Observando alguns dos terríveis efeitos que a ciência moderna teve na sociedade [275], podemos supor que algo disto já estava embutido nos seus conceitos fundamentais. O nominalismo deprimiu a confiança das pessoas na sua capacidade de apreender a essência dos entes na sua forma substancial [272]. Partindo do princípio de que não existe forma substancial e de que apenas conhecemos entes singulares – a noção universal de espécie seria apenas uma construção mental –, o resultado é um estado de incerteza em relação ao nosso conhecimento. Na perspectiva nominalista não podemos dizer que as conclusões gerais a respeito de alguma coisa correspondem a alguma realidade externa ou se são apenas uma construção da mente. A ciência moderna surgiu com o expediente da quantificação para tentar encontrar uma solução para a descrença que havia em relação ao próprio conhecimento. Quantificação aparece como sinónimo de objectividade e confiabilidade. Se medimos uma coisa e a conjugamos com a sua estrutura matemática, o resultado pode ser verificado por qualquer pessoa que refaça o processo. Assim, criava-se um novo padrão de confiabilidade e de objectividade, que a quantificação/matematização parecia tornar possível. Em primeiro lugar, a quantificação estabiliza as aparências, assim, o mundo “deixa de ser” o constante fluxo de Heráclito e “passa a ser” um conjunto de equações que permanece estável e que outras pessoas podem estudar. Em segundo lugar, a quantificação facilita a comparação, dado que é muito fácil comparar medidas e fórmulas matemáticas. Em terceiro lugar, a quantificação contorna as imprecisões da linguagem verbal, mais precisamente, a linguagem matemática não tem semântica, apenas tem sintaxe e morfologia, é um conjunto de formas vazias onde não aparecem vários significados como na linguagem normal. Em quarto lugar, a quantificação elimina o viés subjectivo individual, então, todos têm de encarar as mesmas medidas e as mesmas fórmulas da mesma maneira, operando tudo de formas padronizadas. Desta forma, o objecto da ciência torna-se de posse colectiva. Por último mas talvez a razão mais fundamental, o carácter compulsivo dos resultados matemáticos simula o fatalismo da Natureza, isto é, sempre que fizermos tal cálculo o resultado fatalmente é o mesmo, o que ia de encontro à ideia de chegar às leis da Natureza que pudessem comprometer o próprio Deus a uma certa estrutura matemática que nem Ele poderia mudar. Contudo, estas características da quantificação não garantem a objectividade do conhecimento, apenas garantem a exactidão da sua estrutura interna. Para ver se esta tem algo a ver com a natureza externa é preciso levar em conta outro elemento. Num primeiro momento, com pessoas como Galileu ou Newton, a experimentação foi um elemento mínimo na formação das ciências, e o que ocorreu foi sobretudo uma matematização do experimento. Por isso, este período chamou-se de racionalismo, que teve o seu cume na filosofia de Descartes, cujo grande problema é justamente a ligação entre os conhecimentos 320 obtidos por pura dedução racional e o mundo exterior. Uma certeza racional subjectiva, como a do cogito cartesiano, não permite obter nenhuma certeza em relação ao mundo externo. Do problema assim criado nasceu o empirismo, que é uma segunda vaga do pensamento científico moderno, surgido com Bacon, Locke e outros. O experimento passou a ser a chave e a base da confiança, mas Thomas Hobbes, num momento de rara lucidez, salientou que os experimentos científicos são testemunhados apenas por um número ínfimo de pessoas, envolvendo frequentemente equipamentos caros e sofisticados. Como é possível que algo que foi testemunhado por uma elite tão reduzida tenha obtido uma autoridade pública tão grande? O público não entra no mesmo processo, simplesmente é convencido pela retórica e pela propaganda, e assim a autoridade científica conseguiu parecer muito mais confiável do que o clero. Nenhum clero em qualquer parte do mundo obteve uma credibilidade cega como esta, nem algum foi tão inacessível como a comunidade científica, que forma como que um munto à parte, por vezes mesmo em termos físicos, em laboratórios a quilómetros de distâncias das outras pessoas. Além disso, muitos experimentos dependem de uma técnica matemática que não é apenas inacessível à maioria das pessoas mas também é opaca a outros cientistas que não são daquela área específica. Mais ainda, podem estar envolvidos computadores que fazem cálculos que nenhum ser humano terá alguma vez tempo de verificar. Então, o controlo – um dos elementos principais do método científico moderno – não existe mais. Em resumo, a autoridade da comunidade científica deriva de três factores: a) retórica e propaganda, que faz dos cientistas uma espécie de enviados celestes possuidores dos segredos do universo, e possuidores de virtudes excelsas enquanto parte de uma colectividade; b) imposição da imagem atrás mencionada através da educação e da comunicação social; c) uso de mecanismos de exclusão relativamente aos estudiosos que não aceitem os cânones da ciência moderna, independentemente da veracidade do que afirmem. Hobbes propunha a dedução matemática (que ele chamava geométrica) em oposição ao empirismo, porque aquela era acessível a toda a gente. Mas isso era numa altura em que as matemáticas eram rudimentares, porque depois avançaram tanto que levaria cerca de 200 anos para ciências experimentais usarem todos os recursos matemáticos, segundo a estimativa de Philip J. Davis (ver livro Sonho de Descartes). Está intrinsecamente ligado à ciência todo um aparato material, social, económico, políticos, cultural, mediático. Contudo, o habitual é olhar a ciência abstractivamente, como se fosse apenas um mecanismo racional de observação, teste e controlo feito por umas poucas pessoas supostamente actuando com a máxima seriedade. Seria o mesmo que avaliar a Igreja católica apenas pelas virtudes dos santos, quando sabemos que existe uma estrutura de poder, corporativismo e todos os pecados dos clérigos e fiéis. A legitimação estatal foi importante na imposição da ciência como autoridade (faz parte dos mecanismos de exclusão). O Estado tem o poder para decretar que só podem praticar certa profissão pessoas que pensam de tal ou tal forma, podendo depois activar meios policiais e judiciais para impor isto. Em termos de retórica a favor da ciência moderna, o argumento mais usado diz que a ciência é validada pelos sucessos tecnológicos. O argumento é duplamente falso. Por um lado, apesar da tecnologia moderna usar muita ciência, o fabrico de um qualquer produto tecnológico envolve muitas linhas causais, nunca sendo tudo unificado por um mesmo princípio científico que, por isso mesmo, nunca poderá ser validado desta forma. O sucesso tecnológico apenas confirma a utilidade prática da 321 ciência. Por outro lado, dentro do âmbito da inegável contribuição da ciência para o sucesso de tecnologia, é habitual considerarem-se apenas os resultados benéficos e atribuir os malefícios à “pseudociência”. Contudo, foi a ciência efectiva que esteve por trás da bomba atómica, do gás mostarda ou da engenharia social, e é por isso que estas coisas funcionam. É também habitual tentar salvar a honra da ciência distinguindo esta das suas aplicações. Roosevelt decidiu avançar para a construção da bomba atómica e Truman decidiu lança-la mas eles não decidiram sozinhos, já que os cientistas tiveram que mostrar a viabilidade e conveniência das decisões com bases científicas. α90
Avaliação Participativa, FURTADO, J. P. . A avaliação participativa. In: Otero, M.R.. (Org.). Contexto e prática da avaliação de iniciativas sociais no Brasil: temas atuais.. 1ed.São Paulo: Peirópolis, 2012, v. , p. 21-41.