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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO

DANDARA RODRIGUES DE MAGALHÃES

CONTO: ZANIRA, A MENINA DE OURO

SEROPÉDICA
2016
DANDARA RODRIGUES DE MAGALHÃES

CONTO: ZANIRA, A MENINA DE OURO

Trabalho entregue ao professor Christian Marie Victor


Simon Dutilleux, como requisito para cumprimento da
disciplina de NEPE Redação.

SEROPÉDICA
2016
Iansã/Oyá, por Heloísa Castro.
Encontrado em: https://br.pinterest.com/pin/396246467193617447/

Instrumentos do orixá Oxum, artista Carybé. Encontrado em: https://br.pinterest.com/pin/34832597096702986/


Em um dia cinzento de outono, Ashanti foi buscar sua filha Zarina na escola e a inspetora a
comunicou que o diretor gostaria de falar com a responsável. Chegando na sala do “comandante”,
como era chamado pelo corpo estudantil, reparou na sala austera, decorada com móveis retilíneos e
paredes de tons cinzentos. Desejou fugir daquele ambiente claustrofóbico, mas quando se
direcionou à porta, foi chamada pela assistente do comandante. Sentou-se. Na mesa havia diversos
bibelôs de vidro e aço que acentuavam ainda mais a austeridade que envolvia o ambiente.
- Bem, dona Ashanti, vou direto ao ponto, a senhora sabe bem que não gosto de perder
tempo.
Ashanti respirou fundo, já havia prometido à Zarina que não criaria confusão na nova
escola.
- Então, é o seguinte: estou preocupado com o comportamento de Zarina. Ela teve outro
problema com as amiguinhas hoje.
- Que tipo de problema, seu Honório?
- Olha, é que as meninas da turma dela fizeram algumas brincadeiras e ela entendeu mal. Ela
não gostou e perdeu a paciência com elas: gritou muito e chorou.
- Não entendo. Pode me explicar melhor essa história? - Ashanti já sentia estremecer por
dentro e obrigou-se a inspirar e expirar. Conhecia a natureza de Zarina e sabia que ela não teria
aquele tipo de atitude a não ser que algo a enfurecesse profundamente.
- De acordo com a professora houve algum tipo de brincadeira sobre o cabelo dela, coisas de
criança, você sabe. Nada absolutamente que justificasse a reação.
- Desculpe, seu Honório, o senhor me desculpe a sinceridade, mas conheço bem minha filha
e sei que ela nunca teria essa atitude à toa. O que as meninas disseram exatamente?
- Fizeram pilhéria, dona Ashanti, a senhora sabe, coisa de menina, nada demais, claro. Só
falaram que ela não tinha escovado o cabelo e também algo sobre querer um pedaço pra colocar na
antena. Sabe como é, são muitas meninas e estão naquela fase de…
- Seu Honório, não sei no seu mundo, mas no meu, esse tipo de coisa não tem a menor
graça. Isso inibe minha filha e mexe com a autoestima dela. Eu não admito que façam isso com ela.
- Dona Ashanti, entenda que elas são novas e estão na idade disso, entrando na pré-
adolescência… Estão vaidosas e ainda não conseguem compreender que certo tipo de coisa não se
faz. Eu aconselho a senhora a conversar com ela em casa sobre esse tipo de reação agressiva, que é
totalmente desnecessária. E se me permite, sei que a senhora é muito atarefada, mas gostaria de
sugerir que penteasse o cabelo dela com mais dedicação. Nosso rigor com a vestimenta é uma de
nossas maiores virtudes.
Ashanti respirou fundo, estava à beira de um ataque de nervos, já conseguia imaginar
aqueles bibelôs voando naquela sala que mais parecia uma delegacia. Mas havia prometido à sua
filha, não podia descumprir, por isso pensou várias vezes antes de proferir a frase.
- Sim, seu Honório. Conversarei com ela. Alguma coisa mais?
Despediu-se pronta para ir embora o quanto antes possível. Não fosse o fato de que aquela
era a terceira escola em dois meses, transferiria a filha para outra. Mas compreendia a importância
de evitar mais mudanças na vida de Zanira.
Zanira era uma menina linda de 12 anos, de olhos grandes da cor de jabuticaba, pele cor de
canela. Seus cabelos eram compostos por diversas molas pequeninas que cismavam em se jogar
para direções diferentes, algumas mechas pareciam a cor de avelã e outras pareciam a cor do
melado de cana. Ashanti olhava a filha sentada no banco do carro e tentava se acalmar antes de
conversar com ela; sabia da natureza sensível dela e buscava a melhor forma de abordar o assunto
da escola.
- Querida, seu Honório me chamou para conversar.
Silêncio. Zanira continuava olhando pela janela, como se buscasse na paisagem bucólica
daquele bairro, alguma identificação.
- Temos que conversar sobre isso, o que houve, querida?
Zanira não dizia palavra, mas a mãe percebeu pelo ritmo acelerado da respiração que ela
estava à beira de uma explosão.
- Zanira…
- O que é que você quer saber? O que é que ele falou pra você? - em tom de agressividade
contida.
- Ele apenas me contou que você teve uma reação… Digamos… Exagerada.
- Exagerada?! Eu só chorei! Eu estou cansada, mãe, cansada!
- O que as meninas falaram para você?
- Eu estou cansada! E a culpa é toda sua!
- O quê?! Minha culpa?
- É! Quem mandou ser assim? Por que não pode ser como as outras mães são?
- Ei, ei, mocinha! Não gosto do seu tom! O que eu tenho a ver com isso?
Zanira explodiu em lágrimas e Ashanti respirava fundo para não perder o controle. A filha
era extremamente sensível e tinha medo de que ela se fechasse e não conversasse com ela. Estava
naquela fase em que as meninas veem o próprio quarto como seu mundo particular onde as mães
não poderiam jamais interferir. Aquele isolamento poderia durar dias e elas já haviam passado por
tanta coisa que temia que houvesse consequências psicológicas definitivas.
- Minha filha, eu só peço que você me explique tudo direitinho quando chegarmos em casa,
sim? Vou fazer um chá de camomila e conversaremos sobre isso. Antes de você entrar no seu quarto
e ficar ouvindo aquelas músicas tristes. - O choro diminuiu, mas Ashanti percebeu que ela assentia
lentamente com a cabeça.
Ao chegar em casa, a mãe ouviu a filha. Tudo havia começado quando, no intervalo da
escola, as colegas da escola derrubaram seu suco no chão propositalmente. Zanira ficou triste, mas
não se manifestou e continuou sentada sozinha, até que elas começaram a rir alto e dizer “Que
cabelo ruim!”, “Quero um pedacinho pra pôr na antena lá de casa!”. Ela continuou calada, mas já
estava muito cansada daquelas brincadeiras. Até que ela disse:
- Minha mãe diz que não há cabelo ruim! Só são crespos!
- Isso é porque o dela é pior ainda! - gargalhadas
- Não é verdade! Minha mãe é linda!
- Linda? Nunca vi macumbeira bonita! Aquelas roupas enormes, só mulher gorda veste. -
mais gargalhadas
- Não fale de minha mãe assim! Ela não é macumbeira! É umbandista! É nossa religião!
- Não sabia que bruxaria era religião!
Depois dessa conversa ela jogou o pote com o lanche pra cima e começou a chorar
convulsivamente. Quanto mais ela chorava, mais as meninas gargalhavam. Pudera! Elas eram todas
tão branquinhas e de cabelos lisos, frequentavam a igreja com os pais. Todas faziam quase as
mesmas coisas, até se pareciam fisicamente, elas não faziam ideia de como era ser diferente. E a
culpa era só da mãe. Por que não podia ser como as outras?
- Zanira, nós somos diferentes, somos negras e temos que ter muito orgulho disso. Não
somos iguais a elas e não seremos nunca. Quanto à religião, você já sabe: eu tenho a minha, você
poder ter outra, escolher outra, eu nunca te obriguei a nada.
- É mentira! Você me obriga a ir ao barracão!
- Minha filha, você não está sendo sensata. Eu pensei que gostasse de ir comigo. Agora sei
que não, então você pode ficar aqui em casa nos dias de ossé* e nos dias de função.
- Eu gostava! Mas agora eu estou vendo que isso me atrapalha na escola! Ninguém quer ser
meu amigo por isso!
- Querida, vou te contar uma história. Sabe que seu pai era filho de Omulu, certo?
- Sei, mãe.
- Vou te contar a lenda desse orixá maravilhoso. Iansã, minha mãe, é um orixá cuja
curiosidade é bem forte, bem sabe, assim como eu. Ela estava na sua aldeia, na Nigéria, quando
ouviu que Omulu estava chegando de terras distantes. Ele era andarilho e muito temido, pois os
moradores dessas vilas e tribos por onde ele passava, eram muito supersticiosos e acreditavam que
ele trazia a doença consigo. Ao ouvir que ele chegava, pôs-se a divagar e pensar em todas as coisas
*ossé – ritual candomblecista que consiste em limpar a casa dos orixás dentro do barracão.

que os aldeões falavam. Diziam que ele tinha a pele coberta de chagas e que era por isso que se
vestia com palha da costa. Ninguém nunca havia visto seu rosto e seu corpo, mas sabe como é a
imaginação do povo. Iansã não suportava ficar na curiosidade e traçou um plano, a aldeia estaria em
festa nesse dia e ela poderia descobrir facilmente a real razão pela qual ele se escondia. Então no dia
planejado, enquanto ele peregrinava sozinho pela cidade, longe de tudo e de todos, ela chamou os
ventos com as suas mãos, deu seu brado e os ventos levantaram a palha sob a qual Omulu se
escondia. Que surpresa!
- O que ela viu, mamãe?
- Ela viu o homem encoberto de chagas na pele. Ela chamou os ventos, dessa vez com mais
força e ao atingirem a pele de Omulu, transformaram seus machucados em pipoca. Foi aí que ela
pode ver claramente a beleza dele: era o homem mais lindo que já tinha visto. E olha que Iansã, de
vez em quando, transformava-se em vento e saía pelo mundo, olhando as cidades e as pessoas. Mas
aquele era o homem mais belo de todos. Ele se escondia porque desde pequeno tinha uma doença na
pele que cheirava mal e afastava as pessoas de si.
- Nossa, mãe. Ele deve ter sido muito solitário, não?
- Sim, minha filha. Essa doença encobriu sua pele com chagas enormes e ele se sentia
extremamente feio. Ele nunca se permitiu à amizade por isso, se tornou um homem ranzinza e
solitário. Iansã, você sabe como é, é mulher valente e não liga para o que os outros pensam, ambos
se tornaram muito amigos depois disso e assim ele conseguiu se libertar de seu fardo. Fez amigos e
transformou-se em um homem muito feliz.
- Gosto de Iansã, mãe. Você é filha dela, não é?
- Sou, sim.
- Gostaria de ter essa valentia toda. Dessa forma não ligaria para o que as outras meninas
dizem.
- Zanira, sabe o que seu nome significa?
- Mulher do ouro, não é, mãe?
- Exatamente. E sabe quem é a mulher do ouro? Oxum. Oxum é um orixá incrível e
extremamente forte, embora seja bastante sensível.
- Eu sou sensível, mas não sou forte.
- Querida, não diga isso. Já te contei a história dela?
- Não me lembro. Conta de novo?
- Claro. Oxum é considerada Iyalodé, que significa “A mulher mais importante, líder”, em Yorubá.
Quando a Terra foi criada, Olodumaré, o Pai Supremo, enviou todos os orixás para que
organizassem-na. Orientou que todos tomassem as decisões em conjunto. Eles desceram de Orun (o
céu) e começaram a se organizar. No entanto, nas reuniões, os orixás masculinos não permitiam que
mulher alguma participasse. As mulheres foram a Oxum reclamar que estavam sendo impedidas de
compor as decisões e Oxum, orixá da fertilidade e das águas doces disse:
- Isto não está certo. Não permitirei que isso ocorra. Se eles querem fazer tudo sozinhos, que
façam, a partir de hoje tornarei este planeta infértil e nada nascerá.
Os homens perceberam que algo não estava certo, pois nada nascia na terra, os rios e
cachoeiras estavam secos e todos passavam fome. Foram a Olodumaré para pedir por ajuda,
estavam falhando na missão tão importante que o Pai havia dado. Este pensou, pensou e perguntou:
- Vocês estão fazendo exatamente como eu ordenei? Criaram o Conselho para fazer as
deliberações?
- Sim, Pai. Tudo está de acordo com as suas ordens.
- E Oxum? Está participando ativamente neste Conselho?
- Oxum? Pai, mulheres não participam de nossas reuniões. Elas não tem capacidade para
tomar decisões objetivas.
- Qual o quê! Quanta ignorância! Oxum é quem rege as águas doces e a fertilidade, sem isso
criança alguma nascerá, como pretendem povoar o planeta? Se conseguissem povoá-lo, como
cultivariam a terra sem regá-la com água doce e que planta nascerá em solo infértil?
- Oh, Pai! O Senhor tem razão. Precisamos incluí-la como membro.
- Não apenas ela, como todas as outras mulheres. O que seria do mundo sem os mares de
Iemanjá? E como o povo fará a transição da vida para a morte sem Nanã? A participação das
mulheres é vital, pois sem elas não há nada.
E assim foi feito, todas as mulheres foram incluídas em todas as decisões com igual
importância aos homens. O que seria do mundo sem Oxum, a grande Mãe?
- Nossa, mãe. Como Oxum é poderosa e valente também, não é? E eu sou filha dela?
- Sim, Zanira. E além de tudo ela é bela e doce. Possui a pele negra como a sua e os cabelos
dela possuem cachos como os seus. Você se parece muito com ela.
- Vou ver fotos dela. Dela e de Iansã. Quero saber mais sobre elas, até porque a professora
pediu para fazermos uma apresentação sobre uma mulher importante na sociedade. Vou falar sobre
Oxum.
- Isso, muito bem! Posso te ajudar. Olha, Zanira, não temos que ter vergonha de sermos o
que somos. Temos que nos impor, mas como Oxum, podemos fazer isso sem perder a ternura. Nós
não somos brancas, não temos o cabelo liso e somos lindas. Não precisamos ser como ninguém para
sermos lindas. Não precisamos nos parecer com nada. Esse modelo de beleza não nos contempla e
nem nos contemplará, precisamos lutar contra essa imposição. E isso, minha filha, só acontecerá
quando nos orgulharmos de quem somos e de nossos ancestrais.
Zanira, encantada com as estórias que sua mãe tinha contado, preparou o trabalho com todo
zelo, contando diversas lendas de Oxum. A turma ficou encantada com a narrativa e todos os seus
colegas vieram procurá-la pedindo mais estórias. As meninas que implicavam com ela antes,
pediram desculpa e se uniram ao grupo da turma para ouvir as lendas africanas e afrobrasileiras. E
Oxum observava, lá de Orun, sorrindo e abraçando Iansã: mais uma das suas havia vencido, era
hora de festejar.

Òxun e lóolá imolè lóomi Òsun e lòolá


Ayaba imolè lòomi
Oxum, senhora que é tratada com todas as honras.
Senhora dos espíritos das águas
Oxum, senhora que é tratada com todas as honras.

Yèyé yé olóomi ó, yèyé yé, Olóomi ó


Mãe compreensiva, dona das águas
Ayaba balè Òsun Ayaba balè Òsun.
A grande mãe Oxum toca
(reverencia) o chão ( a terra ).

Ìyá dò sìn máa gbè ìyá wa oro


A mãe do rio a quem cultuamos nos protegerá.
Mãe que nos guiará nas tradições e costumes.

Canto para Oxum, no Ketu

Sites consultados:
http://lourdesangola.blogspot.com.br/2013/03/omulu-meu-pai.html
http://omidewa.com.br/public_html/arquivos/509
http://www.juntosnocandomble.com.br/2014/06/canticos-para-oxum-em-ketu-com-letra-e-traducao-
no-candomble.html

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