CASTELLO, José. Calvino sentado. O Globo, Rio de Janeiro, 02 maio 2015. Prosa.
Calvino sentado por José Castello
Um grande escritor abranda nossas certezas. Não é que devamos negá-
las: mas ele nos obriga a desdobrar e aprofundar os argumentos, sempre frágeis, que as sustentam. Numa ideia simples: o grande escritor é aquele que nos obriga a pensar. Por isso mesmo, nunca tive dúvidas a respeito da grandeza do italiano, nascido em Cuba, Italo Calvino (1923-1985). Saio sempre agitado e um tanto desnorteado da leitura de seus livros. Eles me obrigam a, por contraste, reafirmar ainda com mais ênfase quem sou, ou pelo menos, quem tento ser. A confirmar, ainda com mais cuidado, o que penso, ou tento pensar. É o que me acontece, mais uma vez, durante a leitura de "Mundo escrito e mundo não escrito", reunião de artigos, conferências e entrevistas que recebo da Companhia das Letras (tradução de Maurício Santana Dias). Calvino sempre foi muito franco em suas respostas e posições. Quando um repórter de La Repubblica lhe perguntou “por que você escreve?”, esquivou-se da vaidade: “Para aprender algo que não sei”. Com isso desmentia uma imagem recorrente, mas falsa, que vê o escritor como “mestre”, isto é, aquele que transmite o que sabe. Não devemos nos iludir: diante da palavra, o escritor está tão desprotegido quanto seu leitor. “Não é o desejo de ensinar aos outros aquilo que sei ou imagino saber que me dá vontade de escrever, mas, ao contrário, a consciência dolorosa de minha incompetência”, diz. É com essa consciência da inaptidão que os grandes escritores não só nos defrontam, mas se defrontam. Mas, se partem da certeza dessa incompetência, por que então eles escrevem? Calvino responde: “Só posso fazer isso na página escrita, onde espero capturar ao menos o vestígio de um saber ou de uma sabedoria que, na vida, apenas tangenciei e logo perdi”. No texto que empresta seu título ao livro _ na verdade, uma conferência lida na Universidade de Nova York, em março de 1983 _, Calvino se aprofunda no embate que a escrita promove entre saber e ignorância. Começa admitindo que, quando se afasta do mundo escrito, se sente completamente perdido. “Isso para mim equivale a repetir todas as vezes o trauma do nascimento, a dar forma de realidade inteligível a um conjunto de sensações confusas, a escolher uma estratégia para enfrentar o inesperado sem ser destruído”. Seja como for, o mundo escrito é mais protetor ou, ao menos, oferece uma promessa de abrigo. Na escrita, prossegue Calvino, temos sempre uma ilusão de controle. Mas será mesmo? Trata logo de relativizar sua afirmativa, lembrando que a mente do escritor é dominada por um “choque filosófico”. Uma primeira afirmação nos diz que “o mundo não existe, existe apenas a linguagem”. Mas uma segunda afirmação estabelece exatamente o contrário: “é o mundo que se eleva como uma muda esfinge de pedra sobre um deserto de palavras”. O mais atordoante: nas duas posições, o mundo permanece inacessível. Não temos escolha: ou somos prisioneiros da linguagem, ou estamos condenados a um grande silêncio. Teimoso, acostumado a não desistir facilmente, Calvino luta para superar o impasse e dar um passo à frente. Acalenta, então, o sonho de se livrar da linguagem para chegar a um universo de realidade pura. Mas logo se dá conta de que “vivemos em um mundo onde tudo já está lido antes mesmo de começar a existir”. A própria realidade só se torna acessível porque está encoberta pela linguagem. Porque “é” linguagem. De novo: tudo o que temos é a linguagem, enquanto o real insiste em nos escapar. Calvino ainda se apega ao recurso da fenomenologia para tentar, simplesmente, ver a paisagem, o campo, as ondas do mar. Logo se decepciona com seu projeto: “Nossa vida está programada para a leitura e me dou conta de que estou tentando ler a paisagem, o campo, as ondas do mar”. Estamos retidos, assim, em uma cadeia de palavras das quais não conseguimos fugir. Isso nunca impediu Calvino _ como um prisioneiro que se debruça em um mirante _ de lutar para escrever o que está além de si. “Quando me convenço de que um certo tipo de livro está completamente além das possibilidades de meu temperamento e de minhas capacidades técnicas, me sento à escrivaninha e começo a escrevê-lo”. Sentado, ainda imóvel em seu impasse, é dali, no entanto, que ele se lança para seus grandes sobrevoos, carregando consigo o desejo inflexível de lançar-se além de si mesmo. Será que consegue? Provavelmente não. O que o consola, nessas horas, é a consciência da própria ignorância. “Acho que sempre escrevemos sobre algo que não sabemos; escrevemos para que o mundo não escrito possa exprimir-se por meio de nós”. Sentado em si mesmo, é ainda de si, e sempre de si, que Calvino parte para se lançar ao desconhecido. Ou, pelo menos, como ele mesmo diz, para tangenciá-lo e, logo, perdê-lo de vista mais uma vez. Esse suave _ mas insuficiente _ resvalo no real é o grande limite, mas é também a grande força da escrita. Em um diálogo com Guido Ceronetti, Italo Calvino reflete sobre a posição sentada, a que todos os escritores estão condenados. “Ficar sentado é com certeza um mal, mas andar a cavalo seguramente não era mais saudável”, compara, em busca de um ponto de apoio. Talvez fosse melhor imitar as serpentes, pensa ainda, que distribuem seu peso ao longo do corpo. Mas, admite, se chegasse a isso, teria muitas de suas capacidades intelectuais diminuídas. Apega-se, por fim, à forma salvadora do polvo que, através de seus tentáculos, abre caminho “a novos talentos, novas tecnologias e novas atitudes”. Calvino sonha _ mas, mais uma vez, não pode deixar de ser o escritor que é. Sentado em si mesmo, Italo Calvino sabe que um escritor não pode se livrar de seus limites e de suas circunstâncias. É o que reafirma na bela “Carta de um escritor menor”, de 1968. Nela, vê o escritor como alguém que se move em um espaço “que não é decidido por mim, mas que é a situação literária na qual me encontro sucessivamente operando, e que sempre põe novos problemas”. O escritor, nesse caso, se torna “menor” não porque seja desprezível, mas porque permanece detido em um destino pessoal. Posição dolorosa, mas fecunda, que só um coração maior consegue suportar.
(Texto publicado no suplemento "Prosa", de O GLOBO, no sábado 02/05/2015)