma vez, e, quem sabe, muitas vezes. A discussão
de sua novidade me interessa menos do que sua verdade possível47 .
Mas notem, caros leitores, que se a leitura da verdade é possível, é veros-
símil que a leitura da leitura seja fictícia, e que esse leitor (Cristiano Perius),
mais ainda.
Referências Bibliográficas
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a
Prado Jr., Alguns ensaios. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
. Notes des cours. (texte établi par Stéphanie Ménasé). Paris : Gallimard, 1996.
. Notes de cours sur l´Origine de la Géométrie de Husserl. Paris: PUF, 1998.
Prado Jr, B. A força da voz e a violência das coisas. In J.-J. Rousseau, Ensaio sobre a
origem das línguas. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
a
. Alguns ensaios. 2 . ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000a.
. Regras de um método filosófico. Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 25 junho
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. Vasta periferia. Caderno Mais!, Folha de São Paulo. 27 de outubro 2002
(edição comemorativa do centenário de nascimento de Carlos Drummond de
Andrade).
203
. Sartre e o destino histórico do ensaio. In J.-P. Sartre, Situações I (trad. Cristina
Prado; prefácio de Bento Prado Jr.). São Paulo: Cosac Naify, 2005.
Rousseau, J-J. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.