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Na altura em que fui prestar provas a Tancos, éramos 111 candidatos. Só onze ficaram
aptos. Citando um segundo-sargento da altura: “Isto de vir para os pára-quedistas é a
mesma coisa que entrar num funil: vêm muitos, mas ficam poucos.” Passámos meses de
preparação: recruta, curso de pára-quedismo e curso de combate – com várias
especializações, como minas e armadilhas, telecomunicações, luta corpo-a-corpo. Após
dezenas de exercícios numa ‘África’ montada na região de Tancos, depois de nove
meses com muitas lágrimas e suor, recebemos a aprovação e ficamos prontos para a
guerra.
A chegada a Luanda, no dia 10 Dezembro, foi para todos uma grande surpresa: a cidade
era de facto muito bonita. Fomos para o quartel do Batalhão de Caçadores Pára-
quedistas 21, em Belas, a 12 quilómetros de Luanda.
O tenente foi assistido pelo enfermeiro. Estava gravemente ferido, entre a vida e a
morte. O comandante mandou chamar um helicóptero pelo rádio. O tenente Assoreira
ainda estava consciente quando o helicóptero aterrou. “Só tenho pena de não conhecer o
meu filho, que está na barriga da minha noiva”, disse-me o tenente. Morreu no ar, a
caminho do hospital de Luanda. No ano passado, no habitual encontro da companhia,
tive a oportunidade de, 40 anos depois, conhecer a filha que o meu tenente Assoreira
nunca conheceu. Não tive coragem para lhe transmitir as últimas palavras do pai: tremi
de emoção – e tanta coisa eu tinha para lhe dizer...
Noutra operação, levada a cabo no Norte de Angola, junto ao Rio Zenza, assisti a outra
morte com contornos impressionantes. A minha equipa de combate, em conjunto com a
do furriel Carlos Manuel Duarte Tomaz, natural do Cartaxo, teve contacto com o
inimigo. O grupo de guerrilheiros tinha um enorme poder de fogo. Já era sol posto e
estávamaos cercados. Começámos a armadilhar com granadas o terreno à nossa volta.
Mal anoitecia, era isso que fazíamos: um largo círculo de granadas unidas com arame
pelas cavilhas. A armadilha assegurava o nosso descanso com o mínimo de garantias: os
guerrilheiros tropeçavam no arame e as granadas rebentavam.
O furriel Duarte, sempre tão cuidadoso, cometeu um erro e uma granada sem cavilha
caiu-lhe das mãos. Para nos salvar, e sem vacilar por um momento sequer, lançou-se
para cima dela. Morreu para salvar os outros camaradas. Eu era um dos que teria ficado
feito em bocados. Quando fecho os olhos, e quantas vezes isso ainda me acontece,
parece-me que oiço a granada a rebentar e o corpo do furriel Duarte a desfazer-se aos
bocados. Hoje, recordo esse episódio como a história de todos os pára-quedistas que
pela lei da morte se libertaram. Nunca mais esqueço – nunca, nunca – o “nosso” sempre
saudoso furriel Duarte. Foi um verdadeiro herói. Obrigado meu amigo. Salvaste-me da
morte com a tua vida.
Estas mortes jamais sairão da minha memória e nem a Medalha de Ouro de Valor
Militar com Palma – a mais alta distinção militar atribuída até hoje – com que a 3ª
Companhia de Caçadores Pára-quedistas foi condecorada minimiza a dor e o
sofrimento. Andámos por terrenos pejados de minas, rios inundados por crocodilos e
saltámos em locais nunca antes frequentados por alguém. Foram três anos de muitas
lágrimas, suor e sangue, que hoje apenas se reflectem em memórias.
LUANDA
COMBATE
A 3.ª Companhia de Caçadores Pára-quedistas, entre 1967 e 1970, sofreu três mortos em
Angola. Combateu nas matas do Norte e nas savanas do Sul e Leste.
ACÇÃO
Numa operação na zona de Ucua, no Norte de Angola, a 3.ª Companhia destruiu uma
centena de cubatas. Sofreu a primeira baixa em combate: o tenente Assoreira. O
comandante, tenente-coronel Durão, ficou sem dois dedos de um pé arrancados por uma
rajada.
A MINHA GUERRA
Encontrei o Carlos Falcão numa noite de Setembro de 1969 à saída do Gil Vicente.
Tínhamos ido ver uma fita qualquer.
À espera do Troley íamos falando. Falámos dum ano em que aconteceu muita coisa.
Ondas de choque de Maio 68. Paris. Greves estudantis. Eleições. Falámos das
peripécias do mês de Agosto, na Praia de Mira. Recordo o Fernando Miraldo a imitar o
Louis Armstrong, como só ele era capaz: Hello Dolly, com um fabuloso solo de pente
do Carlos Falcão. Era bonito de estar e ouvir no silêncio enluarado da barrinha, de
madrugada. E os convívios à volta da fogueira, ali ao pé do Duna Bar. A Pedra filosofal
cantada em coro. Rapazes e raparigas sonhadores como nós éramos. Respirávamos
revolta. Inconformismo. Um grande desejo colectivo de liberdade. Fartos da vida que
andávamos a levar. Do futuro desgraçado que nos queriam obrigar a aceitar. Da falta de
pachorra para continuar a aguentar viver assim.
E o Falcão disse-me:
- “Pombalinho, tenho que falar contigo. Fui mobilizado para Angola. O que é que vou
fazer à porra da minha vida? Tenho que me pirar daqui para fora”.
Disse-lhe que me ia embora para França. Tinha a fuga organizada. Se quisesse podia ir
comigo.
Dois dias depois, arrancávamos à boleia para a raia de Portalegre em demanda de
uma aldeia da Serra de S. Mamede aonde um contacto nos aguardava para preparar a
fuga. Chegados ao destino, primeira desilusão: o contacto que procurávamos tinha sido
preso dias antes. O plano de fuga tinha abortado.
Sem alternativa e sem tempo para restabelecer os contactos em França para nova
tentativa, valeu-me o Falcão. Que sim. Que tinha arquitectado um plano quando tinha
ido a França com o Rugby da Académica.
E a mim o que só me faltava era mesmo ir a reboque das maluqueiras do Falcão.
Que não, que ia restabelecer os contactos com França e que, mais uns quinze dias,
tentávamos de novo. Tínhamos que ser responsáveis. Fazer as coisas com pés e
cabeça.
“Confia em mim, Pombalinho. Nunca te deixei ficar mal. Não vamos ter mais
tempo para esperar. Arrancamos já”.
Pois, que fosse. Assim, como assim, não tinha alternativa melhor.
Numa tarde, em casa do Dadinho, com mapas de Portugal, Espanha e França,
alinhavámos o plano da fuga. Fazia parte do plano não levarmos nada connosco. Só o
essencial para a higiene por alguns dias, escondido com cuidado no forro dum
“Anorak”. As malas seguiam para Paris com uns amigos que conhecíamos de Mira e
que andavam lá a estudar.
Às duas da manhã um último abraço a meia dúzia de amigos que andavam a deambular
pelo Bairro. E arrancámos, pela linha do canal de Lousã fora, para apanharmos o
comboio para Vilar Formoso.
Chegámos à fronteira de manhãzinha. De imediato dirigimo-nos para o posto
fronteiriço. O Carlos Falcão não perde tempo e trava conhecimento com a
rapaziada de serviço, como se os conhecesse há anos. Que éramos estudantes de
Coimbra.Que o pai dele era o Dr. Adalberto Falcão, cirurgião plástico muito
conhecido.Tínhamos ido ali esperar duas gajas francesas muita boas que deviam vir
num dois cavalos vermelho. E, gesticulando, abundantemente ia contando histórias e
mais histórias que tinha protagonizado com gajas de todo o lado a aguçar o apetite dos
guardas da Alfândega. Às tantas já estava a cravar tabaco ao sujeito da Pide que ia
carimbando, pachorrento, os passaportes dos turistas e emigrantes.
Aproveitando um momento de confusão, já estávamos a dar uns toques numa bola com
uns camionistas que estavam à espera de entrar Portugal. No Posto fronteiriço, do lado
português, tínhamos entrado pela saída e saído pela entrada como se nada se
passasse. Chuto pr’áqui, chuto pr’áli, e estávamos em Espanha. A ausência de indícios
de que fossemos viajar, ajudava a credibilizar a nossa história.
Com alguma sorte, apanhámos logo boleia num 4L, por sinal um padre anti-
franquista, que nos levou até Ciudad Rodrigo.
Assim saímos de Portugal. O mais engraçado é que tudo aquilo tinha sido
magicado ao pormenor pelo Falcão.
Atravessámos Espanha , em parte à boleia, em parte de comboio, dormindo em
quartos particulares para não nos identificarem. Salamanca, Valladolid, Burgos,
Vitória, S. Sebastien. Mil e uma peripécias. Mas o melhor estava para vir.
Seguiu-se o plano magicado pelo Falcão para entrarmos em França. Tendo pernoitado
em S. Sebastian, partimos, manhã cedo, para a fronteira Irun/Henday. Uma vez
chegados, o Carlos Falcão disse-me para esperar um pouco porque ia falar com o
Gendarme de serviço para o convencer a deixar-nos entrar em França.
E assim foi. A uns cinquenta metros de distância via o Falcão que tirava a carteira do
bolso para mostrar não sei o quê ao Gendarme. Para logo a guardar. Punha as mãos nos
bolsos e logo as tirava, como se procurasse alguma coisa. Coçava a cabeça. E falava,
falava, fazendo uso do seu excelente francês de praia, que deve ter deixado o Gendarme
muito impressionado. Às tantas uma senhora dirige-se ao gendarme, solicitando-lhe
atenção e fazendo com que aquele mandasse o Falcão esperar um pouco. Apercebi-me
que lhe terá dito mais algumas palavras que preocuparam o Falcão. E mal o homem vira
costas, o Carlos Falcão desata a correr passando por mim como se levasse fogo no rabo.
“Foge Pombalinho, que o gajo topou-nos”.
Eu, como não visse ninguém atrás dele, deixei-me estar a ver no que é que aquilo ia dar.
Uns cem metros mais abaixo, o Falcão pára e põe-se a esbracejar, aflito, para eu ir
depressa ter com ele. Fui. O que é que se tinha passado?
O Carlos Falcão convenceu-se de que era capaz de fazer crer o Gendarme que
éramos franceses. Tínhamos ido até S. Sebastian ter com umas espanholas muita boas
e, pelo caminho, tinham-nos roubado os documentos. Queria, por isso, que fossem uns
gajos porreiros e que nos deixassem voltar a entrar em França, aonde os nossos pais já
deveriam estar preocupados,algures não sei aonde. O Gendarme, quando solicitado pela
outra senhora, disse para o Falcão: “ Tu n’es plutôt pas portugais, par hasard?” E
enquanto prestava atenção à senhora, o Falcão desata a correr.
O plano tinha falhado. E como não éramos de nos deixarmos ir abaixo e muito menos
de voltar para trás, lá decidimos entrar em França pelos Pirinéus. Para nós, atravessar
os Pirinéus era assim mais ou menos como trepar ao Penedo da Saudade a partir da casa
de Saúde cá em baixo, e descer pelo outro lado. Metemo-nos a caminho pela estrada de
Pamplona fora e apanhámos boleia até uns quilómetros mais adiante, aonde uma bruta
duma montanha nos pareceu indiciar caminho certo para França. A nossa única
preocupação era se haveria ursos por ali.
Andámos por lá o resto da manhã, a subir de esguelha, até que fomos dar de novo a uma
estrada, por sinal a mesma, a de Pamplona. Disseram-nos, num posto de Guardas
Florestais que o Falcão desta vez convenceu que éramos franceses perdidos na
montanha, que tínhamos entrado mais uns quilómetros… em Espanha.
Resolvemos voltar para Irun e atravessar a Ribeira de Hendaya. Com alguma sorte
não haveria de acontecer nada. Como estávamos em pleno dia, eram para aí seis da
tarde, ninguém daria por nós. Com as calças na mão, água pelo joelho e a chapinhar na
água para darmos a ideia de que estávamos a brincar, lá fizemos os quarenta ou
cinquenta metros, duma margem à outra. E assim chegámos a França.
Viríamos a saber, quando chegámos a Paris, que a fronteira estava aberta. Em 69
entraram em França cerca de 120000 portugueses. Entregavam-nos um
“Recepissé”, na fronteira, para apresentarmos às autoridades na cidade de destino.
Forneciam-nos documentos provisórios até encontrarmos trabalho, o que não era
difícil naquela altura. Era isso mesmo que o Gendarme queria dizer ao Falcão.
Mas ele não lhe deu tempo. E acabámos por passar a fronteira pelo pior sítio, sujeitos a
levar um tiro, porque só contrabandistas e gente comprometida é que arriscava passar
por ali, estando a fronteira aberta.
E foi assim que chegámos a França, à conta deste genial maluco. Inventor de mil e
uma artimanhas. Grande mestre do desenrascanço. E um bom amigo.
Sem o contributo do Carlos Falcão o mais certo era eu nunca ter chegado a Paris. Devo-
lhe isso.
Um grande abraço, Falcão
Pombalinho