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História recente e perspectivas contemporâneas em

Neuropsicologia
Daniel C Mograbi e Fabiano S Castro

O método anátomo-clínico e as condições de surgimento da


neuropsicologia
Ainda que seja difícil determinar o nascimento de uma disciplina complexa como a
neuropsicologia, um de seus atos de fundação pode ser situado no trabalho de Pierre
Paul Broca (1824-1880) na localização de uma região cerebral dedicada à produção da
fala.
Em meio à controvérsia sobre a localização das funções cerebrais, que persistia desde a
Antiguidade, mas havia ganhado força a partir do século XVII, Broca faz uma breve
comunicação em 1861, no Boletim da Sociedade de Antropologia (que na época discutia
temas tão diversos quanto arqueologia, mitologia, anatomia e psicologia; Sagan, 1976),
o caso de um paciente com um comprometimento específico na capacidade de produção
de fala, em meio a um quadro de relativa preservação cognitiva. Esta publicação é
acompanhada de outra, mais extensa, no Boletim da Sociedade Anatômica, também em
1861. O paciente, Sr. Leborgne, havia “perdido o uso da palavra” e era incapaz de
“pronunciar mais do que uma sílaba, que ele repetia duas vezes seguidas” (tan tan;
Broca, 1861). Leborgne morre pouco tempo depois do exame clínico, e sua autopsia
revela uma lesão específica no giro frontal inferior esquerdo. Broca conclui em seu
relato que “tudo permite crer que, neste caso específico, a lesão do lobo frontal foi a
causa da perda da palavra” (1861). O quadro clínico específico de perda de produção da
fala e o giro frontal inferior se tornaram epônimos de Broca, sendo chamados,
respectivamente, de afasia de Broca e Área de Broca.
O método empregado por Broca em seus estudos, chamado de anátomo-clínico, era o
esteio da neurologia no final do século XIX. O método anátomo-clínico consistia em um
exame em dois estágios com o intuito de vincular sinais clínicos a padrões de alteração
cerebral (Goetz, 2010). O primeiro estágio desta abordagem dedicava-se a um exame
clínico em profundidade, acompanhando o paciente ao longo de um extenso período de
tempo, ao passo que o segundo estágio, após a morte do paciente, envolvia a autópsia do
cérebro e medula espinhal (Goetz, 2010). Assim, o método permitia associar os dados
clínicos com informações sobre neuroanatomia, sugerindo uma potencial relação de
causalidade entre estes e levando a um novo sistema de classificação de doenças
neurológicas tendo como base dados anatômicos.
Embora   a   linguagem   tenha   sido   o   tema   inicialmente   investigado,   diversos   outros

processos mentais foram enfatizados, como a atenção, a percepção visual e a memória.
Achados de correlações entre disfunções cognitivas ou quadros clínicos específicos e
lesões cerebrais se acumularam desde a descoberta de Broca. Por exemplo, amparado na
casuística de centenas de ex-combatentes da 1ª Guerra Mundial, Kleist desenvolve na
década de 30 um mapa relativamente preciso de comprometimentos cognitivos
específicos causados por lesões cerebrais (1934). Achados sobre a localização de
funções cerebrais ganhariam novo impulso a partir dos estudos na década de 50 de
Wilder Penfield, que em seu trabalho com cirurgias de pacientes epilépticos pôde
estabelecer através de estimulação elétrica direta do córtex as percepções, sensações e
movimentos associados com cada uma de suas áreas específicas (Jaspers & Penfield,
1954).
Assim, a neuropsicologia firmou­se efetivamente enquanto área de estudo a partir da

segunda metade do século XX. Desde então, evidências de estudos de lesão, modelos


animais, medições em células únicas e, mais recentemente, investigações utilizando
neuroimagem, acumularam-se para indicar de forma inequívoca a especialização de
regiões cerebrais em termos de processamento de informação. No entanto, como
veremos na seção seguinte, um pensador essencial no estabelecimento da
neuropsicologia enquanto disciplina ofereceu modelos teóricos alternativos – sem negar
os dados sobre localização – para pensar a relação entre cérebro e cognição.

Luria e o conceito de sistema


Alexander Romanovitch Luria nasce em 1902, na cidade russa de Kazan, em uma
família judia formada por profissionais liberais. Seu pai era um médico especializado
em doenças gastro-intestinais e sua mãe, dentista – algo pouco comum na época. Sua
formação é marcada por grande ecletismo, graduando-se primeiro em ciências sociais
pela Universidade de Kazan, tendo entrado no curso no ano seguinte da Revolução
Russa, para posteriormente formar-se em medicina pela Universidade de Moscou. Ao
longo de seu percurso acadêmico, filiou-se a diversas correntes teóricas. No início de
sua formação, nos anos 20, estuda psicanálise, traduzindo Freud para o russo e fundando
a Associação Psicanalítica de Kazan. Em 1924, conhece Lev S. Vygotsky e Aleksei N.
Leontiev, junto aos quais estabelece os fundamentos de uma psicologia que considerasse
a interação entre fatores individuais e elementos sociais/culturais. Ocorrem em seguida,
na década de 30, suas excursões à Ásia Menor, onde realiza estudos sobre a influência
de fatores como escolaridade na cognição e linguagem. É também desta época seus
estudos com gêmeos, quando tenta elucidar a relação entre fatores genéticos e culturais.
Durante a 2ª Guerra Mundial, trabalha em um hospital para ex-combatentes, estendendo
seu conhecimento sobre pacientes com lesões cerebrais adquiridas. Na década de 50, em
virtude de uma onda de anti-semitismo, afasta-se do Departamento de Neurocirurgia,
dedicando-se a estudos sobre crianças com déficits cognitivos e atrasos de
desenvolvimento. Ao final desta década, retorna ao trabalho com pacientes
neurológicos, passando os últimos anos de sua carreira refinando seu arsenal clínico.
Morre aos 77 anos, vítima de problemas cardíacos.
Uma das ideias essenciais da abordagem de Luria é a noção de que vínculos funcionais
entre regiões cerebrais são construídos historicamente. Por exemplo, áreas responsáveis
pela linguagem se tornam funcionalmente conectadas a regiões vinculadas ao
processamento visual e motor a partir da invenção da escrita (Luria, 1976). Esta
perspectiva é particularmente relevante na medida em que relativiza a ideia de um
cérebro humano trans-histórico (cérebros da idade de pedra; Cosmides & Tooby, 1994),
considerando que a escrita surgiu em torno de 3,500 anos atrás (Kramer, 1981), tendo
uma história muito curta em contraste com as primeiras evidências de humanos
anatomicamente modernos, com no mínimo 100,000 anos (Stringer, 2012). Baseado na
visão de Luria, podemos especular como são formadas as conexões entre as áreas de
nossos cérebros a partir da estimulação e ambientes comuns na sociedade
contemporânea.
Um conceito fundamental dentro da perspectiva luriana, que ressitua a questão da
localização cerebral, é o de sistema funcional. Luria (1976) promove uma desconstrução
da ideia de função, ao sugerir que em suas formas complexas esta não pode ser atribuída
a um único órgão ou tecido. Dando o exemplo da respiração, ele sugere que esta não é
função apenas do pulmão, sendo executada por um sistema completo, que inclui
diversos órgãos e um aparato muscular amplo. A noção de sistema sugere um alto grau
de plasticidade e compensação entre as suas partes; atendo-se ainda ao exemplo da
respiração, Luria indica como os músculos intercostais são recrutados para compensar a
atividade deficiente do diafragma. Modalidades complexas de cognição seriam, segundo
ele, um exemplo privilegiado de funcionamento sistêmico, com diferentes áreas
cerebrais trabalhando em concerto para sua consecução. Luria identifica três sistemas
baseado em contribuições funcionais específicas: uma unidade de tono-vigília, uma
unidade de processamento sensorial e armazenamento de informação, e uma unidade de
regulação e monitoramento de atividades (1976). Ainda que estas unidades funcionais
possam ser situadas em diferentes substratos neurais (respectivamente, no tronco
cerebral, nos córtices occipital, parietal e temporal, e no córtex pré-frontal), o conceito
de sistema pressupõe a ideia de que estas regiões cumprem funções amplas, e que
diferentes componentes de cada unidade compensam a atividade de outros em casos de
dano cerebral. Assim, esta perspectiva é particularmente frutífera para pensar
implicações clínicas e o aspecto qualitativo de sintomas neurológicos.

Trazendo a neuropsicologia para o século XXI


Em que pese o impacto da obra de Luria na formação da neuropsicologia enquanto
disciplina, alguns de seus insights não foram plenamente incorporados por autores que o
seguiram. De forma geral, a neuropsicologia ainda hoje subscreve a um campo
conceitual em descompasso com algumas das vias mais frutíferas para se pensar a
relação entre funcionamento mental e cerebral. Por exemplo, a noção de modularidade,
um dos pilares da abordagem neuropsicológica, vem sendo relativizada diante de
achados empíricos novos. Especificamente, o aumento de estudos sobre conectividade
estrutural, funcional e efetiva entre regiões cerebrais (Mesulam, 2012) sugere que, ainda
que a especialização funcional de regiões cerebrais seja inegável, é somente da
interação entre áreas que funções complexas podem emergir. Além disso, paradigmas
recentes para o entendimento do funcionamento cerebral calcam-se em modelos
dinâmicos, em que o processamento de informação, mesmo em níveis básicos, é
influenciado por processos de ordem superior (Friston, 2010). Um exemplo privilegiado
destas perspectivas é o estudo da consciência, que ganhou nova força a partir da adoção
dos conceitos de conectividade (Tononi, 2007) e predição probabilística (Friston, 2010).
Paralelamente, as últimas décadas trouxeram um gradual abandono da metáfora da
mente enquanto um computador. O cognitivismo estrito sugeria que a mente funcionaria
tal como um software, que poderia ser instalado em diferentes suportes, não importando
as características do hardware (i.e. o corpo e o cérebro) onde este funcionava (Searle,
1980). Em oposição a esta perspectiva, acompanha-se a incorporação nas neurociências
de um paradigma biológico que considera todos os processos cognitivos como calcados
em uma base material (o cérebro) e motivados em última instância por questões
referentes à adaptação do organismo. De um ponto de vista clínico, a adesão da
neuropsicologia a este paradigma biológico enfatiza o caráter adaptativo dos sintomas e
respostas de pacientes neurológicos, ao invés de considerá-los meramente expressões de
déficits.
Além destas questões de ordem teórica, uma neuropsicologia para o século XXI precisa
reinventar-se metodologicamente. Estudos de lesão formaram o cerne da abordagem
neuropsicológica ao longo do século XX. Nas últimas décadas, os campos mais amplos
da neurologia clínica e das neurociências cognitivas beneficiaram-se de inovações
técnicas, como procedimentos de neuroimagem de alta resolução espacial (e.g. fMRI,
PET, DTI). Estas técnicas possibilitam evitar as limitações associadas com estudos de
lesão, como, por exemplo, o fato de raramente o dano cerebral estar limitado a áreas
corticais específicas e a dificuldade em determinar as habilidades pré-mórbidas de
pacientes (Fotopoulou, 2013).
Além disso, estas técnicas permitem de forma mais eficaz a investigação de objetos de
estudo que tradicionalmente foram excluídos da neurociência cognitiva, em parte por
dificuldades metodológicas. O estudo da emoção em humanos é um exemplo princeps
desta mudança. Uma exploração científica da emoção é complicada pelo fato de que
estados emocionais são subjetivos e acessados de forma privilegiada a partir de uma
perspectiva de primeira pessoa. Ainda que esta limitação não se aplique a aspectos
comportamentais da emoção (por exemplo, expressões faciais [Ekman, 1992]), o estudo
objetivo de sentimentos e estados internos ganhou novo impulso com técnicas de
imagem. Evidências convergentes sobre o processamento emocional em humanos, e a
extensa literatura utilizando modelos animais e psicologia comparada, fizeram emergir
nas últimas décadas o campo das neurociências afetivas (Panksepp, 2004).
Diante deste panorama, um dos desafios atuais da neuropsicologia é acompanhar os
últimos desenvolvimentos do campo mais amplo das neurociências, encampando
posições que possam revitalizar seus métodos e teorias. Ao mesmo tempo, a
neuropsicologia, amparada na vasta riqueza de seus dados clínicos, pode informar
produções futuras nas neurociências. Sendo assim, este desafio deve ser encarado com
otimismo.
Referências
Broca, P. P. (1861) Perte de la parole, ramollissement chronique et destruction partielle
du lobe antérieur gauche du cerveau. Bulletin de la Societé Anthropologique, 2, 235-
238.
Cosmides, L. & Tooby, J. (1994). Beyond intuition and instinct blindness: toward an
evolutionarily rigorous cognitive science. Cognition, 50, 41-77.
Ekman, P. (1992) An argument for basic emotions. Cognition and emotion, 6, 169-200.
Fotopoulou, A. (2013) Time to get rid of the 'Modular' in neuropsychology: A unified
theory of anosognosia as aberrant predictive coding. Journal of Neuropsychology, doi:
10.1111/jnp.12010 [Epub ahead of print]
Friston, K. (2010). The free-energy principle: a unified brain theory? Nature Reviews –
Neuroscience, 11, 127-138.
Goetz C.G.(2010) Chapter 15: Jean-Martin Charcot and the anatomo-clinical method of
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Jasper, H. & Penfield, W. (1954).Epilepsy and the Functional Anatomy of the Human
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Kleist, K. (1934) Gehirnpathologie. Leipzig, J.A. Barth.
Luria, A.R. (1976) The working brain: An introduction to neuropsychology, New York:
Basic Books 1976
Mesulam, M. (2012)The evolving landscape of human cortical connectivity: facts and
inferences. Neuroimage, 62(4), 2182-2189
Panksepp, J. (2004) Affective Neuroscience: The Foundations of Human and Animal
Emotions, New York: Oxford University Press.
Sagan, C. (1979) Broca’s Brain, New York: Random House
Searle J. (1980). Minds, brains and programs. Behavioral and brain science, 3, 417–
457.
Stringer, C. (2012) Origin of our species.London: Penguin Books
Tononi, G. (2007). The information integration theory of consciousness. In M.Velmans
& S. Schneider (Eds.), The Blackwell companion to consciousness (pp. 287-299).
Malden: Blackwell Publishing.

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