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Cadê a minha Razão que estava aqui?

ou
Por um pensar genuinamente tupiniquim.

Bruno Aparecido Nepomuceno


2º período

A Filosofia ganhou, ao longo dos séculos, caráter de algo distante, inalcançável,


inacessível e em última análise invenção de gregos ociosos ou doutrina de alemães
problemáticos. Também, normalmente nos foi apresentada como estudo racional de
problemas tão profundos e abstratos que se tornou distante demais para que, nós simples
mortais e pobres brasileiros a alcançasse.
As marcas que essa visão, talvez deturpada, causou em nosso povo e em nossa história
tornou-se objeto de estudo no Brasil nas últimas décadas. Roberto Gomes, na obra
“Crítica da Razão tupiniquim”1, exclamou uma verdade que pretendeu acordar nosso
pensamento do sono ignóbil em que jazia: a filosofia tupiniquim foi abortada!
Alguns fatores apresentados pelo autor como propulsores desta morte acredito serem
fundamentais para que entendamos como se deu este processo e como nos devemos
colocar a partir de então para “fazer viver” uma filosofia nossa - cara. Vou pontuando e
comentado.
Primeiro: os fatores históricos. O processo de descobrimento e colonização do país,
como todos nós sabemos foi impiedoso e até violento para com os nativos que aqui
habitavam. Os europeus usaram da força da palavra, de fúteis presentinhos, da
dominação física e religiosa para impor sua vontade, cultura e costumes. Os índios
eram tidos como homens sem alma e por conseqüência, sem nenhum valor. Em
princípio, apresentou-se uma certa resistência por parte dos povos, mas isso não
perdurou por muito tempo.
A mesma imposição foi observada com os africanos que aqui desembarcavam para o
trabalho escravo. Tudo o que eles traziam de bagagem era desprezado em nome de
uma cultura branca superior.
Nascemos, como um povo brasileiro, da mistura destas duas raças citadas
anteriormente com os europeus. O que se observa, porém, é que muito herdamos
ideologicamente de nossos dominadores pais. Facilmente abandonamos o que temos
de propriamente nosso em nome de uma brilhante cultura do hemisfério norte.
Outro fator que aumentou a desvalorização do “nosso” foi a recepção no Brasil de
muitos imigrantes europeus. Eles traziam dentro de suas bagagens não somente seus
pertences físicos, mas também ideológicos. Por isso
(...) não é possível falar de uma tradição intrinsecamente brasileira de
pensamento, constituidora de um cabedal de ideias e de uma metodologia
próprios. Em um país relativamente jovem, cuja porção letrada era formada
por imigrantes europeus e seus descendentes, a filosofia em nosso país foi,
em sua quase totalidade, influenciada por correntes européias,
predominantemente pelo pensamento e cultura franceses. (SOUZA
JÚNIOR2).

1
São Paulo: FTD, 1990.
2
In: http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/143862.doc
Com isso, não nos acostumamos em elaborar nossa própria forma de encarar a
realidade, pois sempre nos foram apresentadas, por outros, respostas prontas aos
nossos problemas. Desvalorizamos o que poderíamos fazer, acreditando que se o
fizéssemos o resultado ficaria muito inferior em relação à produção de nossos “mestres
brancos”. Abandonamos, pois, o esforço. Caímos no comodismo, no “vamos deixar
como está pra ver como é que fica”.
Segundo: o amor pelo estrangeiro. Esse decorre do anterior. Todo país colonizado tem
seu ego ferido e tende a considerar-se, como já foi dito, inferior ao colonizador.
Aprendeu desde cedo que só de lá podem vir as coisas boas. Esqueceu-se que foi
explorado justamente porque tinha muito o que oferecer à metrópole, que ela viveu
grande parte do tempo às custas de seu suor e trabalho, das sacas de recursos naturais
que abasteciam suas necessidades. Apegou-se ao importado por considerá-lo mais chic
e descolado, apostou na língua estrangeira para se dar bem profissionalmente, vestiu
uma marca da qual não sabe bem a tradução, sonhou em mudar-se para um país que
neva, assinou TV a cabo para ver outras séries com temáticas mais cult, trocou açaí por
Coca-cola e vendeu sua razão a preço de nada para assumir qualquer uma que venha de
fora.
Isso é observado no meio acadêmico também. Qualquer pensador é mais interessante do
que os nossos, qualquer teoria merece mais atenção do que a nossa. Deixamos nossa
individualidade e assumimos qualquer personalidade que possa ser comprada em
dólares ou em euros.
“Ser culto no Brasil, é avolumar erudição sobre um outro, o não-brasileiro. Julgamos
apenas exótico, ou até de mau gosto, quem se dedique a coisas nossas - mas julgamos
de alta erudição saber alemão ou latim.” (GOMES, op. cit. p.73)
Terceiro: o ecletismo. O povo brasileiro é um povo cordial, acolhedor e hospitaleiro.
Como já foi elucidado, acolhe tudo o que lhe é apresentado de forma simpática. Não
sabe dizer não e por isso tem que assumir uma certa dose de mediocridade. Consegue
ver uma parcela de bem em todas as coisas e por isso se posiciona como eclético.
O intelectual brasileiro talvez seja um dos poucos que conseguiu misturar coisas opostas
como água e óleo numa única substância homogênea. Acostumou-se a fazer aquilo que
se diz na linguagem de botequim de “o samba do crioulo doido” com grande parte das
coisas que assume.
Sua pretensão de haver descoberto uma formula mágica apta a conciliar diversas
doutrinas, assumindo facilmente a aparência de um sistema genial que demonstra a
verdade, acaba desfazendo-se em sua própria estrutura.
(...) a síntese eclética resulta contraditória. Ao admitir como natural a
coexistência de ideias inconciliáveis, essa doutrina é obrigada a sacrificar sua
lógica interna. (RODRIGO, 1988, p.56)
Por juntar ideias tão distintas entre si em nome de uma concórdia, acaba fadada a cair
em contradição.
Quarto: a afirmação. Um país eclético não sabe dizer não. Este é decorrência daquele.
Este é o positivismo. Até historicamente não houve separação entre os dois conceitos,
mas apenas continuidade.
Negar requer mais aprofundamento nas questões, pede um certo esforço intelectual e até
mesmo um certo desgaste, pois uma negação pública precisa, se quer se impor,
argumentar a seu favor. Se procede dessa forma usa de razão e este é o primeiro passo
para se falar em filosofia. Mas negar implica posicionar-se, e o pacífico tupiniquim se
esquiva dessas coisas por preferir levar os fatos se abstendo-se de dar opinião.
Aqui, esta corrente do positivismo foi facilmente instalada porque o povo brasileiro tem
fascinação pelo fácil e aparentemente seguro. Aquilo que lhe dá estabilidade sem exigir
muito esforço pessoal é o que é mais abraçado. Assim se apresentava o positivismo.
Um amor pronunciado pelas formas fixas e pelas leis genéricas, que
circunscrevem a realidade complexa e difícil dentro do âmbito dos nossos
desejos, é dos aspectos mais constantes e significativos do caráter brasileiro.
(...) tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante, as
ideias claras, lúcidas, definitivas, que favorecem uma espécie de atonia da
inteligência, parecem-nos constituir a verdadeira essência da sabedoria.
(BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p.158)

Quinto: o jeitinho. Talvez esse seja algo tão nosso que chega a nos caracterizar e
identificar para outras nações do mundo. É claro que não é uma exclusividade deste
povo verde e amarelo, mas dele tomamos posse e até nos orgulhamos por fazer parte de
nós.
Ele foi definido como
(...) uma forma "especial" de se resolver algum problema ou situação difícil
ou proibida; ou uma solução criativa para alguma emergência, seja sob a
forma de burla a alguma regra ou norma preestabelecida, seja sob a forma de
conciliação, esperteza ou habilidade. Para se fazer uso do jeito necessita-se
de um acontecimento imprevisto e adverso aos objetivos do indivíduo, e
assim, é preciso uma solução rápida e eficiente para resolver o problema, ou
seja, "especial".3
Como já se afirmou, somos um povo cordial, que não sabe dizer não, não gosta de
“tomar partido” ou “comprar briga”. Aprendemos a conquistar nossos objetivos sem
fazer muito alarde e sem nos comprometermos. Diante de um impedimento legal que
atravanque nosso caminho encontramos sempre uma maneira de burlá-lo sem sermos
descobertos. Cortamos fila, ultrapassamos o sinal de trânsito, ludibriamos o guarda com
a invenção de algum drama pessoal, entramos em festas privadas, pagamos meia no
cinema sem direito, ultrapassamos prazos sem sermos taxados por isso, enfim, damos o
nosso jeitinho. Alegres, cantamos “deixa a vida me levar, vida leva eu” para significar
que pré-ocupação é coisa que não nos pesa sobre os ombros.
Assim, nós nos impomos sobre a vida e dela tiramos o melhor proveito possível. É a
nossa forma de viver, prosseguir. mesmo diante de possíveis fracassos continuamos
afirmando que “Deus é brasileiro”. Essa frase tão repetida nas esquinas de nossas
conversas informais traz em si uma carga ideológica muito forte. Por ela queremos dizer
que façamos o que façamos, Deus está do nosso lado. Ou seja, “no fim tudo sempre dá
certo”. Essa atitude pode provocar em nós, como disse, um certo grau de comodismo e
de preguiça intelectual, fazendo-nos acreditar que mesmo sem muito esforço sairemos
bem em todos os fatos.
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade,
que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo
triunfo do espírito sobre a vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue
manter sua supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma
presença contínua e soberana do indivíduo. ( BUARQUE DE HOLANDA,
Op. cit. p.147)

3
STIGAR, Robson. In: http://www.webartigos.com/articles/6105/1/O-Jeitinho-Brasileiro/pagina1.html
É claro que o jeitinho não é somente uma coisa ruim. Ele revela no brasileiro uma certa
independência para resolver seus problemas, agiliza processos legais que demorariam
anos ou até facilitam a prática caritativa entre os indivíduos.
É necessário falar de forma inédita sobre assuntos muito velhos. Eles estão entre nós,
mas não temos a coragem de versar criticamente sobre eles. É próprio do brasileiro, o
apego a tudo, mesmo a coisas ruins. “A gente se acostuma com tudo”, dizem por aí.
Mas a filosofia serve para libertar e não deve se limitar somente a ser um fim em si
mesma, deve também extrapolar seus limites e movimentar as estruturas cristalizadas,
criando vida nos cômodos embolorados de nossa existência.
A reflexão filosófica só é um fim em si mesma na exata medida em que a
existência humana como um todo é a sua meta. Todo o esforço da
consciência filosófica na busca do sentido das coisas tem, de fato, a
finalidade de compreender de maneira integrada o próprio sentido da
existência do homem. (..) É antes a busca insistente do significado mais
profundo da existência humana, sem dúvida alguma para torná-la mais
adequada a si mesma. (SEVERINO, 1997, p.23)
Temos todas as condições em mãos de escrever novos capítulos, agora a nosso favor, na
história da filosofia brasileira - ou melhor, do Brasil. Só precisamos assumir o que
temos de melhor: nós mesmos. Não precisamos fazer pensamento “pra inglês ver”, mas
sim para brasileiro viver. E se depois vier o reconhecimento, será apenas conseqüência
de uma maturidade tupiniquim. Será algo adicional e não final.
Temos a estranha mania de ser como que Narciso às avessas, nos apaixonado muito
pelo o que é de outros até nos perdermos neste estonteante fascínio e perecer. Então, já
que é para perecer,deslumbremo-nos por nós mesmos e fixemo-nos no que temos de
bom para que, quem sabe assim, mesmo depois de perecerem nossos filósofos,
sobreviva nossa filosofia.

Referências

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia
das letras, 1995.
GOMES, Roberto. Crítica da razão tupiniquim. 10 ed. São Paulo: FTD, 1990. (Prazer
em conhecer).
RODRIGO, Lidia Maria. O nacionalismo no pensamento filosófico: aventuras e
desventuras da filosofia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988.
SEVERINO, Antônio Joaquim. A filosofia contemporânea no Brasil: conhecimento,
política e educação. Petrópolis: Vozes, 1997.
SOUZA JÚNIOR, Fábio Ferreira. Filosofia no Brasil. Disponível em:
<http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/143862.doc>, acesso em 7 de junho de
2010.
STIGAR, Robson. O jeitinho brasileiro. Disponível em:
<http://www.webartigos.com/articles/6105/1/O-Jeitinho-Brasileiro/pagina1.html>,
acesso em 7 de junho de 2010.

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