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Máquinas sem remake: novas faces do capitalismo pós-indus-

trial no Brasil contemporâneo

Bianca Ziudad Fernandes Sobrinho


Pedro Antonio Caldeira de Carvalho Barbini

O presente texto pretende dar um breve panorama histórico das formas de organização
do trabalho ao longo do século XX e, atualmente, no XXI, seus atuais embates e problemas.
Tendo como pano de fundo o trabalho da socióloga Ludmila Abílio, que num primeiro momento
servirá como referência contextual, e sua enorme importância para a atualidade dos estudos
na área da Sociologia do Trabalho. Pano de fundo, pois além de ajudar-nos a compreender os
processos históricos, e fio condutor, ao passo em que se dedica a olhar com minúcia para os
aspectos mais sutis das diversas formas modernas de trabalho e exploração do trabalho, seja
no mundo como no Brasil.

Em 2014, Abílio publica pela Editora Boitempo seu livro Sem Maquiagem: o trabalho de
um milhão de revendedoras de cosméticos, que é resultado de um longo trabalho desenvolvido
por ela como pesquisadora da Universidade de Campinas e da Universidade de São Paulo. A
pesquisa em questão é uma espécie de desdobramento dos temas de interesse de Abílio, que
desde sua Monografia, em que pesquisou a realidade do trabalho dos motoboys em São Paulo,
voltou-se com profundidade e atenção para os trabalhos em condição de precariedade, risco e
insegurança – geralmente produtos da insegurança trabalhista.

Na primeira parte do presente texto, buscar-se-á dar ao leitor um pequeno panorama


histórico das relações de trabalho que foram consolidadas, desde o pré-fordismo (século XIX e
início do XX) até o volvismo nos anos 1990. Na parte segunda será discutido com maior densi-
dade as questões relativas a condição das mulheres dentro desses cenários de precarização,
além de dedicar profundidade sobre discussão proposta por Ludmila Abílio (ABÍLIO, 2018)
acerca do processo chamado de Uberização. A parte final esmera tecer algumas considerações
gerais sobre os debates trazidos à tona no texto.
PARTE I: FORD & TAYLOR S.A

O século XIX ainda não foi digerido. Digerido entenda-se por compreendido plenamente,
visualizado com clareza pelos olhos do estudioso do e no presente. Século de diatribes imperi-
ais, de consolidações republicanas, de independência colonial e, sobretudo, era da técnica.
James Watt (inventor do motor a vapor em 1760) não poderia imaginar que ali era o
momento que dividia as águas entre dois tempos e espaços. Tudo o que sabemos sobre a
Revolução Industrial tinha ali seu germe em potencial. O longo século XIX, desde seu princípio,
com a consolidação da Democracia americana e do republicanismo francês, passando por Na-
poleão Bonaparte e as guerras expansionistas, até a Primavera dos Povos em 1948, pela ex-
periência de Simon Bolívar na América, pelo crescimento de Paris e Londres e pela ascensão
da burguesia ao poder hegemônico nas grandes capitais. A burguesia: sua lealdade ao comér-
cio, producente de acúmulo de capital primitivo, possibilitou-a criação de uma nova instituição
familiar-individual, a Indústria.1
A Era Industrial pré-fordista. Isso foi o século XIX. Embora se saiba que foi muito mais
que isso, esse foi o principal traço do tempo, foi a maior herança deixada pela época. A indústria
desregrada e desorganizada – juridicamente e socialmente, levando em conta a precariedade
da situação do operariado e da quase total ausência de direitos - como fenômeno foi o principal
meio de produção de realidade durante o século XIX, pois carregava uma narrativa de renova-
ção da vida social, das possibilidades técnicas, da qualidade de vida. O custo desse discurso
foi alto, condicionou crianças, mulheres e homens pobres a situações de trabalho semiescravo,
com jornadas de trabalho de até 16 (dezesseis) horas diárias, morando em casebres e cortiços
insalubres e miseráveis. Esse cenário já foi extremamente demarcado por outros autores, não
obstante o material cinematográfico e fotográfico disponível.2
A competitividade das empresas industriais do século XIX era extremamente desigual,
visto que havia uma competição por público consumidor extrema, colocando o grande industrial
numa posição de inovador tecnológico. É obvio que haviam especialistas – geralmente cientis-
tas – que eram os verdadeiros responsáveis pelas descobertas de novos materiais, da elabo-
ração de novos dispositivos mecânicos e, ao final, elétricos, em geral, de novos objetos de uso
cotidiano. A cotidianidade foi o espaço que possibilitou à narrativa inovadora e tecnocrata do
industrialismo oitocentista. Bens de consumo, e quando possível – melhor ainda – de massa.
Essa era a lógica que movia os olhos e os bolsos do empresário daquele tempo, aquilo que se
constrói como visão tradicional de “burguês capitalista” desumanizado e egoísta.
O refinamento da tecnologia e da técnica durante a segunda metade do século XIX foi
elemento motivador central para a configuração das relações – e condições, fator mais impor-
tante a nós – sociais e individuais de trabalho. Esta realidade fica clara quando se verifica a
recepção da sociedade às transformações tão rápidas no estado de coisas, em sua disposição
e constituição própria. Exemplo é a invenção da lâmpada, por Thomas Edison, em 1879, que
seria o primeiro objeto alimentado por energia elétrica. Eis a segunda Revolução Industrial,
quase cem anos após a primeira, baseada em carvão mineral e vegetal.

1 POLANYI (2000: p. 19-35)


2 ENGELS (2008); POLANYI (2000); CONINX (1992)
Fazer todo esse caminho é importante para chegar até Henry Ford e Frederick Taylor.
Ford foi o responsável pela disseminação do automóvel como mercadoria de massa ainda na
virada do século XIX para o XX. Ambos norte-americanos. O primeiro, dono daquela que seria
a atual Ford Motors; o segundo, pai da Administração Científica, foi um sistematizador de uma
metodologia voltada para a grande empresa industrial.
A importância destes dois nomes é de imensa valia para História moderna e, mais ainda,
para a História do Trabalho, em todo mundo industrializado ou sub-industrializado.3 Segundo
Moraes Neto (1986: p. 2)
o fordismo é um desenvolvimento da proposta de Taylor; nada mais é do que a utilização de
elementos objetivos do processo, de trabalho morto, para objetivar o elemento subjetivo, o
trabalho vivo. O entendimento do fordismo como um desenvolvimento do taylorismo é uma
coisa generalizada na literatura; observe-se o que dizem autores importantes: "é o fordismo
que aprofunda o taylorismo;" "é o fordismo que leva o taylorismo a uma espécie de perfei-
ção." O que faz o fordismo? Fixa o trabalhador em um determinado posto de trabalho, o
objeto de trabalho é transportado sem a interveniência do trabalho vivo; este nunca perde
tempo com o que Ford chama de "serviço do transporte", e só faz, se possível, um único
movimento. Então vejam: enquanto, com a introdução da maquinaria, o trabalho vivo se
submete ao trabalho morto, e a qualidade e o ritmo do processo se deslocam do trabalho
humano para a máquina, o que ocorre com a introdução da linha de montagem é bastante
diferente. Na aparência, as coisas são iguais e é também esta a manifestação ao nível da
consciência do trabalhador individual, colocado em um determinado posto de trabalho em
uma indústria de grande porte, pois parece que o caminho da esteira, a intensidade do seu
trabalho, é alguma coisa imanente à própria esteira, brota da materialidade da esteira; mas
não é, pois o ritmo do processo de trabalho não é uma propriedade técnica da esteira, mas
sim algo a ser posto em discussão a cada momento pelo trabalhador coletivo; o ritmo do
processo de trabalho, nesse caso, e sempre quando o trabalho vivo permanece como a base
do processo, é determinado empiricamente, por contratação coletiva, por "queda-de-braço".
(...)

A indústria do automóvel como mercadoria privilegiada do capitalismo industrial pós-


1890 irá constituir uma espécie de modelo-padrão de ordenação, organização e administração
das relações de trabalho também em outras empresas. Esse paradigma será o parâmetro, irá
ditar as regras organizativas da grande indústria, visto que também os rumos do mercado mun-
dial (petroquímico, urbanístico e ideológico).
Dito isso, parece estar claro ao leitor os marcos dessa zona discursiva e concreta que o capital-
industrialista irá desenvolver durante esse período. É importante chamar atenção para o fato que ainda
vivemos sob a égide de um capitalismo regido em boa parte pelos ditames da indústria automobilística.
No presente vivemos um momento de crise de identidade do próprio capitalismo, que agora com a pre-
sença da China na produção de commodities de consumo supérfluo (microeletrônicos e têxtil) e bens
de curtíssima duração (bugigangas plásticas, acessórios e inutilidades etc.) que provavelmente alçará
o maior PIB do mundo.

O enfraquecimento da indústria do automóvel fica bem registrada na história com as


crises do petróleo de 1973 e 1979. Antes da segunda guerra mundial, a difusão do automóvel
era mais centralizada no eixo E.U.A., Inglaterra, França. No pós-guerra, com a hegemonia

3 RIBEIRO (2015); MORAES NETO (1986)


estadunidense firmada, seguir-se-ão os chamados 30 anos gloriosos4 (1945-1973) em que o
crescimento da riqueza mundial é elevadíssimo, dado os processos de industrialização – for-
çada/autoritária ou autônoma – de diversos países, principalmente na América Latina. E é a
indústria siderúrgica e metalúrgica, diretamente ligada à automobilística, quando não ela
mesma, a principal condutora de tal crescimento econômico.
O Japão, país com tradições industriais já no século XIX, após 45 procurará se desen-
volver tecnologicamente ao nível mais elevado. Não à toa, o modelo nipônico de organização
e funcionamento industrial será específico, já em meados da década de 1950, o chamado To-
yotismo, em que a principal marca é a inovação do maquinário e a considerável redução de
força de trabalho vivo (mão de obra). O mesmo caso se dará, posteriormente, já ao final da
década de 1980 e início de 1990, na Suécia com o Volvismo: aos moldes do Toyotismo, privi-
legiando a tecnologia a todo custo, intensificará ainda mais a utilização de métodos mais “efici-
entes” na cadeia produtiva, mais racionais, científicos e econômicos.5
A mudança nas estruturas organizacionais da grande empresa, especialmente a auto-
mobilística, sem dúvida a mais importante para o capitalismo industrial do pós-guerra, reflete
todo um leque de mudanças na organização social dos países industrializados e, ainda mais
drasticamente, nos países recém ou em industrialização, no caso os países subdesenvolvidos,
como o caso brasileiro, de todo o globo. Essa mudança ainda está sendo compreendida pelos
estudiosos, inconclusa: alguns creem na mudança demográfica, que sim é importante, mas não
responde totalmente; outros apontam uma saturação das instituições tradicionais (família, reli-
gião e identidade); há também os que creem que a necessidade de sustentabilidade ecológica
levou a tal condição. São outras diversas tentativas explicativas, sendo que se deve considerar
todas em conjunto, vendo as possibilidades de intersecção argumentativa e científica.6
Se configurando sobre essa incerteza de crescimento e sobre as crises econômicas, o
capitalismo desindustrializado e desindustrializante contemporâneo só pode avançar se quebra
formas consolidadas de sociabilidade – não desconsiderando os aspectos desumanizantes que
tais formas carregam. A quebra de um espaço de experiência tão importante como foi esse,
constituído ao longo de décadas – desde o trabalhismo no período getulista até a onda neoli-
beral Fernandos-Lula -, produz então renovos na realidade social.
Vivemos hoje num cenário de precarização e fragilização de direitos. Com o ramo de
serviços representando parcela majoritária do PIB nacional e o decrescimento da indústria cada
vez maior. Os assalariados vivem numa situação de insegurança, com receio do desemprego
que voltemeia ressurge; os trabalhadores na informalidade fazem todo tipo de trabalho, com
jornadas inconstantes e desamparados dos serviços de segurança social. A atualidade da or-
ganização é dada por um ritmo de produção On-Demand, ou seja, por demanda. A organização
dos meios produtivos e dos “Recursos Humanos” fica a cargo dessas relações dependentes de
Demanda.
Nesta primeira parte buscou-se apresentar ao leitor as principais características de nossa
época, tecendo uma leitura comparativa entre o presente e o passado recente, observando
suas devidas características e possíveis identidades.

4 HOBBSBAWN (1995)
5 Ver artigo de Thomaz Wood Jr., “FORDISMO, TOYOTISMO E VOLVISMO: OS CAMINHOS DA INDUSTRIA EM
BUSCA DO TEMPO PERDIDO” publicado pela Revista de Administração de Empresas, nº 32, em 1992.
6 KEIL (2007)
PARTE II: MAQUIAGEM FEITA, CHAMA O UBER, VAMOS AO SHOPPING!

A obra de Ludmila Abílio (ABILIO, 2014) se dedica a três movimentos: o primeiro é o de,
a partir de uma pesquisa de campo – entrevista aberta - realizada com mulheres revendedoras
de cosméticos da Natura, mostrar a história e a forma como o chamado Sistema de Vendas
Direto (SVD) se insere no Brasil e no mundo. O segundo é o de aproximar esse “sistema” com
o que atualmente a Sociologia do Trabalho reconhece como precarização (BRAGA, 2014) das
relações de trabalho. O terceiro é uma espécie de fio-condutor que perpassa quase toda a obra:
a questão feminina em específico, sua importância e relevância.
A autora usa o conceito já divulgado de viração (p.14) como a “necessidade de se virar
para conseguir sobreviver”, ou seja, procurar meios alternativos aos até então utilizados para
conseguir manter ou melhorar um pouco a condição/situação econômica. É nesse sentido que
a autor compreende boa parte da realidade das revendedoras de cosméticos: muitas têm em-
prego fixo mas o fazem para complementar a renda; muitas aderiram o SVD como alternativa
ao desemprego; algumas já são aposentadas ou pensionistas e fazem pelos mais diversos
motivos; assim como há as que são de classes média-alta que também estão no ramo pelo
dinheiro, pela socialização ou qualquer outro motivo.
As rotinas flexíveis, livres e feitas de acordo com a vontade e tempo dedicado da reven-
dedora: estes são os pontos que aparecem como orientadores do discurso da ANSVD (Asso-
ciação Nacional de Sistema de Vendas Direto) direcionado ao público revendedor/consumidor.
Contudo, sabemos que não é exatamente assim que a coisa funciona na prática.
Por ter enfoque na população feminina adulta, é necessário que se reconheça a condição
das mulheres dentro da história do capitalismo, verificando os processos de subjugação e
opressão, por um lado, que incide mais sobre as mulheres, e dos processos de progresso e
avanço social que estas vieram galgando nas últimas décadas. Abílio faz questão de sempre
considerar alguns aspectos importantes: como a jornada dupla (cuidados domésticos e trabalho
fora de casa) – sendo que ela adiciona ai um terceiro elemento, passando a constituir-se como
uma jornada tripla, tendo em vista que ela também tem essa função de revendedoras de pro-
dutos, ocupando seu tempo e despendendo energia para tanto; o fato de as mulheres ainda
ganharem menos que os homens; e, talvez o mais importante, que em momentos de crise eco-
nômica são as mulheres mais afetadas pelos efeitos prejudiciais da mesma, visto que inflação,
insegurança alimentar e jurídica, insegurança das pensões, gastos com os filhos e pressões
psicológicas aumentam.
Em 2017, Abílio dedicou-se a estudar o aplicativo Uber e seus desdobramentos na vida
social do trabalho. Segunda a autora, a “Uberização do trabalho” consiste numa mudança das
formas de relações no trabalho, uma reorganização que suprime o vínculo empregatício, man-
tém, porém, o controle, o gerenciamento, e fiscalização sobre o trabalho, o que precariza o
trabalho, uma vez que a pessoa é desprovida de uma relação palpável por esses novos mode-
los empregatícios. Um exemplo disso é a empresa Uber, que realiza serviço de taxi por inter-
médio de aplicativos celulares.
Essa forma de trabalho não é novidade, mas trata-se de um processo que está em curso
no movimento de globalização, que visa afrouxar os vínculos empregatícios sólidos, favore-
cendo o empregador capitalista. Como por exemplo as vendas por catálogos, os “entregadores
de pizza”, e outros trabalhadores ditos “autônomos”, Uma lei sancionada em 2016 pelo governo
federal “parceiro “permite a contratação de cabeleireiros autônomos, sem obrigações emprega-
tícias que lhe dê direito a férias, 13 salário, etc...
Mais recentemente este processo está fortemente ligado ao avanço tecnológico, o que
hoje se exprime por meio dos empregos por intermédio de aplicativos de celulares como Uber,
para a autora a empresa deu visibilidade a um processo que já ocorria “O que há de novo é o
uso das novas tecnologias a serviço dessa lógica”(Abílio, 2017). Para Ludmila, quando se trata
desses empregos por meio de aplicativos, os olhares se voltam para a inovação tecnológica,
mas é necessário olhar essa onda por outro ângulo o da precarização do trabalho, aquilo que
se torna invisível no mundo do trabalho, mas é real.
Segundo a autora esse tipo de trabalho traz mudanças na subjetividade dos trabalhado-
res que possuem uma ilusão de que são patrões de si mesmos e gestores do próprio negócio,
a ideia que a empresa transmite ao funcionário é a do empreendedorismo, logo o sentimento
do funcionário é a de investidor, e não a de empregado, tal como a empresa passa a ser uma
mera fornecedora. No entanto, a empresa não apenas fornece o serviço, mas controla todas as
etapas, essas empresas detém os meios de avaliação do trabalho do empregado, define os
seus ganhos, controlam a sua produtividade, criam regras e estímulos para o trabalho, fica com
o lucro, ao mesmo tempo que livra de vínculos empregatícios.
Além disso a empresa se livra do processo de contratação e demissão e os custos rela-
cionados à isso, uma vez que o empregado se cadastra e desfaz o cadastro online em poucos
minutos em qualquer lugar onde esteja pelo aplicativo, tornando-se mero número a mais ou a
menos, na multidão de trabalhadores disponíveis para o trabalho, não só isso mas somem
todas as relações do empregado e empregador, há a transferência desses serviços para a mul-
tidão, trabalhadores e consumidores. Isso resulta em uma flexibilização do trabalho, onde se
conquista um patamar almejado a tempos: Um trabalhador sempre disponível para atender as
demandas do capital. Isso é bastante visível no Uber, por que sempre há motoristas disponíveis
a qualquer momento para atender ao chamado da empresa, o que possibilita a empresa a não
pagar as horas paradas do empregado como antigamente, isso deixa o serviço da empresa em
otimização máxima 24 horas por dia.
A empresa também se livra de fazer o gerenciamento uma vez que transfere o serviço
para os consumidores, que avaliam o serviço do trabalhador pelo aplicativo, a multidão de con-
sumidores passa a ser o gerente dessa empresa o que elimina os custos dessa empresa com
essa parte. Além disso o próprio trabalhador administra o seu trabalho, é quem fica com os
riscos, e alguns custos, sem os direitos a priori associados à exploração do seu trabalho, isso
revela também uma transferência de responsabilidades que antes eram da empresa, mas que
agora passa a ser do trabalhador, mas isto fica camuflado fazendo com que empresa se apa-
reça como uma “parceira” e o funcionário como “colaborador”.
Essa mudança de subjetividade do empregado, talvez seja a questão mais delicada de
se tratar nesse processo de precarização do trabalho. Pois isso geralmente não é percebido
pelo empregado que se vê como um empreendedor. Assim a autora cita exemplo em que mo-
toqueiros falam da liberdade de trabalhar numa moto quase o dia inteiro sem ter patrão. O que
faz dessa questão uma problemática para além da objetividade do processo. O que pode ser
entendido como nanoemprendedorismo para alguns, na verdade é uma das inovações capita-
listas reconfigurando as relações trabalhistas capitalistas de maneira que lhe seja mais provei-
tosa, e infelizmente esse processo precariza o trabalho, quando cria relações abstratas, quando
não inclui os direitos do trabalhador, quando muda a subjetividade do empregado e deixa obs-
curecida essa relação de precarização.
O afrouxamento das relações sólidas do trabalho é parte do plano do capital que pre-
tende favorecer o empregador capitalista. Já é sábido que o capitalismo se reinventa das para
poder sobreviver, o que permitiu a sua persistência até os dias de hoje, ainda tenha enfrentado
inúmeras crises econômicas. Isso pretende a segurança dos lucros capitalistas, que é o inte-
resse principal. Como já foi dito, isso não é uma novidade, pois há tempos o trabalhador é
iludido com o termo “colaborador”, ressalta a autora, mas a diferença está na forma com que o
capital organiza e racionaliza esse processo, e também a capacidade do “colaborador” de ge-
renciar e organizar seu tempo para exercer o seu novo trabalho, o que pode acontecer por
exemplo de um trabalhador de duas empresas de aplicativos, ou um trabalhador de uma em-
presa comum e outra de aplicativo, isso deixa o colaborador sempre disponível ao trabalho.
Nesse contexto a Uberização é uma condição de terceirização total do trabalho, onde as
empresas transferem boa parte do serviço a multidão de colaboradores e consumidores, fi-
cando com uma parte mínima do trabalho, isso também reconfigura o Estado, para o favoreci-
mento desses novos empresários do campo digital, que tende a oferecer às condições para o
crescimento desse ramo empresarial. A autora comenta que o surgimento desses aplicativos
são recentes e não é possível estimar com precisão que dimensão pode atingir, mas sua estru-
tura é frágil e pode ser facilmente rompida, como exemplo a autora cita uma greve ocorrida na
Inglaterra onde motoboys de aplicativo de entrega, paralisaram as atividades desligando o apli-
cativo, o que obrigou a empresa a falar pessoalmente com os “colaboradores” para conversar
sobre a greve.
Ainda não se pode prever a dimensão desses novos meios empregatícios, da mesma forma
que não se pode prever a resistência a eles, mas a autora acredita ser bem provável que novas
formas de resistência venham a surgir nesse processo, o movimento inglês dos motoboys nos
permite considerar isso. Essas relações de trabalho passa pela ameaça de desemprego, num
momento de crise econômica onde há milhões de desempregados, o que favorece a adesão
do trabalhador por essa forma de trabalho, não obstante haver pessoas que trabalham tanto no
Uber quanto em empresas convencionais, muitos desses trabalhadores encontram nesses em-
pregos um meio para sobreviver, uma vez que esse trabalhador estava desempregado.
Essas temáticas mais corriqueiras em países centrais, segundo a autora passa a ser
visto em países periféricos, como o Brasil, acontece um tipo de globalização de elementos
constitutivos de mercados de trabalho ditos “periféricos”, “semiestruturados”, pouco produtivo,
contemplados por servidores pré-capitalistas, afirma Ludmila (ABÍLIO 2017). A flexibilização do
trabalho favorece sobretudo o empregador capitalistas que controla todas etapas, diminui os
gastos, transfere boa parte do trabalho, os riscos e as responsabilidades, e no fim das contas
lucra em todas as atividades realizadas por terceiros, isso é que a Uberização tem trazido, é a
verdadeira face de um processo que vem camuflando-se com o lema da inovação tecnológica,
os olhares neste momento volta-se para a inovação tecnológica.
É preciso enxergar além do avanço tecnológico, que é uma perspectiva que se sobrepõe
quando o assunto é esses aplicativos, inviabilizando e trazer aos debates as questões relacio-
nadas pela precarização do trabalho, porque isso obscurece o processo de precarização do
trabalho, e trazer à tona o problema da Uberização, trazendo a perspectiva da precarização do
trabalho, o que inclui mais debates, discussões e pesquisas sobre essa temática.
Mas como já dito, a Uberização é ainda novidade no que concerne à sua forma mais visível no
processo de acumulação capitalista, isso requer mais estudos referentes ao tema. Ludmila Abí-
lio é uma pesquisadora que vem estudando sobre a Uberização, sem dúvida há muito mais
perguntas que respostas e resultados ainda são improváveis, tratando-se de uma problemática
relativamente nova, e, portanto, há um campo ainda muito vasto para pesquisas sobre o tema.

PARTE III: CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho mais descritivo da autora, ao abordar a fundo os dados relativos à economia


brasileira, desde a década de 90, com a chegada do neoliberalismo, além de dar amplos pano-
ramas acerca de debates extremamente relevantes para a história da Sociologia do Trabalho,
não apenas, mas à própria Sociologia e autores ligados à nova esquerda7. A releitura crítica de
Abílio a coloca ao lado de autores como Ricardo Antunes, da UNICAMP, e Ruy Braga, da USP,
que hoje são expoentes na discussão sociológico-trabalhista no Brasil. Tais autores, ela inclusa,
compreendem a atual situação do capitalismo neoliberal como trágica, naquilo que tange aos
Direitos, as menores que sejam Instituições de Seguridade Social, ao atual problema da crise
previdenciária, ajustes fiscais e reforma trabalhista.
As pesquisas da Profa. Ludmila Abílio ajudam o pesquisador a entender o tempo pre-
sente, suas manifestações e modulações em diferentes contextos, podendo ver com maior es-
pecificidade e também maior generalidade, a depender da abordagem dada. A autora sempre
procurou estudar temas que discutissem a situação da classe trabalhadora brasileira, com ên-
fase naquela metropolitana (mas não somente) que faz da viração meio de sobrevivência. O
quadro histórico dos modelos organizacionais do trabalho, se bem observada, segue um pro-
cesso de dedução, indo do geral ao específico, sendo que hoje vivemos sob o modelo da Ube-
rização constante das forças produtivas, assim como dos próprios meios de produção.

7 Como David Harvey, Mike Davis e, no Brasil, Francisco de Oliveira e Ricardo Antunes.
REFERÊNCIAS

ABÍLIO, Ludmila C. Sem Maquiagem. 1ª Ed. Boitempo: São Paulo, 2014.


_______________ Entrevista especial com Ludmila Abílio. Disponível em https://bit.ly/2SvnE7l
_______________ IHU. Uberização traz ao debate a relação entre precarização do trabalho e
tecnologia. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6826-uberizacao-traz-ao-de-
bate-a-relacao-entre-precarizacao-do-trabalho-e-tecnologia. Acesso em 28/11/2018.
CONNIX, Stijn. DAENS, Um grito de Justiça – 130 minutos. Filme lançado em 1992.
ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. 1ª Ed. Boitempo: São
Paulo, 2008.
HOBBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos. Cia das Letras: São Paulo, 1995.
KEIL, Ivete. Do capitalismo industrial ao pós-industrial Reflexões sobre trabalho e educação.
Educação Unisinos. 11(1):15-21, janeiro/abril 2007.
MORAES NETO, Benedito. Maquinaria, taylorismo e fordismo: a reinvenção da manufatura. Rev.
adm. emp. São Paulo, v. 26, n. 4, p. 31-34, Dec. 1986.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação. 2ª Ed. Editora Contexto: São Paulo, 2000.
RIBEIRO, Andressa F. Taylorismo, fordismo e toyotismo. Rev. Lutas Sociais, São Paulo, vol.19
n.35, p.65-79, jul./dez. 2015.

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