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O presente texto pretende dar um breve panorama histórico das formas de organização
do trabalho ao longo do século XX e, atualmente, no XXI, seus atuais embates e problemas.
Tendo como pano de fundo o trabalho da socióloga Ludmila Abílio, que num primeiro momento
servirá como referência contextual, e sua enorme importância para a atualidade dos estudos
na área da Sociologia do Trabalho. Pano de fundo, pois além de ajudar-nos a compreender os
processos históricos, e fio condutor, ao passo em que se dedica a olhar com minúcia para os
aspectos mais sutis das diversas formas modernas de trabalho e exploração do trabalho, seja
no mundo como no Brasil.
Em 2014, Abílio publica pela Editora Boitempo seu livro Sem Maquiagem: o trabalho de
um milhão de revendedoras de cosméticos, que é resultado de um longo trabalho desenvolvido
por ela como pesquisadora da Universidade de Campinas e da Universidade de São Paulo. A
pesquisa em questão é uma espécie de desdobramento dos temas de interesse de Abílio, que
desde sua Monografia, em que pesquisou a realidade do trabalho dos motoboys em São Paulo,
voltou-se com profundidade e atenção para os trabalhos em condição de precariedade, risco e
insegurança – geralmente produtos da insegurança trabalhista.
O século XIX ainda não foi digerido. Digerido entenda-se por compreendido plenamente,
visualizado com clareza pelos olhos do estudioso do e no presente. Século de diatribes imperi-
ais, de consolidações republicanas, de independência colonial e, sobretudo, era da técnica.
James Watt (inventor do motor a vapor em 1760) não poderia imaginar que ali era o
momento que dividia as águas entre dois tempos e espaços. Tudo o que sabemos sobre a
Revolução Industrial tinha ali seu germe em potencial. O longo século XIX, desde seu princípio,
com a consolidação da Democracia americana e do republicanismo francês, passando por Na-
poleão Bonaparte e as guerras expansionistas, até a Primavera dos Povos em 1948, pela ex-
periência de Simon Bolívar na América, pelo crescimento de Paris e Londres e pela ascensão
da burguesia ao poder hegemônico nas grandes capitais. A burguesia: sua lealdade ao comér-
cio, producente de acúmulo de capital primitivo, possibilitou-a criação de uma nova instituição
familiar-individual, a Indústria.1
A Era Industrial pré-fordista. Isso foi o século XIX. Embora se saiba que foi muito mais
que isso, esse foi o principal traço do tempo, foi a maior herança deixada pela época. A indústria
desregrada e desorganizada – juridicamente e socialmente, levando em conta a precariedade
da situação do operariado e da quase total ausência de direitos - como fenômeno foi o principal
meio de produção de realidade durante o século XIX, pois carregava uma narrativa de renova-
ção da vida social, das possibilidades técnicas, da qualidade de vida. O custo desse discurso
foi alto, condicionou crianças, mulheres e homens pobres a situações de trabalho semiescravo,
com jornadas de trabalho de até 16 (dezesseis) horas diárias, morando em casebres e cortiços
insalubres e miseráveis. Esse cenário já foi extremamente demarcado por outros autores, não
obstante o material cinematográfico e fotográfico disponível.2
A competitividade das empresas industriais do século XIX era extremamente desigual,
visto que havia uma competição por público consumidor extrema, colocando o grande industrial
numa posição de inovador tecnológico. É obvio que haviam especialistas – geralmente cientis-
tas – que eram os verdadeiros responsáveis pelas descobertas de novos materiais, da elabo-
ração de novos dispositivos mecânicos e, ao final, elétricos, em geral, de novos objetos de uso
cotidiano. A cotidianidade foi o espaço que possibilitou à narrativa inovadora e tecnocrata do
industrialismo oitocentista. Bens de consumo, e quando possível – melhor ainda – de massa.
Essa era a lógica que movia os olhos e os bolsos do empresário daquele tempo, aquilo que se
constrói como visão tradicional de “burguês capitalista” desumanizado e egoísta.
O refinamento da tecnologia e da técnica durante a segunda metade do século XIX foi
elemento motivador central para a configuração das relações – e condições, fator mais impor-
tante a nós – sociais e individuais de trabalho. Esta realidade fica clara quando se verifica a
recepção da sociedade às transformações tão rápidas no estado de coisas, em sua disposição
e constituição própria. Exemplo é a invenção da lâmpada, por Thomas Edison, em 1879, que
seria o primeiro objeto alimentado por energia elétrica. Eis a segunda Revolução Industrial,
quase cem anos após a primeira, baseada em carvão mineral e vegetal.
4 HOBBSBAWN (1995)
5 Ver artigo de Thomaz Wood Jr., “FORDISMO, TOYOTISMO E VOLVISMO: OS CAMINHOS DA INDUSTRIA EM
BUSCA DO TEMPO PERDIDO” publicado pela Revista de Administração de Empresas, nº 32, em 1992.
6 KEIL (2007)
PARTE II: MAQUIAGEM FEITA, CHAMA O UBER, VAMOS AO SHOPPING!
A obra de Ludmila Abílio (ABILIO, 2014) se dedica a três movimentos: o primeiro é o de,
a partir de uma pesquisa de campo – entrevista aberta - realizada com mulheres revendedoras
de cosméticos da Natura, mostrar a história e a forma como o chamado Sistema de Vendas
Direto (SVD) se insere no Brasil e no mundo. O segundo é o de aproximar esse “sistema” com
o que atualmente a Sociologia do Trabalho reconhece como precarização (BRAGA, 2014) das
relações de trabalho. O terceiro é uma espécie de fio-condutor que perpassa quase toda a obra:
a questão feminina em específico, sua importância e relevância.
A autora usa o conceito já divulgado de viração (p.14) como a “necessidade de se virar
para conseguir sobreviver”, ou seja, procurar meios alternativos aos até então utilizados para
conseguir manter ou melhorar um pouco a condição/situação econômica. É nesse sentido que
a autor compreende boa parte da realidade das revendedoras de cosméticos: muitas têm em-
prego fixo mas o fazem para complementar a renda; muitas aderiram o SVD como alternativa
ao desemprego; algumas já são aposentadas ou pensionistas e fazem pelos mais diversos
motivos; assim como há as que são de classes média-alta que também estão no ramo pelo
dinheiro, pela socialização ou qualquer outro motivo.
As rotinas flexíveis, livres e feitas de acordo com a vontade e tempo dedicado da reven-
dedora: estes são os pontos que aparecem como orientadores do discurso da ANSVD (Asso-
ciação Nacional de Sistema de Vendas Direto) direcionado ao público revendedor/consumidor.
Contudo, sabemos que não é exatamente assim que a coisa funciona na prática.
Por ter enfoque na população feminina adulta, é necessário que se reconheça a condição
das mulheres dentro da história do capitalismo, verificando os processos de subjugação e
opressão, por um lado, que incide mais sobre as mulheres, e dos processos de progresso e
avanço social que estas vieram galgando nas últimas décadas. Abílio faz questão de sempre
considerar alguns aspectos importantes: como a jornada dupla (cuidados domésticos e trabalho
fora de casa) – sendo que ela adiciona ai um terceiro elemento, passando a constituir-se como
uma jornada tripla, tendo em vista que ela também tem essa função de revendedoras de pro-
dutos, ocupando seu tempo e despendendo energia para tanto; o fato de as mulheres ainda
ganharem menos que os homens; e, talvez o mais importante, que em momentos de crise eco-
nômica são as mulheres mais afetadas pelos efeitos prejudiciais da mesma, visto que inflação,
insegurança alimentar e jurídica, insegurança das pensões, gastos com os filhos e pressões
psicológicas aumentam.
Em 2017, Abílio dedicou-se a estudar o aplicativo Uber e seus desdobramentos na vida
social do trabalho. Segunda a autora, a “Uberização do trabalho” consiste numa mudança das
formas de relações no trabalho, uma reorganização que suprime o vínculo empregatício, man-
tém, porém, o controle, o gerenciamento, e fiscalização sobre o trabalho, o que precariza o
trabalho, uma vez que a pessoa é desprovida de uma relação palpável por esses novos mode-
los empregatícios. Um exemplo disso é a empresa Uber, que realiza serviço de taxi por inter-
médio de aplicativos celulares.
Essa forma de trabalho não é novidade, mas trata-se de um processo que está em curso
no movimento de globalização, que visa afrouxar os vínculos empregatícios sólidos, favore-
cendo o empregador capitalista. Como por exemplo as vendas por catálogos, os “entregadores
de pizza”, e outros trabalhadores ditos “autônomos”, Uma lei sancionada em 2016 pelo governo
federal “parceiro “permite a contratação de cabeleireiros autônomos, sem obrigações emprega-
tícias que lhe dê direito a férias, 13 salário, etc...
Mais recentemente este processo está fortemente ligado ao avanço tecnológico, o que
hoje se exprime por meio dos empregos por intermédio de aplicativos de celulares como Uber,
para a autora a empresa deu visibilidade a um processo que já ocorria “O que há de novo é o
uso das novas tecnologias a serviço dessa lógica”(Abílio, 2017). Para Ludmila, quando se trata
desses empregos por meio de aplicativos, os olhares se voltam para a inovação tecnológica,
mas é necessário olhar essa onda por outro ângulo o da precarização do trabalho, aquilo que
se torna invisível no mundo do trabalho, mas é real.
Segundo a autora esse tipo de trabalho traz mudanças na subjetividade dos trabalhado-
res que possuem uma ilusão de que são patrões de si mesmos e gestores do próprio negócio,
a ideia que a empresa transmite ao funcionário é a do empreendedorismo, logo o sentimento
do funcionário é a de investidor, e não a de empregado, tal como a empresa passa a ser uma
mera fornecedora. No entanto, a empresa não apenas fornece o serviço, mas controla todas as
etapas, essas empresas detém os meios de avaliação do trabalho do empregado, define os
seus ganhos, controlam a sua produtividade, criam regras e estímulos para o trabalho, fica com
o lucro, ao mesmo tempo que livra de vínculos empregatícios.
Além disso a empresa se livra do processo de contratação e demissão e os custos rela-
cionados à isso, uma vez que o empregado se cadastra e desfaz o cadastro online em poucos
minutos em qualquer lugar onde esteja pelo aplicativo, tornando-se mero número a mais ou a
menos, na multidão de trabalhadores disponíveis para o trabalho, não só isso mas somem
todas as relações do empregado e empregador, há a transferência desses serviços para a mul-
tidão, trabalhadores e consumidores. Isso resulta em uma flexibilização do trabalho, onde se
conquista um patamar almejado a tempos: Um trabalhador sempre disponível para atender as
demandas do capital. Isso é bastante visível no Uber, por que sempre há motoristas disponíveis
a qualquer momento para atender ao chamado da empresa, o que possibilita a empresa a não
pagar as horas paradas do empregado como antigamente, isso deixa o serviço da empresa em
otimização máxima 24 horas por dia.
A empresa também se livra de fazer o gerenciamento uma vez que transfere o serviço
para os consumidores, que avaliam o serviço do trabalhador pelo aplicativo, a multidão de con-
sumidores passa a ser o gerente dessa empresa o que elimina os custos dessa empresa com
essa parte. Além disso o próprio trabalhador administra o seu trabalho, é quem fica com os
riscos, e alguns custos, sem os direitos a priori associados à exploração do seu trabalho, isso
revela também uma transferência de responsabilidades que antes eram da empresa, mas que
agora passa a ser do trabalhador, mas isto fica camuflado fazendo com que empresa se apa-
reça como uma “parceira” e o funcionário como “colaborador”.
Essa mudança de subjetividade do empregado, talvez seja a questão mais delicada de
se tratar nesse processo de precarização do trabalho. Pois isso geralmente não é percebido
pelo empregado que se vê como um empreendedor. Assim a autora cita exemplo em que mo-
toqueiros falam da liberdade de trabalhar numa moto quase o dia inteiro sem ter patrão. O que
faz dessa questão uma problemática para além da objetividade do processo. O que pode ser
entendido como nanoemprendedorismo para alguns, na verdade é uma das inovações capita-
listas reconfigurando as relações trabalhistas capitalistas de maneira que lhe seja mais provei-
tosa, e infelizmente esse processo precariza o trabalho, quando cria relações abstratas, quando
não inclui os direitos do trabalhador, quando muda a subjetividade do empregado e deixa obs-
curecida essa relação de precarização.
O afrouxamento das relações sólidas do trabalho é parte do plano do capital que pre-
tende favorecer o empregador capitalista. Já é sábido que o capitalismo se reinventa das para
poder sobreviver, o que permitiu a sua persistência até os dias de hoje, ainda tenha enfrentado
inúmeras crises econômicas. Isso pretende a segurança dos lucros capitalistas, que é o inte-
resse principal. Como já foi dito, isso não é uma novidade, pois há tempos o trabalhador é
iludido com o termo “colaborador”, ressalta a autora, mas a diferença está na forma com que o
capital organiza e racionaliza esse processo, e também a capacidade do “colaborador” de ge-
renciar e organizar seu tempo para exercer o seu novo trabalho, o que pode acontecer por
exemplo de um trabalhador de duas empresas de aplicativos, ou um trabalhador de uma em-
presa comum e outra de aplicativo, isso deixa o colaborador sempre disponível ao trabalho.
Nesse contexto a Uberização é uma condição de terceirização total do trabalho, onde as
empresas transferem boa parte do serviço a multidão de colaboradores e consumidores, fi-
cando com uma parte mínima do trabalho, isso também reconfigura o Estado, para o favoreci-
mento desses novos empresários do campo digital, que tende a oferecer às condições para o
crescimento desse ramo empresarial. A autora comenta que o surgimento desses aplicativos
são recentes e não é possível estimar com precisão que dimensão pode atingir, mas sua estru-
tura é frágil e pode ser facilmente rompida, como exemplo a autora cita uma greve ocorrida na
Inglaterra onde motoboys de aplicativo de entrega, paralisaram as atividades desligando o apli-
cativo, o que obrigou a empresa a falar pessoalmente com os “colaboradores” para conversar
sobre a greve.
Ainda não se pode prever a dimensão desses novos meios empregatícios, da mesma forma
que não se pode prever a resistência a eles, mas a autora acredita ser bem provável que novas
formas de resistência venham a surgir nesse processo, o movimento inglês dos motoboys nos
permite considerar isso. Essas relações de trabalho passa pela ameaça de desemprego, num
momento de crise econômica onde há milhões de desempregados, o que favorece a adesão
do trabalhador por essa forma de trabalho, não obstante haver pessoas que trabalham tanto no
Uber quanto em empresas convencionais, muitos desses trabalhadores encontram nesses em-
pregos um meio para sobreviver, uma vez que esse trabalhador estava desempregado.
Essas temáticas mais corriqueiras em países centrais, segundo a autora passa a ser
visto em países periféricos, como o Brasil, acontece um tipo de globalização de elementos
constitutivos de mercados de trabalho ditos “periféricos”, “semiestruturados”, pouco produtivo,
contemplados por servidores pré-capitalistas, afirma Ludmila (ABÍLIO 2017). A flexibilização do
trabalho favorece sobretudo o empregador capitalistas que controla todas etapas, diminui os
gastos, transfere boa parte do trabalho, os riscos e as responsabilidades, e no fim das contas
lucra em todas as atividades realizadas por terceiros, isso é que a Uberização tem trazido, é a
verdadeira face de um processo que vem camuflando-se com o lema da inovação tecnológica,
os olhares neste momento volta-se para a inovação tecnológica.
É preciso enxergar além do avanço tecnológico, que é uma perspectiva que se sobrepõe
quando o assunto é esses aplicativos, inviabilizando e trazer aos debates as questões relacio-
nadas pela precarização do trabalho, porque isso obscurece o processo de precarização do
trabalho, e trazer à tona o problema da Uberização, trazendo a perspectiva da precarização do
trabalho, o que inclui mais debates, discussões e pesquisas sobre essa temática.
Mas como já dito, a Uberização é ainda novidade no que concerne à sua forma mais visível no
processo de acumulação capitalista, isso requer mais estudos referentes ao tema. Ludmila Abí-
lio é uma pesquisadora que vem estudando sobre a Uberização, sem dúvida há muito mais
perguntas que respostas e resultados ainda são improváveis, tratando-se de uma problemática
relativamente nova, e, portanto, há um campo ainda muito vasto para pesquisas sobre o tema.
7 Como David Harvey, Mike Davis e, no Brasil, Francisco de Oliveira e Ricardo Antunes.
REFERÊNCIAS