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Capítulo 1

C o n c e ito s g erais

L IN G U A G E M , L Í N G U A , D IS C U R S O , E S T ILO

1. Lin g u a g e m é “um conjunto complexo de processos — resultado de uma


certa atividade psíquica profundamente determinada pela vida social — que
torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma l ín g u a qualquer”1.
Usa-se também o termo para designar todo sistema de sinais que serve de
meio de comunicação entre os indivíduos. Desde que se atribua valor con-
vencional a determinado sinal, existe uma l in g u a g e m . À lingüística interes-
sa particularmente uma espécie de l in g u a g e m , o u seja, a l in g u a g e m f a l a d a o u
a r t ic u l a d a .

2. L ín g u a é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Ex-


pressão da consciência de uma coletividade, a l ín g u a é o meio por que ela
concebe o mundo que a cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade
da linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário,
tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que a
criou.

3. D is c u r s o é a língua no ato, na execução individual. E, como cada indiví-


duo tem em si um ideal lingüístico, procura ele extrair do sistema idiomá-
tico de que se serve as formas de enunciado que melhor lhe exprimam o
gosto e o pensamento. Essa escolha entre os diversos meios de expressão

Tatiana Slama-Casacu. Langage et contexte. Haia, Mouton, 1961, p. 20.


2 NOVA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO

que lhe oferece o rico re p ertó rio de possibilidades, que é a língua, d en om i-


na-se e s t il o .2

4. A distinção entre l in g u a g e m , l In g u a e d is c u r s o , indispensável do ponto de


vista metodológico, não deixa de ser em parte artificial. Em verdade, as três
denominações aplicam-se a aspectos diferentes, mas não opostos, do fenô-
meno extremamente complexo que é a comunicação humana.

A interdependência desses aspectos, salienta-a Tatiana Slama-Casacu, ao es-


crever: “A l ín g u a é a criação, mas também o fundamento da l in g u a g e m — que
não poderia funcionar sem ela — ; é, simultaneamente, o instrumento e o resul-
tado da atividade de comunicação. Por outro lado, a l in g u a g e m não pode exis-
tir, manifestar-se e desenvolver-se a não ser pelo aprendizado e pela utilização
de uma l ín g u a qualquer. A mais ffeqüente forma de manifestação da l in g u a -
g e m — constituída de uma complexidade de processos, de mecanismos, de
meios expressivos — é a l in g u a g e m f a l a d a , concretizada no d is c u r s o , o u seja, a
realização verbal do processo de comunicação. O d is c u r s o é um dos aspectos da
l in g u a g e m — o mais importante — e, ao mesmo tempo (...), a forma concreta
sob a qual se manifesta a l ín g u a . O d is c u r s o define-se, pois, como o ato de
utilização individual e concreto da l ín g u a no quadro do processo complexo da
l in g u a g e m . O s três termos estudados — l in g u a g e m , l ín g u a , d is c u r s o — desig-
nam no fundo três aspectos, diferentes mas estritamente ligados, do mesmo
processo unitário e complexo.”3

L ÍN G U A E S O C IE D A D E :
V A R IA Ç Ã O E C O N S ER V AÇ Ã O L IN G Ü ÍS T IC A
Embora desde princípios deste século lingüistas como Antoine Meillet e
Ferdinand de Saussure tenham chegado a configurar a língua como um fato
social, rigorosamente enquadrado na definição dada por Emile Durkheim4, só
nos últimos vinte anos, com o desenvolvimento da s o c io l in g ü ís t ic a , as relações
entre a língua e a sociedade passaram a ser caracterizadas com maior precisão.

2 Aceitando a distinção de Jules Marouzeau, podemos dizer que a l í n g u a é “a soma dos


meios de expressão de que dispomos para formar o enunciado” e o e s t i l o “ o aspecto e a
qualidade que resultam da escolha entre esses meios de expressão” (Précis de stylistique
française, 2,a ed. Paris, Masson, 1946, p. 10).
3 Obra cit., p. 20.
4 Vejam-se Antoine Meillet. Linguistique historique et linguistique générale, 2.a ed. Paris,
Champion, 1926, p. 16, 230 passinr, Ferdinand de Saussure. Cours de linguistique générale,
édition critique préparée par Tullio de Mauro. Paris, Payot, 1973, p. 31.
CONCEITOS GERAIS 3

A sociolingüística, ramo da lingüística que estuda a língua como fenômeno


social e cultural, veio mostrar que estas inter-relações são muito complexas e
podem assumir diferentes formas. Na maioria das vezes, comprova-se uma
covariação do fenômeno lingüístico e social. Em alguns casos, no entanto, faz
mais sentido admitir uma relação direcional: a influência da sociedade na lín-
gua, ou da língua na sociedade.
É, pois, recente a concepção de língua como instrumento de comunicação
social, maleável e diversificado em todos os seus aspectos, meio de expressão de
indivíduos que vivem em sociedades também diversificadas social, cultural e
geograficamente. Nesse sentido, uma língua histórica não é um sistema lin-
guístico unitário, mas um conjunto de sistemas lingüísticos, isto é, um
d ia s s is t e ma , no qual se inter-relacionam diversos sistemas e subsistemas. Daí o
estudo de uma língua revestir-se de extrema complexidade, não podendo pres-
cindir de uma delimitação precisa dos fatos analisados para controle das variá-
veis que atuam, em todos os níveis, nos diversos eixos de diferenciação. A varia-
ção sistemática está, hoje, incorporada à teoria e à descrição da língua.
Em princípio, uma língua apresenta, pelo menos, três tipos de diferenças
internas, que podem ser mais ou menos profundas:
1°) diferenças no espaço geográfico, ou v a r ia ç õ e s d ia t õ pic a s (falares locais, va-
riantes regionais e, até, intercontinentais);
2°) diferenças entre as cam adas socioculturais, ou v a r ia ç õ e s d ia s t r á t t c a s (nível
culto, língua padrão, nível popular, etc.);
3°) diferenças entre os tipos de m odalidade expressiva, ou v a r ia ç õ e s d ia e á s ic a s 5
(língua falada, língua escrita, língua literária, linguagens especiais, lingua-
gem dos hom ens, linguagem das m ulheres, etc.).

A partir da nova concepção da língua com o d ia s s is t e ma , to rn ou -se possível o


esclarecim ento de num erosos casos de polim orfism o, de pluralidade de n o r-
mas e de toda a inter-relação dos fatores geográficos, históricos, sociais e psico-
lógicos que atuam no com plexo operar de um a língua e orientam a sua deriva.
Condicionada de forma consistente dentro de cada grupo social e parte inte-
grante da competência lingüística dos seus membros, a variação é, pois, ineren-
te ao sistema da língua e ocorre em todos os níveis: fonético, fonológico,
morfológico, sintático, etc. E essa multiplicidade de realizações do sistema em
nada prejudica as suas condições funcionais.

Vcja-se Eugenio Coseriu. Structure lexicale et enseignement du vocabulaire. In Actes du


premier Colloque International de Linguistique Appliquée. Nancy, Université de Nancy,
1966, p. 199.
NOVA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO

Todas as variedades lingüísticas são estruturadas, e correspondem a siste-


mas e subsistemas adequados às necessidades de seus usuários. Mas o fato de
estar a língua fortemente ligada à estrutura social e aos sistemas de valores da
sociedade conduz a uma avaliação distinta das características das suas diversas
modalidades diatópicas, diastráticas e diafásicas. A língua padrão, por exem-
plo, embora seja uma entre as muitas variedades de um idioma, é sempre a
mais prestigiosa, porque atua como modelo, como norma, como ideal lin-
güístico de uma comunidade. Do valor normativo decorre a sua função coer-
citiva sobre as outras variedades, com o que se torna uma ponderável força
contrária à variação.
Numa língua existe, pois, ao lado da força centrífuga da inovação, a força
centrípeta da conservação, que, contra-regrando a primeira, garante a superior
unidade de um idioma como o português, falado por povos que se distribuem
pelos cinco continentes.

D IV E R S ID A D E G E O G R Á F IC A D A L ÍN G U A :
D IA L E T O E F A L A R

As formas características que uma língua assume regionalmente denomi-


nam-se DIALETOS.
Alguns lingüistas, porém, distinguem, entre as variedades diatópicas, o f a -
l ar DO DIALETO.
D ia l e t o seria “um sistema de sinais desgarrado de uma língua comum, viva
ou desaparecida; normalmente, com uma concreta delimitação geográfica, mas
sem uma forte diferenciação diante dos outros da mesma origem”. De modo
secundário, poder-se-iam também chamar dialetos “as estruturas lingüísticas,
simultâneas de outra, que não alcançam a categoria de língua”6.
Fa l a r seria a peculiaridade expressiva própria de uma região e que não apre-
senta o grau de coerência alcançado pelo dialeto. Caracterizar-se-ia, do ponto
de vista diacrônico, segundo Manuel Alvar, por ser um dialeto empobrecido,
que, tendo abandonado a língua escrita, convive apenas com as manifestações
orais. Poder-se-iam ainda distinguir, dentro dos f a l a r e s r e g io n a is , o s f a l a r es
l o c a is , que, para o mesmo lingüista, corresponderiam a subsistemas idiomáti-
cos “de traços pouco diferenciados, mas com matizes próprios dentro da estru-
tura regional a que pertencem e cujos usos estão limitados a pequenas circuns-
crições geográficas, normalmente com caráter administrativo”7.

6 Manuel Alvar. Hacia los conceptos de lengua, dialecto y hablas. Nueva Revista de Filologia
Hispânica, 15:57, 1961.
' lii, ibid., p. 60.
CONCEITOS GERAIS 5

No entanto, à vista da dificuldade de caracterizar na prática as duas modali-


dades diatópicas, empregaremos neste livro — e particularmente no capítulo
seguinte — o termo d ia l e t o no sentido de variedade regional da língua, não
im portando o seu maior ou menor distanciamento com referência á língua
padrão.

A N O Ç Ã O D E COR RETO

Uma gramática que pretenda registrar e analisar os fatos da língua cul-


ta deve fundar-se num claro conceito de norma e de correção idiomática.
Permitimo-nos, por isso, uma ligeira digressão a respeito deste controvertido
tema.
Os progressos dos estudos lingüísticos vieram mostrar a falsidade dos postu-
lados em que a gramática logicista e a latinizante esteavam a correção idiomáti-
ca e, com isso, deixaram o preceptismo gramatical inerme diante da reação
anticorretista que se iniciou no século passado e que vem assumindo, em nossos
dias, atitudes violentas, não raro contaminadas de radicalismo ideológico.8
Por outro lado, à idéia, sempre renovada, de que o povo tem o poder cria-
dor e a soberania em matéria de linguagem associa-se, naturalmente, outra — a
de considerar elemento perturbador ou estéril a interferência da força conser-
vadora ou repressiva dos setores cultos.
Contra essa concepção demolidora do edifício gramatical, pacientemente
construído desde a época alexandrina com base na analogia, levantam-se al-
guns lingüistas modernos, procurando fundamentar a correção idiomática em
fatores mais objetivos.
Dessa nova linha de preocupações foi precursor Adolf Noreen, o lingüista
sueco a cujas idéias geniais hoje se começa a fazer justiça.9
Para Noreen há três critérios principais de correção, por ele denominados
histórico-literário, histórico-natural e racional, o último, obviamente, o seu pre-
ferido.
De acordo com o critério histórico-literário, “a correção estriba-se essen-
cialmente em conformar-se com o uso encontrado nos escritores de uma épo-*

* Veja-se, a propósito, Angel Rosenblat. El critério de corrección lingüística: unidad y


pluralidad de normas en el espanol de Espana y América. Separata de P.l.L.E.I. El Simposio
de Indiana. Bogotá, Instituto Caro y Cuervo, 1967, p. 27. Consulte-se também Celso
Cunha. Língua portuguesa e realidade brasileira, 8.“ ed. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1981, p. 35-39, texto em parte aqui reproduzido.
'' I,eiam-se Björn Collinder, Les origines du structuralisme, Stockholm - Göteborg - Upsala,
Almqvist & Wrksell, 1962, p. 6 e ss.; Bertil Malmberg. Les nouvelles tendances de la linguislitpic,
trad. por Jacques Gengoux. Paris, P.U.F., 1966, p. 42, 52-55, 130, 184-186, 197, 279.
6 NO VA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO

ca pretérita”, em geral escolhida arbitrariamente. É o critério tradicional de


correção, fundado no exemplo dos clássicos.
O segundo critério, o histórico-natural de Noreen e que Jespersen prefere
chamar anárquico, baseia-se na doutrina, a que nos referimos, de que a lingua-
gem é um organismo que se desenvolve muito melhor em estado de completa
liberdade, sem entraves. Dentro desse ponto de vista não pode haver, em prin-
cípio, nada correto ou incorreto na língua.
Depois de deixar patente o caráter arbitrário do primeiro critério e o absur-
do do segundo, se levado a suas naturais conseqüências, Noreen tenta justificar
o único que resta, o dele Noreen, expresso na fórmula: “o melhor é o que pode
ser apreendido mais exata e rapidamente pela audiência presente e pode ser
produzido mais facilmente por aquele que fala”; ou no enunciado mais sintéti-
co de Flodstrõm: “o melhor é a forma de falar que reúne a maior simplicidade
possível com a necessária inteligibilidade”10.
Jespersen considera a fórmula de Noreen oportunista, individualista,
atomística, “pois que divide demasiado a comunidade lingüística em indiví-
duos particulares e olvida excessivamente o conjunto”11.
Em nome de que princípio se corrige, então, o falar de uma pessoa? Por que
uma criança aprende de seus pais que não deve dizer sube por soube, fazerei por
farei e, à medida que vai crescendo em anos, continua a ter o seu comportamen-
to lingüístico ora corrigido por outros, ora por esforço próprio?
Para Jespersen nenhum dos critérios anteriormente lembrados — e enume-
ra sete: o da autoridade, o geográfico, o literário, o aristocrático, o democrático,
o lógico e o estético — o explica. É evidente, no entanto, que existe algo que
justifica a correção, “algo comum para o que fala e para o que ouve”, e que lhes
facilita a compreensão. Este elemento comum é “a norma lingüística que am-
bos aceitaram de fora, da comunidade, da sociedade, da nação”12.
Todo o nosso comportamento social está regulado por normas a que deve-
mos obedecer, se quisermos ser corretos. O mesmo sucede com a linguagem,
apenas com a diferença de que as suas normas, de um modo geral, são mais
complexas e mais coercitivas. Por isso, e para simplificar as coisas, Jespersen
define o “lingüisticamente correto” como aquilo que é exigido pela comunida-
de lingüística a que se pertence. O que difere é o “lingüisticamente incorreto”.
Ou, com suas palavras: “falar correto significa o falar que a comunidade espera,
e erro em linguagem equivale a desvios desta norma, sem relação alguma com o

( alados por Otto Jespersen. Humanidad, nación, indivíduo, desde el punto de vista lin-
gOlstico, trad. por Fernando Vela. Buenos Aires, Revista de Occidente, 1947, p. 113 e 114.
11 ( llira cit., p. 120.
11 llilil,, p. 120 e ss.
CONCt II O S (,l M A I S 7

valor interno das palavras ou formas”. Reconhece, porém, que, independente


mente disso, “existe uma valorização da linguagem na qual o seu valor se medo
com referência a um ideal lingüístico”, para cuja formação colabora eficaz-
mente a “fórmula energética de que o mais facilmente enunciado é o que se
recebe mais facilmente”11*3.
Entre as atitudes extremadas — dos que advogam o rompimento radical
com as tradições clássicas da língua e dos que aspiram a sujeitar-se a velhas
normas gramaticais — , há sempre lugar para uma posição moderada, termo
médio que represente o aproveitamento harmônico da energia dessas forças
contrárias e que, a nosso ver, melhor consubstancia os ideais de uma sã e eficaz
política educacional e cultural dos países de língua portuguesa.
“Na linguagem é importante o pólo da variedade, que corresponde à ex-
pressão individual, mas também o é o da unidade, que corresponde à comuni-
cação interindividual e é garantia de intercompreensão. A linguagem expressa
o indivíduo por seu caráter de criação, mas expressa também o ambiente social
e nacional, por jeu caráter de repetição, de aceitação de uma norma, que é ao
mesmo tempo histórica e sincrônica: existe o falar porque existem indivíduos
que pensam e sentem, e existem ‘línguas’ como entidades históricas e como
sistemas e normas ideais, porque a linguagem não é só expressão, finalidade em
si mesma, senão também comunicação, finalidade instrumental, expressão para
outro, cultura objetivada historicamente e que transcende ao indivíduo”14.
A hipótese da “linguagem monolítica” não se assenta numa realidade, e a
sua corporificação nas gramáticas não tem sido benéfica ao ensino dos diversos
idiomas. “Sem nenhuma dúvida”, escreve Roman Jakobson, “para qualquer
comunidade lingüística, para todo indivíduo falante existe uma unidade de lín-
gua, mas esse código global representa um sistema de subcódigos em comuni-
cação recíproca; cada língua abarca vários sistemas simultâneos, cada um dos
quais se caracteriza por uma função diferente”15.
Se uma língua pode abarcar vários sistemas, ou seja, as formas ideais de sua
realização, a sua dinamicidade, o seu modo de fazer-se, pode também admitir
várias normas, que representam modelos, escolhas que se consagraram dentro
das possibilidades de realizações de um sistema lingüístico. Mas — pondera

11 Ibid., p. 178.
'* Eugênio Coseriu. La geografia lingüística. Montevideo. Universidad de la República, 1956,
p. 44-45. A propósito, consultem-se também os magistrais estudos do autor: Sistema,
norma y habla e Determinación y entorno, agora enfeixados no volume Teoria dei lenguaje
y lingüística general. Madrid, Gredos, 1962, p. 11-113 e 282-323.
" Closing Statement: Linguistics and Poetics. In Style in Language. Edited by Thomas A.
Sebcok. New York-London, M.I.T. 8c John Wiley, 1960, p. 352.
8 NOVA GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO

Eugênio Coseriu, o lúcido mestre de Tübingen — se “é um sistema de realiza-


ções obrigatórias, consagradas social e culturalmente”, a norma não correspon-
de, como pensam certos gramáticos, ao que se pode ou se deve dizer, mas “ao
que já se disse e tradicionalmente se diz na comunidade considerada”16.
A norma pode variar no seio de uma mesma comunidade lingüística, seja de
um ponto de vista diatópico (português de Portugal / português do Brasil /
português de Angola), seja de um ponto de vista diastrático (linguagem culta /
linguagem média / linguagem popular), seja, finalmente, de um ponto de vista
diafásico (linguagem poética / linguagem da prosa) . 17
Este conceito lingüístico de norma, que implica um maior liberalismo gra-
matical, é o que, em nosso entender, convém adotarmos para a comunidade de
fala portuguesa, formada hoje por sete nações soberanas, todas movidas pela
legítima aspiração de enriquecer o patrimônio comum com formas e constru-
ções novas, a patentearem o dinamismo do nosso idioma, o meio de comuni-
cação e expressão, nos dias que correm, de mais de cento e cinqüenta milhões
de indivíduos.
“Não se repreende de leve num povo o que geralmente agrada a todos”,
disse com singeleza o poeta Gonçalves Dias. Com efeito, por cima de todos os
critérios de correção — aplicáveis nuns casos, inaplicáveis noutros — paira o da
aceitabilidade social, a consuetudo de Varrão, o único válido em qualquer cir-
cunstância.
É justamente para chegarem a um conceito mais preciso de “correção” em
cada idioma que os lingüistas atuais vêm tentando estabelecer métodos que
possibilitem a descrição minuciosa de suas variedades cultas, seja na forma fa-
lada, seja na escrita. Sem investigações pacientes, sem métodos descritivos aper-
feiçoados nunca alcançaremos determinar o que, no domínio da nossa língua
ou de uma área dela, é de emprego obrigatório, o que é facultativo, o que é
tolerável, o que é grosseiro, o que é inadmissível; ou, em termos radicais, o que
é e o que não é correto.

Sincronia, diacronía e historia: el problema dei cambio lingüístico, 2.a ed. Madrid, Gredos,
l‘F/3, p. 55.
' Veja se ( .dsn ( Ainha. Língua, nação, alienação. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 73-74 e ss.
LINGÜÍSTICA E TEORIA DA COMUNICAÇÃO*

Norbert Wiener se recusa a admitir "qualquer oposição fundamental entre os


problemas que nossos engenheiros encontram na medida da comunicação e os
problemas de nossos filólogos"1. É fato que as coincidências e convergências são
notáveis entre as etapas mais recentes da análise lingüística e a abordagem da
linguagem na teoria matemática da comunicação. Como cada uma dessas duas
disciplinas se ocupa, embora por vias diferentes e assaz autônomas, do mesmo
domínio da comunicação verbal, um estreito contato entre elas revelou-se útil a
ambas e não há dúvida de que se tornará cada vez mais proveitoso.
O fluxo da linguagem falada, fisicamente contínuo, colocou em princípio a
teoria da comunicação diante de uma situação "consideravelmente mais complicada"
do que no caso de um conjunto finito de elementos discretos que a linguagem escrita
apresentava2. Entretanto, a análise lingüística conseguiu resolver o discurso oral
numa série finita de unidades elementares de informação. Estas unidades discretas
finais, os chamados "traços distintivos", acham-se [pág.73] agrupadas em feixes
simultâneos denominados "fonemas", que, por sua vez, se encadeiam em seqüências.
Destarte, a forma, na linguagem, tem uma estrutura claramente granular e é suscetível
de descrição quântica.
A finalidade primeira da teoria da informação, tal como a formula por exemplo
D. M. McKay, é "isolar de seus contextos particulares aqueles elementos abstratos de
representações que possam ficar invariáveis em nova formulação"3. O análogo
lingüístico deste problema é a pesquisa fonológica dos invariantes relacionais. As
diversas possibilidades de medida da quantidade de informação fonológica que os
engenheiros de comunicações entrevêem (quando distinguem entre conteúdo de
informação "estrutural" e "métrica") podem fornecer à Lingüística, tanto sincrônica
quanto histórica, dados preciosos, particularmente importantes para a tipologia das
línguas, quer do ponto de vista puramente fonológico modo da interseção da
Fonologia com o nível léxico-gramatical.
A descoberta progressiva, pela Lingüística, de um princípio dicotômico, que
está na base de todo o sistema dos traços distintivos da linguagem, foi corroborada
pelo fato de os engenheiros de comunicações empregarem signos binários (binary

*
Trabalho apresentado ao "Symposium on Structure of Language and Its Mathematical Aspects",
Nova Iorque, 15 de abril de 1960, e publicado, com o título de "Linguistics and Communication
Theory" em Proceedings of Syrnposia in Applied Mathematics, XII (1961).
1
Journal of the Acoustical Society of America, vol. 22 (1950), p. 697.
2
CE. Shannon e Weaver, The Mathematical Theory of Communication (Urbana, The University of
Illinois Press, 1949), pp. 74 e 112 ss.
3
Cybernetics: Transactions of the Eight Conference (Nova Iorque, Josiah Macy Jr. Foundation,
1952), p. 224.
digits, ou bits, para usar a "palavra-valise") como uma unidade de medida. Quando
eles definem a informação seletiva de uma mensagem como o número mínimo de
decisões binárias que permitam ao receptor reconstruir aquilo que precisa extrair da
mensagem, com base nos dados já à sua disposição4, esta forma realista é
perfeitamente aplicável ao papel exercido pelos traços distintivos na comunicação
verbal. Tão logo se procurara "o meio de reconhecer universais pelos seus
invariantes", e se esboçara uma classificação de conjunto dos traços distintivos, com
base nesses princípios, o problema de traduzir os critérios propostos pelos lingüistas
"numa linguagem matemática e instrumental" [pág.74] foi imediatamente suscitado
por D. Gabor em suas conferências sobre a teoria da comunicação5. E recentemente
se publicou um instrutivo estudo de G. Ungeheuer, que apresenta um ensaio de
interpretação matemática dos traços distintivos e de sua estrutura binária. 6
A noção de "redundância", tomada pela teoria da comunicação a um ramo
retórico da Lingüística, adquiriu lugar de importância no desenvolvimento dessa
teoria e foi audaciosamente redefinida como equivalendo a "um menos a entropia
relativa"; sob esse novo aspecto, reingressou na Lingüística atual, para tornar-se um
dos seus temas centrais. Percebe-se agora a necessidade de uma estreita distinção
entre diferentes tipos de redundância, tanto na teoria da comunicação como na
Lingüística, em que o conceito de redundância compreende, por um lado, os meios
pleonásticos enquanto se opõem à concisão explícita (brevitas, na nomenclatura
tradicional da Retórica), e, por outro lado, o que é explícito, em contraposição à
elipse. No nível fonológico, os lingüistas se habituaram a discernir os traços
fonológicos distintivos das variantes contextuais, combinatórias (alofones), mas o
tratamento, pela teoria da comunicação, de problemas estreitamente ligados entre si,
como a redundância, a predizibilidade e as probabilidades condicionais, permitiu
aclarar as relações entre as duas principais classes lingüísticas de qualidades fônicas
os traços distintivos e os traços redundantes.
Uma análise fonológica, quando implique a eliminação sistemática das
redundâncias, fornece, necessariamente, uma solução plenamente satisfatória e sem
ambigüidades. A crença supersticiosa de certos teóricos poucos versados em
Lingüística, de que "não há razão alguma para a distinção entre traços distintivos e
redundantes"7, é claramente contestada por inúmeros dados lingüísticos. Se, por
exemplo, em russo, a diferença entre vogais anteriores e suas correspondentes
[pág.75] posteriores é sempre acompanhada de uma diferença entre consoantes
precedentes, que são palatizadas diante das vogais anteriores, e não palatizadas diante
das vogais posteriores, e se, por outro lado, a diferença entre consoantes palatizadas e
não-palatizadas não se confina à proximidade vocálica, o lingüista é obrigado a
concluir que, em russo, a diferença entre a presença e a ausência de palatização
consonantal é um traço distintivo, enquanto que a diferença entre vogais anteriores e
4
Communication Theory, org. por W. Jackson (Nova Iorque, Academic Press, 1953), p. 2.
5
Lectures on communication theory (M.I. T., Cambridge, Mass., 1951), p. 82.
6
Studia Linguistica, vol. 13 (1959), p. 69-97
7
Word, vol. 13 (1957), p. 328.
vogais posteriores aparece como simplesmente redundante. O caráter distintivo e a
redundância, longe de serem postulados arbitrários do investigador, estão
objetivamente presentes e delimitados na linguagem.
O preconceito que considera os traços redundantes não pertinentes e os traços
distintivos os únicos pertinentes está desaparecendo da Lingüística, e é mais uma vez
a teoria da comunicação, particularmente quando trata das probabilidades
transicionais, que ajuda os lingüistas a superarem a tendência de ver os traços
distintivos e redundantes como sendo respectivamente pertinentes e não-pertinentes.
Segundo McKay, "a frase-chave da teoria da comunicação" são as
possibilidades preconcebidas; a Lingüística diz a mesma coisa. Em nenhuma das duas
disciplinas houve a menor dúvida acerca do papel fundamental desempenhado pelas
operações de seleção nas atividades verbais. O engenheiro admite um "sistema de
classificação" de possibilidades pré-fabricadas mais ou menos comuns entre o
emissor e o receptor de uma mensagem verbal, e, do mesmo modo, a lingüística
saussuriana fala da langue, que possibilita uma troca de parole entre os
interlocutores. Tal conjunto de possibilidades já previstas e preparadas8 implica a
existência de um código, e esse código é concebido pela teoria da comunicação como
"uma transformação convencionada, habitualmente de termo a termo e reversível" 9,
por meio da [pág.76] qual um dado conjunto de unidades de informação se converte
em outros: por exemplo, ama unidade gramatical numa seqüência de fonemas e vice-
versa. O código combina o signans (significante) com o signatum (significado) e este
com aquele. Hoje, no que respeita ao tratamento dos problemas de codificação na
teoria da comunicação, a dicotomia saussuriana entre langue e parole pode ser
reformulada de maneira muito mais precisa, o que lhe dá um novo valor operacional.
Reciprocamente, na Lingüística moderna, a teoria da comunicação pode encontrar
informações esclarecedoras sobre a estrutura estratificada do intrincado código
lingüístico em seus vários aspectos.
Embora a Lingüística já tenha descrito adequadamente em suas linhas gerais, a
estrutura do código lingüístico, ainda se esquece amiúde que o conjunto finito de
"representações padronizadas" se limita aos símbolos lexicais, aos seus constituintes
gramaticais e fonológicos, e às regras gramaticais e fonológicas de combinação.
Somente este setor da comunicação pode ser definido como uma simples "atividade
de reprodução das representações". Por outro lado, é oportuno lembrar que o código
não se limita àquilo que os engenheiros de comunicações chamam de "conteúdo
puramente cognitivo do discurso", mas que, de igual maneira, a estratificação
estilística dos símbolos léxicos, bem como as variações pretensamente "livres", na
sua constituição como nas regras de suas combinações, são "previstas e preparadas"
pelo código.
Em seu programa para a futura ciência dos signos (a Semiótica), Charles Peirce
notava o seguinte: "Um Legissigno é uma lei que é um Signo. Essa lei é comumente
8
Cybernetics: Transactions of the Eight Conference (Nova Iorque, The Technology Press of M. I.
T., 1952), p. 183.
9
C. Cherry, On human communication (Nova Iorque-Londres 1957), p. 7.
estabelecida pelos homens. Todo signo convencional é um Legissigno."10 Os
símbolos verbais são citados como um exemplo notável de legissignos. Os
interlocutores pertencentes à mesma comunidade lingüística podem ser definidos
como os usuários efetivos de um único e mesmo código lingüístico, que compreende
os mesmos legissignos. Um código comum [pág.77] é o seu instrumento de
comunicação, que fundamenta e possibilita efetivamente a troca de mensagens. É aí
que reside a diferença essencial entre a Lingüística e as ciências físicas, diferença
ressaltada nítida e repetidamente na teoria da comunicação, sobretudo pela sua escola
inglesa, que insiste numa linha precisa de demarcação entre a teoria da comunicação
e a da informação. Contudo, tal delimitação, por estranho que pareça, é às vezes
negligenciada pelos lingüistas. "Os estímulos recebidos da Natureza", como o indica
sabiamente Colin Cherry, "não são imagens da realidade, mas os documentos a partir
dos quais construímos nossos modelos pessoais."11 Enquanto o físico cria suas
construções teóricas, aplicando seu próprio sistema hipotético de novos símbolos aos
índices extraídos, o lingüista recodifica apenas, traduz nos símbolos de uma
metalinguagem os símbolos já existentes, que estão em uso na língua da comunidade
lingüística em questão.
Os constituintes do código, por exemplo, os traços distintivos, ocorrem
literalmente e funcionam realmente na comunicação falada. Tanto para o receptor
como para o emissor, como observa R. M. Fano, a operação de seleção constitui a
base dos "processos de transmissão da informação"12. O conjunto de escolhas por sim
ou não que está subjacente em cada feixe desses traços discretos não é combinado
arbitrariamente pelo lingüista mas efetuado realmente pelo destinatário da mensagem,
na medida em que as sugestões do contexto, verbal ou não verbalizado, não tornem
inútil o reconhecimento dos traços.
Nos dois planos, gramatical e fonológico, não só o destinatário, quando decifra
a mensagem, mas também o codificador podem praticar a elipse; particularmente o
codificador pode omitir certos traços ou mesmo alguns de seus agrupamentos e
seqüências. Mas a elipse também é regida por [pág.78] leis codificadas. A linguagem
nunca é monolítica; seu código total inclui um conjunto de subcódigos: questões
como a das regras de transformação do código central, plenamente satisfatório e
explícito, em subcódigos elípticos, e a da comparação quanto ao teor de informação
veiculada. exigem ser tratadas ao mesmo tempo pelos lingüistas e pelos engenheiros.
O código conversível da língua, com todas as suas flutuações de subcódigo para
subcódigo e todas as mudanças que sofre continuamente, exige uma descrição
sistemática e conjunta pela Lingüística e pela teoria da comunicação. Uma visão
compreensiva da simetria dinâmica da língua, implicando as coordenadas de espaço e

10
Collected Papers, vol. 2 (Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1932), p. 142 ss.
11
Op. cit., p. 62. Cf. W. Meyer-Eppler, Grundlagens und Anwendungen der Informationstheorie
(Berlin-Goetinguen-Heidelberg, Springer-Verlag, 1959), p. 250 ss.
12
The transmission of information (Massachusetts Institute of Technology, Research Laboratory of
Electronics, Technical Report N.° 65, 1949), p. 3 ss.
tempo, deve substituir o modelo tradicional das descrições arbitrariamente limitadas
ao aspecto estático.
O observador lingüístico que possua ou adquira o domínio da língua que
observa é ou progressivamente se torna um parceiro potencial ou atual da troca de
mensagens verbais entre os membros da comunidade lingüística; ele se converte num
membro passivo, ou mesmo ativo, dela. O engenheiro de comunicações está certo
quando defende, contra "certos filólogos", a necessidade absolutamente imperativa de
"trazer o Observador para dentro da cena", e ao sustentar, com Cherry, que "a
descrição mais completa será a do observador participante". 13 Ao contrário do
participante, o espectador isolado e exterior se comporta como um criptanalista, que
recebe mensagens das quais não é o destinatário e cujo código não conhece. 14 Ele
procura decifrar o código pelo exame das mensagens. Na medida do possível, este
nível de pesquisa lingüística deve constituir apenas etapa preliminar de uma
abordagem interna da língua estudada, quando então o observador se adapta aos que a
falam como idioma materno, traduzindo-lhes as mensagens por meio do seu código.
Enquanto o pesquisador não conhecer nenhum signatum e tiver acesso apenas
aos signans, deve resolver-se, quer [pág.79] queira ou não, a apelar para suas
qualidades de detetive e tirar dos dados externos o máximo de informações que lhe
possam fornecer sobre a estrutura da língua. O estado atual da Etruscologia oferece
bom exemplo desta técnica. Mas se o lingüista já está familiarizado com o código,
isto é. se já domina o sistema de transformação por meio do qual um conjunto de
significantes (signantia) se converte num conjunto de significados (signata), então
torna-se supérfluo ele bancar o Sherlock Holmes, a não ser que deseje determinar
precisamente até que ponto este processo artificial pode fornecer dados seguros. É
difícil, no entanto, simular ignorância de um código familiar: as significações
escamoteadas falseiam uma atitude que se pretendia criptanalítica.
Obviamente, o "caráter inseparável do conteúdo objetivo e do sujeito que
observa", assinalado por Niels Bohr como uma premissa de todo conhecimento bem
definido15, tem por força de ser levado em conta em Lingüística e a posição do
observador em relação à língua observada e descrita deve ser indicada com exatidão.
Antes de mais nada, como o indicou Jurgen Ruesh, a informação que um observador
pode colher depende de sua situação dentro ou fora do sistema16. Além disso, se o
observador estiver situado dentro do sistema de comunicação, será mister
compreender que a linguagem apresenta dois aspectos muito diferentes conforme seja
vista de uma ou outra extremidade do canal de comunicação. Grosso modo, o
processo de codificação vai do sentido ao som, e do nível léxico-gramatical ao nível
fonológico, enquanto que o processo de decodificação exibe direção inversa do
soma ao sentido e dos elementos aos símbolos. Enquanto que a orientação
13
For Roman Jakobson (Haia, Mouton & Co., 1956), p. 61 ss.
14
Cf. R. Jakobson e M. Halle, Fundamentals of Language (Haia, Mouton & Co., 1956) pp. 17-19,
15
Atomic physics and human knowledge (Nova Iorque, John Wiley & Sons, 1958), p. 30.
16
Toward a unified theory of human behavior, org. por R. R. Grinker (Nova Iorque, Basic Books,
1956), p. 54.
(Einstellung, set) para os constituintes imediatos está em primeiro plano na produção
do discurso, para a sua percepção a mensagem é antes de tudo um processo
estocástico. O aspecto probabilístico do discurso encontra insigne expressão na
maneira pela qual [pág.80] o ouvinte considera os homônimos, ao passo que, para
quem fala, a homonímia não existe. Quando se diz "vão", sabe-se de antemão se se
quer dizer "vão" (adjetivo) ou "vão" (do verbo ir), ao passo que o ouvinte depende
das probabilidades condicionais do contexto17. Para o receptor, a mensagem apresenta
grande número de ambigüidades onde não havia qualquer equívoco para o emissor.
As ambigüidades do trocadilho e da poesia utilizam, para a emissão, esta propriedade
da recepção.
Sem dúvida alguma, existe uma realimentação (feedback) entre a fala e a
audição, mas a hierarquia dos dois processos se inverte para o codificador e o
decodificador. Estes dois aspectos distintos da linguagem são irredutíveis um ao
outro; ambos são igualmente essenciais e devem ser vistos como complementares, no
sentido em que Niels Bohr emprega o termo. A autonomia relativa do padrão de
recepção é ilustrada pela generalizada prioridade temporal da aquisição passiva da
linguagem, tanto entre as crianças como entre os adultos. A reivindicação de L.
Scerba, de que se delimitem e se elaborem duas gramáticas uma "ativa" e outra
"passiva" foi recentemente posta na ordem do dia por jovens estudiosos russos e
tem igual importância para a teoria lingüística, o ensino das línguas e a Lingüística
aplicada.18
Quando um lingüista trata de um dos dois aspectos da linguagem à la Jourdain,
isto é, sem se dar conta de se suas observações concernem à fonte ou à recepção, isso
é menos perigoso que os compromissos arbitrários que se fazem freqüentemente entre
as análises referentes à emissão e a recepção; é o que acontece, por exemplo, no caso
de uma gramática que estude as operações gerais sem fazer apelo aos sentidos, a
despeito da necessária prioridade do sentido para o codificador. Atualmente, a
Lingüística recebe da teoria da comunicação sugestões particularmente valiosas para
o estudo um tanto negligenciado da recepção verbal. [pág.81]
McKay nos previne contra a confusão entre a troca de mensagens verbais e a
extração de informação do mundo físico, duas coisas que foram abusivamente
unificadas sob a etiqueta de "comunicação"; para McKay, esta palavra tem
inevitavelmente uma conotação antropomórfica que "embrulha toda a questão".19 Um
perigo semelhante existe quando se interpreta a intercomunicação humana em termos
de informação física. As tentativas de construir um modelo da linguagem sem relação
alguma com quem a fale ou ouça, e de hipostasiar assim um código desligado da
comunicação efetiva, ameaçam reduzir a linguagem a uma ficção escolástica.
Ao lado da codificação e da decodificação, também o processo de
recodificação, a passagem de um código a outro (code switching), em suma, os
17
V. International Journal of Slavic Linguistics and Poetics, vol. 1 e 2 (1959), p, 286 ss.
18
V. I. Revzin, (Moscou, Pervyj Moskov, Gos. Ped,
Inst. Inostrannyx Jazycov 1958), pp. 23-25
19
Cybernetics: Transactions of the Eight Conference (Nova Iorque, 1952), p. 271.
variados aspectos da tradução, convertem-se numa das principais preocupações da
Lingüística e da teoria da comunicação, tanto nos Estados Unidos como na Europa
ocidental e oriental. Só agora é que problemas tão fascinantes quanto o dos modos e
graus da compreensão mútua entre pessoas que falam certas línguas estreitamente
aparentadas, como por exemplo o dinamarquês, o norueguês e o sueco, começam a
chamar a atenção dos lingüistas20, prometendo aclarar o fenômeno conhecido em
teoria da comunicação pelo nome de "ruído semântico", e o problema, teoricamente e
pedagogicamente importante, de superá-lo.
Sabe-se que durante certo período a Lingüística e a teoria da comunicação
foram tentadas a tratar toda consideração relativa ao sentido como uma espécie de
ruído semântico e a excluir a semântica do estudo das mensagens verbais.
Atualmente, no entanto, os lingüistas evidenciam uma tendência de reintroduzir a
significação, ao mesmo tempo que utilizam a experiência muito instrutiva propiciada
por esse ostracismo temporário. Uma tendência semelhante pode ser igualmente
observada na teoria da comunicação. [pág.82]
Segundo Weaver, a análise da comunicação "clarificou de tal forma o ambiente
que estamos agora prontos, quiçá pela primeira vez, para uma teoria real do
significado, e, particularmente, em condições de examinar um dos aspectos mais
importantes, mas também mais difíceis, da questão do sentido, a saber, a influência
do contexto"21. Os lingüistas descobrem progressivamente como tratar as questões de
sentido, e em especial a da relação entre significação geral e significação contextual,
como tema intrinsecamente lingüístico e claramente distinto dos problemas
ontológicos da denotação.
A teoria da comunicação, que agora dominou o campo da informação
fonemática, pode abordar a tarefa de medir a quantidade de informação gramatical, já
que o sistema das categorias gramaticais, das categorias morfológicas em particular,
tal como o sistema dos traços distintivos, acha-se baseado numa escala de oposições
binárias. Assim é que há, por exemplo, 9 escolhas binárias na base de mais de 100
formas conjugadas, simples e compostas, de um verbo inglês, que aparecem, por
exemplo, em combinação com o pronome I ("eu")22. O teor de informação gramatical
veiculada pelo verbo em inglês poderá ser confrontado posteriormente com os dados
correspondentes relativos ao substantivo em inglês, ou ao verbo e ao substantivo em
diversas línguas: a relação entre a informação morfológica e a informação sintática
em inglês deverá ser comparada com a relação equivalente em outras línguas, e todos

20
Veja-se particularmente E. Haugen, Nordisk Tidskr, vol. 29 (1953), pp. 225-249.
21
Shannon e Weaver, op. cit , p. 116. Cf. D. M. McKay "The place of "Meaning" in the theory of
information", Information Theory, org. por C. Cherry (Nova Iorque, Basic Books, 1956).
22
1. Pretérito (oposto a não-pretérito), 2. perfeito, 3. progressivo, 4. expectivo 5. moralmente
decidido, 6. contingente, 7. potencial, 8. assertivo, 9. passivo. Cf. Roman Jakobson, American
Antropologist, vol. 61, n.° 5, Parte 2 (1959), pp., 139-141, e W, F. Twaddell, The English verbs
auxiliares (Providence, Brown University Press, 1960).
esses dados comparativos propiciarão importante material complementar para uma
tipologia das línguas e para a pesquisa de leis lingüísticas universais. [pág.83]
Faltará ainda confrontar o teor de informação gramatical potencialmente
contida nos paradigmas de uma dada língua (estudo estatístico do código) com o teor
de informação similar nos atos de fala, nas ocorrências efetivas das diversas formas
gramaticais no interior de um certo corpo de mensagens. Qualquer tentativa de
ignorar esta dualidade e de confinar a análise e o cálculo lingüísticos apenas ao
código ou apenas ao corpo, empobrecerá a pesquisa. Não se pode omitir a questão
crucial da relação entre a estrutura dos constituintes do código verbal e sua freqüência
relativa tanto no código como no uso que dele se faz.
A definição semiótica do significado de um símbolo como sendo sua tradução
em outros símbolos tem uma aplicação eficaz no exame lingüístico da tradução intra
e interlingual; e tal abordagem da informação semântica concorda com a proposta de
Shannon de definir a informação como "aquilo que fica invariável através de todas as
operações reversíveis de codificação ou tradução", numa palavra, como "a classe de
equivalência de todas essas traduções"23.
No estudo das significações, gramaticais ou lexicais, precisamos tomar muito
cuidado para não fazer mau uso das noções polares de "regularidade" e "desvio".
Freqüentemente, é porque se perde de vista a estrutura estratificada, hierarquizada, da
linguagem, que se recorre à idéia de desvio. Existe contudo substancial diferença
entre posição secundária e desvio. Não se justifica que consideremos como aberrantes
nem a "derivação sintática" com relação à "função primaria"24, de Kurylowicz, nem a
oposição de Chomsky entre "transformações" e "núcleos"25 nem as significações
"marginais" ("transferidas") face à significação "central" da palavra, de Bloomfield 26.
As criações metafóricas não representam desvios; são processos regulares de certas
variedades [pág.84] estilísticas que são subcódigos de um código total; e no interior
de um subcódigo deste gênero não há desvio quando Marvell designa com um epíteto
concreto um nome abstrato (o que é, propriamente uma hipálage) a green thought
in a green shade ("um verde pensamento numa sombra verde") nem quando
Shakespeare transpõe metafóricamente um nome inanimado para o gênero feminino
the morning opens her golden gates ("a manhã (neutra em inglês) abre suas (dela)
portas de ouro") nem quando Dylan Thomas, como o nota a comunicação de
Putnam. emprega metonimicamente "dor" em lugar de "momento doloroso" A
27
grief ago I saw him there (Há uma dor atrás eu o vi lá") . Contrariamente às
construções agramaticais do tipo "as meninas dorme", as frases citadas são dotadas de
sentido, e toda frase dotada de sentido pode ser submetida a uma prova de veracidade
exatamente da mesma maneira por que a afirmativa "Pedro é uma velha raposa"
poderia provocar a réplica: "Pedro não é uma raposa, mas um porco. João é que é um
23
Cybernetics: Transactions of the Seventh Conference (Nova Iorque, 1951), p. 157.
24
Bulletin de la Societé de Linguistique de Paris, nº 110 (1936), pp. 79-92.
25
Syntactic Structures (Haia, Mouton & Co., 1957).
26
Language (Nova Iorque, Henry Holt & Co, 1933), p. 149.
27
Proceedings of Symposia in Applied Mathematics, X (1961).
raposa." Seja dito de passagem que nem a elipse nem a reticência nem o anacoluto
podem ser considerados estruturas divergentes; da mesma forma que o estilo obscuro,
subcódigo braquilógico a que pertencem, são apenas derivados regulares das formas
centrais contidas no padrão explícito. Uma vez mais essa "variabilidade do código",
que permite compreender por que o padrão corrente não se acha realizado numa
conduta patente foi negligenciada mais pelos lingüistas que pelos engenheiros de
comunicações, menos embaraçados por preconceitos.
Em resumo, existe um vasto conjunto de questões que reclamam a cooperação
das duas disciplinas distintas e independentes de que se trata aqui. As primeiras
etapas percorridas nesse sentido revelaram-se auspiciosas. Eu gostaria de concluir
evocando o que é, provavelmente. o exemplo mais antigo, e talvez o mais espetacular
há até bem pouco tempo, da colaboração entre a Lingüística, em particular o estudo
da linguagem poética, de um lado, e a análise matemática dos processos estocásticos,
de outro lado. A escola russa [pág.85] de métrica deve algumas de suas realizações
de repercussão internacional ao fato de que, há uns quarenta anos, pesquisadores
como B. Tomachevski, versados ao mesmo tempo em Matemática e Filologia,
souberam utilizar as cadeias de Markov para o estudo estatístico do verso; tais dados,
completados por uma análise lingüística da estrutura do verso, propiciaram, no
começo da década de 1920, uma teoria do verso baseada no cálculo de suas
probabilidades condicionais e das tensões entre antecipação e surpresa consideradas
como valores rítmicos mensuráveis; o cálculo dessas tensões que batizamos de
"expectativas frustradas", forneceu indicações surpreendentes para o estabelecimento,
sobre uma base científica, da métrica descritiva, histórica, comparativa e geral. 28
Estou convencido de que os métodos recentemente desenvolvidos em
Lingüística estrutural e teoria da comunicação, aplicados à análise do verso e a muitas
outras províncias da linguagem, poderão abrir vastas perspectivas para uma
coordenação ulterior dos esforços das duas disciplinas. Confiemos em que nossas
expectativas não se frustrem.29 [pág.86]

28
Cf. B. Tomasevskij, O stixe (Leningrado, 1929); R. Jakobson, O cesskom stixe (Berlim-Moscou,
Linguística and poetica". Style in Language (Nova Iorque, The Technology Press of
Massachussets Institute of Technology, 1960)
29
Gostaria de dedicar este artigo à mem6ria do engenheiro O. A. Jakobson.

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