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MÍDIA & SAÚDE Nº 67 • Março de 2008

Dois diferentes
Av. Brasil, 4.036/515, Manguinhos
encontros avaliam Rio de Janeiro, RJ • 21040-361
essa controvertida
e sensível relação w w w. e n s p . f i o c r u z . b r / r a d i s

Terapia comunitária
Zilma, rezadeira do Projeto 4 Varas, simboliza experiência exitosa do Ceará

Saúde mental: jornal investe contra a Reforma Psiquiátrica


O SUS na mira da mídia
vivia, naquele mês, professora Ligia Bahia disse acreditar
“uma epidemia mi- que os ataques ao sistema público de
diática”. Ele cre- saúde serão ainda mais sistemáticos
ditou aos exageros neste 2008, devido às eleições muni-
na divulgação dos cipais. “Precisamos resistir ao avanço
casos da doença a da hostilidade à universalidade”, con-
formação de filas clamou a conselheira nacional, uma
intermináveis até das diretoras do Centro Brasileiro de
em cidades fora Estudos de Saúde (Cebes).
da área de risco Temporão foi além. Para ele, a
de contaminação, quantidade de críticas da imprensa
como o Rio de Ja- ao SUS aumentará até 2010, ano em
neiro. Pessoas que que será eleito o sucessor de Lula na
não viajariam para presidência. Depois da febre amarela,
áreas de risco, la- previram os sanitaristas, o foco se vol-
mentou, insistiam tará para a dengue, para as filas nas
em ser imunizadas. portas dos hospitais. “Enquanto a crise
A partir de assistencial não for superada, a mídia
2007, a saúde pú- e os políticos se aproveitarão dela”,
blica ganhou es- concluiu o professor Luiz Antônio Silva
paço na mídia, na Neves, também do Cebes.
visão do ministro, O ministro defendeu que os
“tanto para o bem sanitaristas aproveitem as comemo-
quanto para o rações dos 20 anos da Constituição
mal”. Para o bem, que consagrou a saúde como direito
debates que esta- de todos e dever do Estado para
vam circunscritos fazer frente ao discurso privatista.
ao setor — como Para isso, concordaram os presentes,
a restrição à pro- é necessário recompor as alianças
paganda e à venda do SUS. “Precisamos reconhecer o
nas estradas de be- fortalecimento das entidades de
bidas alcoólicas, a trabalhadores e trabalhar com essas
A.D. descriminalização parcerias”, sugeriu o pesquisador
do aborto e o li- José da Rocha Carvalheiro, presiden-
cenciamento compulsório de medi- te da Associação Brasileira de Pós-
Bruno Dominguez camentos — finalmente ocupam man- Graduação em Saúde Coletiva.
chetes e mobilizam a sociedade. Presidente do Cebes, a cientista
m 18 de janeiro, representantes Para o mal porque determinados política Sonia Fleury analisou a atua-
E de entidades do movimento sa-
nitário participaram de reunião na
veículos e colunistas “atacam ideologi-
camente” a saúde pública. “Um colu-
ção do governo, em sua opinião nem
sempre coerente no tratamento do SUS.
Fiocruz com o ministro José Gomes nista chegou a afirmar que o problema Para ela, em momentos de crise, “quem
Temporão, para um balanço de sua do SUS não é a gestão, mas o próprio segura” é o movimento social. Outra
gestão em 2007. As intervenções SUS”, lembrou Temporão. Diretor do sugestão foi a ampliação dos espaços
sobre ações específicas do governo Departamento de Ciência e Tecnolo- de discussão para além de conselhos e
federal na área da saúde acabaram gia do Ministério da Saúde, Reinaldo conferências — aliás, o ministro voltou
ofuscadas por análises da atuação de Guimarães concordou: “Em 2006, só a criticar a 13ª, dizendo-se decepciona-
outro “poder”: a mídia. Nem mesmo se falava em segurança e educação; o do com a falta de resultados.
a extinção da CPMF foi tão discutida. ministro conseguiu recolocar a saúde No encerramento, Temporão pro-
Sob o impacto dos erros na cobertura na agenda”. Segundo ele, num primeiro meteu pensar numa estratégia mais
dos casos de febre amarela, que dis- momento a mídia “adotou” Temporão, ágil para a circulação de informações
seminou pânico em vez de informação mas agora a conjuntura mudou. corretas sobre saúde, no dia-a-dia ou
(Radis 66), os sanitaristas criticaram Depoimentos de outros sanita- nos momentos de maior tensão. Mas,
a maneira com que a imprensa trata ristas engrossaram a percepção de ressalvou, sem se descuidar das grandes
as questões da saúde pública. que a saúde continuará enfrentando questões nacionais: “Não consigo ser um
Temporão foi o primeiro a se re- resistência — por parte da imprensa ministro com estratégias pobres, dedica-
ferir ao tema, lembrando que o Brasil e de certos setores da sociedade. A do apenas a cumprir burocracias”.
editorial
Nº 67 • Março de 2008

Frases
atérias escritas a partir de uma reconhece novos sujeitos como pares
M pauta prévia e aperfeiçoada na
edição compõem uma revista. O sen-
para lidar com a saúde. “Dona Zilma
era doida de pedra, alguém disse que
Comunicação e Saúde
• O SUS na mira da mídia 2
tido que fazem é dado pela leitura, era curandeira também... eu disse,
levando-se em conta quem diz o que se a senhora sabe o que é, vai fazer,
e os contextos da enunciação. O leitor eu não sei. Ela foi, outras pessoas Editorial
crítico não deve abrir mão dos textos começaram a pedir que ela rezasse • Frases 3
completos. Freqüentemente, porém, e depois não deu mais tempo de
uma única frase pode ganhar certa endoidar”. Aconteceu o mesmo com Cartum 3
autonomia. Garimpando esta edição, Dona Francisca. “...Trouxeram neo-
o leitor encontra pérolas como “toda leptizada, tomava vários remédios,
convicção é uma prisão” ou “a acade- babando. Alguém me disse, ela é Cartas 4
mia não produz conhecimento, quem rezadeira da umbanda... Hoje é uma
produz é a sociedade, a academia sis- das nossas curandeiras.”
tematiza”. Noutra versão: “A academia Sobre comercialização de milho Súmula 5
produz conhecimento, mas a experi- geneticamente modificado, visões
ência da vida também”. Para saúde, opostas. Desde “a decisão sacra- Toques da Redação 6
comunicação e informação não faltam menta opção do atual governo pelos
conceitos nas páginas seguintes, como transgênicos e contraria o movimento
“não existe saúde sem informação”. socioambientalista”, até “essa decisão
No Ceará, um projeto interes- histórica vai colocar o Brasil entre os
santíssimo une a terapia científica à países mais modernos na área agrí-
1ª Conferência Ibero-Americana de
comunitária. “São duas medicinas com- cola”. No meio, a palavra curiosa do
Comunicação da Informação em Saúde
plementares: lá, a patologia com os es- chefe de governo: “Agora eu sou radi-
• Aliança de idéias e práticas 7
pecialistas; aqui se trabalha o sofrimen- calmente contra e acho um retrocesso
to promovendo a saúde e reduzindo os o governo fazer isso”.
danos”. E surgem as reflexões. “Muitos Sobre desmatamento da Amazô- Radis adverte 9
hospitais e postos estão medicalizando nia, uma síntese desconcertante. “O
o sofrimento, os problemas existenciais. madeireiro que ocupou ilegalmente e
Uma mãe ansiosa e desesperada porque desmatou leva alguns anos para tirar Terapia comunitária
o filho entrou no mundo das drogas pre- todas as espécies aproveitadas. Aí ele • Um oásis para resgate da auto-estima 10
cisa de um psicotrópico para dormir ou dá o segundo passo: abate a floresta • “A nossa dor não é só nossa” 12
ser acolhida?” O entrevistado prossegue. e prepara o terreno para a pecuária. • Entrevista: Adalberto Barreto
“Quando a boca cala os órgãos falam: se Abater significa queimar. Ou seja, os “Aqui o remédio é a palavra” 14
essa mulher não se desengasgar hoje en- incêndios que se vêem são apenas o fim
tra em processo depressivo, de doença do crime. O enterro da mata.”
mesmo. Aqui o remédio é a palavra”.
Na valorização do conhecimento Rogério Lannes Rocha
popular, o saber técnico-científi co Coordenador do Programa RADIS Saúde mental
• Ataque à reforma psiquiátrica
brasileira 16

Cartum
Serviço 18

DR. SIMÃO BACAMARTE* CONSTRÓI UM NOVO HOSPÍCIO.


E QUEM
ASSIM, VOU ME PROTEGE
NOS PROTEGER DE VOCÊ? Pós-Tudo
DOS LOUCOS.
• Como se desmata 19

Capa e ilustrações Aristides Dutra (A.D.)


Foto Adriano De Lavor
* Personagem de O alienista (1882) A.D.
RADIS 67 • MAR/2008
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cartas

SAÚDE MENTAL NO CEARÁ e Cascavel (1995) e Aracati (1997), A equipe é composta por um
pela perseverança de profissionais e psiquiatra, dois psicólogos, um arte-
Ceará conta com uma popula- intelectuais ligados à saúde mental. terapeuta, uma enfermeira, duas
O ção de, aproximadamente, 7,5
milhões de habitantes, dos quais
Havia troca de experiências cons-
tante nas Jornadas de Saúde Mental,
terapeutas ocupacionais, uma assis-
tente social e sete auxiliares de saúde
28% vivem na capital, Fortaleza. Em nos Encontros de Caps, em cursos de mental, executando atividades como
dezembro de 2007 havia 75 Centros aperfeiçoamento e atualização: o ambulatório de psiquiatria, psicote-
de Atenção Psicossocial instalados, processo que evoluía rapidamente em rapia individual e de grupo, oficinas
14 na capital. Em políticas públicas suas práticas e produção de conheci- terapêuticas, visitas domiciliares,
de saúde, é um estado de vanguarda mento, mas lentamente na quantidade atendimento a dependentes químicos,
desde o fim do século 19. Nasceu de novos serviços. além de palestras, cursos e campo de
aqui, há mais de 100 anos, a enge- Quixadá tem 70 mil habitantes, estágio. Caíram de 100 para apenas 6 as
nharia de territorialização para me- bastante urbanizado, localizado no transferências anuais para hospitais psi-
lhor atender a população. A varíola sertão central do Ceará, pólo comer- quiátricos. Há programas de tratamen-
foi controlada por vacinação — antes cial microrregional, e vem se desta- to de alcoolistas, controle do consumo
da revolta da vacina no Rio — pela cando como centro universitário. Nas de medicamentos benzodiazepínicos e
persistência de Rodolfo Teófilo. No demandas de atenção psicossocial pesquisas epidemiológicas.
início da década de 1990 era gestado prevalecem “os mal-estares difusos, • Julio Cesar Ischiara, psicólogo,
em Icapuí, posteriormente em Qui- crises familiares, dificuldades sexuais Quixadá, CE
xadá, o Programa Saúde da Família e estilos de vida favoráveis ao uso de
pelo trabalho de Odorico Monteiro substâncias tóxicas”, segundo o sanita- CONSELHO PRIORITÁRIO
de Andrade. rista Jackson Sampaio. Em 13/12/07,
o Caps/Quixadá comemorou 14 anos ou presidente do Conselho Mu-
Na saúde mental também mos-
tra espírito pioneiro. Até o início dos
anos 1990 as internações psiquiátricas
com sua 15ª Jornada de Saúde Mental e
Cidadania. Nosso serviço conta, hoje,
S nicipal de Saúde da cidade de
Coronel Fabriciano (MG). A revista
eram realizadas exclusivamente nos com mais de 6 mil clientes ativos (com Radis terá grande importância para
hospitais de Fortaleza, Crato e Sobral. prontuário), referência regional em esclarecimentos sobre saúde para
A partir de 1991 vieram os Caps de saúde mental para diversos municípios nossos conselheiros. Fiz o cadastro em
Iguatu, Canindé e Quixadá (1993), Icó em seu entorno. 22/1/08. Estamos ansiosos aguardando
a concretização da inscrição. Desde já
agradeço.
• Francisco Moreira, Coronel Fabri-
expediente ciano, MG

Caro Francisco, assinatura garanti-


da. Os conselhos municipais de saúde
são prioritários para o RADIS.

RADIS é uma publicação impressa e on- Reportagem Katia Machado (subeditora), RADIS É DE GRAÇA!
line da Fundação Oswaldo Cruz, editada Adriano De Lavor, Bruno Dominguez
pelo Programa RADIS (Reunião, Análise e e Karine Thames de Menezes (estágio ual o preço da assinatura e as for-
Difusão de Informação sobre Saúde),
da Escola Nacional de Saúde Pública
Sergio Arouca (Ensp).
supervisionado)
Arte Aristides Dutra (subeditor)
Q mas de pagamento? Obrigada.
• Tatiane Souza Ribeiro, Oliveira, MG
Documentação Jorge Ricardo Pereira, Laïs
Periodicidade mensal Tavares e Sandra Suzano Benigno
Tiragem 60.000 exemplares Secretaria e Administração Onésimo Gouvêa, Cara Tatiane, a revista Radis é
Assinatura grátis Fábio Renato Lucas e Cristiane de Matos distribuída gratuitamente a seus assi-
(sujeita à ampliação do cadastro) Abrantes nantes, integrando programa de comu-
Informática Osvaldo José Filho
Presidente da Fiocruz Paulo Buss nicação em saúde da Escola Nacional
Diretor da Ensp Antônio Ivo de Endereço de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/
Carvalho
Av. Brasil, 4.036, sala 515 — Manguinhos Fiocruz). O programa RADIS completou
Ouvidoria Fiocruz Rio de Janeiro / RJ • CEP 21040-361 25 anos em 2007.
Telefax (21) 3885-1762 Tel. (21) 3882-9118 • Fax (21) 3882-9119
Site www.fiocruz.br/ouvidoria E-mail radis@ensp.fiocruz.br
Site www.ensp.fiocruz.br/radis (a seção Radis NORMAS PARA CORRESPONDÊNCIA
PROGRAMA RADIS
na Rede é semanal; Últimas Notícias atualiza
Coordenação Rogério Lannes Rocha matérias da edição impressa) A Radis solicita que a correspondência
Subcoordenação Justa Helena Franco dos leitores para publicação (carta,
Edição Marinilda Carvalho Impressão Ediouro Gráfica e Editora SA
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USO DA INFORMAÇÃO — O conteúdo da revista Radis responsáveis pelas matérias reproduzidas. Solicitamos
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Súmula

na área agrícola”. Citou o exemplo devastou 54%. O instituto alertava desde


FEBRE AMARELA SILVESTRE COM 16 ÓBITOS dos Estados Unidos, que liberaram os maio sobre o aumento do abate, mas
transgênicos em 1995, e afirmou que contestaram os dados o ministro da Agri-
oletim da Secretaria de Vigilância em “o milho transgênico é seguro para o cultura, Reinhold Stephanes, e o presi-
B Saúde informou que até 19/2 houve
57 notificações de casos suspeitos de
consumo humano”. Outro entusiasta,
o matemático Marco Antonio Raupp,
dente Lula, que chamou de “parceiro”
o governador Blairo Maggi (PPS-MT), “rei
febre amarela silvestre (Radis 66): 31 fo- presidente da SBPC, publicou artigo da soja” considerado “rei do desmata-
ram confirmados, dos quais 16 evoluíram (Estado de S. Paulo, 10/2) pedindo a li- mento” (Radis 34). Maggi alegou que a
para óbito (taxa de letalidade de 52%); beração. O texto reproduzia argumen- redução da fumaça na região permitira
23 casos foram descartados e três per- tos das empresas de biotecnologia: a que os satélites detectassem derrubadas
maneciam em investigação. Os prováveis oposição aos transgênicos tem raízes antigas, que o Inpe considerou novas. O
locais de infecção dos casos confirmados obscurantistas baseadas em crenças e ministro Sergio Rezende saiu em defesa
ocorreram em áreas silvestres de Goiás, emoções. Os pesquisadores Fábio Dal do instituto, subordinado a sua pasta:
com 61% (19 casos em 31 suspeitos), de Soglio (ex-CTNBio) e Milton Krieger ninguém criticava os dados enquanto o
Mato Grosso do Sul, com 19% (6), do rebateram: Raupp é que repetiu “os desmate caía, lembrou.
Distrito Federal, com 13% (4) e de Mato argumentos de pesquisadores com O resultado da divisão na cúpula
Grosso, com 7% (2 em 31). conflito de interesses”. não tardou: respaldados, madeireiros de
Para a Carta Maior, “o governo Tailândia, sudeste do Pará, insuflaram 2
brasileiro marcha na contramão” dos mil moradores contra o Ibama, que em
GOVERNO LIBERA MILHO TRANSGÊNICO países que proibiram o Liberty Link 18/2 tentou apreender 13 mil metros
e o MON810: Hungria (2006), Áustria cúbicos de madeira derrubada irregu-
or sete votos a quatro, o Conselho (2007) e França (2008). Mas a Anvisa larmente, objeto de R$ 1,5 milhão em
P Nacional de Biossegurança (CNBS)
liberou pela primeira vez no país, em
solicitou ao CNBS “a imediata suspen-
são da liberação do milho MON810”
multas. A ministra Marina Silva advertiu
que a madeira seria retirada, mas não
12/2, duas variedades de milho trans- por avaliar que “os dados apresentados permitiria um novo Eldorado dos Carajás
gênico, das gigantes transnacionais pela Monsanto não permitem concluir — o massacre de trabalhadores rurais
Bayer e Monsanto. “Decisão sacra- sobre a segurança de seu uso para consu- pela PM há 10 anos. “Tailândia é a prova
menta opção do atual governo pelos mo humano” — o ministro Temporão logo de como madeireiros criminosos mani-
transgênicos e contraria o movimento avisou que a agência só dará registro a pulam trabalhadores”, disse ao jornal
socioambientalista”, afirmou a Agência produtos com milho transgênico na com- O Eco. Em 21/2, reunida com agentes
Carta Maior (13/2). O CNBS é formado posição se comprovada sua segurança. de segurança, Marina planejou ações de
por 11 ministérios. Votos contrários: O Ibama pediu anulação da liberação combate a criminosos ambientais em
Saúde, Desenvolvimento Agrário, Meio do Liberty Link pela “inexistência de municípios desmatadores.
Ambiente e Secretaria Especial da Pes- estudos ambientais sobre o produto”,
ca, justamente os que lidam com o mé- e alertou que “a contaminação das va-
rito da questão, lembrou o boletim de riedades crioulas, orgânicas e ecológicas MAIS OS NA SAÚDE PAULISTANA
14/2 da campanha Por um Brasil Livre ocorrerá inevitavelmente”.
de Transgênicos. A favor dos transgêni- O Brasil é “centro de diversidade prefeito Gilberto Kassab (DEM)
cos: Casa Civil, Agricultura, Ciência e
Tecnologia, Desenvolvimento, Justiça,
genética do milho”, informa o boletim da
campanha. Apenas no centro-sul do Para-
O firmou em 21/1/08 contratos de
R$ 77 milhões com a Santa Casa de Mi-
Defesa e Relações Exteriores. ná já foram identificadas 145 variedades, sericórdia de São Paulo, a Universidade
O boletim recuperou frase de sete que geram segurança alimentar, renda e Federal de São Paulo e a Congregação
anos atrás do presidente Lula: “Agora, autonomia tecnológica para milhares de Santa Catarina para que gerenciem 87
eu sou radicalmente contra [a liberação famílias — diversidade incompatível com postos de saúde, 10 AMAs (Assistência
dos transgênicos] e acho um retrocesso o monopólio dos transgênicos. Quem vai Médica Ambulatorial) e 14 serviços,
o governo fazer isso. Isso, na verdade, se responsabilizar pela contaminação como Centros de Atenção Psicossocial,
está acontecendo porque mais uma vez desse patrimônio genético e pelos pre- que atendem 3 milhões de pessoas. As
a elite política desse país se rende ao juízos causados a esses agricultores, ou organizações sociais foram criadas por
fascínio de uma multinacional”, disse mesmo pela perda de mercado externo?, lei municipal de 2006 (Radis 43). Como o
o candidato Lula (julho/2001) na Cara- pergunta o texto. “Certamente não são ex-prefeito e hoje governador José Serra
vana da Agricultura Familiar. Mas vale os 15 ou 17 integrantes da CTNBio que (PSDB), Kassab defende as OS porque
lembrar que recentemente (Ag.Reuters, garantem a segurança desse milho”. pode contratar com melhores salários,
28/8/05) Lula foi além: “Em vez de co- “flexibilizar” as jornadas de trabalho e
mer soja transgênica, faz biodiesel que comprar material com agilidade.
o carro não vai rejeitar. E a gente vai DESMATAMENTO E CONTESTAÇÃO
comer a soja boa”, disse, no Sul.
Instituto Nacional de Pesquisas Es- SICKO BRASÍLIA
Do lado pró-transgênicos, o mais
entusiasmado era o ministro Sérgio
Rezende (Ciência e Tecnologia):
O paciais (Inpe, www.inpe.br) anun-
ciou (24/1/08) que a Amazônia perdeu
EM

imprensa comentou em amplas


“Essa decisão histórica vai colocar o
Brasil entre os países mais modernos
7 mil km2 de floresta entre agosto e
dezembro de 2007. Mato Grosso sozinho
A matérias de 31/1 a exibição no
Cine Brasília, na véspera, do docu-
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mentário Sicko, de Michael Moore bom motivo para achar que o país deu
(Radis 66), promovida pelo Ministério sorte de não ter Marina Silva como
da Saúde. As exceções foram O Globo, ministra da Educação”, afirma. “No
que ignorou a notícia, e o colunista Meio Ambiente, as idéias não fazem a
Cláudio Humberto. “Rivais na desgraça cabeça de bichos e plantas”.
— O ministro José Temporão (Saúde)
promoveu o lançamento do filme $O$
Saúde, de Michael Moore, criticando o CALIFÓRNIA PEDE DESCULPAS A GAYS
sistema de saúde dos EUA. Para mos- O QUE É ISSO, PRESIDENTE?! — O
trar que o SUS é um horror, mas tem o início de janeiro, pesquisado- repórter jovenzinho aqui da redação,
rival no primeiro mundo?”, ironizou o
ex-assessor de Collor.
N res reunidos na Universidade da
Califórnia em São Francisco anuncia-
Inocêncio Foca, anda chateado com a
reação do presidente Lula — “Não é
ram que homens homossexuais eram hora de ninguém acusar ninguém” — no
“muitas vezes mais vulneráveis” à debate sobre o aumento do desmata-
CAMPANHA DA FRATERNIDADE MIRA NO ABORTO contaminação por MRSA (sigla de mento. Como não acusar ninguém se
Staphylococcus aureus resistente à o desmatamento disparou, e sabe-se
Campanha da Fraternidade 2008 da meticilina), nova bactéria virulenta e muito bem quem desmatou? Aliás,
A Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, lançada em fevereiro, contra o
com potencial para matar. A imprensa
chegou a apelidá-la de “novo HIV”. Dois
das 36 cidades que mais desmatam
na Amazônia, 23 estão na lista das
aborto, “enquadra a Igreja Católica no dias depois, o Centro de Controle de que mais matam. Por exemplo, Co-
espectro conservador” na interpretação Doenças e Prevenção, em Atlanta, que ronel Sapucaia (MS) e Colniza (MT).
do repórter César Felício (Valor, 14/2), financiou a pesquisa, afirmou que a in- Segundo os responsáveis pelo estudo,
“tanto pela escolha do tema, que diz fecção não é sexualmente transmissível há uma situação “muito clara no arco
respeito a direitos e deveres individuais, nem está restrita a grupos: dá-se por do desmatamento”, com “ausência do
como pela premissa que se sobressai: a contato e é disseminada em hospitais poder público, propriedades ilegais e
liberdade não é um princípio absoluto, e entre profissionais da saúde. trabalho escravo”. Conclusão: passou
diz, na matéria “O desembarque de O bairro de Castro, em São da hora de acusar alguém...
Ratzinger no Brasil”. Segundo o autor, Francisco, epicentro da epidemia da
o papa Bento 16 (Joseph Ratzinger) aids que hoje registra casos do MRSA, O QUE SERÁ DE NÓS? — Já o velho
escolheu a América Latina para montar viu ressurgir velho estigma: o estudo Fontes Fidedignas anda preocupado.
frente de batalha que buscará apoio de municiou grupos antigays. Em 18/1 a É que também anda preocupado um
governos e da ONU contra a onda favorá- universidade pediu desculpas pelas dos gurus da luta antiglobalização,
vel ao aborto — no ano passado, Portugal informações que permitiram interpre- o jornalista francês Ignacio Ramo-
e Uruguai o legalizaram. tações equivocadas. “Deploramos a net. Co-fundador em 2001 do Fórum
O texto que apresenta a Campa- associação negativa de populações es- Social Mundial, deu entrevista (ver
nha da Fraternidade, informa o repór- pecíficas com infecções por MRSA.” www.agenciacartamaior.com.br/)
ter, foi revisto sete vezes e, mesmo se dizendo que os movimentos sociais,
terminou confuso, tem recado claro a única força organizada em escala
ao público interno: a igreja deixou de AUSTRÁLIA PEDE PERDÃO A ABORÍGENES planetária que resiste à globaliza-
seguir a esquerda no Brasil. “Marcado ção, não sabem o que fazer com
por forte influência da militância novo primeiro-ministro australia- essa força. “A ofensiva ideológica
esquerdista católica, o PT abraçou a
bandeira da liberalização do aborto
O no, o trabalhista Kevin Rudd, fez
em três meses o que seu antecessor,
da globalização prossegue”, diz, mas
“o movimento já não amedronta os
em seu último Congresso”, lembra. o conservador John Howard, evitou dominadores, apenas falam dele”.
O repórter cita a ONG Católicas pelo em 11 anos: apresentou histórico Para Ramonet, “preocupa esse si-
Direito de Decidir como prova de que pedido de perdão aos aborígenes no lêncio” e o FSM está obrigado a se
o monolitismo da hierarquia católica Parlamento (13/1) pelas injustiças da perguntar: “O que será de nós?” Para
contra o aborto não desce às bases da colonização. Rudd incluiu cinco vezes aumentar a preocupação, eis uma
igreja. “Ao deixar de ser caudatária de a palavra “perdão” no texto, mesmo frase do sociólogo carioca Gilson
movimentos sociais e trocar o combate alertado de que poderia causar onda Caroni Filho, colaborador da Agência
ao milho transgênico pela condenação de pedidos de indenizações: “Pela dor, Carta Maior: “Não existe mais essa
ao aborto, a Campanha da Fraternidade o sofrimento e o dano a estas gerações luta entre esquerda e direita, agora
promove um freio de arrumação.” roubadas, de seus descendentes e é a luta do bem contra o mal, muito
das famílias que deixaram para trás, mais violenta.” Cruzes...
pedimos perdão”. Os aborígenes são a
DURAS CRÍTICAS A MARINA minoria mais pobre da Austrália, com DETERMINANTES SOCIAIS — Está em
expectativa de vida 17 anos inferior à consulta pública de 5 a 20 deste mês
jornalista Marcos Sá Corrêa (Es- média nacional. A chamada “geração o relatório final da Comissão Nacio-
O tadão, 23/1) fez duras críticas à
ministra Marina Silva, do Meio Ambien-
roubada” são crianças que, de 1910
a 1970, foram separadas à força das
nal sobre Determinantes Sociais da
Saúde, que avalia a saúde no país e
te, que é evangélica, por entrar em famílias e dadas em adoção sob o recomenda ações intersetoriais para
“rota de colisão com Charles Darwin”. pretexto da integração. o enfrentamento das iniqüidades. Os
No Simpósio Criacionismo e Mídia, da interessados podem opinar pelo site
Igreja Adventista, defendeu progra- SÚMULA é produzida a partir do acompa- (www.determinantes.fiocruz.br). Em
ma de “educação plural” que trate o nhamento crítico do que é divulgado na abril, em data a ser marcada, o rela-
evolucionismo como apenas “mais um mídia impressa e eletrônica. tório será entregue ao presidente Lula
olhar” sobre a história natural. “Um e ao ministro da Saúde.
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1ª CONFERÊNCIA IBERO-AMERICANA DE COMUNICAÇÃO DA INFORMAÇÃO EM SAÚDE

Aliança de idéias e práticas

FOTOS: ADRIANO DE LAVOR


uando formulou a Teoria do

Q Conhecimento Objetivo, o
filósofo da ciência Karl Po-
pper (1902-1994) defendeu
a existência de três mundos: o primei-
ro seria constituído pelos objetos e
estados físicos; no segundo ele reuniu
os estados mentais, a experiência e o
conhecimento subjetivos; por fim, no
terceiro — o mundo do conhecimento
objetivo — estariam os “produtos” da
mente humana, cuja existência não
dependia de quem os criou.
O postulado de Popper, austríaco
naturalizado britânico, serviu de ins-
piração conceitual para a organização
da 1ª Conferência Ibero-Americana
de Comunicação da Informação em
Saúde, que reuniu em Brasília, entre
3 e 5 de dezembro de 2007, pesquisa-
dores brasileiros e espanhóis. A teoria
popperiana orientou a promoção do
diálogo entre os “diversos mundos
da saúde no Brasil”, considerando Fabíola Nunes, Edgar Hamann e Antonio Miranda na abertura: inspirados por Popper
as ações compreendidas no mundo
das idéias — com suas formulações mais fácil conversar entre pares”, humanos em saúde, lembrando que
e teorias —, no mundo dos registros o encontro entre as três áreas de o desafio da promoção à saúde não
— com documentos e informações conhecimento prometia ser estimu- será concretizado apenas por profis-
registradas em algum suporte — e no lante, em especial com a integração sionais da área. Ela disse considerar
mundo real — onde são travadas as entre brasileiros e espanhóis. de suma importância a aproximação
relações e o convívio entre as redes Já Emir Suaiden, diretor do Ins- dos profissionais da informação e da
sociais e entre os indivíduos. tituto Brasileiro de Informação em comunicação na construção dos deter-
A proposta da conferência tam- Ciência e Tecnologia (Ibict), apostou minantes sociais da saúde, a partir dos
bém levou em consideração os espa- nas possibilidades de parceria aber- quais se conseguiria uma “mudança de
ços em que circulam as informações, tas pela conferência, uma vez que comportamento” na sociedade em prol
dividindo-as em três eixos: o primeiro o compartilhamento de experiências de atitudes mais saudáveis.
concentrou as discussões acerca da seria “caminho vital para acabar com Maria Cristina Costa, da Secreta-
informação científica especializada, as desigualdades gritantes”. Represen- ria de Ciência e Tecnologia e Insumos
situada no âmbito acadêmico e de pes- tante da Opas/OMS no Brasil, Diego Estratégicos (SCTIE) do Ministério da
quisa; o segundo reuniu a informação Victoria defendeu a capacidade das Saúde, enumerou entre os desafios
para a tomada de decisão, localizada novas tecnologias na promoção de para a área a criação de uma coorde-
no contexto corporativo e gerencial, mudanças, levando a informação nação ministerial de informação e do-
e o terceiro estabeleceu as relações a lugares distantes e fortalecendo cumentação, a difusão da informação
entre informação, educação e comu- as redes na área de comunicação científica e o zelo com a memória da
nicação comunitária, em que atua a e saúde em comunidades rurais e saúde pública. Informou, ainda, que
sociedade civil organizada. indígenas. Ele informou que as re- desde 2003 a SCTIE coordena ações
Na solenidade de abertura do comendações feitas pela conferência e traça marcos políticos e técnicos
evento, no Centro de Ciências da serviriam de insumo na orientação de para que “o SUS se apóie em pesqui-
Saúde da Universidade de Brasí- políticas, programas e projetos da sas e parcerias”. Segundo ela, só faz
lia, o professor Antônio Miranda, agência na América Latina. sentido o SUS financiar pesquisas cujo
coordenador do Programa de Pós- A diretora da Fiocruz/Brasília, formato, mídia e linguagem sejam
Graduação em Ciência da Informa- Fabíola de Aguiar Nunes, ressaltou a úteis à sociedade. “Só assim os pro-
ção da universidade, destacou a importância da parceria entre a insti- cessos de tomada de decisão serão
importância do intercâmbio entre tuição e a UnB na produção de conhe- baseados no conhecimento”.
comunicação, informação e saúde, cimento, desenvolvimento científico Diretor da Faculdade de Ciências
ressaltando que, apesar de “ser e tecnológico e formação de recursos da Saúde da UnB, Francisco de Assis
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Rocha Neves resumiu a preocupação por Monteiro Lobato, que “encarnou”


anação da Norma — Medicina
dos integrantes da mesa de abertura
em relação ao evento: “Informação é
poder, é libertação e aprimoramento,
o “brasileiro doente”.
Nísia ainda apresentou algumas
das primeiras incursões da divulgação
D Social e Constituição da Psi-
quiatria no Brasil, de R. Machado
tanto do paciente como do profissional científica no país, as pioneiras experi- et al (Graal, 1978); O dilema
de saúde”, afirmou. “Não existe saúde ências de rádio e cinema educativos preventivista — Contribuição para
sem informação”. e o destaque conferido ao combate a compreensão e crítica da medi-
à fome — como parte de um novo cina preventiva, de Sergio Arouca,
INSTRUMENTO DE INCLUSÃO diagnóstico dos males do país. Em se- tese de doutorado (Unicamp,
Primeiro conferencista da soleni- guida, apresentou publicações e livros 1975) depois publicada em livro
dade de abertura, Miguel Ángel Marzal, que inspiraram a Reforma Sanitária (Unesp/Fiocruz, 2003); Medicina
do Departamento de Biblioteconomia e brasileira, no século passado, bem e sociedade, de Maria Cecília F.
Documentação da Universidade Carlos como destacou a importância das Donnangelo, tese de doutorado
III, de Madri, falou sobre inclusão di- publicações em congressos para a (USP, 1973) publicada em livro
gital e educação. Em sua explanação, construção de uma agenda comum (Pioneira, 1975).
o professor demonstrou — no contexto de ações na América Latina.
da “sociedade da informação” — como
o uso das novas tecnologias de comu- UM CERTO DESCOMPASSO saúde é um direito do usuário, seja
nicação e de informação tem causado A partir dos dias seguintes, a em relação aos riscos ou às práticas”,
impactos econômicos, sociais, psico- conferência ofereceu uma série de observou. “É função da mídia divulgar
lógicos e cognitivos nos indivíduos, oficinas aos participantes, para públi- temas de interesse público”.
apontando a educação como “instru- cos diversos e com temáticas variadas. A pesquisadora alertou para
mento de inclusão”. Entre os temas abordados, discutiu-se que Estado e instituições privadas
Para Miguel Ángel, a inclusão gestão participativa nos processos de incluam a divulgação de informa-
requer, no entanto, uma adaptação comunicação e informação em saúde, ções preventivas em sua agenda, em
do modelo escolar, o que implica a preparação de revistas eletrônicas especial quando trata de questões
adoção de uma “alfabetização múlti- e produção de artigos científicos, a como qualidade de vida, riscos de
pla” — reunindo metalinguagem, co- atuação das rádios comunitárias, a contaminação, poluição ambiental
nhecimento sistemático e adaptação pesquisa e o acesso às fontes da Bi- e segurança alimentar. “Muitos dos
do “usuário-educando” — e a inclusão blioteca Virtual em Saúde, a qualidade danos à saúde resultam de algo que
de bibliotecas públicas e universitá- da informação em saúde na internet e já está exposto ou de direitos que
rias no processo de “alfabetização as alternativas de comunicação para a não são cumpridos”, alertou Dione,
informacional”. Para o professor, é educação popular em saúde. lembrando que várias questões que
necessária a sistematização de um Entre os participantes, gestores, deveriam ser resolvidas pelos ges-
processo de alfabetização científica, profissionais e pesquisadores na área tores de saúde acabam se tornando
que dê conta da dimensão social e de informação, comunicação ou saú- responsabilidade do usuário. “A
democratizadora da ciência. de, professores e alunos de mídia simplifica as ações e confere
Pesquisadora da Casa de graduação e pós-graduação, ao usuário uma responsabilidade que
Oswaldo Cruz, Nísia Trindade agentes comunitários de saú- não é só dele”. Para isso, indicou, é
Lima foi a segunda conferen- de, editores e lideranças importante adaptar o conteúdo do
cista da noite. Ela estabeleceu corporativas. Além dos encon- que se quer divulgar ao contexto do
um paralelo entre a história da tros, a conferência promoveu usuário, levando-se em consideração
saúde e a história da humani- sessões dialogadas, encontros questões como orçamento e efetivi-
dade, destacando o papel im- e grupos de trabalho, que pos- dade da informação.
portante da informação e da sibilitaram real intercâmbio Em sua apresentação, a profes-
divulgação científica na reali- entre abordagens e olhares sora Maria Cristina Guimarães, da
dade brasileira. Em sua apresentação, diversos sobre os temas propostos: Fiocruz, defendeu maior circulação
Nísia refutou a “dicotomia entre idéias “Nós trouxemos para cá um universo de de informações para que se alcancem
e práticas sociais”, demonstrando que pessoas que, para nós, ainda não tinha as Metas do Milênio. “Sem saúde
as idéias “adquirem objetividade, se se reunido com tamanha intensidade”, não há estratégia de crescimento”,
configuram como mapas cognitivos avaliou Valéria Mendonça, uma das advertiu, ressaltando a necessidade
e se materializam por meio de sua organizadoras do evento, coordenadora de uma visão sistêmica que inclua
circulação em diversos meios”, sejam da Unidade de Tecnologia da a comunicação como geren-
estes o livro ou qualquer interface das Informação e Comunicação em ciadora de fluxo das idéias.
novas tecnologias. Saúde do Núcleo de Estudos de “Comunicação é encontro,
Para a pesquisadora, a história da Saúde Pública (Nesp) da UnB. é engajamento”, disse. “As
saúde no Brasil tem estreita relação A professora Dione Mou- novas tecnologias devem ser
com o imaginário social sobre o país, ra, também da UnB, abordou, exploradas como possibilida-
construído a partir da força de algumas numa das sessões dialogadas, des de interação, mas devem
publicações e livros. Entre estes, ela a popularização da ciência sob permitir que se entenda o
salientou a importância de Os sertões, o paradigma da prevenção. mundo do outro”. A saída, dis-
de Euclides da Cunha — “um livro que Ela destacou a necessidade se Cristina, está na pesquisa
inventou o Brasil” —, da memória do de maior interação entre os gestores aliada à inclusão social.
movimento sanitário durante a Primei- e a grande mídia no gerenciamento Docente da Universidade Federal
ra República — registrada pelo Institu- dos riscos na área de saúde, identifi- de Santa Catarina, Clóvis Montenegro
to Oswaldo Cruz — e de personagens cando certo descompasso na atuação de Lima destacou que o processo de
da literatura, como Jeca Tatu, criado das duas esferas: “A informação em transmissão da informação “pode ser
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disciplinador da sociedade”, como estímulo à reflexão. Ao apresentar hoje a sociedade do espetáculo, o que
atestou o filósofo francês Michel o conceito de “multialfabetização”, exige uma adaptação na contribuição
Foucault (1926-1984) ao cunhar o destacou que “a sociedade precisa que se dá à realidade.
conceito de “ortopedia social” — que de cidadãos que saibam bem mais
seria a “definição de competências do que ler e escrever”. UM “BEM” GLOBAL
a partir de uma demarcação de Aurora enfatizou a necessidade Ao analisar a dinâmica populacio-
desigualdades”. Em sua opinião, é de uma cultura informacional na atual nal das Américas, outro representante
difícil definir o que dizer aos meios sociedade de conhecimento, dado o da Opas/OMS, José Gerardo Moya,
de comunicação e prever como estas volume de informações circulantes. identificou que os dois grupos com o
informações podem gerar uma “mu- Por isso, crê numa alfabetização “mul- crescimento mais acelerado são os
dança de comportamento”. timodal” — que inclui visual, auditivo, adultos com mais de 60 anos, o que im-
A radialista Mara Régia Di Perna gestual, iconográfico, eletrônico e plica, por um lado, a desaceleração do
(Radis 44) levou ao encontro a ex- multimídia — integrada a outros sabe- crescimento demográfico e, por outro,
periência acumulada na direção do res e ao desenvolvimento de habilida- o aumento na esperança de vida e a re-
programa Natureza Viva, transmitido des. Para ela, este processo levará o dução na mortalidade por enfermidades
pela Rádio Nacional da Amazônia aos indivíduo a trabalhar bem em equipe, transmissíveis e doenças perinatais.
nove estados da região. Em partici- a ter capacidade de se comunicar e de Para Moya, este “sucesso” está re-
pação empolgante, emoldurada por se organizar, a solucionar problemas, lacionado a aspectos que “transcendem
uma sonoplastia que levou a Brasília o a tratar e dirigir informações. fronteiras e governos e requerem ações
cantar dos pássaros da floresta, Mara A arte como aliada à promoção compartilhadas entre os países para
destacou a importância do rádio na da saúde foi o tema da fala do sani- atuar sobre os determinantes da saúde”.
disseminação de informações. tarista Ranulfo Cardoso Junior, que Entre estes aspectos estariam o respeito
Segundo ela, 83,6% da população apresentou o projeto “Arte contra a aos direitos humanos e a visão da saúde
rural da Amazônia têm o rádio como aids”, implementado pela ONG Ins- como elemento central na segurança
principal fonte de informação. Na- tituto de Saúde e Desenvolvimento e desenvolvimento, o que a coloca na
tureza viva, informou, é ouvido por Social (ISDS), entre 1997 e 2002, posição de um “bem” global.
84,9% dos usuários de ondas curtas em Fortaleza. A partir do texto de Ele destacou como ameaças à
pelo menos duas vezes por semana. teatro Auto da camisinha, de José saúde global a extensão da pobreza e
Além disso, o programa é conhecido Mapurunga — que possibilitou ações da fome, os efeitos das mudanças cli-
por 100% dos líderes comunitários da de teatro de rua em caráter preven- máticas, o crescimento e a urbanização
região. O segredo, para ela, está no tivo —, a iniciativa foi estendida ao das populações, as guerras, a violência,
“senso de pertencimento” que utiliza universo do rádio, do design e da o narcotráfico e o terrorismo, além da
na elaboração do material que põe publicidade, utilizando linguagem difusão de novas enfermidades graças
no ar: “Não há como abraçar uma popular e motivando a mobilização ao comércio, à migração e ao turismo.
iniciativa como esta sem sentimen- social em prol da saúde. Para Gerardo, os novos desafios se
to”. E lembrou que é importante A apresentação de Ranulfo cha- concentram nas “doenças emergentes
considerar-se a riqueza dos saberes mou a atenção do professor Ronaldo e re-emergentes e nas novas pande-
ribeirinhos: “Na Amazônia, saúde é Nunes Linhares, da Universidade mias e os problemas relacionados ao
ar puro, terra boa e água limpa”. Federal de Sergipe, que detectou um estilo de vida”, como sexo inseguro,
Ao comentar a apresentação de afastamento da academia das cama- tabagismo, inatividade física, além
Mara Régia, a professora Vânia Cristina das populares. “Hoje, a sociedade do enfrentamento das enfermidades
Marcelo, da Universidade Federal de exige dos profissionais um processo crônicas e ligadas à violência. Como
Goiás, lembrou como é difícil “falar de aprendizagem mais amplo, já que saída, apontou para a eqüidade e para
com o coração” no mundo acadêmi- se sabe que as pessoas interpretam a inclusão dos mais vulneráveis e a
co, destacando que a racionalidade a realidade de maneiras diversas”, atenção constante aos determinantes
excessiva impede que se atinjam os disse ele, lembrando que vivemos sociais da saúde. (A.D.L.)
objetivos de comunicação. E ques-
tionou: “Como dar voz às pessoas da
comunidade?” Vânia lembrou que a
academia não produz conhecimento.
Radis adverte
“Quem produz é a sociedade; a aca- Combate à dengue não é mais coisa de verão.
demia sistematiza”, sinalizando que Agora, a campanha dura o ano todo!
o segredo pode estar na formação
das pessoas que realizarão a comu-
nicação e na adaptação de formatos
às diferentes realidades.

MULTIALFABETIZAÇÃO E ARTE
O tema “alfabetização informa-
cional” também foi abordado pela
professora Aurora Cuevas Cerveró, da
Universidade Complutense, de Madri.
Para ela, os setores menos privilegia-
dos podem alcançar a saúde através
da informação, lembrando que edu-
cação não se limita à transmissão
de conteúdos, mas representa um
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TERAPIA COMUNITÁRIA

Um oásis
para resgate da
auto-estima
Ela so
sorri
orri p
para
ara a ffoto
oto e p
pede
ede q
que
ue
a câmera também enquadre
seus santinhos, suas flores e os enfeites
que cuidadosamente guarda em cima de
uma mesinha. Solta os cabelos, arruma
os diversos colares em volta do pescoço
e segura, como se fossem mágicas, as
quatro varas que simbolizam o projeto
que a acolheu. Aos 67 anos, a vida de
dona Zilma Saturnino é outra, desde que
se tornou uma das cuidadoras da oca de
saúde comunitária.
Ela conta que nasceu perto do Açude
João Lopes, no bairro Ellery, periferia de
Fortaleza. “Era doente até vir me tratar
com doutor Adalberto”. Depois de um
período de internamento no Hospital
Psiquiátrico Mira y Lopez — de onde fugiu
—, Zilma encontrou apoio no Projeto 4
Varas, onde pôde exercer a vocação para
cura. “Eu era doente porque tinha o dom

lado o projeto, ele defende a parceria especialistas e a sabedoria popular, que


Adriano De Lavor
entre o saber científico e o popular no enfrenta o sofrimento “promovendo a
tratamento dos transtornos mentais. saúde e reduzindo danos”.
ilma, Cleinha e Francisca são Hoje, sentado no mesmo local, ele Desde 2006, o projeto — iniciativa

Z apenas três dos muitos perfis


que comprovam a resolutivi-
dade do trabalho de terapia
comunitária realizado há 20 anos na
Favela do Pirambu, comunidade que
festeja a concretização de um projeto
que atende mensalmente 1.200 pessoas
e enfrenta, ao mesmo tempo, a pato-
logia e o sofrimento. “Aqui temos um
posto de saúde do PSF, onde se trabalha
com o Departamento de Saúde Comu-
nitária e a Pró-Reitoria de Extensão
da Universidade Federal do Ceará
(UFC) — recebe apoio da Prefeitura
Municipal de Fortaleza, que tem con-
abriga cerca de 50 mil pessoas na pe- a patologia com o médico, o enfermeiro vênio de financiamento e apoio téc-
riferia de Fortaleza. O responsável pela e o dentista, e um espaço onde se tra- nico para os serviços prestados — por
iniciativa é o psiquiatra e antropólogo balha o sofrimento, com a massagem, exemplo, o pagamento do salário dos
Adalberto Barreto. Desde que começou a argila com pedras mornas, o banho massoterapeutas. O apoio foi decisivo
a reunir as pessoas para escutar seus de ervas e a reza com curandeiros”, para a reforma dos equipamentos já
problemas à sombra de um cajueiro, no resume. Assim é possível aproveitar, existentes e para a construção de uma
mesmo terreno onde agora está insta- de forma complementar, o saber dos unidade básica de Saúde da Família,
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A massoterapeuta Cléia
FOTOS: ADRIANO DE LAVOR

Rodrigues Monteiro chegou


ao projeto há nove anos, também à
procura de ajuda. Relata, sorridente,
à porta da sala que ocupa na oca
de saúde comunitária, que sofria
de depressão desde jovem e re-
clamava de um entalo. “Quando
Cleinha se curou, começou a
d l
mandar pessoas pra cá”, recorda Adal-
berto, que identificou naquela senhora
a capacidade de mobilização na comu-
nidade. “Vi que ela tinha capilaridade,
conseguia formar uma rede de suporte
e de apoio social”, lembra. No início
relutante, fez o curso de massagem.
“Você cuida muito bem dos outros,
venha aprender a cuidar melhor”, dizia
Adalberto para convencê-la.
Situação semelhante viveu dona
Francisca, que chegou à casa “ne-
oleptizada, babando, inclusive im-
pregnada”. Adalberto conta que até
ela se surpreendeu pela maneira
não

e nãoo sabia”,
sa diz. Foi como foi recebida: “Disseram que a
d sessões de
numa das senhora é rezadeira. Meus remédios
terapia comunitária sozinhos não dão conta de tanto
que ela se (re)desco- estresse e sofrimento. Vou precisar
briu rezadeira. de gente como a senhora”, disse o
O doutor Adal- médico. “O senhor acha que vou ficar
berto relembra. boa?”, duvidou Francisca. “A senhora
“Dona Zilma era doida nasceu assim? Não! Não se preocupe
de pedra. Mas quando que vou te tratar”.
chegou aqui, não olhei
a patologia: disseram
que era curandeira.
Um dia, uma pessoa
passou mal, segundo
ela era um encosto.
Ela foi lá, rezou e,
depois que terminou,
as pessoas começa-
ram a pedir que ela
rezasse aqui e ali.
Não deu mais tempo
de endoidar”.

que funciona em dois turnos e é moni- como podem ser orientadas nos servi- Também fazem parte da estrutura
torada por equipe que reúne médico, ços comunitários a procurar apoio de física local a Casa da Memória — que
enfermeira, auxiliar de enfermagem, especialistas, quando necessário. dispõe de acervo de fotos, áudio e
agente comunitário de saúde, dentista Além da unidade de saúde, o vídeos sobre a história da terapia co-
e auxiliar de consultório dentário. complexo 4 Varas conta hoje com a munitária, do projeto e da comunidade
O atendimento do posto de saúde oca de saúde comunitária, para as mas- —, uma escola que atende cerca de 100
chega aos domicílios cadastrados no sagens, os banhos e as rezas, a tenda crianças carentes da favela e o grupo
entorno — cerca de 1.000 residências, das sessões de terapia comunitária e de teatro Zé e Maria, que reúne 30
segundo a Secretaria Municipal de Saú- de resgate da auto-estima, a farmácia jovens da comunidade.
de — e presta serviços de imunização, viva — onde são cultivadas ervas medi- Parece um oásis, encravado numa
aerossolterapia (terapia por nebuliza- cinais, cuja venda auxilia na autonomia das comunidades mais violentas da ca-
ção) e prevenção de câncer do colo do financeira do projeto —, o ateliê de pital cearense, cercado de coqueiros e
útero. Adalberto destaca a parceria arte-terapia e a casa de acolhimento, outras árvores frutíferas, salpicado de
entre as duas instâncias: as pessoas onde se hospedam pesquisadores visi- verde nos canteiros com ervas medicinais
tanto são encaminhadas da unidade tantes e são recebidas as pessoas que e nos jardins que emolduram os prédios.
de saúde às terapias complementares, necessitam de repouso. As construções utilizam materiais locais,
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como a madeira e a palha da carnaú-


ba, que se harmonizam com as redes
sempre armadas e os móbiles feitos
de concha, que balançam ao sabor do
vento. A ambientação, baseada em
elementos locais, cumpre a função de
“A nossa dor
deixar à vontade quem ali pro-
cura tratamento: “É um espaço
para acolher o sofrimento, a dor
não é só nossa”
da alma”, abrevia Adalberto.
que eu não digo com a boca eu vou
VÍNCULOS INQUEBRÁVEIS
V ste ano quero paz no meu cora- dizer com gastrite, com depressão ou
Outros elementos também simbo-
lizam a participação da comunidade. A
“E ção... Quem quiser ter um amigo,
que me dê a mão...” Saída do pequeno
qualquer outra doença: o que a boca
cala, os órgãos falam”.
estátua de um índio segurando as quatro aparelho de som, a música dos Incríveis Pede a palavra Sebastião, que se
varas que batizaram o projeto lembra confere um clima de fim de ano, bem diz angustiado, já que a filha de 16
que a união faz a força: enquanto as apropriado à última sessão de terapia anos fugiu de casa “com um cara”.
varas estiverem juntas, fortes serão; comunitária de 2007. Enquanto as pes- Ele não sabe como proceder. Quer o
separadas, se tornam fracas e podem se soas vão se acomodando, seu Zequinha, melhor para ela, mas não consegue
quebrar. Outra referência simbólica é a facilitador do encontro, sugere que os perdoá-la. “Temos a fuga da filha
teia de aranha pintada no chão da tenda participantes batam palmas, no ritmo do seu Sebastião. Mais alguém com
onde acontecem as sessões terapêuti- da canção. Cumprimenta um, afaga a problema?”, instiga Adalberto. Perce-
cas: seus fios representam a fortaleza cabeça de uma criança, acena para bendo o silêncio e a impaciência de
dos vínculos desenvolvidos pela comu- outro com um sorriso largo no rosto. uma mulher, indaga: “A senhora quer
nidade naquele espaço — com a terra, Gente de todas as idades está dizer algo?”. Ela só chora e nada diz.
com as tradições, com o conhecimento reunida no salão terapêutico do Projeto “Como é seu nome? O que a senhora
científico e entre eles mesmos. 4 Varas, como acontece em todas as quer dizer?” Ela só abana a cabeça e
Na visão do terapeuta, a estratégia tardes de quinta-feira. Esta sessão tem diz que está “com um entalo”.
deste ambiente familiar é mais uma apelo especial para as crianças. Como “Dona Marli tem um entalo. Al-
diferença entre o 4 Varas e os serviços última do ano, prevê apresentação tea- guém pode ajudar?”. Do outro lado do
que, mesmo na melhor das intenções, tral ao fim do encontro, com sorteio de salão, uma vizinha de Dona Marli se
acabam “medicalizando o sofrimento”. brindes de Natal. Por isso mesmo, falta apresenta e diz: “Já sofri muito com
“Observamos que a maior parte das espaço nas cadeiras que circundam a este entalo”. Doutor Adalberto pergunta
pessoas que vai aos postos de saúde quer teia de aranha pintada no chão — o se a vizinha pode falar do caso. Com a
ser acolhida e desabafar”. Ele sintetiza símbolo da comunidade. Mas não há anuência de Marli, a outra diz que o
a proposta com um questionamento: problema: os que chegam por último problema está na gravidez da filha de
“Uma mãe ansiosa e desesperada sentam-se na amurada que dá suporte 14 anos. Nesse momento, a mãe preo-
porque o filho entrou no mundo das às paredes — que, assim como teto, são cupada desabafa, com muitas lágrimas.
drogas precisa de psicotrópico para feitas com palha de carnaúba. Conta que o rapaz que engravidou a
dormir ou ser acolhida?” Ele mesmo À sombra da luz natural da tarde filha já se comprometeu em assumir a
responde: “Ela pode melhorar com uma e embalado pelo vento característico criança, “mas vive com outra”. Ela diz
massagem, onde possa chorar, falar, ser da orla de Fortaleza, seu Zequinha, sentir “ódio” da filha naquele momento.
acolhida e compreender”. Ao mesmo terapeuta comunitário formado pelo “Não agüento nem olhar pra ela!”
tempo, Adalberto deixa claro que o tra- próprio projeto, sugere que cada um O terapeuta acalma dona Marli e
balho não desconsidera nem desvaloriza cumprimente, “com um aperto de inicia o processo de votação do tema
a medicina tradicional: “O que quere- mão e um abraço”, a pessoa que está com o grupo. A ampla maioria decide
mos fazer aqui é medicina popular em a seu lado. “Paz para você, que veio ajudá-la. Adalberto relembra as regras
complemento à medicina científica”, participar”, canta ele, lembrando seguidas a cada sessão. No primeiro
afirma. “Não estamos em competição, que aquele é um local para desabafar, momento, todos podem fazer per-
não brigamos pela patologia”. compartilhar inquietações e “tudo guntas a dona Marli. Na segunda fase,
Nessa via de mão dupla entre aquilo que nos tira o sono”. quem já viveu situação semelhante
o saber científico e o popular, quem Cada um pode falar de suas pode contar sua história. A partir daí,
sai ganhando é a comunidade, que dificuldades, mas não são permitidos o grupo se movimenta para saber mais
conquista melhor qualidade de vida e críticas ou julgamentos, lembra: sobre o caso. “A menina estuda?”;
alça novos vôos. Em janeiro de 2008, “Aqui não se dá conselho nem se faz “como descobriu que a filha estava grá-
um grupo de 11 pessoas acompanhou discurso; não se fala em tese, mas vida?”; “qual foi a reação do pai?”; “a
Adalberto e o secretário de Saúde de sim, em dificuldades”. Em clima senhora engravidou com que idade?”,
Fortaleza, Odorico Monteiro, em via- de descontração, cumprimenta os indaga um menino que não aparenta
gem à cidade de Grenoble, na França. aniversariantes do mês e passa a pa- mais de 10 anos.
Convidada pela prefeitura local, a lavra ao doutor Adalberto, que acaba É aí que Adalberto intervém com
comitiva apresentou, durante 15 dias, de se acomodar numa das cadeiras, uma pergunta crucial. “Dona Marli, a
a experiência inovadora do Projeto 4 rodeado de crianças. O psiquiatra, senhora não acha que está vendo a
Varas a pesquisadores europeus. Entre de bermuda e sandália, avisa que é senhora mesma na sua filha? As vezes
eles, dona Zilma, testemunha viva de hora de escolher o tema com o qual a gente sofre por perceber no outro
que acolhimento e escuta transformam trabalharão naquele dia. Como se faz uma situação que aconteceu com a
doidos de pedra em gente que distribui silêncio, ele estimula o grupo com gente”, diz ele. Ela relata que ficou
acolhimento e apoio. um argumento convincente. “Aquilo grávida muito jovem e sofreu muito,
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Gente de todas as
idades na sessão
comunitária (ao alto).
“Paz para você, que
veio participar”, acolhe
seu Zequinha. O doutor
Adalberto (ao lado)
chega logo: muitas
vitórias em 2007

em especial com a falta de apoio do a declararem qual foi sua maior vitória Outra vitória, segundo ele, foi a
marido. Ele tranqüiliza a mãe preocu- em 2007. Entre um gole e outro do ligação do ministro Temporão informando
pada com bom humor: “Dona Marli, a chá de erva cidreira que circula em que a terapia comunitária seria política
senhora estava entalada com um es- bandejas e uma mordida no bolo de pública de saúde em todo o país. “Não
pelho! Estava vendo a senhora, e não milho quentinho, a palavra é dada a há dinheiro que pague essa conquista”,
sua filha!”. Ela já esboça um sorriso, todos. Muitos festejam o novo empre- disse Adalberto, sob aplausos. Encerrada
quando ele orienta para o início da go, a reforma da casa, uma conquista a rodada de depoimentos, o grupo se
segunda fase da terapia. dos filhos; uma senhora se orgulha põe de pé e começa a cantar, de braços
por ter recebido alta de um Caps; seu dados, a melodia: “Tô balançando, mas
VITÓRIAS DIVIDIDAS Sebastião compartilha a felicidade de não vou cair. Tô balançando na terapia,
Seu Sebastião, que assistia a tudo ter se livrado do álcool e das drogas; mas não vou cair...” Enquanto o grupo se
calado, apóia dona Marli, contando dois meninos dividem as vitórias num movimenta, coeso, o terapeuta estimula:
que sentiu o mesmo que ela; um campeonato de surf; um rapaz se “A gente não cai porque está apoiado
senhor de idade comenta que ele e alegra em contar que passou no vesti- pelo outro. É no ombro amigo que se
a mulher passaram a mesma situação bular, outro se anima ao relatar como descobre que a nossa dor não é só nossa.
com a neta, mas já se acostumaram conseguiu superar as dificuldades e Esse é o movimento da vida”. Olhos emo-
à idéia; a jovem em frente, com hoje pode sustentar, sozinho, a mulher, cionados diante do encontro, ele resume
uma criança no colo, conta que ficou o filho recém-nascido e a mãe idosa, a proposta do projeto: “Sair da rigidez.
grávida do primeiro filho aos 15 anos depois de anos desempregado. Toda convicção é uma prisão. A terapia é
e sofreu tudo aquilo. “Quando minha A maioria considera sua maior pra gente tirar essas convicções”.
mãe viu o neto, lindo e saudável, fez vitória simplesmente poder ter esta- Com um abraço coletivo, o encon-
as pazes comigo. Hoje, sou feliz com do ali, durante todo o ano, dividindo tro se encerra, mas ninguém sai dali.
meus dois filhos”. A esta altura, dona angústias e preocupações. Ao fim, é Ainda há o sorteio dos brindes que eles
Marli, bem mais calma, recebe o abra- doutor Adalberto quem revela suas mesmos trouxeram, e a encenação de
ço da vizinha e declara que vai “dar maiores conquistas em 2007. Para ele, Natal que desde cedo deixa as crianças
tempo ao tempo”. Enxuga as lágrimas, uma delas foi o Projeto 4 Varas ter ansiosas. E, para o ano que começa,
agradece a solidariedade do grupo e recebido a visita de Margareth Chan. ficam as estrofes da mesma música que
sorri, finalmente aliviada. “Para vocês terem uma idéia, receber iniciou a sessão: “Sonhos que vamos
Como é a última sessão do ano, visita da diretora da OMS é como uma ter / Como todo dia nasce novo em
doutor Adalberto estimula as pessoas paróquia receber o papa”, diz. cada amanhecer...”
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ENTREVISTA

Adalberto Barreto

“Aqui o remédio é a palavra”


e desesperada porque o filho entrou no
Projeto 4 Varas, um achado para a mundo das drogas precisa de um psico-
O gente pobre abandonada nas comu-
nidades — e por que não para gente rica
trópico para dormir ou ser acolhida? Na
massagem ela pode chorar, falar e com-
também? — parece simples nas palavras preender. Essa é a distinção que quere-
de Adalberto de Paula Barreto. Essa mos fazer aqui, uma medicina científica e
simplicidade talvez venha de seu amplo popular que aja de forma complementar.
currículo. Três graduações, em Medicina Não estão em competição, não estão
(UFC), Filosofia e Teologia (França e brigando pela patologia.
Itália), dois doutorados, em Psiquiatria

A.D.
pela Universidade René Descartes, a Como funciona?
antiga Paris V, sobre “a comunicação São seis massoterapeutas pagos pela
com a família do esquizofrênico”, e prefeitura. As pessoas encaminhadas pelo
em Antropologia, pela Université Lyon SUS recebem a massagem gratuitamente.
2, sobre “a medicina popular no sertão Vem gente da comunidade mandada pe-
do Ceará hoje”. Quem sabe venha da los médicos do PSF, dos CAPS. Fazem 10
experiência de 20 anos em terapia co- massagens duas ou três vezes por semana
munitária, cujo primeiro pólo ele criou e participam da terapia comunitária,
em 1986 com tanto êxito que já supera de resgate da auto-estima. É a terapia
os 500 mil atendimentos. Mais provável comunitária virando política pública do
que seja a combinação de academia e Ministério da Saúde. A Fiocruz vai ter um A gente contextualiza melhor esse
prática, bem ao gosto dele. pólo formador desta metodologia. sofrimento. Quando uma pessoa diz que
Na terapia comunitária, a medi- está com insônia, a insônia é o sofrimen-
cina convencional do PSF se escora nas Essa união com a medicina alternati- to e a cura é voltar a dormir. A tendência
medicinas populares e no acolhimento va é o ideal para a saúde pública? é prescrever um psicotrópico. Quando
ao desabafo. Antes de mais nada, todos Acho que sim. Não diria medicina se está na comunidade e vem uma mu-
falam, ouvem e se vêem uns nos outros alternativa, porque o alternativo pressu- lher chorando, com insônia ou engasgo
— a relação do espelho de Freud. “Aqui põe a exclusão do diferente. Eu chamaria porque a filha de 14 anos engravidou,
o remédio é a palavra”, diz Adalberto de medicinas complementares. Temos essa mulher precisa de um psicotrópico,
nesta entrevista dada à Radis em de- um modelo biomédico centrado na pa- um benzodiazepínico? Ou precisa ser
zembro na sede do 4 Varas. tologia, no medicamento, uma medicina desengasgada pela própria comunidade?
muito cara. Mas existe no cotidiano muito Quando a boca cala os órgãos falam: se
Como entender o Projeto 4 Varas? sofrimento decorrente do estresse, da essa mulher não se desengasgar hoje en-
Entre patologia e sofrimento. Temos educação dos filhos, do desemprego. Este tra em processo depressivo, de doença
um posto de saúde do PSF e lá se trabalha sofrimento no passado era tratado por mesmo. Então, a terapia comunitária,
a patologia, com médico, enfermeiro, benzedeiras, padres, pajés, havia essas numa proposta inicial, é criar um espaço
dentista. Aqui se trabalha o sofrimento instituições de escuta, de apoio. Com a de palavra. Aqui o remédio é a palavra.
e a promoção da saúde, usando curan- modernização da sociedade, a tendência Ela é para quem fala, é para quem ouve.
deiros e recursos disponíveis da cultura, é jogarmos isso fora e medicalizarmos o Na troca a comunidade cria vínculos, vai
como massagem, argila com as pedras sofrimento. Quando vim para a favela, se reconhecendo no apoio. Partindo de
mornas, banho de ervas e rezas. Então, dei-me conta de que a maior parte das uma situação-problema, a mãe viu que
são duas medicinas complementares: lá, pessoas que vinham falar comigo trazia 15 pessoas já viveram isso, inclusive
a patologia com os especialistas; aqui uma dor na alma que psicotrópicos não na situação contrária: a filha que diz,
se trabalha o sofrimento promovendo a resolveriam. Não que eu seja contra: eu também engravidei com 14 anos.
saúde e reduzindo os danos. cabem em determinados momentos. Ela se vê na filha, a relação do espelho
Percebi que se ficasse medicalizando de Freud. E entende que tem que ter
Para que as redes? os problemas existenciais acrescentaria calma, sabedoria e tolerância.
Temos as redes armadas para as mais sofrimento. Descobri que não podia
pessoas se deitarem. A casa acolhe o so- exercer a psiquiatria do mesmo jeito do E gente que vem se tratar acaba
frimento, a dor da alma numa massagem, hospital, onde diagnostico e prescrevo tratando...
por exemplo. Observamos que a maior medicamentos. Mesmo quando podia A Cleinha, quando veio, era tam-
parte das pessoas que geralmente vão prescrever as pessoas não podiam com- bém uma pessoa entalada. Quando se
aos postos de saúde quer ser acolhida prar. Essas foram algumas dificuldades. curou começou a mandar pessoas, e de
e desabafar, e muitos hospitais e postos tanto mandar vi que tinha capilaridade
estão medicalizando o sofrimento, os Estar na comunidade também é um na comunidade, capacidade de formar
problemas existenciais. Uma mãe ansiosa diferencial do projeto? uma rede de apoio social. Veio o curso
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e a convidei. Dona Zilma era doida de acha que só ela salva, tem as estatísticas, se interessou e não sabe por onde
pedra, alguém disse que era curandeira precisa de bons salários, de melhores começar?
também. Um dia estávamos numa terapia condições etc. e tem um discurso críti- O curso se faz para acabar com a
e uma pessoa passava mal: ela disse que co desvalorizador de quem vai fazer a mania de querer curar o povo. Temos
era um encosto. Então, eu disse, se a prevenção e a promoção da saúde, que duas fontes geradoras de competência,
senhora sabe o que é, vai fazer, eu não considera “turista”, “sonhador”. a academia e a experiência de vida. O
sei. Ela foi, outras pessoas começaram a saber da academia nos dá iden-
pedir que ela rezasse e depois não deu A medicina popular... tidade profissional como médico,
mais tempo de endoidar. Dona Francisca Nossa luta é dizer: você que está dentista e enfermeiro, o salário
me trouxeram neoleptizada, tomava salvando o outro, teu trabalho é tão im- financeiro, o saber pela com-
vários remédios, babando. Alguém me portante quanto o de quem está fazendo petência. No sofrimento temos
disse, ela é rezadeira da umbanda. Eu a prevenção e a promoção da vida. Aí, no ainda o salário afetivo: não é preciso i
disse a ela, os meus remédios não dão ano passado veio o estudo de impacto da ser médico, enfermeiro, não precisa
conta de tanto sofrimento. Ela olhou para terapia comunitária: 2 mil questionários ter faculdade para exercer a terapia
mim babando e disse: você acredita que em dois estados, 88% dos problemas comunitária; não precisa ser psicólogo
eu vou ficar boa? A senhora não nasceu resolvidos in loco, apenas 11,5% enca- porque não vai fazer análise, não precisa
assim, vai ficar boa. Fui tirando a medica- minhados aos postos de saúde. ser médico porque não vai prescrever
ção e orientando, terapia e conversando. remédio. Precisa ter engajamento com
Hoje é uma das nossas curandeiras. Ela já existe em todo país? a comunidade, uma ação cidadã que
Hoje, sim. Já treinei 11 mil tera- transcenda classe social, profissões. Cui-
Abordagem que olha mais a saúde do peutas comunitários, temos 30 pólos dando do outro, curo a mim mesmo.
que a doença... formadores no Brasil — a Fiocruz será
Por isso dá certo. Nossas rezadeiras o 31º. Já foi criada a Associação Bra- Como é a capacitação?
são pessoas desvalorizadas em busca de sileira de Terapia Comunitária (www. São quatro módulos em quatro
valor. O doutor não cura câncer, a minha abrapecom.org.br). O impacto foi esse: dias em regime de internato, com
reza cura câncer, dizia, para se valorizar. apenas 11,5% dos problemas encaminha- intervalo de dois meses, ao longo de
O meu trabalho tem sido dizer: a me- dos aos postos. Multiplique isso por mi- um ano. As pessoas vão aprendendo as
dicina de vocês não é para combater a lhares... Há um enxugamento nos postos técnicas de como garimpar a pérola
patologia, eu cuido da promoção da saú- de saúde, ou seja, o índio — ou o médico das feridas da vida. Começam por
de. Aí as duas medicinas se aproximam, — que salva os que estão morrendo con- um trabalho pessoal. Como será um
se valorizam e são complementares. tinua salvando, respira melhor. Então, trabalho de acolher o outro e escu-
Cada uma é rica naquilo em que a outra nossa idéia é complementar o cuidado. tar, tem que aprender a valorizar e
é pobre. A medicina popular é rica no Nós na promoção também tendemos a a escutar. É muito prazeroso, porque
afeto, no acolhimento, mas é pobre no ridicularizar e menosprezar o trabalho além do salário financeiro há o salário
tratamento da patologia. Já a medicina da medicina científica, mas precisamos afetivo. Partimos do pressuposto de
científica é rica no arsenal de antibióti- tanto dela como ela da nossa. que a primeira escola é a família, e o
cos e psicotrópicos, mas humanamente primeiro mestre, a criança que fomos.
é uma favela existencial. Quando me A expectativa de trabalho do PSF... Com a minha criança aprendi muita
aproximei dela aprendi a acolher melhor Exatamente. A academia produz coisa. Numa família em que os pais se
e a valorizar os recursos que se tem. conhecimento, mas a experiência de disputam de forma injusta, a criança
Agreguei valor ao ato médico. vida também. Tenho observado: damos que observa se torna mediadora. Sem-
melhor o que não recebemos, ensinamos pre atribuímos competência a um livro
Explique melhor. melhor o que precisamos aprender. As que lemos, a um curso, jamais ao que
Desde o início a nossa pedagogia que não foram amadas e foram rejeitadas vivenciamos. Na terapia comunitária,
é centrada na competência, e não na estão acolhendo, as que foram violenta- fazemos a pessoa perceber que a
carência. Vivemos num modelo de in- das estão dando massagem, acolhendo a competência dela se inscreve em sua
fluência judaico-cristão que valoriza o dor do outro. Até hoje uso a metáfora: a história de vida. Com mulheres injus-
que não funciona, o pecado, o negativo. ostra que não foi ferida não produz pé- tiçadas pelos maridos descobre-se que
Esse modelo desestabiliza o indivíduo, rola. A pérola é resposta a uma agressão. em casa a mãe vivera esta situação.
culpabiliza o outro. A pessoa culpabiliza- Toda família está ferida. As vitórias do Compreender isso dá empoderamento,
da se desestabiliza e busca o salvador. O ano são: meu marido deixou de beber, capacidade para um trabalho genial. O
modelo do salvador da pátria se baseia na comprei minha casa, arranjei emprego. seu Zequinha fala errado, mas quando
carência e no negativo. A nossa imprensa Se as pessoas arranjam emprego ficam não estou dirige toda a terapia. Como
só evidencia o que não funciona, o que mais autônomas, conquistam as coisas. ele entendeu o espírito, ele faz.
funciona não dá notícia. A educação é a Nós intervimos nos determinantes sociais
mesma coisa: seu filho faz tudo normal, da saúde, evitamos que essa pessoa vire Sem ser médico nem enfermeiro...
ninguém diz nada, mas se faz alguma cardiopata, diabética, e daqui a 15, 20 Diria que para ser terapeuta comu-
coisa errada, o sermão é deste tamanho. anos precise de tratamento caríssimo. nitário tem-se que gostar de trabalhar
Ninguém quer compreender o que funcio- Nosso trabalho é intervir nos determi- com comunidade, tem que aceitar
na, porque não dá status. Sempre conto nantes sociais usando os recursos da fazer um trabalho sobre si mesmo para
uma história sobre dois índios tomando comunidade, a argila, as mãos, a música desconstruir os modelos mentais que
banho num rio e vêem duas crianças e a sabedoria produzidas pelas carências nos foram construídos. Não precisa ser
morrendo afogadas. Salvaram os dois, de vida. Eles faziam isso no anonimato, médico nem enfermeiro. Se for, agrega
apareceram quatro, oito, 16. Um dos sem reconhecimento. Minha função é valor. Vai descobrir que não é o salvador
índios disse: você salva o que puder que oficializar esse poder. nem o bombeiro da pátria: vamos encon-
eu vou ver quem está jogando esses me- trar soluções partilhadas. A pessoa tem
ninos na água. O índio que ficou salvando Que conselho dar a quem está se o problema, nós temos problemas e a
os afogados é a nossa medicina curativa: formando em terapia comunitária ou solução vem da partilha. (A.D.L.)
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Saúde mental

FÁBIO MOON & GABRIEL BÁ


Versão em quadrinhos do
conto O alienista, em que
Machado de Assis critica o

REPRODUÇÃO
sistema de confinamento
psiquiátrico — 126 anos
depois, o modelo ainda não
foi totalmente suplantado

Ataque à reforma
psiquiátrica brasileira
desmente: “A afirmação do jornal é afirma. “Não é possível fazer uma
Katia Machado
inconsistente”. A matéria não consi- relação direta, linear e apressada do
derou o aprimoramento do Sistema de aumento do risco de morte por trans-
mortalidade em hospitais Informações sobre Mortalidade (SIM) tornos mentais e diminuição de leitos

A psiquiátricos vem caindo sis-


tematicamente entre 2001 e
2006: 1.407 óbitos em 2001;
1.257 em 2006, 938 até setembro de
2007. “Sem hospícios, morrem mais
na captação de dados. O que ocorreu
foi um aumento da mortalidade, no
mesmo período, em quase todas as ca-
tegorias diagnósticas, segundo estudo
preliminar da Secretaria de Vigilância
psiquiátricos”. Apesar disso, Pedro
Gabriel acredita que são necessários
novos estudos, inclusive qualitativos,
para melhor apropriação de todos os
dados disponíveis.
doentes mentais”, no entanto, foi a em Saúde do Ministério da Saúde. Por Foi também falsa, para o coor-
manchete de reportagem do jornal O exemplo, “doenças do aparelho geni- denador, a afirmação sobre a redução
Globo, em dezembro de 2007, com turinário” e “doenças neurológicas” de leitos. Entre 2002 e 2006, informa,
duras críticas à política de saúde tiveram incremento semelhante ao foram reduzidos 11.826 leitos em
mental. Segundo a matéria, o nú- do grupo “transtornos mentais e com- hospitais psiquiátricos convencionais
mero de mortes de doentes mentais portamentais”, e não houve redução (de 51.393 para 39.567). Ao mesmo
e comportamentais cresceu 41% nos de leitos ou mudança de modelo de tempo, as residências terapêuticas
últimos cinco anos, e um quarto dos atenção. Ao mesmo tempo, houve passaram de 85 para 475 (cinco vezes
leitos psiquiátricos foi fechado sem grande redução de óbitos por causas mais) e os Centros de Atenção Psicos-
serviços substitutivos. mal definidas (entre 2001 e 2005, me- social (Caps), de 424 para 1.011 (2,5
Pedro Gabriel Delgado, coordena- nos 31.311 mortes, ou 23,9%). “Não há vezes mais). A força de trabalho (pro-
dor da área de Saúde Mental do Minis- aumento real da mortalidade em 41%, fissionais de nível superior e médio)
tério da Saúde, em entrevista à Radis, mas melhoria na captação dos dados”, diretamente engajada nos centros
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subiu de cerca de 9 mil para 21 mil. Brasileira de Psiquiatria (ABP), Federa- Pedro Gabriel não nega que
Os gastos extra-hospitalares (sem ção Brasileira de Hospitais, Associação haja problemas a superar, como o
contar a atenção básica) passaram de Familiares de Doentes Mentais e número ainda elevado de pacientes
de R$ 153,8 milhões para R$ 462,4 Sindicato dos Médicos de Porto Alegre moradores de hospitais psiquiátricos
milhões por ano. “A análise desses — são críticos históricos da Reforma e problemas novos associados às
quatro anos, portanto, mostra o con- Psiquiátrica e da desospitalização em profundas desigualdades sociais e
trário: um grande investimento nos saúde mental do SUS, instituída pela Lei à crise urbana. “Temos que equa-
serviços substitutivos e uma redução nº 10.216, de 2001, após 12 anos de de- cionar o atendimento de urgência
planejada dos leitos”. bates. “A reforma traz angústias novas e emergência nas grandes cidades,
Em 2007, o ritmo de redução aos profissionais e isso acaba servindo ainda muito falho em muitas regiões
de leitos foi menor, reconhece, mas de fermento para a insatisfação do seg- metropolitanas”. Segundo ele, não
a expansão da rede extra-hospitalar mento dos psiquiatras, especialmente faltam hospitais psiquiátricos, mas
se manteve na mesma intensidade. manifestada em alguns contextos mais sim regulação e leitos em hospitais
“Não há razão para pleitear o retor- beligerantes”, avalia Pedro Gabriel. gerais, além de Caps 3 nas grandes
no ao modelo hospitalocêntrico”, Sem falar na discordância explícita dos cidades, que prestam assistência à
protesta. “A agenda é a consolidação hospitais psiquiátricos privados com o população acima de 200 mil habitan-
da rede substitutiva”. componente de redução de leitos. tes e funcionam por 24 horas. Outro
A rede pública de saúde men- Baseada majoritariamente na ex- desafio: avançar em direção à aten-
tal trabalha com um conceito mais periência de São Paulo, a reportagem ção básica. A articulação da saúde
eficaz de cobertura assistencial, ou indicava o fracasso da experiência mental com a atenção básica será
seja, “leitos de atenção integral em antimanicomial — que o jornal atribui facilitada em 2008 pela criação dos
saúde mental”. Aqui, estão incluí- a movimento da “esquerda mundial”, Núcleos de Apoio à Saúde da Família
dos os leitos dos Caps 3 (24 horas), e não de humanistas avalizados pela (Nasf), unidades para abordagem,
Caps-AD (assistência a pacientes OMS desde 1973. Indignados, profis- também, dos transtornos mentais
com transtornos decorrentes de uso sionais e ativistas do setor lançaram graves, dissolvendo a noção de que
e dependência de álcool e drogas), manifesto de repúdio. Ainda pior foi atenção primária em saúde mental
hospitais e prontos-socorros gerais. a matéria afirmando que “o governo atenderia apenas a eventos menores.
“Portanto, a análise da necessidade não quer saber de quem ouve vozes”, “Para isso, é preciso capacitar ade-
de leito não deve prender-se apenas sobre um paciente que apenas rece- quadamente esses novos agentes da
ao leito psiquiátrico convencional”, be cartelas de medicamentos num ampliação do acesso e estabelecer
faz ele ressalva fundamental. Caps. “Nós, profissionais que lutamos mecanismos eficazes de supervisão
Um parâmetro que tem se mos- por um atendimento mais humano, e monitoramento”.
trado adequado para os municípios apenas damos remédio ao paciente
que implantaram rede extra-hos- e o mandamos de volta para a rua?”, PARA A ELITE
pitalar efetiva é de 1 leito para 10 indigna-se Pedro Gabriel. “Convenha- Para o psicólogo e cientista po-
mil habitantes. “Campinas, com 1 mos, isso é desvalorizar a reforma e lítico Eduardo Mourão Vasconcelos,
milhão de habitantes, tem exce- quem nela milita”. professor da Escola de Serviço Social
lente rede territorial, propiciando da UFRJ, a política de saúde mental
adequada cobertura com apenas 80 EM TRANSIÇÃO avança na direção correta. “Realiza a
leitos”, exemplifica. Pedro Gabriel Na matéria, a ABP prega a mu- Reforma Psiquiátrica de forma ética,
acredita que têm pior desempenho dança do modelo de atenção. Pois a responsável e gradual, substituindo
justamente cidades que contam com rede pública de saúde mental, desde leitos fechados, principalmente em
elevado número de leitos conven- 2002, avança na transição do modelo. grandes asilos, por Caps na comu-
cionais, não dispondo de Caps 24 “Experiências antes localizadas de nidade”, avalia em e-mail à Radis.
horas, atenção básica adequada e atenção comunitária estenderam-se Há algumas limitações e problemas
regulação competente da porta de a todo o país”, lembra Pedro. A rede secundários, como o número ainda
entrada. Entre os 14 municípios com de 1.153 Caps cobre 49% da popula- insuficiente de Caps, de serviços
mais de 1 milhão de habitantes, São ção e os hospitais psiquiátricos vêm emergenciais e ambulatoriais, mas a
Paulo, Rio, Salvador, Recife e Porto sendo reconfigurados em número e direção é adequada. “Esse percurso é
Alegre apresentam pior acessibili- tamanho, com metade dos leitos em reconhecido pela OMS”.
dade ao tratamento. hospitais de pequeno porte (até 160 Para ele, trata-se do corpora-
Por isso, discorda do representan- leitos). Há ainda 487 Serviços Residen- tivismo “querendo retomar o velho
te do Sindicato dos Médicos de Porto ciais Terapêuticos e cerca de 2.600 espaço de poder no campo da saúde,
Alegre, que disse ao jornal que “lou- beneficiários do programa De Volta como no projeto de lei do Ato Médi-
cura é a falta de leitos psiquiátricos”. para Casa, destinado a egressos de co”, lembra. Além disso, na psiquia-
Segundo Pedro Gabriel, Porto Alegre longas internações. tria e na neurologia ampliaram-se
não tem boa rede extra-hospitalar, “o O financiamento das ações tam- os recursos técnicos de diagnóstico
que fornece munição à campanha do bém mudou. Se na década de 1990 os e farmacologia, de alto custo, “que
sindicato contra a Reforma Psiquiátri- hospitais psiquiátricos recebiam 90% recuperam um certo tipo de prestí-
ca”, observa. A primeira lei da reforma dos recursos, hoje levam pouco menos gio mais convencional” da medicina
no RS data de 1991, e essa “pelea” da metade: o restante é aplicado em no campo mental. “Contudo, só a
gaúcha vem desde lá, com forte cono- ações de atenção comunitária. “Esta- elite pode comprá-los e, em muitos
tação ideológica. “O estado como um mos num momento de consolidação de aspectos, são incompatíveis com
todo, porém, tem excelente cobertura nova rede de atenção psicossocial e de a atenção psicossocial interdisci-
de Caps e ambulatórios”. nova clínica, promotora de autonomia plinar, de longa duração, pública,
Em sua análise, as entidades e fundada na garantia dos direitos dos para todos e que vise a inserção na
ouvidas na reportagem — Associação usuários dos serviços”, resume. comunidade e na cidade”.
RADIS 67 • MAR/2008
[ 18 ]

serviço

EVENTOS Mais informações onde esteve no ano passado, a mostra


Site sistemas.aids.gov.br/congresso- atraiu ao Masp quase 180 mil visitantes.
1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE GAYS, prevencao/2008 Organizada em 2005 pelo Museu de
LÉSBICAS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E E-mail congressoprev2008@aids.gov.br História Natural, de Nova York, a expo-
TRANSEXUAIS (GLBT) Programa Nacional de DST e Aids sição passou pelos EUA e pelo Canadá
Tel. (61) 3448-8100/8088 e chegará à Inglaterra em 2009, para o
ireitos humanos e políticas públi-
D cas — O caminho para garantir a
cidadania de gays, lésbicas, bissexu-
Fax (61) 3448-8090 bicentenário do cientista e os 150 anos
de publicação de sua obra mais impor-
tante, A origem das espécies.
ais, travestis e transexuais é o tema 7º CONGRESSO BRASILEIRO DE
da 1ª Conferência Nacional de GLBT, EPIDEMIOLOGIA E 18º CONGRESSO Data Até 20 de abril
cujo objetivo é propor diretrizes para MUNDIAL DE EPIDEMIOLOGIA Local Museu Histórico Nacional, Praça
a implementação de políticas públi- Marechal Âncora, s/nº (perto da Praça
cas e o plano nacional de promoção 15), Rio de Janeiro, RJ
da cidadania e direitos humanos de
gays, lésbicas, bissexuais, travestis Mais informações
e transexuais, além de avaliar e Tel. (21) 2550-9220 / 2550-9224 /
propor estratégias de fortalecimento 4062-0089 (grupos)
do programa Brasil Sem Homofobia, E-mail mhn02@visualnet.com.br
lançado em 2004. Uma comissão com- Site www.darwinbrasil.com.br
posta por 16 ministérios, pela Frente stão abertas as inscrições para o
Parlamentar pela Cidadania GLBT e 18
representantes dos movimentos GLBT
E EPI2008, organizado pela Abrasco
em torno de quatro grandes eixos:
PUBLICAÇÕES

tem a tarefa de organizar e elaborar Construção, Saúde para todos, Méto- GENÉTICA EM BALANÇO
o regimento interno da conferência e dos e Mundo em transformação. Para-
orientar as etapas estaduais. lelamente transcorrerá a 18ª edição do Novas tecnologias
Congresso Mundial de Epidemiologia. da genética huma-
Data 9 a 11 de maio na: Avanços e Im-
Local Brasília, DF Data 20 a 24 de setembro pactos na Saúde
Local Centro de Eventos Fiergs, Porto reúne 30 textos so-
Mais informações Alegre, RS bre os avanços e os
Tel. (61) 3429-3475/3429-3671 impactos das novas
Site www.presidencia.gov.br/sedh Mais informações tecnologias em ge-
Tel. (21) 2598- 2527 noma humano, em
Tel/Fax. (21) 2560-8699 particular, células-tronco, terapia
7º CONGRESSO E-mail contato@epi2008.com.br gênica, farmacogenética e nanobio-
BRASILEIRO DE Site www.epi2008.com tecnologia. Organizado no Projeto
PREVENÇÃO DAS Ghente (Estudos sociais, éticos e
DST E AIDS EXPOSIÇÃO jurídicos sobre genomas em saúde),
da Fiocruz, pela socióloga Maria Ce-
unicípio- DARWIN RIO
M mundo é
o tema da sétima edição do evento,
DE VOLTA AO leste Emerick, pela jornalista Karla
Bernardo Montenegro e pelo químico
Wim Degrave, é resultado dos semi-
promovido pelo Ministério da Saú- nários “Células-tronco: Possibilida-
de, o governo de Santa Catarina e des, riscos e limites no campo das
a Prefeitura de Florianópolis. Seu terapias no Brasil”, de maio de 2006,
objetivo é explorar o global e o local e “Novas tecnologias da genética
na formulação de respostas à epide- humana: Avanços e impactos para a
mia de aids e outras DST. Três eixos saúde”, de março de 2007, além de
temáticos orientam a programação textos de convidados.
do congresso: O município como ter- A distribuição será gratuita
ritório das práticas de saúde; Cenário para bibliotecas, setores do Con-
global, respostas locais; e Práticas gresso, ministérios da Saúde e da
de prevenção: refletir, agir, inovar. Ciência & Tecnologia e imprensa. Os
O prazo para envio de trabalhos se capítulos do livro estão disponíveis
encerra no dia 10 de março. para download no site do Projeto
hegou ao Rio de Janeiro a expo- (www.ghente.org).
Data 25 a 28 de junho
Local Centro de Convenções de Floria-
C sição mundial sobre o naturalista
Charles Darwin, que visitou a cidade Mais informações
nópolis, Florianópolis, SC há 175 anos, em 1932. Em São Paulo, Tel. (21) 3885-1721 e (21) 9647-3265
Radis 67 • mar/2008
[ 19 ]
A.D.

Pós-tudo

Como se des mata


podem investir em infra-estrutura, Depois entra o gado e, nas áreas
Miriam Leitão* como estradas, para retirar a madei- com menos chuvas e bom escoamen-
ra. Primeiro, cortam-se as árvores to, a soja. E o madeireiro vai mais

T
odo dia, 3.500 caminhões circu- mais valiosas: cedro, ipê, freijó. fundo na floresta para outra área de
lam na Amazônia com madeira Depois, na segunda onda, maçarandu- destruição. Ou vira pecuarista. De-
ilegal. Mais de 2.500 levam ba, angelim, jatobá. Por fim, jarana, pois, consegue ou forja documentos
toras para as serrarias; pelo taxi. São entregues aos mais variados da área e vende a outro pecuarista.
menos 900 grandes caminhões saem com mercados consumidores. Esse, supostamente legal, é que se
madeira serrada para os consumidores Às vezes, elas andam por aí com senta na mesa com os ministros. Mas,
em outros estados, principalmente para nome trocado. As castanheiras, por se for feito um rastreamento, se verá
São Paulo. Nada é secreto, tudo se sabe. exemplo, têm o codinome de cedrinho. que a fazenda está em área recen-
As áreas desmatadas viram campo onde O que é retirado legalmente, com temente desmatada e recentemente
já pastam 80 milhões de cabeças. selo de manejo sustentável, vai para roubada do setor público. Hoje, velhos
Tudo se sabe. A notícia que provo- exportação. Mas até a exportação tem pecuaristas estão indo mais fundo, e
cou ontem [24/1] reunião de emergên- madeira ilegal. O Brasil é o segundo deixando as terras a grandes grupos
cia no Planalto já se sabia. Quando o maior exportador de madeira tropical com ares de empreendedores.
presidente Lula esteve na ONU come- do mundo. Depois da Indonésia, que, Quando o ministro Reinhold Ste-
morando a queda do desmatamento, em breve, não terá mais floresta. phanes diz que não é a agropecuária
em setembro, o governo já sabia que Cerca de 66% da madeira tropical a responsável pelo desmatamento,
a destruição da floresta tinha voltado tirada da Amazônia ficam no Brasil. ele demonstra não entender — ou
a subir. Desde maio do ano passado, Quase tudo ilegal. O caminho até o fingir não entender — a dinâmica da
a comparação com o mesmo mês do consumidor final é assim: destruição da floresta. A cana, por
ano anterior mostrava aumento. Em — Se a conta for feita com os 365 exemplo, ocupa as áreas melhores do
agosto, acendeu a luz amarela, e o dias do ano, são 900 os caminhões Sudeste e do Centro-Oeste e empurra
governo foi informado. grandes todo dia com madeira serrada o gado mais para a Amazônia.
Agora, o que acendeu foi a luz que vão para Sul, Sudeste ou Nordeste. Tudo se sabe na Amazônia.
vermelha. Primeiro, vão para os grandes arma- Já se sabe a floresta que está
Adalberto Veríssimo, do Imazon, zéns de venda de madeira a varejo. marcada para morrer.
explica que o ano fiscal do desma- Num levantamento que fizemos, en- — Ninguém decide desmatar de
tamento vai de agosto a julho. Por contramos dois mil depósitos desses uma hora para a outra. É uma morte
isso, esse aumento não entrou no só no estado de São Paulo. Da madeira anunciada. A gente sabe para onde
dado de 2007. retirada da Amazônia, 20% vão para eles estão indo. É nos municípios onde
— Em agosto, já estava bem São Paulo. Uma grande parte vai di- mais se desmata — São Félix do Xingu,
superior, e dissemos isso. O governo retamente para as grandes empresas Conceição do Araguaia, Marabá, Re-
não acreditou. O desmatamento tem de construção. Madeira tropical usada denção, Cumaru do Norte, Ourilândia,
sazonalidade. em telhado, por exemplo, dura 300 Palestina do Pará — que se encontra o
Vai de maio a outubro. Novembro anos. Antigamente era usada a da Mata cinturão da carne — comenta Beto.
e abril são residuais. A entressafra Atlântica. Com o boom da construção, — São Félix do Xingu é um caso
é de dezembro a março. No último prevejo um aquecimento forte. Outra muito interessante: a cidade é uma das
dezembro, não parou. Veríssimo acha parte vai para a indústria de móveis, maiores criadoras de gado, é recordista
que pode ser pela demanda para o mas hoje essa indústria está trocando em desmatamento acumulado e uma
aquecido setor de construção, ou a madeira tropical por madeira plantada das recordistas em ação de trabalho
expectativa de mais pastos para a pe- — diz Beto Veríssimo. escravo — diz Leonardo Sakamoto, da
cuária, que ocupa 78% de toda a área O madeireiro que ocupou ilegal- ONG Repórter Brasil. Ele registra que
desmatada ilegalmente na Amazônia. mente e desmatou leva alguns anos 62% dos casos de trabalho escravo acon-
— A margem de lucro da ativida- para tirar todas as espécies apro- tecem nas fazendas de pecuária.
de madeireira é tão grande, de 80% veitadas. Aí ele dá o segundo passo: Tudo de sabe. Inclusive como com-
a 100%, porque normalmente ocupam abate a floresta e prepara o terreno bater os crimes. Beto Veríssimo acha
terra pública, não gastam com terra, para a pecuária. Abater significa que o caminho é cortar todos os muitos
queimar. Ou seja, os incêndios que incentivos econômicos que existem hoje
* Jornalista; coluna publicada em O Globo se vêem são apenas o fim do crime. no Brasil para se destruir, impunemente,
(24/1) O enterro da mata. a maior floresta tropical da Terra.

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