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A RADICALIDADE DE OS PARCEIROS DO

RIO BONITO*

Luiz Antonio C. Santos

Uma técnica [...] quer dizer segurança, domínio do do Rio Bonito1 não provém da lavra de crítica lite-
caos, afirmação de um caráter. E este caráter particular rária de Antonio Candido, mas é, nitidamente, um
de uma obra é que a faz salvar-se do naufrágio do
trabalho de “cientista social”. O procedimento de
tempo, que determina a sua existência para além da
sua época.
tomar Os parceiros à parte tem validade discutível,
(Álvaro Lins, Jornal de Crítica, 1944) pois mesmo a produção propriamente literária de
Candido tem importância marcante para além do
I campo literário, como revelou Bento Prado Jr., em
trabalho sobre Cruz Costa.2 Os conceitos de for-
Este texto tem um objetivo bastante limitado, mação, sistema e manifestações literárias, para fi-
que é situar a importância de uma única obra – car apenas nesses três, ajudam-nos, por exemplo,
destacando-a do conjunto da produção de seu au- a entender a distinção entre o pensamento social
tor – para a ciência social brasileira. Os parceiros pré e pós-1930, e tornam um tanto postiça a dis-
cussão em que, a esse respeito, se envolveram
Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos. Ainda as-
* Texto apresentado no XXIV Encontro Anual da An- sim, creio que vale a pena tentar, heuristicamen-
pocs, Petrópolis, 23 a 27 de outubro de 2000. Esta te, fazer uma análise até certo ponto “isolada” de
é uma primeira reflexão sobre a obra de Antonio Os parceiros, pelos motivos que procurarei expli-
Candido, que pretendo retomar em outro estudo.
Cito desde já minha dívida com Mariza Peirano,
citar a seguir.
com quem há tantos anos compartilho algumas das Mas antes, uma palavra introdutória sobre
idéias aqui expostas. minha própria experiência ou convívio com a

RBCS Vol. 17 no 49 junho/2002


o
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obra, um pouco anterior à minha entrada como cedor do crítico literário e professor de literatura,
estudante de graduação do Departamento de So- Antonio Lázaro de Almeida Prado – colega de
ciologia da PUC/Rio, em 1967. Um acaso feliz me Candido na Faculdade de Assis e, responsável,
aproximara dos estudos de Antonio Candido des- como ele, pela produção da Revista de Letras, uma
de moço, no interior de São Paulo. Quando migrei revista de primeiro mundo em pleno “sertão” da
para o Rio de Janeiro, em 1965, havia lido, ou, Alta Sorocabana, há mais de quarenta anos. No ar-
francamente, “tentado” ler, alguns de seus artigos tigo citado, chamou-me a atenção a noção de ra-
publicados na Revista de Letras da então Faculda- dicalidade discutida pelo autor. Almeida Prado
de de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, e no atribui a Oswald de Andrade e Mário de Andrade
“Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. uma radicalidade transformadora da literatura e da
Paulo. Quando ingressei no curso de sociologia, cultura brasileiras, aponta os fatores responsáveis
ainda inexperiente, tinha lido Os parceiros e creio por tal posição catalisadora, mas – este é o ponto
que captara o essencial: havia muito mais naque- fundamental – lembra que suas propostas estéti-
le livro do que um estudo sobre o caipira paulis- cas só foram efetivamente assimiladas pelo “corpo
ta. (Superava de longe, diríamos hoje, os limites social” décadas depois.5 Aqui me permito uma
dos “estudos de comunidade”.) Já lera também analogia. Discutirei mais adiante os significados
um ou outro “texto básico” de ciências sociais, da da radicalidade de Os parceiros, e quero sugerir
famosa coleção da Zahar Editores, e percebia que que, em que pese o grande número de trabalhos
estava diante de um texto tão básico ou funda- de cientistas sociais que a enaltecem, o real im-
mental como os daquela coleção, lançada a partir pacto da obra ainda não se fez sentir no interior
de 1966. Iniciado o curso de sociologia, um pon- da próprio campo. Estamos diante de louvações,
to me intrigava: nos trabalhos de conclusão de de intenções, mas de resultados concretos hesi-
curso em que citava Os parceiros, nunca obtinha tantes e esparsos sobre o produção das ciências
um comentário, nem mesmo desfavorável. Era sociais em nossos dias. O impacto reduzido se ex-
como se autor e obra fossem produto da imagina- plicaria, a meu ver, por ser a obra de um crítico li-
ção de um aluno. Nos cursos em que aprendía- terário, visto como um outsider, sem relação com
mos (obsessivamente) método, ou naqueles que as importações consideradas legítimas, em geral
abordavam os fundamentos de sociologia, mu- restritas à filosofia (Althusser ontem, hoje Fou-
dança social, capitalismo etc., havia algum lugar cault/Deleuze). Outros poderiam sugerir uma se-
para Florestan Fernandes ou Costa Pinto, mas a gunda razão: o livro foi marcado por um “estigma
onda estruturalista estourava sobre nossas cabeças de origem”, que tanto naquele tempo como hoje
e líamos sobretudo Althusser (mais do que Marx!) equivaleria a um certificado de óbito: Os parceiros
e os estruturalistas franceses. Só no quarto e últi- seria uma obra “funcionalista”... Ora, o próprio A.
mo ano minha turma foi apresentada a Gilberto Candido refere-se, a certa altura do prefácio em
Freyre e Sérgio Buarque.3 A leitura deste último que trata das influências intelectuais, à contribui-
permitiu a alguns o contato com o (hoje bastante ção da abordagem “lúcida, embora simplificado-
conhecido) Prefácio de Antonio Candido, sobre ra” do funcionalismo de Malinowski, para “estudar
“O significado de Raízes do Brasil”.4 Mas termina- sociologicamente a alimentação humana”. Ou
mos a graduação, estou certo, sem jamais termos seja, trata-se de uma contribuição que “rende bem”,
ouvido uma palavra a respeito de Os parceiros. E, num certo aspecto da vida social das famílias caipi-
no entanto, tínhamos na Gávea talvez o melhor ras, mas o faz de modo simplificador. Por outro
curso de sociologia do Brasil, se lembrarmos que lado, minha geração aceitava, como as gerações re-
o autoritarismo, havia pouco, fizera em pedaços centes, o emprego da abordagem funcional por
os cursos de ciências sociais da USP e da “Nacio- Florestan Fernandes, em seus clássicos sobre os
nal”, no Rio de Janeiro. Tupinambá.6 Não creio, portanto, ser este um mo-
Posso agora antecipar meu argumento. Para tivo para a difusão tardia, entre as ciências sociais
isso gostaria de lançar mão de um artigo esclare- brasileiras, das lições contidas em Os parceiros.
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Não é este o lugar para vaticínios. (Quando, mos a chamar de “instrumentos de análise”. Mui-
então, se fará sentir o impacto da obra?...) Quero to da nossa sociologia de tempos passados fez
aqui apenas alinhar algumas dimensões marcantes uso apenas canônico ou litúrgico dos instrumen-
do texto, que denotam sua radicalidade íntima, tos de pesquisa e análise, servindo-se deles para
constitutiva. São aspectos que lhe conferem, em descarregar uma denúncia sobre os leitores. Atual-
primeiro lugar, permanência histórica, junto às mente, as novíssimas gerações publicam copiosa-
novas gerações de cientistas sociais. Em segundo mente, pois o próprio cânone permite que se faça
lugar, relevância intercultural – assim, por exem- ciência social a toque de caixa, “dando-se a voz
plo, quem quiser entender as questões agrárias do ao outro”, e esquivando-se, propriamente, da
nordeste e não apenas do “interior paulista”, terá construção do objeto. Nem mesmo os interacio-
sua visão aguçada pela leitura da obra, e terá uma nistas simbólicos aceitariam legitimar procedimen-
visão retrospectiva que se projeta, heuristicamen- tos que negam validade ao próprio instrumento,
te, para o futuro. em nome (de uma reificação) do “outro”. Nesses
termos, qual será o impacto de um livro como Os
parceiros, onde as vozes dos caipiras são traba-
II lhadas pela compreensão, e só por esse duro ca-
minho metodológico se transformam em sujeitos
O primeiro aspecto que lhe dá projeção du- da análise e provocam a indignação política?
radoura resulta de um compromisso ético-político, O segundo aspecto do estudo é sua dimen-
de denúncia das condições de vida no campo e são estética radical. Refiro-me aqui à contribuição
de crítica ao domínio oligárquico. Tantas obras de formal, em que se destaca uma leve arquitetura da
valor tiveram objetivo semelhante, mas não pare- palavra, a opção clara pela simplicidade, pelo
cem ganhar viço com o passar do tempo. Entre- “princípio da economia de dicção”.7 Impressiona
tanto, a tessitura fina de Os parceiros permite que que, sem abrir mão da utilização rigorosa dos
o leitor penetre aos poucos na matéria social, até conceitos da antropologia e da sociologia (ou tal-
mesmo pelo estudo dos mitos e representações – vez por isso mesmo), Candido jamais submete o
haja vista a discussão da “fome psíquica” do cai- leitor a uma carga pesada. Sabe-se que muitas ve-
pira –, para tocar fundo, por fim, nas raízes mes- zes a alusão (ritual) a um conceito substitui sua
mas de produção da crise agrária, sem que para aplicação concreta, como se vê em um número in-
tal viagem ele seja conduzido por um tom raivo- contável de textos publicados em ciências sociais,
so de denúncia que daria ao texto uma feição par- em que os conceitos ficam apenas enunciados,
ticular, datada e localizada. Herbert Baldus captou sem de fato interferirem na análise. Mas atente-se:
bem este tipo de construção, de distanciamento o estilo leve de Os parceiros, sua “elegância dis-
parcial em relação ao objeto, ao prefaciar a disser- creta”, como diria o poeta, não é trivial, não é fá-
tação de mestrado de Florestan Fernandes sobre cil. Ao contrário, aqui reside o ponto fundamental
os Tupinambá: “Há pessoas [...] para quem a mi- de sua escrita, pois é uma simplicidade que se al-
séria humana pode ser aliviada pela compreensão cança trabalhando-se o texto. Não é uma simpli-
das forças que agem na sociedade” (grifo meu). cidade natural ou espontânea. A argumentação
Candido diz o mesmo com outras palavras, abrin- passa, portanto, por um filtro exigente, que depu-
do espaço para a crítica, ao dizer do “tom acadê- ra os conceitos de seu peso, para, até certo ponto,
mico” de sua obra e da posição política “apenas recriá-los ou moldá-los de maneira transparente; os
esboçada no fim” (Candido, 1964, p. 15). Ao meu significados são oferecidos sem resistência ao leitor
ver, são justamente esses elementos de distancia- por meio de uma sintaxe burilada, mas singela. Já
mento que vão, como em um movimento pendu- no início do livro (p. 10), podemos observar como
lar, permitir a leitura política do texto. Ora, para os aspectos conceituais são apresentados de ma-
compor um texto neste molde sutil é preciso ter neira límpida. Candido abre um tópico sobre a
um amadurecimento em relação ao que aprende- obtenção dos meios de subsistência e seu impac-
o
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to na sociabilidade, frisando dever-se a Marx a para os cientistas sociais brasileiros. O uso copio-
compreensão da “solidariedade profunda do mun- so do jargão em nossos textos e as frases de
do físico e da cultura humana”, para, em seguida, pensamento tortuoso escondem, na verdade, a
assinalar que foi Malinowski quem mais tarde dificuldade crescente, que se observa claramen-
mostrou que, “sendo uma das molas da cultura”, te em nossos alunos, de manejar não apenas
a satisfação das necessidades “já se situa em ple- conceitos que exigem poda ou limpeza para se-
no terreno institucional”. Ou seja, no território das rem manejados, mas a própria sintaxe (penso
ciências sociais, na interface entre cultura e institui- aqui nas ciências humanas como um todo, in-
ções humanas. Mais adiante, desfaz o emaranhado cluindo aí, hélas, a psicanálise).
de um tema difícil, que é o do papel da alimenta- A menção a outros campos do conhecimen-
ção nas representações mentais de uma população to permite-me chegar ao terceiro aspecto, que é
rústica. Para tanto, retoma a abordagem da dieta talvez a pedra de toque do estudo e de sua brava
em Malinowski. Foi ele, afirma Candido, “certa- resistência ao tempo: a contribuição metodológica.
mente o primeiro a expor sistematicamente a sua Uma metodologia em ato, que pede uma leitura
importância social e cultural”, particularmente nos atenta para captar a arquitetura do texto, a íntima
casos “em que a elaboração de uma dieta é pro- articulação das partes e o destino dado, a cada
blema cruciante, absorvendo os esforços do grupo passo, à proposta aparentemente simples exposta
e dando lugar a fenômenos de tensão psíquica” na seção sobre o “Método”, breve e incisiva, em
(Candido, 1964, p. 16, grifo meu). A partir daí, nos que Candido enuncia os pressupostos da análise
capítulos seguintes, o estudo vai justamente cons- (Candido, 1964, pp. 3-6). Aqui lanço mão de um
truir a etnografia das populações rurais mais antigas ensaio de interpretação que o autor escreveu so-
de São Paulo, lançando a trama fina, mas inteiriça, bre Sérgio Milliet, intitulado “O ato crítico” (Can-
que vai integrar o mundo empírico e os conceitos. dido, 1987, cap. 8). Utilizo, portanto, a crítica
Enfatizo os adjetivos “fino” e “inteiriço” para o fio metodológica de Candido a outro autor, para
que tece todo o trabalho, pois não se encontrará apreender sua própria metodologia. No texto alu-
neste, em momento algum, digressões esparrama- dido, como em Os parceiros, defrontamo-nos com
das a respeito de um conceito; nem conceitos esté- um pressuposto básico: a defesa do ato crítico
reis e desacompanhados, sem utilização concreta; como um movimento interpretativo aberto e pauta-
nem dados brutos citados copiosamente; ou, ainda, do por alguma fluidez, em contraposição à adesão
material empírico órfão, à espera de conceituação. irrestrita a este ou aquele aparato teórico-conceitual.
Ora, a busca da medida justa, que Os parceiros Desde logo, só esta aversão a camisas-de-força no
realiza com êxito, é tarefa difícil nas ciências so- plano dos conceitos explicará em grande medida
ciais. Os muitos livros sobre método que temos à por que Candido consegue realizar o trespassing de
disposição, e que nossos alunos usam por vezes um a outro corpo teórico sempre que seu problema
para encontrar receitas que possam eliminar o es- de pesquisa assim exigir. Nisto consiste o funda-
forço penoso daquela busca, não podem de fato mento de sua radicalidade metodológica: a obra
fazê-lo. Por outro lado, diria mesmo, quanto ao antecipa, em plena década de 1960 – período em
problema particular da forma, que hoje não se de- que minha geração e alguns mestres associavam
seja o estilo direto e transparente, em grande par- metodologia à lição doutrinária –, a possibilidade
te porque nossos modelos filosóficos (à exceção do ato interpretativo migrar legitimamente de um
talvez dos pragmatistas, et pour cause!) pautam-se a outro corpo conceitual. Gostaria de frisar que
numa dicção hermética, o que não se justifica sob assinalar tal possibilidade não é propô-la como re-
a ótica da ciência social, para a qual o hermetis- ceita. Candido não dá lições, mas revela caminhos
mo é perfeitamente desnecessário. Entretanto, possíveis. (Hoje em dia, a abertura de opções fa-
quais são as atuais condições para a formalização cilita o trespassing, mas sabemos que a adoção
superior do estilo e para a maturação de uma ar- bem-sucedida de diferentes procedimentos na
gumentação lúcida? Não constituem tarefas fáceis pesquisa exige destreza e maturidade intelectual.)
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Creio que a riqueza da proposta de Os parceiros ‘abria faia (falha) no povo’, ocorriam anos de mín-
está em resguardar o papel ativo do observa- gua e fome. [...] No entanto, é a sua maneira de criar
dor/intérprete, que toma decisões, faz escolhas, uma idade de ouro para o tempo onde funciona-
preserva sua autonomia em relação ao objeto vam normalmente as instituições fundamentais da
para mais bem compreendê-lo. No artigo citado sua cultura” (Candido, 1964, p. 156). A partir daí, a
sobre Sérgio Milliet, Candido pondera, com um análise vai distinguir mitos de “recuperação” ou “su-
leve toque de ironia, que a intelegibilidade do ob- peração”, conforme as histórias contadas se pautem
jeto não exige que se anule a inteligência do su- na possibilidade de resgatar o passado ou na de
jeito (Candido, 1987, p. 131). Mas há uma atitude aderir ao “mundo estranho do homem da cidade”.
mental de empatia em relação ao outro, atitude Focalizo mais de perto esta parte de elaboração
criadora que se afasta de um frio e distante socio- conceitual das representações para enfatizar a pro-
logismo construtivista, mas ao mesmo tempo de- posta realmente antecipadora do emprego da técni-
sautoriza o sujeito imperial, que atribui ao objeto ca de história oral e o modo pelo qual se distancia,
o caráter ou as características que “gostaria” que na verdade, do seu uso corrente, abundante e um
tivesse, conforme a ideologia ou as crenças que tanto sem-cerimônia, pela ciência social internacio-
partilha. Tampouco o intérprete aceita mutilar-se, nal. As propostas de Candido afastam-se daquelas
como sugeri anteriormente. Veja-se a forma pio- que, já na década de 1970 e atualmente mais em
neira com que emprega a técnica da história oral. voga, busca(va)m explicar a práxis dos grupos
No Apêndice temos a transcrição direta de lendas sociais “por eles mesmos”. Tampouco Os parcei-
narradas por Nhô Roque Lameu, mas no corpo do ros se inscreve na linha discursiva inquisitorial
texto (Candido, 1964, pp. 154-159) as falas deste das décadas de 1960 e 1970, em que as “chaves
e de outros moradores – todos analfabetos – são da sociologia” na verdade fechavam as portas à
trabalhadas admiravelmente. Os problemas mais imaginação criadora e instauravam um discurso
flagrantes da dura vida que as transformações do hegemônico, calcado na desqualificação e na
capitalismo rural lhes impunham são captados ocultação de linguagens rivais. A radicalidade me-
através de depoimentos orais, e interpretados à todológica do estudo está, portanto, na ausência
luz da noção de um “saudosismo transfigurador”. de “manifestos”, tão a gosto da época em que o
No passado possuíam pequenas glebas, mas as livro foi escrito. E é radical também em relação
mudanças econômicas no meio rural os empurra- aos tempos atuais: o estudo tem quadros de refe-
vam para a situação de foreiros, meeiros etc. rência nítidos e a eles se apega de maneira coe-
Diante das dificuldades de reação ou adaptação às rente e sistemática, ainda que a análise possa
novas condições, os “parceiros” recorriam a repre- transferir-se de um referencial teórico a outro.
sentações compensatórias, em que o mundo anti- Não se trata de defender uma espécie de “vale
go aparecia, nos depoimentos, como um tempo tudo” metodológico: o texto de Candido demarca
de fartura, de solidariedade e de sabedoria. Se pa- com clareza os limites entre o espírito crítico aber-
rasse ali e acatasse as representações como retrato to e a conduta aventureira na pesquisa. Se há uma
“objetivo” de uma época e de um lugar – à manei- lição a tirar da “aventura sociológica” ou antropo-
ra de alguns trabalhos de história oral hoje em dia lógica de Os parceiros para as novas gerações, é a
–, Candido estaria aceitando o que a historiografia necessidade de um esforço permanente de forma-
regional e os próprios moradores mais velhos já ção intelectual. A aventura, aqui, pressupõe um
em parte desmentiam: havia, é certo, elementos plano de viagem e a preocupação com a técnica
que a etnografia permitia corroborar (particular- de pesquisa, com o cuidado formal, com o culti-
mente quanto às formas de solidariedade grupal, vo de um espírito crítico e do olhar adestrado. Es-
como o mutirão), mas havia também, claramente, tamos de volta ao “ato crítico”.
manifestações de uma “utopia retrospectiva”: “Os Estes são, talvez, os aspectos mais significa-
caipiras sabem que essa é uma imagem ideal, e na tivos para minha leitura de Os parceiros do Rio Bo-
verdade havia mais mortes e violência, a maleita nito. Mas há um quarto ponto que gostaria de en-
o
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fatizar, e que não procede diretamente da análise o “eixo universalizante” pode contrapor-se à ex-
do texto. A partir da leitura de um outro ensaio de pressão pessoal, datada, localizada. Sob este pon-
Antonio Candido,8 julguei que, em um sentido to de vista, o melhor livro brasileiro de memórias
muito preciso, fosse aceitável buscar em seu livro do século XIX foi, em sua opinião, Minhas recor-
certos traços da conduta acadêmica e de sua vida dações, do mineiro Ferreira de Resende, escritas
intelectual. Para tanto, farei uma breve alusão a entre 1887 e 1890 e só publicadas em 1944! Nas
outros trabalhos de sua autoria. Mas não poderia palavras de Candido:
fazê-lo se não houvesse – é esta minha leitura de
seu ensaio sobre Sílvio Romero – a possibilidade Depois de Marília de Dirceu, tomemos Minhas
heurística de estreitas correlações entre texto e recordações como exemplo da capacidade de-
monstrada por tantos mineiros de, inserindo o eu
conduta intelectual. O quarto aspecto que quero
no mundo, mostrar os aspectos mais universais
assinalar é, pois, produto do texto, mas, ao mes-
nas manifestações mais particulares, num avesso
mo tempo, “afirmação de um caráter”, no dizer de da autobiografia estritamente individualista do
Alvaro Lins. A obra Os parceiros é indicativa de tipo Nabuco, da qual o interesse [...] consiste em
uma certa postura ética do autor diante do mundo reduzir o geral à contingência do particular (Can-
acadêmico. Encerra uma lição de vida acadêmica. dido, 1987, p. 53-54, grifos meus).
Mais ainda, é possível levantar-se a hipótese de
que certos traços da conduta pessoal de um autor Ou seja, a força particularizadora da vaidade
têm impacto sobre sua obra. Há, portanto, uma contamina a feição individual (“filtro de tudo”) e
identidade virtual entre produção intelectual e tra- impede que a autobiografia possa traduzir-se em
ços de caráter do autor, entre os quais Candido “heterobiografia”, “história simultânea dos outros
singulariza, negativamente, a vaidade. Vamos ao e da sociedade” (Candido, 1987, p. 56). Diria que,
que propõe, a respeito do grande crítico sergipa- no caso dos estudos de ciências sociais, esta con-
no, da mesma geração de Joaquim Nabuco: taminação da expressão escrita pela personalidade
narcísica pode revelar-se no conjunto da produção
Silvio Romero não policiava a sua vaidade nem re- intelectual, comprometendo o vigor criativo que
nunciava ao prazer de falar de si a qualquer pro- determina a permanência da obra para além da
pósito. [...] Isso, desde moço. Ainda na casa dos
sua época. Posso agora retornar a Os parceiros. Ao
trinta, e com o persistente mau gosto brasileiro
redigir o prefácio ao livro, em 1964, Candido po-
nesse campo, já fazia com e sem propósito balan-
ços da própria obra, proclamando as suas inova- deria perfeitamente arrolar suas publicações e ci-
ções, reivindicando o seu lugar na cultura nacional tar o êxito de crítica, “lembrando ao leitor”, na
e até procurando comprovar que sabia alemão maneira constrangedora dos prefácios de Gilberto
(Candido, 1987, p. 114). Freyre, seu lugar já marcante na cultura brasileira.9
Mas não o fez. Ao contrário, a atenção do autor
Essas declarações, pondera Candido, têm um concentra-se em demonstrar em que medida o tra-
tom invariavelmente provinciano e chegam a atra- balho, nascido como tese de doutorado, poderia
palhar a própria tarefa de avaliação da obra de ter sido aperfeiçoado, corrigidos certos equívocos,
Romero. Mas a hipótese a que me referi é mais explicitada a posição política, “apenas esboçada
explícita em outro estudo de A educação pela noi- no fim”. Assinala ainda as influências intelectuais
te, na passagem em que “Minha formação”, de que recebeu durante as fases de pesquisa e de
Joaquim Nabuco, tem seu “caráter exemplar” ate- produção do texto. Que outras indicações neces-
nuado pela “personalidade bastante narcísica” de sitaria o leitor ou o crítico? Seria importante que
Joaquim Nabuco, “dando exemplo de como o soubesse da existência de outros estudos do autor
dado pessoal pode se dissolver na vaidade, a mais sobre a organização social dos “parceiros”, e para
particularizadora das forças que atuam em nós” isso Candido cita-se uma única vez em todo o li-
(Candido, 1987, p. 53, grifos meus). Candido inte- vro, ao reproduzir, na Parte Complementar, um
ressa-se pelo salto do local ao universal por meio pequeno estudo seu sobre a vida familiar do cai-
da autobiografia, ou seja, pelas condições em que pira. Esta atitude intelectual sóbria, avessa à auto-
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promoção, relaciona-se, a meu ver, com um certo desfruta o nome do professor Antonio Candido
tipo de sociabilidade respeitosa em relação a seus nas ciências sociais brasileiras deverá dar lugar à
pares e aos leitores, uma postura ética que flui da referência a Os parceiros do Rio Bonito, sua obra
vida para “dentro do texto”, e, como lição, ofere- singela e monumental.
ce-se à sociabilidade e à produção acadêmicas.
Anteriormente revelei o reparo feito por Candido
ao provincianismo de Romero. Agora posso indicar NOTAS
como sua atitude crítica se casa com sua ética pes-
soal ao procurar pontos fortes na personalidade do 1 Utilizo a primeira edição de Os parceiros do Rio Bo-
nito (1964).
outro e reduzir as referências pessoais ao essencial.
Romero é recuperado, então, em seu ritmo huma- 2 Bento Prado Jr. (1986); ver especialmente as páginas
namente contraditório: “a atitude correta é não ir 103 a 110, onde a discussão conduz a este fecho ex-
plicativo: “na realidade, havia alguma coisa que fal-
na provocação do seu temperamento polêmico;
tou na minha leitura de Antonio Candido [e] na mi-
não querer, por exemplo, reduzi-lo às suas contra- nha leitura do Foucault, principalmente na do Anto-
dições nem proclamar a sua perfeita unidade; e sim nio Candido, que eu acho que é um historiador da
procurar entender o seu ritmo de turbilhão. Na ver- cultura um pouco mais fino do que [...] Foucault”
dade a contradição era o seu modo próprio de (grifo meu).
viver o pensamento” (Candido, 1987, p. 102). 3 Por indicação de Bolívar Lamounier, em passagem
Retorno ao argumento inicial para modificá- rápida, mas marcante, pelo Departamento de Socio-
lo em parte. Disse que o livro Os parceiros encer- logia da PUC do Rio de Janeiro.
ra uma radicalidade que o tornou, em sua época 4 Foi nesse prefácio que Candido pôs em primeiro
(como em nossos dias, talvez menos pelo aspec- plano Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado
to metodológico), dificilmente assimilável pelas Júnior, como demarcadores de novas fronteiras no
campo intelectual brasileiro. Há quem diga que te-
ciências sociais brasileiras. A menção ao quarto
ria sido injusto em relação a Oliveira Viana, suposi-
aspecto, até certo ponto “fora da obra” e relativo ção a meu ver equivocada. Candido emitiu um juí-
à conduta intelectual do autor – um traço pessoal zo correto, ao lamentar a marca do preconceito e os
de caráter – coloca um desafio diferente, que po- excessos doutrinários na obra do intelectual flumi-
deria ser traduzido em “valor ético de base”,10 em nense, ainda que “por tantos aspectos penetrante e
atitude diante da atividade acadêmica ou intelec- antecipadora”.
tual. Quantos de nós passaremos por este crivo, e 5 Remeto o leitor ao texto de A. L. de Almeida Prado,
por quanto tempo? Estamos diante de uma pro- “No país dos Andrades: Miramar e Macunaíma – ra-
posta de um “modo de ser” que dificilmente en- dicalidade na arte e na práxis”, Revista de Letras, 17:
205-230, 1975.
contrará guarida, mesmo junto às velhas gerações
como a minha, diante da competição atlética em 6 Ainda estudante de sociologia, pedi-lhe certa vez
que se transformou a vida acadêmica, no Brasil e que autografasse meu exemplar de Os parceiros,
ocasião em que lhe contei que um colega mais ve-
no exterior. Mas algo já brotou e frutificou, e não
lho – que mal conhecia o livro – me havia “alerta-
há como voltar atrás: Candido inspirou um grupo do” sobre seu suposto funcionalismo. Logo em se-
de intelectuais em São Paulo e em outras regiões guida li a dedicatória: “Ao Luiz Antonio, com o
do país, formados em uma atmosfera sem autori- abraço funcionalista do Antonio Candido”. Mostrei-
tarismo pessoal, descobrindo e reforçando as qua- a mais tarde ao colega, que enrubesceu.
lidades intelectuais de quem dele se aproximava. 7 Faço uso outra vez das sugestões de Almeida Prado,
A sociabilidade e a auto-estima convivem, aqui, op. cit., pp. 212 e 219.
de modo a enriquecer a vida intelectual. Daí pos- 8 Trata-se de seu estudo sobre a obra e a vida públi-
so sugerir que não só Os parceiros do Rio Boni- ca de Sílvio Romero, reproduzido em A educação
to, mas todos os ensaios referidos, encerram uma pela noite & outros ensaios com o título “Fora do
radicalidade ética e brotam de uma prática de texto, dentro da vida”.
convivência marcada pela cordialidade e pela ci- 9 A rigor, o grande narciso de Apipucos sempre pro-
vilidade. Com o tempo, a reverência que hoje curava ofuscar seus leitores com o brilho estelar
o
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conquistado no mundo. Este Freyre provinciano


nunca se permitiu desfrutar a tranqüilidade intelec-
tual de quem produziu, de fato, pelo menos duas
das maiores obras do pensamento social brasileiro
desde 1930: Casa-grande & senzala e Nordeste.
10 Na expressão de Davi Arrigucci Jr., empregada em
outro contexto; ver Arrigucci, 1987, p. 17.

BIBLIOGRAFIA

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ções. Rio de Janeiro, José Olympio (Cole-
ção Documentos Brasileiros, 45).
RESUMOS/ABSTRACTS/RÉSUMÉS 167

A RADICALIDADE DE OS PAR- THE RADICAL ASPECT OF OS LE CARACTÈRE RADICAL DE


CEIROS DO RIO BONITO PARCEIROS DO RIO BONITO OS PARCEIROS DO RIO BO-
NITO

Luiz Antonio C. Santos Luiz Antonio C. Santos Luiz Antonio C. Santos


Palavras-chave Keywords Mots-clés
Teoria social; Antonio Candido; In- Social theory; Antonio Candido; Inter- Théorie sociale; Antonio Candido;
terdisciplinaridade; Metodologia de disciplinary; Research methodology Interdisciplinarité; Méthodologie de
pesquisa
recherche

O livro Os parceiros do Rio Bonito The book Os Parceiros do Rio Bonito Le livre Os parceiros do Rio Bonito
traz uma contribuição admirável ao brings an admirable contribution to constitue un apport admirable à la
pensamento social brasileiro por sua the Brazilian social thought for its pensée sociale brésilienne, par son
relevância ético-política, como obra ethic-political relevance as a work of importance éthique et politique,
de denúncia política e crítica social; political denounce and social criti- comme une oeuvre de dénonciation
por sua contribuição formal ou esté- cism, for its formal or aesthetic contri- de la politique et de la critique so-
tica, uma fina arquitetura da palavra bution, a fine architecture of words ciale; par sa contribution formelle
e da argumentação sociológica e an- and sociological and anthropological ou esthétique, une fine architecture
tropológica; e por sua contribuição arguments; and also for its methodo- du mot et de l'argumentation socio-
metodológica, a pertinência do ato logical contribution, the pertinence of logique et anthropologique; et par
crítico aberto e pautado pela fluidez, an open critical act marked by flow, sa contribution méthodologique, la
em contraposição à adesão irrestrita in contrast with the unrestricted adhe- pertinence de l'acte critique ouvert
a determinado aparato teórico. À ati- sion to certain theoretical apparatus. et marqué par la fluidité, en contre-
tude crítica associa-se a atitude men- Added to the critical attitude is the at- point à l'adhésion sans restrictions à
tal de empatia pelo objeto, que se titude of empathy for the object, that une base théorique déterminée. L'at-
afasta de um frio e distante “sociolo- stands back from a cold and distant titude critique s'associe à l'attitude
gismo”, mas, ao mesmo tempo, se “sociology” but, at the same time, it mentale d'empathie par l'objet, qui
recusa a atribuir-lhe as características refuses to attribute the characteristics s'éloigne d'un froid et distant "socio-
que “gostaríamos” que tivesse, con- that “we would like” to hear, accor- logisme" mais qui, en même temps,
forme a ideologia ou as crenças que ding to the ideology or beliefs that refuse de lui attribuer les caractéris-
partilhamos. A radicalidade dessa we share. The radical aspect of this tiques que nous "aimerions" qu'elle
obra reside no espírito aberto para work is in the free spirit for a “socio- eût, selon l'idéologie ou les croyan-
a “aventura sociológica”, daí resul- logical adventure” and, as a result, ces que nous partageons. La radica-
tando a inexistência de “manifestos” “manifestos” or “norms” of conduct lisation de cette oeuvre réside dans
ou “normas” de conduta. Todavia, are absent. Yet Cândido marks the li- l'esprit ouvert vers une "aventure so-
Candido demarca os limites entre o mits between the spirit opened to di- ciologique", dont résulte l'inexisten-
espírito aberto à diversidade e à versity and the versatility in the treat- ce de "manifestations" ou de "règles"
versatilidade no trato do fenômeno ment of the social phenomenon and de conduite. Candido démarque,
social, de um lado, e a adesão aven- the adventurous adhesion to a sterile néanmoins, les limites entre l'esprit
tureira a um relativismo estéril, de relativism. Finally, the article discus- ouvert à la diversité et à la versatili-
outro. Finalmente, discute-se aqui a ses the intimate relationship between té dans l'abordage du phénomène
íntima relação entre a conduta inte- the author's intellectual conduct – its social d'un côté, et de l'adhésion
lectual do autor – sua postura ética ethical position within the academic aventurière à un relativisme stérile
diante do mundo acadêmico – e sua world – and its own work. de l'autre. Finalement, nous discu-
própria obra.
tons l'étroite relation entre la con-
duite intellectuelle de l'auteur - sa
posture éthique face au monde aca-
démique - et sa propre oeuvre.

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