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Loredana Ribeiro*
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Mapa 1. Localização da região da pesquisa e delimitação aproximada das concentrações de sítios estudados.
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em todos estes aspectos da arte rupestre e não mesmos estilos nas três categorias de variação pode
apenas em seus marcadores gráficos. favorecer a elaboração de periodizações hipotéticas
A pesquisa teve como ponto de partida os da arte rupestre regional, associando-a aos demais
repertórios temáticos caracterizados nas itens do registro arqueológico.
tradições rupestres descritas nos últimos vinte Adiante se apresenta a seqüência cronológi-
anos que podem ser encontrados na região em co-estilística disponibilizada pelos trabalhos
estudo: tradições Agreste, Nordeste, São contínuos da equipe do Setor de Arqueologia
Francisco e Complexo Montalvânia (Guidon com a arte rupestre do norte mineiro, apontan-
1981; Isnardis 2004; Martin 1997; Pessis 1989, do-se os limites observados nessa organização e
2003; Pessis e Guidon 2000; Prous 1989; a necessidade de mudanças na orientação das
Ribeiro e Isnardis 1996-97; Silva e Ribeiro pesquisas para obtenção de resultados mais
1996; Schmitz e outros 1997, entre outros). As abrangentes. Posteriormente é discutida uma
manifestações regionais de cada um desses periodização hipotética elaborada para a arte
padrões gráficos foram inicialmente agrupadas rupestre regional (Ribeiro 2006), na qual as
em momentos (ou níveis) crono-estilísticos de informações cronológicas disponíveis (datações
realização, definidos pela cronologia relativa e absolutas e relativas, superposições e pátinas)
aspectos gráficos das figuras. Posteriormente, os são utilizadas para inserir os estilos rupestres
momentos pertencentes a cada repertório intermediários na seqüência regional de ocupa-
temático foram comparados entre si, em busca ção humana pré-histórica e balizar cronologica-
de elementos (gráfico-temáticos, cronológicos e mente os padrões observados nas formas de
espaciais) que confirmassem sua classificação utilização do espaço e na variação gráfica dessa
independente ou que articulassem mais de um arte rupestre. A partir de então, as discussões
momento de realização de figuras na composi- são focadas em características da distribuição e
ção de um estilo (para descrições detalhadas dos uso do espaço e em aspectos gráficos das
estilos identificados, ver Ribeiro 2006: 164- manifestações rupestres do período intermediá-
229). Assim, dos doze estilos regionais definidos rio, cujo aparecimento e desaparecimento
nesta pesquisa, três deles foram atribuídos pela demarcam as rupturas de padrão observadas.
temática à Tradição Agreste, três à Tradição São A discussão desenvolvida aqui sugere que
Francisco, dois ao Complexo Montalvânia e um seria mais proveitoso deixarmos temporariamente
à Tradição Nordeste, enquanto três outros não de lado as amplas categorizações culturais e
foram atribuídos a nenhum dos repertórios buscarmos antes compreender o registro rupestre
gráficos descritos. das ocupações pré-históricas em suas particularida-
A análise regional buscou então comparar des temporais e espaciais, para depois observar
entre si as características dos estilos identificados como suas especificidades se alinham. Juntamente
em três dimensões: no tempo, no espaço e em seus com os resultados da pesquisa empírica, a
marcadores gráficos. Possíveis afiliações culturais discussão final sobre a noção de tradição
podem ser melhor discutidas com a observação de arqueológica pretende refletir sobre as
relações significativas entre estilos em mais de uma implicações metodológicas do uso desse conceito
destas dimensões do que a partir de relações na arqueologia da arte rupestre, implicações que
observadas em apenas uma delas – seja, por independem de conhecermos ou aplicarmos
exemplo, a temporal ou a gráfico-temática, a mais voluntariamente as noções de cultura subjacentes.
utilizada.2 A observação de padrões envolvendo os
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Loredana Ribeiro
Repensando a tradição: a variabilidade estilística na arte rupestre do período intermediário de representações no alto-médio
rio São Francisco. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 17: 127-147, 2007.
A partir destes três padrões temáticos da sugerido por Isnardis 2004), que deixaria
arte rupestre, propõe-se agora discutir as vestígios arqueológicos menos numerosos e
relações entre esta seqüência estilístico-cultural talvez arqueologicamente menos visíveis. Mas a
e os padrões tecnológicos observados no raridade de informações para estas ocorrências
registro arqueológico das camadas estratigráficas gráficas mais antigas impede maiores avanços
dos abrigos nesse intervalo de quase dez mil na análise, elas tanto podem ter sido pintadas
anos. por grupos pós-lascadores Itaparica que
A estratigrafia dos abrigos do norte ocuparam a região, quanto por grupos contem-
mineiro mostra a predominância de um porâneos a essa indústria lítica, não há ainda
padrão tecnológico lítico inicial, associado à como atribuir.
Tradição Itaparica, que é bruscamente substitu- Já para os estilos posteriores às figuras
ído em 9.500 AP. O outro padrão lítico que Agreste, atribuídos à Tradição São Francisco e
começa a ser encontrado em camadas arqueo- ao Complexo Montalvânia, existem informa-
lógicas do norte de Minas Gerais e do sudoeste ções mais numerosas, tanto cronológicas,
da Bahia dessa época é acompanhado, no quanto espaciais e gráficas, que permitem
Peruaçu, pelos primeiros vestígios datados de inferências hipotéticas de contextualização
arte rupestre na região, em 9-7.000 AP, e de dessa arte rupestre no restante do registro
sepultamentos nos abrigos ao menos desde arqueológico.
cerca de 7.000 AP (Fogaça 2001; Prous 1996- As gravuras do bloco enterrado são
97; Prous e Schlobach 1997; Rodet 2006; redes, anéis concêntricos, linhas sinuosas e
Schmitz e outros 1989). A datação relativa biomorfos, que aparecem às centenas em
para a arte rupestre regional indica que entre 9- painéis expostos de gravuras e pinturas do
7.000 AP um bloco se desprendeu do teto da Complexo Montalvânia (Ribeiro 2006). As
Lapa do Boquete, foi coberto por incisões, superposições entre essas gravuras e pintu-
depois por gravuras, depois por cupules, e ras são raríssimas (cada qual ocupa um
finalmente quase totalmente soterrado (Prous suporte específico, como se verá adiante) e
1999b). dentre os poucos casos conhecidos há tanto
Ainda que a datação do bloco enterrado gravuras muito erodidas subpostas a
esteja no intervalo definido pelas evidências vestígios de pinturas, quanto gravuras que
seguras de arte rupestre mais antiga no Brasil se superpõem a pinturas. Na seqüência da
(Pessis 1999; Prous 1999b), ela não permite arte rupestre, além do Complexo
afirmar que essa atividade apenas tenha tido Montalvânia, o outro conjunto mais recente
início nesse período de 9-7.000 AP. É possível que as pinturas Agreste é a Tradição São
que a arte rupestre já fosse anteriormente Francisco. Tal como acontece entre as
praticada, todavia de modo pouco intensivo, gravuras e pinturas Montalvânia, não há
deixando assim vestígios arqueologicamente segurança na ordem sucessória entre os
menos visíveis. As mudanças no padrão estilos sanfranciscanos e Montalvânia.
tecnológico lítico e o novo uso (ou intensifica- Geralmente, as pinturas São Francisco e
ção no uso) de abrigos rochosos para sepultar Montalvânia ou não se superpõem entre si
os mortos podem ter sido acompanhados não ou o fazem em alternância. Fortes distin-
pela introdução da arte rupestre, mas por um ções de pátinas em figuras de um mesmo
investimento nessa atividade suficientemente painel de gravuras ou pinturas Montalvânia
maior que em épocas anteriores para deixar e a presença de três estilos sanfranciscanos
indicadores arqueológicos mais visíveis. que se superpõem entre si, sugerem que as
As manifestações Agreste pioneiras, execuções dos grafismos dos dois repertóri-
caracterizada por poucas figuras (às vezes uma os temáticos se deram ao longo de muito
ou duas), sem superposições ou diferença de tempo. Tanto nos estilos São Francisco
pátina e presentes em poucos sítios, evocam quanto naqueles Montalvânia, há evidências
uma prática esporádica da arte rupestre (já de que essas representações continuaram a
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ser realizadas até o período agricultor. 3 Uma espaciais sugerem continuidade e conectividade
datação direta por AMS do pigmento de entre dois repertórios, sugerindo que as
um grafismo atribuído aos estilos sanfranciscanos descrições anteriores da Tradição São Francis-
intermediário ou recente resultou na idade co e do Complexo Montalvânia possam estar
2.680 ± 180 AP (Russ e outros 1990), e separando manifestações aparentadas, no lugar
pinturas que sugerem cultígenos aparecem de caracterizar comunidades culturais distintas.
entre os grafismos menos patinados de um Questões como essa sugerem que uma
e outro repertório. flexibilização dos critérios de classificação,
Ambos os conjuntos gráficos mostram adaptando-os às contingências contextuais da
grande investimento na prática de arte rupestre. arte rupestre em estudo, permite explorar
Nos estilos São Francisco, esse investimento é melhor o potencial informativo da arte rupestre.
evidenciado na sua variação estilística e no Perspectivas que abordam a arte rupestre como
tratamento visual dado aos painéis, por vezes manifestação ou reflexo de regras culturais
muito altos, repletos de figuras grandes, podem ser questionadas em favor da afirmação
coloridas e elaboradas. Nos estilos Montalvânia, do estilo como produção, atuação e manipula-
o investimento está no uso intenso de painéis e ção de orientações e modulações culturais,
abrigos. São essas figuras que ocupam o maior onde repertórios temáticos tradicionais podem
número de sítios dentre os aproximadamente ser criados, combinados e modificados. Isso
150 estudados em trabalhos recentes na região: permite expandir os critérios classificatórios,
são 125 abrigos com figuras Montalvânia, desvinculando a análise da arte rupestre de
contra cerca de 60 abrigos com ocorrências rígidos padrões temáticos pré-determinados.
sanfranciscanas (Isnardis 2004, tabelas 1 e 2; Pensar que os estilos São Francisco e os estilos
Ribeiro 2006, anexo 1). São também essas Montalvânia se relacionavam a distintas
figuras que se apresentam em painéis que comunidades de autores embotava o estudo
mostram um horror vacui em sua composição, das associações e dos diálogos observados
onde, virtualmente, todo o suporte é ocupado, entre estas representações, restringindo a
por vezes com milhares de figuras. explicação a contatos indiretos entre os autores
Em resumo, existem elementos cronológicos dos estilos, através de figuras preexistentes nos
diretos e indiretos que permitem uma atribui- abrigos ocupados. Também reduzia a visibilida-
ção hipotética dos estilos sanfranciscanos e de de oposições sutis em diversos aspectos do
Montalvânia ao intervalo entre 9-7.000 e 3- comportamento destes estilos, da seleção
2.000 AP, sem que haja elementos conclusivos temática à distribuição espacial, como se
para ordenar sucessoriamente estes dois discute adiante.
repertórios temáticos entre si. Nos abrigos
regionais, as camadas arqueológicas dessa
época costumam ser perturbadas por fossas 2. A domesticação do meio ambiente: paisa-
posteriores (sepultamentos, “silos”, “postes”), gens complexas São Francisco e Montalvânia
mas o registro arqueológico de sedimentos
intactos de alguns sítios sugere continuidade Cerca de 200 km separam o sítio mais
ao longo de boa parte deste período para setentrional na região da pesquisa daquele mais
vários autores (Prous 1996-97; Prous e outros meridional. As áreas entre eles são compostas
1996-97; Schmitz e outros 1996; Rodet 2006, por um diversificado contexto físico, no qual
etc.). Do mesmo modo, as análises gráficas e são conhecidas atualmente mais de duas
centenas de sítios com arte rupestre (Ribeiro
2006). Estes sítios se distribuem por áreas com
paisagens naturais muito distintas, especialmen-
(3) Os vestígios inquestionáveis de agricultura na região são
datados de cerca de 2.000 AP, mas a idade estimada para o
te no que diz respeito a seus relevos calcários e
início do cultivo de vegetais na região do Peruaçu é 4.000 recursos hídricos. Existem marcadas diferenças
AP, a partir de negativos de fossas de “silos” (Prous 1996-97). no grau de evolução cárstica local e os recursos
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das, acompanhadas por pontos gravados. As exposição dos painéis distinguem estes estilos
gravuras são encontradas na parte inferior dos entre si conforme apresentado na Tabela 1.
suportes, abaixo das linhas, enquanto acima Um padrão marcante, no que diz respeito
delas estão as pinturas sanfranciscanas, raras aos sítios densamente utilizados pelos estilos
figuras Montalvânia, e grafismos mais numero- São Francisco é a ausência de representações
sos de outros estilos (Ribeiro 1996-97). igualmente numerosas dos estilos Montalvânia
De modo geral, as alturas médias dos e vice-versa. O mesmo vale para a ocupação
suportes preferenciais e a maior ou menor mais intensa dos abrigos para receber
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Tabela 1
Estilos Altura relativa dos painéis Exposição relativa dos painéis
São Francisco (SF1, SF2 e SF3) altos ou médio-altos Muito visíveis
médios e médios-baixos
Montalvânia em pinturas (MP) discretos ou muito discretos
(tetos escalonados)
baixos (piso) ou
Montalvânia em gravuras (MG) discretos (zonas de penumbra)
baixos-médios (base de paredes)
grafismos dos estilos Montalvânia em pintura e pisos no fundo dos abrigos, tetos baixos e
gravura: onde há um não costuma haver o escalonados, reentrâncias das paredes, peque-
outro. Por outro lado, em todas as áreas da nas cavidades nos maciços rochosos. Muitos
pesquisa podem ser encontrados abrigos onde dos locais que receberam estas figuras parecem
painéis com figuras Montalvânia ou São sinalizar pontos de captação sazonal ou
Francisco foram reutilizados por estilos subterrânea de água (abrigos com reservatórios
posteriores. Não se observam, no comporta- naturais, zonas de forte gotejamento, sítios nas
mento dos estilos recentes, padrões de ausên- bases de encostas onde correm águas temporá-
cia ou baixa freqüência de figuras dos estilos rias; além de sítios vizinhos a fendas verticais
sanfranciscanos ou Montalvânia nos abrigos que interceptam o lençol freático e em entra-
escolhidos (Ribeiro 2006: 269-299). das de cavernas com acesso ao lençol ou com
Ao contrário dos suportes escolhidos, as ponto de ressurgência hídrica). Os painéis
características físicas dos abrigos regionais que Montalvânia parecem ser mais numerosos
comportam cada uma das manifestações onde as paisagens cársticas são mais evoluídas e
sanfranciscanas e Montalvânia variam bastante pobres em exuberantes paisagens subterrâneas,
(por exemplo, tamanho da área abrigada, como as áreas de relevos abertos e dissecados
posição nas vertentes, tipo de piso e proximida- de Montalvânia e setores sudoeste e nordeste
de com a água). Os atributos físicos dos da Serra do Ramalho. Esta arte rupestre se
abrigos rochosos não permitem estabelecer associa às zonas mais profundas dos abrigos
grandes associações entre abrigos e estilos, seja rochosos ou visualmente menos acessíveis,
por atração ou rejeição. Mas características dos conjugando painéis geralmente discretos ou
painéis de arte rupestre e das paisagens natu- pouco evidentes a relevos abertos e formas
rais onde se encontram os abrigos utilizados cársticas superficiais muito evidentes. Se vemos
permitem-no, levando a crer que o uso dos a arte rupestre como forma de apropriação do
abrigos para pintar ou gravar pudesse ser espaço, a prática do estilo Montalvânia em
guiado mais por uma identificação entre gravuras talvez possa ser relativa a um contexto
representação rupestre, suporte rochoso e muito particular de ritualização das conexões
meio circundante do que propriamente por entre os grupos humanos locais e as paisagens
características dos abrigos rochosos. Tão subterrâneas: com esse estilo, as figuras não
importante quanto as diferenças entre os são colocadas sobre a rocha (tinta sobre o
painéis desses estilos (localização, altura e suporte), mas retiradas da rocha dos fundos
exposição dos painéis e certa exclusividade, nos dos abrigos ou na base das paredes – uma
painéis e nos abrigos, de um estilo em relação figura gravada é o resultado de pontos de
aos outros) é o contraste que se define entre rocha retirados no suporte.
esses painéis e as paisagens naturais nas quais Já os painéis sanfranciscanos são destaca-
se inserem os abrigos escolhidos. dos nos abrigos, geralmente em suportes altos
Os painéis Montalvânia em gravura e e bem visíveis, e são mais numerosos em áreas
pintura são encontrados em zonas de certo de exuberantes formações subterrâneas, onde
modo subterrâneas no interior dos sítios: são muitas vezes estão nas entradas de grutas. Os
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res a formas atribuídas à Tradição São Francis- todos estes estilos (Prancha 3). A conexão
co (Jácome e Ribeiro 2001; Ribeiro 2006: 241- entre as duas tendências estilísticas é dada
257). Nas pinturas, onde as associações se dão principalmente pelos elementos geométricos
particularmente com formas angulares, as mínimos (triângulos, losangos, anéis...),
figuras mais geométricas que participam das congregados na composição das figuras São
transformações são “redes”, “pentes”, “grades”, Francisco e desagregados nas composições
ziguezagues e losangos encadeados, figuras esquemáticas Montalvânia em pintura e
muito comuns nos painéis sanfranciscanos, gravura. Chamei estas relações estilísticas de
onde entretanto são mais elaboradas, maiores e diálogos internos porque – avaliando junta-
em policromia. mente as semelhanças e diferenças entre as
As comuns “cirandas” de antropomorfos características gráficas destes estilos, sua
esquemáticos Montalvânia são composições inserção na seqüência sucessória relativa e no
onde se repetem elementos geométricos espaço, considerando aí suportes típicos, os
mínimos (anéis, bastonetes, losangos...) abrigos e as áreas onde ocorrem em maior
articulados por algum detalhe anatômico freqüência – parece mais produtivo tomar
(braços, pernas, cabeça, dedos). A repetição de estas expressões como relativas a um único
elementos geométricos mínimos é o princípio sistema de representações visuais do que como
geral de composição das figuras sanfranciscanas estilos de tradições culturais distintas.
iniciais (SF1) e a combinação de diferentes Os resultados da pesquisa levam a
formas geométricas elementares é recorrente defender a necessidade de refletirmos sobre a
nas figuras do estilo posterior (Prancha 3). noção de tradição rupestre que utilizamos no
Elementos comuns aparecem de modo estudo da arte rupestre brasileira. A discussão
assistemático nos estilos sanfranciscanos SF1 e elaboração de uma metodologia adequada à
e SF2 e nas pinturas e gravuras Montalvânia, pesquisa deste registro arqueológico passa,
mas são as figuras sanfranciscanas mais antes, por uma avaliação da viabilidade
recentes (SF3), de ocorrência restrita ao conceitual das categorias que aplicamos. No
cânion do Peruaçu, que apresentam de caso brasileiro, onde tradição arqueológica e
modo muito mais contundente elementos cultura são noções indissociáveis, precisamos
característicos de ambos os conjuntos ao menos conhecer os conceitos de cultura
(Ribeiro 2006: 252-257). subjacentes às categorias classificatórias em
As análises comparativas entre os estilos uso para que possamos definir em que
Montalvânia e São Francisco (detalhadas em medida estas categorias são válidas para o
Ribeiro 2006: 241-268, 2007) permitiram contexto arqueológico em análise e que
observar uma especialização temático-estilística reformulações são possíveis ou necessárias
própria a cada um dos repertórios temáticos, para ajustar as formulações conceituais e a
com os estilos sanfranciscanos primando pelas pesquisa empírica.
belas e elaboradas figuras geométricas bicrômicas
e policrômicas, enquanto as figuras Montalvânia
são principalmente relativas a figuras geométri- 4. Tradição e cultura na arqueologia brasileira
cas simples, seres antropomorfos com maior
ou menor esquematismo e objetos. Ao mesmo O conceito de tradição arqueológica foi
tempo, temas (como as cirandas ou as armas, trazido ao Brasil por Betty Meggers e Clifford
por exemplo), tratamento gráfico (monocromia, Evans, coordenadores dos projetos arqueológi-
bicromia, uso de pincéis ou dedo, técnicas de cos de larga escala da década de 1960, como o
preenchimento etc.) associações temáticas PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisas
(como antropomorfos e armas, antropomorfos Arqueológicas) e o PROPA (Programa de
e figuras losangulares) e trocadilhos gráficos Pesquisas Paleoindígenas). Com o objetivo de
(geometrização da figura antropomorfa ou vice- fornecer um quadro geral das culturas arqueo-
versa) similares podem aparecer em painéis de lógicas brasileiras em curto prazo, através
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concebido não como padrões concretos de um modo de vida, no qual produção material,
comportamento, mas como mecanismos de tensões sociais, subsistência, ideologia e
controle para governar o comportamento. crenças religiosas estariam simbolicamente
Neste sistema simbólico, os significados são articuladas. Potencialmente holísticas, noções
objetivos, sociais e públicos, já em uso corrente de estilo como as propostas por Hodder
na comunidade quando nasce o indivíduo e (1990), Shanks e Thiley (1990) e outras que
permanecendo após sua morte, com modifica- têm surgido nas duas últimas décadas, no
ções (acréscimos, subtrações e outras alterações contexto das discussões sobre os significados
parciais) das quais ele participou ou não (Geertz da cultura material (Conkey 1987, 1990;
1989). Lévi-Strauss e Geertz disponibilizam Hodder 1982, 1986; Hodder e Hutson 2003 e
dois conceitos de cultura que permitem discutir outros), permitem trabalharmos no sentido de
e validar a aplicação da noção de tradição estudos contextualizados da arte rupestre, nos
rupestre como repertório temático e cultural. quais ela possa ser mais facilmente associada
Mas existem outras concepções de cultura aos outros itens do registro arqueológico.
que não lidam com a idéia de repertório e que
permitem discutir uma noção de tradição
rupestre e seu componente normativo sem se Considerações finais
restringir aos repertórios temáticos.6 Tradição
arqueológica também pode ser discutida de O estudo da arte rupestre do alto médio
acordo com a proposta de Marshall Sahlins, de São Francisco, aqui apresentado em parte,
estrutura na história e enquanto história, em sugere que as definições da Tradição São
que os conceitos culturais são utilizados Francisco e do Complexo Montalvânia
ativamente para se engajar no mundo e separam, equivocadamente, expressões estilísticas
adquirem novos conteúdos empíricos na ação, de um mesmo sistema de representações
alterando a cultura enquanto a reproduzem visuais que pode ter se desenvolvido por longo
(Sahlins 1999: 179 e ss). Essa noção de cultura período, hipoteticamente durante boa parte do
não é marcada pela dicotomia entre continui- Holoceno. Abordar estas expressões a partir de
dade e mudança, ou estrutura e história, mas dois repertórios temático-culturais distintos
pela síntese. Ela é interacional e dinâmica, uma mascara a complexidade e intensidade da
“indissolúvel síntese de coisas como passado e prática de arte rupestre que pode ser observa-
presente, sistema e evento, estrutura e história” da no período, ainda sem par nos momentos
(Sahlins 1999: 193). A partir dela, os padrões que a antecedem ou sucedem no contexto
de similaridade podem passar a dividir a gráfico regional.
atenção com padrões de contrastes, buscando O componente normativo da noção de
conexões entre eles que sejam significativas de estilo aqui utilizada permite trabalhar com a
um padrão maior. possibilidade de identificar expressões rupestres
Essa formulação de cultura pode ser que se alinhem culturalmente,7 todavia acredi-
pensada, por exemplo, na proposta de estilo tando que uma categorização cultural mais
como qualidade histórica de Ian Hodder (1990). ampla (a definição de tradições rupestres) deve
O estilo pelo qual Hodder se interessa não ser um eventual resultado da pesquisa e não
envolve apenas uma prática social, mas todo definição apriorística. A tendência a buscar
apenas os padrões de similaridade na arte
rupestre, não considerando que as diferenças
(6) Algumas destas concepções, inclusive, não foram gestadas
podem indicar conexão (Sahlins 2004), tem
na antropologia, como é o caso da Biologia do Conhecer de nos levado a uma reconstrução pré-histórica
Maturana (1997), segundo a qual, a cultura não é algo que
se possui, mas uma rede de conversações que define um
modo de viver e de agir: um meio interacional do qual se faz
parte e que justamente por isto alinha modos de agir (7) De acordo com Conkey (1990) qualquer concepção de
(Castro 2003). estilo tem, necessariamente, um caráter normativo.
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