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CONTOS MÍNIMOS

LÍLIAM BARROS

BELÉM, PARÁ, 2016


Para Marcos
SUMÁRIO

Dora

Recados de vida e de morte

No tempo de Santo Alberto

Machadinha de São Pedro

Função ao cair da noite

Os contornos da 25

Quinze horas em Puerto Callao

A Castanheira

Banho da tarde

Da rede rasgada

A prisão

7 mulheres e um menino

Barriga de todas as mãos


Dora

Parte I

Observo o crepúsculo, sabendo que um dia pertencerei a

ele.

- Mas é claro que eu não faço questão de ficar aqui! Eu

tenho algum dinheiro e dá pra eu me arranjar muito bem.

- Pois vá embora, nunca mais quer lhe ver na minha

frente!

Ao relembrar esses tristes fatos tomei uma decisão.

No outro dia pela manhã, eu já comprava as passagens, ia

de ônibus, o dinheiro eu havia economizado das mesadas.

Enquanto comprava, eu imaginava:

- DORA! Abra a porta, já é de manhã! – a mulher falava

enquanto batia na porta. Cansou de bater e girou a maçaneta. A

cama, intocada.

- DORA!

Parte II

As horas passam lentamente. Há dois dias estou viajando

neste ônibus, e ainda faltam mais três dias. Bem, pelo menos

vou ter tempo bastante para pensar na vida.


Deixo para trás uma vida de angústias e tristezas, mas

também deixo momentos de felicidade. Agora a única coisa que

me resta é olhar pra frente e ter coragem e disposição para o

que der e vier. Tenho que pensar no que vou fazer quando

chegar ao Condado. Não sei o que me espera mas eu estou pronta

para qualquer coisa.

O destino reservara para ela um lugar de mulher da vida

logo na entrada da cidade. DORA não queixou-se. Ao contrário,

deu vivas por ter, enfim, achado um lugar onde ela pudesse

viver em paz. Era uma nova vida.

No dia seguinte eu estava super cansada. Não conseguia

pensar direito no que estava acontecendo. Lembro-me do homem

de ontem à noite, olhei então para o lado e vi deitado na

cama, olhos fechados, que cor seriam? Resolvi abri-los. O

homem então acordou, me viu e lançou-me um sorriso e eu o

agradeci com outro.

- Como você se chama?

- Louise, e você?

- Que nome bonito. Eu me chamo Arnold.

- Lindo o nome e você também.

- Você está acanhada.

- Sim, vamos mudar de assunto. Quantos anos você tem?

- Vinte e dois, e você?

- Quatorze.
DORA não sabia, conhecera um homem a quem julgou

encantador, não só em corpo, mas em alma, e por ele se

apaixonou.

E assim os dias foram decorrendo até que, certa vez, o

telefone tocara.

- Alô.

- Alô, eu gostaria de saber com quem estou falando.

- Aqui quem fala é a Louise do Café Noturno, o que

deseja?

- Eu gostaria de falar com o dono do estabelecimento.

- Pois não, como se chama?

- Dagmar.

Louise desligou apavorada. “Meu Deus, Dagmar é o nome de

minha mãe! Será que ela me descobriu? Será que algo aconteceu

lá em casa?” e o sentimento de culpa começou a inundar seu

coração. Resolveu então tomar uma decisão de imediato. Subiu

correndo as escadas e quando chegou ao seu mísero quarto, pôs

tudo o que lhe pertencia em uma mala e partiu.

Desta vez, Louise ia ter que falsificar o nome outra vez,

iria então para onde? Passou pela frente de um muro muito alto

onde havia uma placa enferrujada: “Floresta de Eucalipto”.

- É a minha chance! - falou um pouco alto - Ana Seabra!

Esse será meu novo nome!

DORA escalou o alto muro com dificuldade, pois não estava

habituada a fazer este tipo de coisa. Durante a escalada, ela

machucou-se muito, o que dificultou a fuga mata adentro.


Ao pular o muro, DORA pisou em uma coisa mole que logo

fugiu, por isso não deu para saber o que era. Ela só sentiu

uma picadinha no calcanhar. Então prosseguiu sua fuga.

Olhando sempre para a frente e para os lados, tinha que

arranjar um lugar para dormir antes do anoitecer, pois com o

pairar da escuridão, o risco de morte seria maior. Estava

neste ponto quando deparou com um machado à sua frente.

- Que sorte, e parece novo.

Foi então rebocando a mata, não muito densa, para abrir

um novo caminho. Caminhou durante horas incontáveis, olhando

sempre no relógio e fazendo sempre o possível e o impossível

para não perder tempo. Havia outro problema: alimentação. O

que haveria de comer? Será que naquela mata suja, mais

parecida com um pântano, haveria alguma fruta silvestre? Não,

isso era impossível. O jeito era ir à cidade fazer umas

compras. Ainda tinha algum dinheiro, aquele que ela guardara

lá no bar. Mas isso ela deixaria para fazer no outro dia, pois

já havia comido antes de sair e trouxera um sanduíche para o

caso de faltar comida. Mas não comeu. Sabia que se comesse

haveria de ficar com muita sede, e água era coisa que por ali

não havia. O jeito era esperar até o alvorecer. Pensando

assim, seguiu em frente, mas qual não foi sua surpresa. Perto

de um rochedo escorria um regato de água muito pura e cercada

de frutas silvestres, as quais ela não conhecia. Limitou-se a

comer apenas um pouco do sanduíche, afinal de contas, a fome

ainda não apertara, e mais tarde, certamente haveria de


sentir. Tomou água, bastante, e concluiu que ali seria o lugar

ideal para sua morada. Estava bem no meio da mata e sabia o

caminho até mais da metade. O que resta agora é começar a

construir sua choupana. Saiu atrás de madeira, uma árvore

forte e que aguentaria por um tempo ser a sua morada. Andou

algum tempo até encontrar alguns pés de bambu, mas quão

grandes eram! Seria inútil tentar cortar aquelas coisas

enormes, e mesmo assim, não havia nela forças suficientes.

Resolveu então apelar para o sapé e construiu uma barraquinha

em cerca de dois meses.

Durante este tempo, alimentou-se de pequenas frutas

silvestres encontradas em abundância por aquele lugar. Tinham

gosto de amora. Existiam, também, frutas parecidas com

abacate, mas de gosto horrível, que misturava com erva-

cidreira e água mudava completamente o gosto.

Na cidade nunca mais havia ido desde a última vez em que

fez as tais compras. Estava acostumando-se com a ideia de

morar para sempre naquele lugar.

- Está sendo tão bom! Ainda mais agora em que eu já estou

em pleno juízo para estabelecer normas para mim mesma. Sim,

vejo que chegou a hora de organizar minha vida. Tenho tudo,

comida, roupas, água, o que mais quero? Nada mais me falta.

Naquela manhã DORA tratou de colher alguns frutos

silvestres que, para ela eram amoras, e beber água para ter

forças suficientes para aguentar o dia cheio de trabalho que

iria ter, pois havia de ir à cidade comprar uma roupa de


dormir, por causa do frio do inverno amazônico, a cruviana. E

assim fez.
Parte III

Olhando pela janela, DORA via a chuva torrencial desabar

acabando com a seu pequeno canteiro. Sua única fonte de renda

chegava ao fim. O jeito agora seria arranjar outro meio de

sobrevivência econômica.

Ah, quem me dera estar agora enroladinha na minha colcha

de cama tão aconchegante. – Embrulhe-se bem minha filha.

E uma gota de lágrima surgiu pelo canto dos olhos e ela

gritou bem alto “Mãe!”, olhando para trás.

[. . . ]

Quando veio o sol bem amarelo DORA concluiu que já estava

na hora de refazer seu canteiro, pois a tempestade do dia

anterior não deixara rastros de que retonaria tão cedo. Olhou

para sua antiga plantação, que tristeza. Lá se foram três anos

de trabalho. Saiu então em busca de uma nova forma de vida

quando ouviu um farfalhar de folhas. O barulho foi se

aproximando mais e mais e DORA pôde ver um rosto enrugado que

logo a assustou e, mais rápido que um gato, enroscou-se num

arbusto próximo. O homem passou em direção à sua choupana,

DORA seguiu-o cautelosamente. Não tinha ideia do que aquele

ser estava para fazer, mas cria que nada de bom havia de ser.

De súbito, o homem levanta a machadinha que jazia até então na

bainha atada à sua cintura. Tendo erguido, então, o objeto

cortante, despenca-o em direção a um pequeno roedor que


julgava ser um espião ou coisa parecida. Este era o pensamento

de DORA.

Não tendo conseguido nada mais que o estraçalhamento do

pobre coelho, o homem seguiu rumo à cabana. Chegando a tal

ponto, começou a destruir o canteiro, passando em seguida para

a choupana. Nada mais restava para DORA além de observar a

cena destruidora e impiedosa do fim que levou todos estes

longos três anos de trabalho. Após tais pensamentos, começou a

refletir sobre um abrigo para a noite que rondava.

Repentinamente deu-se conta de que o mundo que a cercava era

um mundo superficial e que estava pronta para enfrentar o que

seria o seu destino. Deveria deixar-se levar pelos seus

instintos.

Parte IV

Caminhei durante muito tempo até chegar a este local o

qual não sei exatamente o que é ou onde é. Olho em torno de

mim e o que vejo é um mundo cuja existência não tem um

propósito. Não cabe no meu pensar. Aqui, tudo o que vejo é

mágico, o sol a brilhar, parece que seus raios são longos

dedos encarnados que emendam-se num corpo cujas cores são as

do arco-íris. Uma forma humana lembra Afrodite, creio ser a

Deusa da luz e do amor. Olho as águas paradas, cintilantes e

refletoras como um espelho até que, de súbito, ergue-se no ar

um tridente cuja função é espetar tubarões. Logo em seguida


sua dona aparece, com seus cabelos longos, lisos e negros.

Ondas formam-se incessantemente no lago onde mais tarde o ser

aparece e lança um olhar de puro magnetismo às coisas ao seu

redor. Estas, imobilizadas tanto pelo respeito como pelo

temor, curam-se perante a senhora do mar. Esta, finalmente

retorna para o seu lar. Maravilhada e espantada, começo a

pensar que isto tudo não passa de um sonho, mas no fundo,

alegro-me em pensar que realmente seja verdade. E assim o

espero. Pouco depois, uma imensidão de vinho derrama-se sobre

o mundo que outrora eu maravilhara e então surge um sujeito

muito gordo e visivelmente embriagado, com dois ramos de

folhagem sobre a cabeça, um em cada orelha. O tal vinha

escarrapachado em uma enorme canoa embebida em vinho,

produzido por ele mesmo e armazenado em incontáveis barris. Um

dia hão de estourar-se e inundar o mundo das fadas.

- Quão desajeitado és, ó Baco! Não vês que estás a tornar

líquido o que dantes era seco e com vida? – soou uma vozinha

desconhecida e com eco.

- Começo a desconfiar que o mundo inteiro voltou-se

contra mim. Serei eu assim tão mau? – bradou ele.

O dono da vozinha apareceu brilhantemente:

- Cuida de enxergarte, deus da bebedeira! O mundo sadio

não precisa destas luxúrias que para alguns, tais como tu,

trazem ou proporcionam prazer. Mera luxúria.

- Quem és, inútil ser? Porque estás a criticar-me? Anda,

responde-me.
- Sou uma fada e se cá estou a dar-te alguns puxões de

orelhas, bem podes crer que assim é porque, de alguma forma, o

mereces. E se ando a criticar-te de tal forma, é simplesmente

porque assim me foi mandado e assim será obedecido.

_ Onde já se viu semelhante abuso? Esse minúsculo

serzinho ter como cabimento, a missão de vir até cá só para

dizer coisas chocantes para mim, um ilustre deus, o deus do

vinho. Viva, viva o vinho!

- Por isso eu acho que o mundo está perdido, e não

adianta perder meu tempo discutindo bobagens como esta e que

certamente nenhum resultado trará.

DORA olhava fascinada. Estaria ela devaneando? Beliscava-

se para ver. Não, estava realmente acordada. Estava em meio a

tal eslumbramento quando Hércules ou Héracles apareceu dando

murros e bofetões em tudo o que via. DORA tratou-se de alojar-

se no encosto de uma rocha.

Hércules, possuidor de tamanha força com a qual destruíra

a Hidra de Lerna esmagando suas sete cabeças e atando-lhes

fogo para que estas não ressuscitassem, e mais onze trabalhos

impossíveis impostos pela malvada Juno, esposa de Zeus. Ela

desprezava Hércules por este ser filho de Zeus com uma mortal.

Desde então passou a odiá-lo e impôs-lhe os doze trabalhos.

Hércules, passando como um touro enfurecido por entre as

árvores afogadas no rio de vinho, andava em busca do causador

de tal desgraça, a de embebedar todo e qualquer ser vivo ou


bruto de mo do que estes ficavam imobilizados. DORA estava

sóbria, talvez fosse a única naquele lugar.

[. . . ]

De sobressalto viu-se cercada por crianças brincando de

roda e cantando uma melodia triste que fê-la lembrar de tempos

longínquos quanto sua mãe embalava-a em um clima tipicamente

amazônico. Coisa que jamais desfrutaria novamente. Não se

importando mais com o que fazia ou dizia, descobriu-se

brincando ciranda com as crianças. Sim, uma bonita criancinha

com longos cachos escuros e esvoaçantes que se desprendiam de

suas tranças e caíam—lhe pesadamente sobe o colo, um pouco

abaixo da cintura, e seus pais a observavam atenciosamente e

preocupadamente, pois a filha poderia, num descuido, cair e

machucar-se.

Mas, por entre os cachos e tranças escuros que pulavam

com o vento, mistérios circundavam o ar puro e simples de uma

criança que havia muito o que chorar no futuro.

Parte V

Passados dois anos depois daquela experiência, DORA via-

se à beira da desgraça. Sua alma clamava por outra e seu corpo

exigia energia. Vagando pelas estradas desconhecidas e

traiçoeiras, por vezes, da vida, aquela criatura já não sabia


mais o que era ser um ser humano. Não imaginava quanto tempo

andara vagando sem ter o que comer por aí.

E foi assim que chegando a uma aldeia próxima, recebeu

hospitalidade de uma família de camponeses piedosa, que teve

dó daquela criatura.

DORA lembra-se apenas que estivera com a família durante

alguns dias e depois partira, sem rumo, sem razão.

Andou muitas léguas para chegar à cidade de Tamba. Lugar

onde conheceu um rico industrial. Já com vinte e dois anos.

À noite o frio era desconcertante e afundava-se até os

ossos. Cambaleante, DORA perambulava suja e faminta por uma

rua com o solo de paralelepípedo. Estando muito cansada,

sentou-se e frente à porta de uma mansão. Minutos depois:

- O que pensas que és para iludir-te de tal maneira a

pensares na possibilidade de descansares teus ímpios ossos

preguiçosos sobre a ilustre calçada da moradia de meu patrão,

ó pobre infeliz?

- O fato de eu ser de carne e osso como o teu ilustre

patrão.

- Como ousas falar assim comigo sendo tu o que és, uma

qualquer?

- Da mesma maneira com que ousas insultar de forma tão

cruel depois de eu ter comido o pão que o diabo amassou por

quase uma década.


DORA retrucou de tal forma que fez o mordomo empalidecer

de dó e fazê-la hospedar-se por um determinado tempo na mansão

do seu patrão.

- Tem a bondade de entrar e desculpar-me as tão

insensíveis e cruéis palavras que eu proferi.

- Obrigada.

DORA foi levada a um cômodo espaçoso, mas sem móveis,

possuindo apenas uma cama. Acomodou-se por lá após ter se

abastecido, mas logo tornou a se levantar, pois o sono

resolvera se atrasar naquela noite.

_ Olho as nuvens, as estrelas, a lua, lembro-me de tempos

passados infelizes, tão distantes, mas ao mesmo tempo, tão

presentes. Em minha mente vagueiam recordações doloridas da

infância, tão cruel e impiedosa.

Peguei minhas coisas e saí. Mas logo adiante fui detida

pelo mordomo, seu patrão queria falar comigo.

Eu disse-lhe que não tinha o que conversar, mas, após sua

insistência, cedi.

O mordomo levou-me para um grande salão onde eu encontrei

um homem de cabelos grisalhos. Os olhos verdes eu logo

reconheci. Ao seu lado uma mulher gorda e corada jazia

sentada. Eu também a reconheci.

Corri para abraça-los e a alegria foi total.

- Bom dia minha filha. – responderam ambos ao mesmo

tempo, como um vento frio e sólido.


- Mamãe, papai, o que há? Eu estou aqui, corram em minha

direção. – mas não o fizeram. – Tudo bem, eu vou até aí!

E saiu felicíssima com a velocidade da luz e a pensar que

seus pais estavam com ela a brincar.

No entanto, à medida que corria, mais eles se afastavam.

Então DORA desconfiou - O que será? – matutava. Súbito, a

garota cai em um alçapão não percebido por ela enquanto

caminhava. Nem teve tempo de demorar-se em seu grito de susto,

pois uma mão tapou-lhe a boca enquanto outras vendavam-lhe os

olhos. DORA perdeu-se na escuridão do desmaio.

Em sua mente via-se cantarolando com os passarinhos em um

campo florido e sagrado. Sim, sagrado. Não sabia por que o

era, mas sentia e disso não duvidava nem um pouco.

Estava a entreter-se com as coloridas borboletas quando

percebeu que olhos ocultos nas sombras do nada a observavam e

analisavam cada movimento seu, minuciosamente. Não sabia por

que, apenas sentia.

O medo começou a dominar-lhe a alma. Pareceu-lhe que o

congelamento de sua espinha causaria esfriamento até o rio

próximo.

Não conseguindo mais controlar o medo gerado pela sua

imaginação e alheia às coisas inexplicáveis, sentiu-se

esvanecer-se no êxtase do sono branco, profundo e sereno.

No momento em que fechou os olhos do mundo do sono, abriu

os mesmos do mundo real, agora dispostos a encarar a realidade

de frente e após vencer a batalha, vangloriar-se e rebolar-se


de satisfação, pois teria derrubado mais uma barreira de seu

percurso.

Pouco a pouco foi voltando a si. Descobriu-se amarrada a

uma cadeira, sem poder falar, apenas podia ver e ouvir os dois

entes queridos que abandonara quando ainda adolescente e que

agora buscavam justiça pela judiação cometida pela filha.

Amarrada a um fundo branco sem dobras.

Pensara ter aberto a porta da esperança e agora lhe

restava a morte.

- Querias ser feliz? Comigo não o serias?

DORA com olhos arregalados estava gelada.

A mulher agora estranha para a garota deslizava a faca

por entre os dedos e um fio de sangue correu solto em meio aos

dedos. Caminhava lentamente em sua direção. O pavor de DORA

aumentava como a velocidade da luz e a sede de Hércules.

Os passos da mulher eram como trovoadas no meio do

branco. Cada passo era um raio que lhe atingia queimando-lhe

de corpo e alma. Até que os passos cessaram e um golpe rápido

e certeiro atravessou a carne vermelha que agora esguichava

sangue a rodo, sem dó nem piedade. Um corpo morto tombou ao

chão.

Na escuridão da noite que chegava, um vulto ergue-se no

ar e começa a girar esplendidamente em torno do corpo ensacado

e meio apodrecido do mordomo morto, enganado pela mulher.

Enquanto isso, uma criatura soluçava pela rua, vagava sem

rumo, talvez buscasse o infinito.


Por onde passava, um vento agoniante congelava os seres

que por ele aproximavam-se. Azaradamente.

E a cena lhe veio à memória. O mordomo com a bandeja na

mão; a faca jazida na bandeja; a mulher sorrindo com a faca em

punho; a cobra preparada para dar o golpe; a faca pairando

sobre o pescoço carnudo do mordomo; a faca cortando a carne do

mordomo; o cheiro do sangue e da morte; a corda desatada pela

faca; o grito de agonia e pavor; a fuga.

Uma lágrima intrometida esgueirou-se da pálpebra inchada

e roçou por sobre o rosto manchado pelo sangue inocente e

marcado pela morte. O desejo de esvair-se em pó aumentava. A

barriga gritava e ansiava pelo alimento, mas DORA não parecia

perceber. A ânsia de ir ao encontro do ponto final do seu

sofrimento era um crescente. Cada batida de seu coração era

tal como a bala de um canhão atravessando suas entranhas e

espatifando seus miolos. DORA pressentia seu fim e isso a

encorajava, animava-a a continuar sua luta que só tinha um

objetivo: a busca do fim e do renascimento.

Vagava por um lugar sombrio e sentia que estava prestes a

desmaiar quando, por fim, chegou às margens de um rio. Não

sabia nem queria saber qual era, prosseguiu sua rota em linha

reta. Quando seus pés pousaram sobre a água, a dor tomou conta

de seu ser e a culpa, a saudade também. Mas ela continuou, foi

em busca de sua ânsia. Entrava mar adentro, ousara profanar as

leis da vida, penetrara nas profundezas do infinito, muito


além do inexplicável, muito além da morte. DORA sumiu nas

brumas do mar, no além do além.

Parte VI

Em um jardim florido com alvas flores jamais vistas por

olhos terrestres um vulto cultuava um laço branco manchado de

vermelho.

Dançava qual uma ninfa por entre os arvoredos que

suspiravam mediante tais espirais de brochura.

Em sua face, uma expressão de agonia e medo jazia

estampada, rolavam grossas gotas de lágrimas vindas do mar da

vida que corre insaciável por entre as entranhas do ser.

Nada colorido estava agora. O jardim tornou-se branco e

as flores, murchas. Os arvoredos, sem vida. O mundo das fadas

transformava-se em maquete branca de papel. Mas, com o parar

pesante da vida, um som melodioso proclamou-se independente.

Foi o corar da face de uma criança, a vida ressurgiu e as

cores voltavam à maquete de papel.

As flores pouco a pouco foram tomando cor, bracinhos se

espreguiçavam aos primeiros raios e luz que apareciam

intrometidos.

A vida voltou ao jardim e tudo era festa. A dançarina

retornou seu canto e sua dança e o sangue circulava em torno

do mundo, fazendo a vida vibrar. A paz inundou a mente outrora

conturbada pelo sofrimento. E então um clarão preencheu o


vazio, e de uma estrada representada pelas sete cores do arco-

íris viu-se escorregar dum brilho uma menina cujos laços de

cabelo eram do mais puro branco.

Em seu vestido que parecia ser o mar viam-se ondas,

peixes coloridos nadando no azul nítido do mar da vida, o

reflexo do amor parecia transbordar daquela face. DORA.

Os dedos delicados procuravam algo em uma estrela que

brilhava qual o sol de onde saiu uma escultura.

Aqueles que se apaixonaram pelo brilhar de uma estrela,

Pela lágrima das nuvens

Pelo suor do sol

Pela sombra que abriga

Pela brisa que foge

São as pessoas destinadas a viver sob a eterna proteção

das cores.

Tendo lido estas palavras, a menina foi-se. O arco-íris a

seguia qual o rabo de um cometa e o clarão de luz formou-se um

aveludado toque dourado em torno da cauda.

Assim termina a história de uma menina que viveu para a

fantasia e morreu por ela.

Coda
A volta para a casa não mais passava de um sonho,

concretizava-se agora. O caminho a puxara qual escada rolante.

As mágoas, lembranças cruéis, o próprio passado; não

terão mais lugar em sua vida.

Ao longe avistou a casa grande, com grandes olhos que

pareciam-lhe sorrir de satisfação. Não pôde conter a emoção e

uma onde de culpa cerrou-lhe a vista. Correu para a porta e

bateu desesperadamente, como se quisesse derrubá-la. Não podia

ser possível!

Rondou a casa toda e nem sinal de ninguém. Sentou-se,

pois, à beira do batente e pôs-se a chorar. Até que uma

senhora de feição bondosa e conhecida abriu a porta e fê-la

olhar para trás. Um grande clarão branco e amarelo lhe

esperava.
Recados de vida e de morte

A Rua da Marinha acalentava esplendorosa em sua margem

esquerda os grandes braços das imensas árvores que sombreavam

as cadeiras, mesas e pequenos jardins plantados pelos

moradores dos conjuntos da margem direita. O Marambaia/ Ver-o-

peso seguia rápido em solavancos pelas lombadas. Os conjuntos

tão parecidos passavam um por um até chegar à esquina da rua

E, um pouco antes do Mercado Universal. O beco úmido curto

findava numa curva de barracos de madeira que espalhavam

cheiro de carne cozida, caranguejo e ondeavam o ar com a

fumaça dos fogareiros ao pé da porta. A casa 61-B me aguardava

com seu breve batente de madeira escura e uma mesa ornada com

crochê de bico, logo trocado por uma toalha quadrada, com os

pratos duralex. O jirau limpo de louças deixava entrever pela

lâmina de água que brilhava na madeira que há pouco tempo fora

usado. As panelas areadíssimas estavam emborcadas. Na

cristaleira artesanalmente construída, os sacos de arroz,

feijão, café, todos em fila, estavam com suas beiradas

cuidadosamente amarradinhas em nó, cobertas com um paninho de

crochê combinado com o caminho de mesa, num asseio caprichado,

que nada devia à ausência dos porta-mantimentos. As gravações

e as fotografias dos parentes do Alto Rio Negro foram

devoradas por olhares e ouvidos ardentes, ignorantes daqueles


parentes que falavam outras línguas, cujas músicas em

nheengatú fizeram lacrimejar os olhos de seu Matutino.

- O pai falava e cantava em nheengatú! Quem eram esses

primos Warekena, Desana?

A surpresa imediata da família revelava o silêncio

duramente sepultado de seu Matutino sobre sua origem e sua

cultura. Depois soube que ele volvera ao Rio Negro após

décadas, por causa das fotografias e das gravações, para rever

os parentes, para conhecer os que não conhecia e para levar as

fotografias e as gravações. Mal ele sabia que lá estavam as

mesmas fotografias e as mesmas gravações, num rastro deixado

por mim.

Uma década depois dona Mirtes já não falava mais

português. Uma ligação para Belém:

- Precisamos avisar o tio Matutino que vovó está penando.

Lá íamos eu, papai e Maxico, no Marambaia/ver-o-peso,

atrás da rua E, casa 61-B. O beco úmido continuava finito, mas

a casa 61-B fora substituída por uma vila de quitinetes de

alvenaria, escuras, trancafiadas com grade e cadeado. Um guia

nos levou à nova morada de seu Matutino. A nova casa de

alvenaria era baixa, gradeada, escura e quente, e em nada

lembrava o acolhimento da casinha de madeira da rua E. Não

passamos do pátio. Lá mesmo foi dada a notícia de dona Mirtes

ao que seu Matutino respondeu:

- Sonhei com mamãe, e ela morria.


Dona Mirtes já nem falava mais português, despediu-se de

mim em nheengatú, tocando meu rosto, apertando minha mão.

Depois só tive a notícia de morte de dona Mirtes, antes,

porém, havia caminhado até a Gleba 1, Quadra H 4, casa 60, e

dito a seu Matutino que sua mãe estava penando. Maxico não

quis voltar conosco, resolveu visitar o Lind. Um eremita que

apenas falava “Bom dia, tudo bem?” e “Até logo”. Uma década

depois aquela manhã poeirenta do final da linha do

Marambaia/Ver-o-peso estava nítida na memória, e a figura de

Maxico caminhando atrás sumia no marrom da piçarra da rua. Não

podia imaginar que os sábados seguiriam tão vazios daquele

caminhar.

Antonio fazia-se seminarista no Seminário Dom Bosco e

queria conhecer o tio. Sua fala mansa e seu largo sorriso nos

fizeram caminhar outra vez à Nova Marambaia, na Gleba 1,

Quadra H 4, casa 60. Desta vez levei o livro e autografei. E

fotografei. E conversei. E prometi. Telefonamos para o Rio

Negro e lágrimas e sorrisos se entremeavam em nheengatú, na

conversa de seu Matutino e sua irmã.

Tantos sábados se passaram e o caminho à casa do Lind

acontecia com o “Bom dia, tudo bem?” e “Até mais”. Na cozinha

era que as notícias se refrescavam na polifonia entre ele e a

esposa do eremita. Maxico tudo ouvia e nada esquecia, assim

mesmo dizia. Pouco depois, já no bairro do Marco, refrescava-

se com outras conversas, penteava os cabelos lisos e brancos

em frente ao espelho, olhava a pele “muito boa, sempre foi


boa”. Ninguém na casa imaginava que tantos sábados se

seguiriam sem o olhar no espelho e sem o pequeno pente de

plástico assentado no balcão.

– Queres café?

– Me dá.

- Queres levar estas bananas?

- Me dá.

Não sabia que anos depois, ao rodear a Nova Marambaia de

taxi, eu ainda seguiria aquelas pegadas, caminhando pela Gleba

1, Quadra H 4, casa 60, não acharia seu Matutino e sua

família, e seguiria pela rua E, casa 61-B, no encalço de seus

vizinhos e dos cheiros de carne cozida e caranguejo, e da

umidade da casa de madeira. Mas não acharia seu Matutino,

acharia os passos do Maxico, acharia a piçarra do chão, agora

coberta de asfalto, e o Marambaia/Ver-o-peso trafegando

tresloucado pela Rua da Marinha. Mas os braços das árvores

enormes ainda estavam lá, apontando para as cadeiras e as

mesas com cerveja, sombreando as conversas dos moradores dos

conjuntos iguais, me fazendo lembrar de todos os passos e

buscas, e da poeira que agora está escondida embaixo de

grandes árvores dos bosques no meio das quadras. Mas seu

Matutino também caminhou, agora está morando depois do canal,

depois da feira, ainda na rota do Marambaia/Ver-o-peso.

Eu telefonei para o número que o vizinho deu. E prometi

voltar.
No tempo da Festa de Santo Alberto

Cheguei por volta das 10:30hs quase 11:00hs em São

Gabriel da Cachoeira. Ainda no aeroporto de Manaus conheci um

senhor que trabalhava no SIVAM, ele indicou-me o hotel

“Adana”. Pela conversa, percebi que ele deve ter parentes “da

região”, mas ele nem mencionou nada além do fato de seus pais

serem de São Gabriel e terem ido para Manaus. Depois de termos

pego as bagagens ficamos esperando o ônibus-cortesia da Rico

fomos para o hotel. Lá nos desvencilhamos.

O quarto era simples, mas bastante agradável e limpo.

Assim que cheguei organizei as coisas, tomei um banho e fiz as

ligações todas. Almocei no tradicional “bar e restaurante

Inês”, família antiga da cidade. Carmem chegou às 15h00 e aí

começaram as descobertas.

O céu cinza escuro com fortes ventos ameaçava desabar

sobre a terra. Um frio e um assobio acompanhavam o vento que

arrastava as folhas, papeis e plásticos que houvesse na rua.

Um rasgo quebrado e forte estrondou no cinza e caiu a

machadinha de São João. Assim teve início o tempo da Festa de

Santo Alberto.

De casa em casa o tamborino pedia licença, colorindo

todas as dimensões com suas fitas, levando alegria e bênçãos,

num portal para o mundo dos santos que se abre dentro das
casas. De casa em casa o carrinho se enchia de bananas e

abacaxis de vez, achocolatado, biscoitos e beijus. O caminho

do santo se fazia em português e nheengatú, em cantos

centenários que há tempos povoam a Amazônia.

À noite, numa polifonia em latim jônico, o rezador errou

a ladainha no meio e Vieira conseguiu levar para o rumo certo.

Logo após a ladainha, o rezador sentiu uma dor no peito e foi

direto para o hospital. Soubemos depois que sua filha morrera

afogada, e que ele havia desenvolvido câncer. Foi castigo do

santo. Soubemos também de um homem cuja esposa havia convidado

para a festa de Santo Alberto. O marido ficou caçoando do

santo: “Santo Alberto kiré! Santo Alberto kiré!” que quer

dizer em língua geral “Santo Alberto, coitado!”. Depois, o

marido resolveu ir para a festa soltar foguetes e teve quatro

dedos da mão decepados por causa disso. Foi castigo do santo.

Para evitar esses augúrios, beijava-se a fita do santo à

meia noite e em outros horários. Certa vez um homem estava

dormindo em sua casa e levantou-se para olhar a festa, quando

viu uma mulher bonita e teve vontade de dançar com ela. A

mulher era muito cabeluda, o rosto todo coberto de cabelos. O

homem a tirou para dançar e quando passou a mão pela cintura

dela sentiu só os ossos da mulher. Afastou-lhe os cabelos do

rosto e viu somente ossos. Era um fantasma.

Todas estas histórias, Vieira me contou na Serra da Boa

Esperança, contornando os 14 passos da paixão de Cristo. Em


seu topo, em cima das pedras gigantes, dois altares, um com

Nossa Senhora e outro onde havia uma cruz, que pessoas de

outra fé quebraram. Essas duas pedras fazem parte da história

dos índios gigantes que disputavam para ver quem era mais

forte e pelejaram para ver quem carregava a pedra mais pesada.

Cada um colocou a sua pedra num lugar e eu as vi.

No bairro da Praia há uma casinha na beira da água, sob a

qual uma cobra dormia. Os pescadores disseram que ela estava

se mexendo e querendo sair, por isso a separação entre o local

da casa e a pedra no meio do rio estava virando um canal.

Nos dias em que estive lá, os pescadores viram discos

voadores, pra eles em forma de cuia, que apareceram como

rastros luminosos. Eles contaram que estavam pescando num

remanso perto da cachoeira Buburi quando se alumiou tudo,

tanto que deu para ver as pedras da cachoeira. Outro dia um

irmão de Vieira foi com o filho lá para um rio próximo pescar.

Deixou o menino num tapiri com uma espingarda para caso visse

algum animal e foi pescar num furo. Quando estava pescando viu

um clarão tipo raio, sem barulho, então não poderia ser

espingarda. Voltando, viu que o menino não estava mais lá, só

a arma. Procurou por sangue e não achou. Percebeu então que

não havia sido animal. Resolveu voltar e perguntar ao pajé uma

explicação. O pajé disse que um encantado levou o menino, o

que não é comum, pois eles preferem as meninas. Levou para a


Cidade dos Encantados, na frente do bairro da Praia, onde não

há o bem nem o mal.

Segundo o pajé, houve um tempo em que ocorreram

acontecimentos inexplicáveis como os tucanos e araras que

gritavam o dia inteiro a comerem as folhas do açaizeiro.

Trovões e raios o tempo todo. Até que um benzedor foi lá e

benzeu e tudo parou. Durante o período dos acontecimentos

estranhos, as pessoas foram embora do bairro, abandonando suas

casas, e retornando apenas para as festas de santo.

[. . . ]

A roça era organizada segundo uma estrutura de plantio

aparentemente desalinhada, mas que deve ter uma lógica que não

consegui identificar. Chegando, via-se logo o poço de cultivo

de peixes que foi um igarapé, atualmente tampado e inundado.

Logo em seguida havia a casa de farinha com o uso do tipiti.

Assim que cheguei tomei logo caxiri de pupunha. Todos foram

procurando o que fazer de modo que ninguém ficou parado, até

eu fui ajudar a puxar o açaí. Suely fez galo-acanga com cubiú,

seu Jacinto temperou o frango e Suely assou enquanto Carmem e

Vieira batiam o açaí. Dois curumins do Areal que só falavam

língua geral vieram subir nos pés de açaí. Como pagamento pelo

favor, levaram uma garrafa grande de açaí e comeram frango.

Enquanto o frango assava, seu Jacinto contou a história

da cobra grande (Buiadú): uma mulher, procurando isca para o


peixe, achou uma minhoca dourada, mas não usou, jogou no rio.

Tempos depois, esta minhoca foi crescendo junto com o lago e

ambos ficaram imensos. Isso era lá pelos arredores de Manaus.

Um dia, um vigia que vigiava o cais estava de plantão à noite

quando lhe surgiu um homem bonito, branco e loiro que lhe

falou que era a cobra e que queria ser gente. Para que isso

acontecesse, o vigia deveria ser corajoso que, na noite

seguinte, ele ouviria um trovão, o rio lhe subiria até o

joelho e a cobra lhe apareceria. No momento em que a cobra

aparecesse, o vigia deveria jogar um ouro bem no meio da testa

da cobra e ela viraria gente para sempre. No entanto, não

aconteceu assim, o vigia teve medo e mais uma vez o homem-

cobra lhe apareceu pedindo que tivesse coragem. Na noite

seguinte, o vigia tomou cachaça e teve coragem, acertou o ovo

bem no olho da cobra, que logo se transformou em gente. O

prêmio do vigia foi ouro, e ficou muito rico, um dos homens

mais rico de Manaus. O homem-cobra, agora só homem, foi para

Belém onde se tornou o homem mais rico da cidade e hoje está

no Rio de Janeiro. Pode-se procurar o homem mais rico da

cidade que ele será o cobra.

As crianças já sabiam a história de cabeça, mas adoravam

ouvir. Almoçamos o frango com arroz, beiju e suco de açaí.

Alguns bebiam o chibé. Depois, lavamos o a louça e viemos

embora debaixo de sol de lascar. Durante o caminho, ouvimos as

batidas do tamborino ao longe, contornando a Serra, no bairro


da Praia. Chegamos à noitinha e todos já estavam tomados banho

para o início da ladainha. Ainda se pôde ouvir um ronco surdo

ao lado da Capela de Santo Antônio, sob o latim jônico do

Kyrie Eleyson. No calor das velas, miserere nobis respondia

aos nomes de Santa Maria Virginus. Na tapera ao lado, o

achocolatado ralo nas grandes panelas já fervia e os beijús

estavam nas bacias. As crianças espiavam comprido, já

pressentindo a doçura não usual das iguarias de Santo Alberto.

Primeiro as crianças, depois os festeiros, os mordomos, e

todos os convidados. Na roda do Correrê não fica ninguém sem

comer ou sem beber, ao dançar o Macaquinho e a Panan-Panan.

Que dolorido ver os mascarados saindo da escuridão da noite,

procurando os curumins, consumidos na sua saga de sete anos de

agonia, sob a máscara dos encantados, a assustar curumins e

cunhantãs nas Festas de Santo no Rio Negro. Que ronco surdo

fora aquele? Que estalo que se ouvira? Onde estaria o curumim?

Rapidamente o farfalhar das mulheres em busca do rapazote de

quinze anos. Lá dentro do Clube dançavam o “Macaquinho”:

Macaquinho no galho, Pirauaua....

No alvoroço das barraquinhas, rodeando o mastro erguido

de frutas mais ou menos verdes, por entre os bêbados

mascarados, por entre as brechas dos quartos de madeiras das

pequenas habitações, Juní jazia pendurado com uma corda no

pescoço, desavisado da vida, descansado dos encantados,

procurava Santo Alberto, procurava Buiudú, procurava as


iluminuras das bandeirinhas recortadas do Clube, e encontrara

o branco celeste da morada à frente da cidade. Por debaixo das

águas negras, boiando, à noite, enxergava o castelo de Santo

Aberto navegando no Rio Negro, de miriti, com pequenas velas

em copinhos de plástico em cada cantinho da pequena canoa, ao

longe se ouvia as músicas do castelo, à grande emoção,

predizendo um ano melhor. Juní procurava a cidade dos botos,

na frente de São Gabriel da Cachoeira, onde não havia o bem

nem o mal. De longe, no infinito do céu negro do rio, via

pontos luz do castelo como pequenos vaga-lumes que piscavam,

piscavam, cada vez mais fraco, dentro do infinito negro do

rio.
Machadinha de São Pedro

São João da Ponta. Uma pequena cidade na região do

salgado à beira do Rio Mocajuba. A maré começa a encher de

manhã mais ou menos às oito horas e a vazar à tarde, por volta

das quatorze horas. Durante esse período, a vazante, o rio é

extremamente perigoso, segundo uma mocinha de lá, pois a maré

suga a pessoa para si e torna-se difícil desvencilhar-se dela.

Nesta tarde choveu bastante tendo o nível de periculosidade

aumentado muito, pois a chuva é um atrativo para cobras, ainda

segundo esta informantezinha. A menina de 14 anos já já havia

andado e morado “até no Rio de Janeiro”, com aquela pele

morena, cabelos lisos e olhos gateados. Poucas ruas circundam

a cidade, sendo a principal na frente da Igreja Matriz,

calçada com pedras em formato de losango. As casas, em sua

maioria, são de madeira ou barro batido, algumas poucas de

alvenaria. Os habitantes vivem da pesca, alguns trabalham na

prefeitura, tendo grande prestígio por este fato, outros são

militares e uns poucos são comerciantes. Grande parte deles

possui lotes de terra destinados à roça no “centro”, local

afastado duas horas da cidade onde as pessoas cultivam

espécimes para subsistência ou para a venda. Na esquina em

frente ao “Porto dos Milagres” (local onde vende peixe) existe

uma construção denominada “Banda dr. Dionísio Bentes”, numa


rua perpendicular à rua da Matriz. Bem na frente da igreja,

acha-se a beira do rio e o trapiche, de onde as crianças,

rapazes e moçoilas costumam se jogar perigosamente. Este

trapiche foi recentemente construído, não faz nem um ano.

Assim que chegamos fomos procurar por peixe. Fomos até o

“Porto dos Milagres”, pequena descida cimentada onde os barcos

aportam para a venda do peie e mariscos em geral. Quando

chegamos já quase não havia peixe, pois era um pouco tarde,

passava das dez, horário de regresso dos pescadores que moram

em outras regiões do salgado. Como não houvesse lugar para

assar o peixe, nem bares, nem restaurantes que possibilitassem

o trato do peixe, um senhor chamado Ninito nos ofereceu sua

casa-boteco para cuidar de tudo. Ele foi na frente e, depois,

quando lá chegamos, ele tratou e temperou apenas com sal o

bragalhão, e assou. A carne ficou um pouco dura porque são

dois os tipos de bragalhão, um com carne mais mole e outro,

mais dura. Seu Ninito mora sozinho com a esposa, dona Raimunda

e fomos descobrir depois que eles conhecem muitas pessoas lá

do 21, lugar de nossa família, e que dona Raimunda, inclusive,

já morou lá quando solteira. Os filhos do casal moram lá por

perto em terrenos que foram de seu Ninito e outros que

compraram. Alguns têm roça e outros não. Seu Ninito anda muito

doente, mas se trata em hospitais, ele me disse que a maioria

da população se trata em hospitais público, rejeitando as

práticas medicinais tradicionais. Ainda existem pessoas que

conhecem as práticas tradicionais, mas não tem mais quem


acredite. Falou, também, que sua mãe mantinha um jirau somente

com ervas medicinais, mas que atualmente são poucos os que o

fazem. Almoçamos lá.

Na casa de seu Ninito conheci o mestre de música e

regente da banda, seu Raul Barreto. Ele começou seus estudos

de música numa banda anterior a esta de hoje, regida por seu

pai, e que formou muitas pessoas, tendo ele somente regressado

á terra natal. Seu Barreto foi morar em Belém para servir nas

forças armadas e lá ficou por trinta anos tendo contribuído

para a vida musical da cidade. Conheceu os antigos mestres de

música clarinetistas, tocou em diversas bandas civis e de

igrejas. Conhece bandas de várias igrejas da Assembleia de

Deus em Belém. Disse que tinha o sonho de voltar para São João

da Ponta e dar continuidade ao trabalho de seu pai, que a

banda já havia morrido, que os instrumentos haviam sido

roubados ou destruídos. Depois de reformado, voltou realmente

para a sua cidade natal e fundou a atual banda de música,

tendo recebido apoio de uma professora de música de Belém, com

a doação do instrumental da banda, sax, piston, bombardino,

trompetes, etc. Sua banda atua nas principais manifestações da

cidade, seja civil ou religiosa. Agora nos dias 28, 29 e 30

haverá um encontro de bandas do salgado em Vigia, organizado

por um maestro de lá, e a banda de seu Barreto irá participar.

Atualmente é secretário administrativo da prefeitura. Além

disso tudo, seu Barreto ainda organiza cordões de pássaros e

bois-bumbás para o Círio e Festejos Juninos. No dia 16 é o


Círio de São João da Ponta que dura até o dia 24 de junho, dia

de São João Batista, padroeiro da cidade. No dia 24 acontece a

missa e, depois, os folguedos populares. Seu Barreto, este ano

vai tirar o Cordão de Caititu. Ele compõe a música e organiza

os grupos, o enredo, o teatro como um todo. Os grupos são

uniformizados segundo ele, patrocinados pela prefeitura.

Depois da missa, saem de casa em casa levando o cordão e são

vários os grupos. Apresentam-se, também, na praça. Estes

folguedos podem acontecer fora de época também.

Mais peixe havia chegado e fomos comprar, terminamos

comprando doze quilos de peixe. Havia uma peixa “banhada” como

disse seu Ninito. Ela carregava na boca os peixinhos ainda

grudados nas bolsas amarelas, eles ficam na boca da mãe

durante um período de jejum dela e se alimentam da carne das

guelras da mãe, ficando estas “que nem dente de pente

queimado”.

Depois desta conversa com seu Barreto fomos passear e

terminamos encontrando uma amiga do meu primo Luque. A mãe

desta senhora mora na rua da Igreja Matriz, no final do lado

esquerdo. É a última casa. Lá conhecemos a mãe da senhora

amiga do Luque e duas irmãs dela, uma das quais estava com um

filho pequeno. A casa era de alvenaria, bem arrumada, com

televisão, com, ao estilo das casas de cidades como Belém e

Castanhal. Uma das irmãs da anfitriã carregava um bebê, seu

filho, que estava se restabelecendo de um quebranto. O menino

ficava mole, com diarreia, só dormia, não comia. Mandaram


benzer e ele ficou bom. Ela contou de casos que vira na Unimed

de Belém, de crianças com quebranto cujos pais, ignorantes do

verdadeiro diagnóstico, ficavam a vagar pelo hospital sem

conseguir bons resultados para o filho. Esta senhora, irmã da

anfitriã, chegou num carro novo, Marea da FIAT, de uma busca

por um consertador de televisão (a TV havia queimado com o

raio do temporal mencionado). Chegou avisando os desastres que

haviam sido causados pelo raio: uma senhora havia ficado com a

perna preta, outra havia batido o braço em consequência da

força do raio, um “Machadinho de São Pedro” havia caído no rio

e diversos aparelhos em outras casas haviam queimados. A mãe

da moça mostrou-nos um “machadinho” que haviam trazido para a

casa dela, uma pedra em formato oval, um pouco compridinha,

lisa por causa da maré e de cor amarronzada. Algumas são em

forma de machado de fato.

Depois da visita, a chuva voltou a cair, causando

pequenas quedas d’água nas valas da cidade. Ficamos no

trapiche até a metade da chuva, depois entramos no carro por

causa do frio. O bar ao lado havia aberto e o som estava no

volume máximo, quase insuportável, tocando os bregas e zucks

do momento, estimulando nossa coleguinha a deslizar na lama

que se formava no trapiche, por causa da chuva. Falei que seus

cabelos eram bonitos e ela pediu-me para não botar quebranto,

pois, quando pequena, possuía cabelos cacheados até que uma

pessoa os elogiou botando quebranto, daí em diante seus

cabelos começaram a cair, ficando ela careca, quando nasceram


vieram lisos, assim como estão agora. Disse a ela que não se

preocupasse, pois eu não tinha inveja dos seus cabelos.

Depois da chuva demos uma volta de carro para ver a casa

em formato de navio. Conta-se que o dono estava em Brasília

quando morreu e foi levado para São João da Ponta para ser

enterrado no cemitério de lá, deixando a casa trancada, em

forma de navio.

Quase não se divisava a estrada para o 21 em meio às

brumas brancas da chuva torrencial no inverno amazônico. Assim

mesmo íamos pensando no deslizar da coleguinha e nas

machadinhas de São Pedro. Nos cordões e bumbás, bandas de

música e clarinetistas de São João da Ponta. Músicas, bichos e

santos que permanecem soando e pairando nas grandes águas

invernais destas paragens.


Função ao cair da noite

Sob o vento e a sombra da tarde as amplas folhagens

sobrevoavam a barraca, num barulhinho fino e constante. Aqui e

ali redemoinhos de areia fina branca e cinza rodopiavam

próximo ao alpendre, onde Laila corria lépida e escorregadia.

Escondida em lugar inimaginável no amplo terreiro, a jabota

Neusa se reduzia a uma presença invisível, mas sabida e

sentida naquele mormaço de fim de tarde. Do fundo do quintal

se sentia o cheiro do café e era possível divisar as sombras

ao redor da mesa comprida de dez cadeiras. O calor turvava as

sombras num filtro escaldante que denunciava o cheiro do pão

enroladinho que crescia no forno. Ao largo da mesa, muitas

vozes e risadas ansiosas pelos inúmeros cheiros, abanando-se e

alvoroçando-se. No outro extremo, o portão encostado abria-se

e fechava-se no arrastar frouxo da corrente, aconchegando o

visitante frequente que chegava em busca de café, pão

enroladinho de forno e pastel folhado quentinho da padaria.

Num final de tarde quente e turvo, não se pode desdenhar um

café.

No entra e sai do rangido da corrente, a pia emprenhou-se

de louça. Tudo bem, as encomendas de salgadinho já estavam

acomodadas no freezer e bastava fritar e assar no outro forno.

No dia seguinte, a esta altura, a mãe da aniversariante já

passaria para pegar. Num movimento circular, a dança das


cadeiras se alternava com a fila do banheiro da casa, na

esperança de esfriar de banho o corpo para receber os pós e

cheiros de final de tarde. A parada seguinte, em frente à

penteadeira do corredor, reservava mais um momento de disputa:

o espelho. Único da casa, estreito e cheio de manchas

oxidadas, oferecia em vasilhames, caixas e pequenos vasos,

toda sorte de escovas, pós-compactos, sombras, blush, batons,

pincéis, rímel, perfumes, cremes hidrante corporal e capilar,

e outros itens de toucador. Entre o espelho e o ventilador,

corpos esguios e gorduchos se encontravam e desencontravam,

num cochichar de passarinhos.

Na sala ao lado, o aparelho de DVD tocava um playback que

era acompanhado por várias vozes masculinas e femininas da

casa, num karaokê espontâneo e alvissareiro dos solos que se

seguiriam posteriormente. Da saleta até o início do corredor,

num grito, se fazia esperar a vizinha e sua filha, cuja

companhia a pé animaria o pé de ouvido.

Apesar do esforço contínuo, o calor das 17:30 ameaçava os

tons conseguidos em frente ao espelho e ao ventilador. Um

lencinho acompanhava o trajeto, a trabalhar em sua luta

inglória contra as gotas que emergiam nas frontes e têmporas.

Ao longe, ao redor da pracinha, sucessões tonais de cadências

interrompidas e finalizações perfeitas acompanhavam o rodopiar

de vestidos coloridos que emolduravam corpos esguios, de cujos

cabelos lisos, molhados e partidos ao lado, exalavam odores de

perfumes Boticário, Avon ou Natura.


Em frente à porta principal novidades entremeadas por

refrões compunham o tecido coral daquela entrada. As quatro

vozes dedilhadas no órgão se disseminavam nas letras

secularmente conhecidas por aquelas pessoas. Em tons maiores

ou menores, engrandeciam o sentido da luta ou suscitavam

resignação, melancolia e recolhimento. Ao longo do coral,

entre refrões e conversas, os corpos esguios e gorduchos

acomodavam-se nos bancos de madeira maciça, sempre em busca

dos lugares próximos aos ventiladores. A essa altura, os tons

já estavam borrados, os cabelos e cachos desfeitos, e o lenço

encharcado. Ainda assim, havia sempre a esperança do

ventilador. À medida que os bancos recheavam-se de corpos, os

corais se alternavam com baladas inspiradas em canções norte

americanas, revezando-se em estímulos de lamentação e

penitência e de vigor e glória. Pouco a pouco esta alternância

levaria a um estado de torpor, sob um fundo harmônico

constante, acompanhado por um conjunto de quatro vozes que,

emaranhadas, produziam um efeito circular. A catarse esvaía-se

em sonhos, visões, numa realidade paralela que filtrava o

presente e atualizava o passado, numa busca incessante pelo

objeto da fé. Ao final do torpor, sob o círculo harmônico

frequente, a consciência retoma o calor sob o ventilador, e a

visão focaliza os bancos recheados de corpos em volta,

ajeitando os vestidos e cabelos, olhando-se uns para os

outros. Já é hora de voltar. Ao final da noite morna, o

caminho escuro com parcas luzes respingadas de uns poucos


postes que funcionam, dá a entrever as carapanãs que

acompanham a pequena comitiva. Em frente ao portão com as

correntes, Laila faz a recepção calorosa de sempre e, junto

com todo mundo, as carapanãs seguem para a cozinha e assentam-

se ao redor da mesa.
Os contornos da 25

Às cinco da manhã já se ouve o arrastar da porta de

correr. Depois o bater da porta do banheiro. O miado da gata,

barulhos do saco de lixo e o bater da porta da frente. Muito

cuidado para sair bem cedo pelo elevador de serviço com o

lixo, antes que outras pessoas do condomínio acordem e vejam

este ato de ilegalidade. Ainda no friozinho da manhã as

notícias chegam correndo, especialmente as que tenham a ver

com chegada de contas, mas também são aceitas fofocas gerais.

Ao sair do prédio, uma cusparada bem no pé da árvore cheia de

excrementos de cachorros. O caminho pela beira da rua é quase

um ato rebelde contra aquela calçada desigual, cheia de altos

e baixos, com o pitiú azedo do óleo usado há dias da

pastelaria ao lado. Naquela hora era bom porque não passava

carro. A essa altura já havia tido revezamento dos vigias da

casa dos Nassar, e estavam chegando os porteiros do novo turno

do Iracema. Essas são as primeiras novidades do dia.

Dobrando a esquina da 25 já dava para saber se Nedy

estava na academia. O Anchieta’s Drinks não interessava nunca,

lá só frequentavam pessoas fuxiqueiras. Passando pelo Líder

fechado já atravessava a Humaitá em direção à padaria Silva.

Os demais já estão lá, tomando seu café com leite adoçado, num

total desvario e rebeldia contra o sistema da melhor idade.

Sentado ao banco alto da bancada, pedia seu café com leite


adoçado e pão careca quentinho com manteiga. Já se iam as

primeiras discussões e reclamações da noite mal dormida, da

gata, do lixo, do porteiro, do síndico, da conta. O Líder

abriria às sete, então era preciso esperar dona Aurora na

esquina para dar as primeiras instruções. Lá vinha ela, no seu

caminhar baixo e lento, já sabendo deste encontro cotidiano na

esquina da 25. D. Aurora faria o trajeto contrário, caminhando

na 25 e dobrando na esquina em direção ao Chaco. Passaria pela

academia onde estava Nedy, pelo Anchieta’s Drinks e lá ouviria

uma cantada, cumprimentaria o porteiro do turno da manhã do

Iracema, saberia qual seria o vigia da casa dos Nassar,

tocaria a campainha do prédio, cumprimentaria o porteiro e o

faxineiro, entraria na casa onde a gata já estaria ao pé da

porta esperando.

Enquanto isso, na porta do Líder, ele aguardava

impaciente por causa dos raios de sol já muito quentes,

amarelos, vermelhos e brilhantes. Assim que terminassem de

abrir as folhas dos portões, entraria e logo buscaria as

primeiras compras do dia. Saco plástico para o lixo, cheiro

verde e cebola. No trajeto ao contrário, veria que Nedy já

teria saído da academia, o Anchieta’s Drinks já estava sendo

lavado das bebedeiras da noite anterior. No Iracema, o

faxineiro lavava a calçada. No prédio uma agonia, carros

aguardando crianças, empregadas chegando, maridos e esposas

saindo para o trabalho, jovens para o estudo, faxineiro

faxinando, e dona Aurora tomando café em companhia da gata.


- Dona Aurora, quero o meu caribé.

Ela calmamente terminou seu café, pegou as compras,

colocou cada uma em seu cada qual e providenciou o caribé.

Àquela altura, ele já teria tomado seu segundo banho do dia,

às oito horas da manhã. Depois do caribé sairia de novo para

comprar peixe na Feira da Pedreira.

- A Feira da 25 está muito cara e já está muito tarde

para ir no Ver-o-Peso!

Ainda meio molhado, vestia camisa por cima, perfume,

desodorante e talco. Tomou o caribé, botou um boné e saiu.

Umas dez horas chegava suado e agoniado, com o peixe enrolado

num jornal, dentro de um aturá de carimã. Já tomaria o

terceiro banho do dia. Agora era só aguardar o almoço às

10:30, se bem que havia chegado tarde, então sairia umas onze

horas este almoço. Resolveu cortar as unhas no sofá da sala em

frente à televisão.

O sono depois do almoço embalado pelo calor da sesta era

acompanhado pelo até logo de dona Aurora. Correndo para não

pegar a chuva certeira depois deste calor. O sol batendo

direto nas cortinas da sala deixa o ar pesado e denso de

mormaço. A gata se retorcia em cima da estante da televisão,

num prazer infinito de mormaço de início da tarde. Numa

agonia, ele andava da sala para a cozinha, abria mil vezes a

geladeira, andava para os quartos, para a sacadinha, para o

banheiro, numa busca pelas quatro horas da tarde.


Depois da chuva, o ar úmido das quatro horas o

acompanhava com seu perfume de quarto banho do dia. Assim ia

novamente ao Líder tomar uma cerveja e, talvez, depois, uma

sopa. Seus parceiros já estavam lá e ficariam até umas cinco e

meia quando passariam pelo churrasquinho da Chumbinho, na

esquina da 25 em direção à feira. Neste mesmo quarteirão,

Abílio está depressivo diante de sua bela casa, mirando o

canteiro com árvores altas, frondosas e que sombreiam

gostosamente o caminhante. Reclama que a morte não lhe quer, e

que vê tantos irem à sua frente. Esplêndidas plantas cuidadas

por ele pendem nos portões e grades de sua casa e do canteiro

que atravessa de comprido a 25, plantadas e cuidados por ele.

No canteiro em frente, o terreiro bem varrido e árvores bem

podadas também refletem o capricho daquele morador que há

décadas cuida das árvores daquele quarteirão. Ao lado da

padaria Pereira o magro Turíbio se alegra com a chegada dos

amigos, mas ele está proibido de beber. Neste caminho,

passaria em frente à antiga casa de Maxico, agora vazia de

tudo.

Ao lado do bar do Brasileiro, coalhado de gente, Maresia

ondula incessantemente em meio aos transeuntes e vizinhos que

estão sentados em frente às suas casas. O pequeno jardim de

Zeca já não mira mais seus ensaios de passos de futebol e nem

as balas Namorada que oferece às moças que passam à sua

frente.
Lá pelas sete horas, a 25 já escura e deserta, já é hora

de retornar. No caminho, apenas Chumbinho está com sua venda

de churrasquinho, amarrada pelo meio com uma pochete.


Quinze horas em Puerto Callao

Sob o céu cinza e gélido, Maria descobre uma igreja numa

pequena praça. À frente, um espaço em forma de losango com

bancos e caminhos por onde crianças corriam e cachorros se

refestelavam. Maria não se conteve:

- Ali está uma igreja, e um padre. Eu quero ser abençoada

por ele.

Afastando-se, senti a brisa de seu corpo em movimento e a

placidez de seu desejo de bênçãos. As cores pálidas da praça e

dos bares ao redor do porto disfarçavam a tarde cinza de

inverno. Ao longe, a figura de vestes compridas carregava uma

sacola parda e desbotada, com materiais de construção leves.

- Buenas tardes padre. Somos de Brasil, deseamos vuestras

bendiciones.

- Las bendiciones solamente Dios las puede dar. Nosotros

le podemos pedir.

O padre falava com dificuldades, tinha certa idade,

talvez mais de setenta anos e lhe faltavam alguns dentes.

Viramos diante da porta central da igreja, ao fundo da praça,

e o padre olhava, pedia e estendia as mãos para a cruz que

jazia na cumeeira do telhado, ao centro e no alto do pequeno

prédio. Ainda que soubesse que éramos brasileiras, rezava


frase por frase em espanhol e nos fazia repeti-la

corretamente. Quando errávamos, tínhamos que repeti-las.

As vestes claras estavam desbotadas, com o colarinho

encardido e bem sujo. Pendendo do pescoço uma larga lapela

vermelha também aparentava ser muito usada. Por baixo da

batina, velhas botas marrons descascadas com bordas

arredondadas descortinavam seu uso de longo tempo. A beira da

calça escura deixava-se aparecer revelando a bainha puída. Um

terço amplo de contas arredondadas de madeira escura se

enroscavam no magro braço que ora se estendia aos céus, ora se

estendia em direção à cumeeira da igrejinha. Maria e Nedy

entregam-se àquele enlevo cândido com total confiança,

refestelando-se de luz e candura, naquela tarde cinza e

gélida. Na hora demarcada, faziam o sinal da cruz e, por fim,

cantavam Estas son las mañanitas.

Estas son las mañanitas


que cantaba el rey David
Hoy por ser día de tu santo
te las cantamos aquí.
Despierta mi bien despierta
Mira que ya amaneció
Ya los pajaritos cantan
La luna ya se metió.

¡Qué linda está la mañana


en que vengo a saludarte
Venimos todos con gusto
y placer a felicitarte!
El día en que tú naciste,
nacieron todas las flores
Ya viene amaneciendo
ya la luz del dia nos dió.
Levantarte de la mañana,
mira que ya amaneció.
Y En la pila del bautismo
cantaron los ruiseñores.
Ya viene amaneciendo
ya la luz del dia nos dió.
Levantarte de la mañana,
mira que ya amaneció.

[. . . ]

De soslaio, eu me perguntava se aquele padre era um padre

de fato, com tão pobres vestes, tão sujas botas, com colarinho

tão encardido, e com um saco poeirento nas mãos. Ao redor da

praça e de nosso pequeno conjunto de rezadoras e o padre,

vários bares com homens e mulheres bebendo e comendo,

cachorros e crianças pelo chão. Ninguém alterou seu ritual

cotidiano por aquela cena vespertina de enlevo católico. E

tudo se fez parado no tempo, como a captura de um fotógrafo ou

de um pintor. E apenas as estrofes de Estas son las mañanitas

ecoavam no silêncio daquela tarde tão gelada, cortada por

pequenas pombas que insistiam em voar baixo na praça.

Aqui e ali os gritinhos das crianças giravam pelo

losango diminuto do pequeno espaço em frente à igreja. E não

foi preciso entrar e ver o altar, ou tocar nos santos ou até

mesmo ajoelhar-nos nos bancos do interior da igreja para

sentir sua energia pungente que ultrapassou a fronteira do

altiplano andino e espraiou-se nos corações latentes de luz e

de positividade que haviam deixado as Terras Baixas da América

do Sul. No silêncio daquela tarde gris, diante do pequeno

losango e da cumeeira pintada da igrejinha, sem ao menos


conhecer o interior das portas cerradas, e sob o ressoar das

asas das pombas e dos gritinhos que giravam no espaço, fomos

benzidas sem erro pelo magro pároco com seu saco plástico

pardo, seu colarinho puído encardido e mãos em direção ao céu,

numa reza que reconhecia a plenitude divina das bênçãos, e os

limites humanos dos desejos e impetração das graças. Assim

dirigimo-nos ao motorista que nos aguardava diante da banca de

jornais, juntamente com outros homens que, fumando,

concordaram em compor aquele cenário de fotografia, às quinze

horas no Puerto Callao.

De longe, vimos as crianças correrem e abraçarem o magro

pároco....
A castanheira

Do décimo andar ouvi os ganidos ao longe e corri à

janela. Com dificuldade observava a cena já julgando a maldade

com os animais. Atados à gorda castanheira, os cachorros

negros se retorciam ante aquela tinta roxa que lhes era jogada

nas costas, na barriga, em todos os lugares do corpo. Os

bichos debatiam contra as carcaças de pneus usados que jaziam

sob a castanhola, mas não adiantava, estavam amarrados a uma

corda e os transeuntes da rua observavam inquietos a agonia

dos magros irmãos caninos.

Pouco depois dois tijolos foram colocados em frente à

castanhola e, sob eles, um feixe de pau achado por ali mesmo.

Ao lado, no chão, um homem tratava carne num pedaço de madeira

velha. Àquela altura, o tempero já refogado fumegava e os

pedaços de carne tornaram-se marrons ao contato com a quentura

do fundo da panela, alterando também o cheiro da rua, na

conjunção com o alho e cebola. Uma fumaça úmida subia pelo

tijolo e serpenteava pelas copas da árvore.

A castanheira ficava bem em frente da saleta quadrada com

metragem 2x2 que servia de depósito de borracharia e morada do

homem e dos dois cachorros. Prenhe de tralha, restos de pneus

velhos, ferramentas e todo tipo de troços, era cortada por uma

rede e animada por uma televisão antiga pendurada na parede.

Por cima das coisas amontoadas, um ventilador barulhento se


estafava para lá e para cá. Assobiando, o homem sentou-se ao

pé da castanheira para olhar a rua.

À esquerda da saleta, um porta rústica de tábuas conduz a

um escuro corredor que descortina uma vila familiar de

casebres de madeira, socados um ao lado do outro, num

entremeio de fios elétricos espertamente solapados da fiação

pública. A vila fecunda de núcleos familiares soltava aos

ventos uma babel de vozes e timbres, cheiros e cores. Toda

essa animação era furtivamente resvalada pelo transeunte que

dobrava aquela esquina, vindo da parada de ônibus.

Em tempos de festas e brigas, a rua era o palco. Por

vezes ensaiou-se botar uma venda de comidinhas típicas,

empresa logo abandonada. O mais certo era o serão da tarde com

os moradores sentados à sombra da velha castanheira,

comentando os assuntos do dia e dos que passavam por lá. Em

meio a todo esse movimento, clientes da borracharia chegam e

vão embora, recebidos pelos latidos dos cachorros, embebidos

no cheiro da carne.

Algo chama a atenção. Nas primeiras vezes, totalmente

pintada na cor rosa, a bicicleta se apresentava com uma boneca

enfeitada em sua garupa. Rodas lavadas, corpo pintado, sem

correntes. Estava ali apenas para ser admirada pela sua beleza

e novidade. Uma intervenção artística urbana aos pés da

castanhola que tudo vê, tudo sente, tudo sabe. Na copa do

mundo ocorrida no Brasil a bicicleta se pintou de verde e


amarelo e do décimo andar eu vi os cachorros já gordos sem

nenhuma pira se refestelarem no resto de carne cozida, com a

pelagem preta reluzente cujo brilho chegava até minha janela.

Sempre atados a grossas cordas, alternavam-se entre o poste e

a castanhola, aumentado o espaço de convivência na rua.

Nunca mais vi os cachorros. Vi a bicicleta, agora azul,

mais comprida após a inserção de um varal maior, com rodas

mais largas e a boneca-guia vestida de miss Brasil. Uma placa

de reforma bem na frente da vila de casebres anuncia mudança

naquela paisagem. Carros e mais carros estacionam e saem da

borracharia. A castanheira pouco a pouco perde suas folhas e

nunca mais se sentiu cheiro de carne cozida no abafado do meio

dia. De tão conhecedora das coisas, talvez a castanheira já

esteja prevendo seu fim.


Banho da Tarde

- Pow! Pow!

Da escuridão do quarto das moças ouvia o barulho das

mangas ou cupuaçus caindo. O frio e a umidade lutavam contra a

vontade de ser a primeira a pegar as frutas. E ainda havia a

vontade de fazer xixi pra completar, mas dava pra ir correndo

pegar as frutas e, na volta, passar no banheirinho que ficava

lá fora no terreiro, atrás da casa. As meninas não ouviram

ainda, que bom. Daria tudo certo.

Rapidamente pulou da rede e jogou os grossos cobertores

feitos de redes velhas em cima das meninas que dormiam juntas

na cama. - Nem ouviram as mangas, credo. Pelo barulho eram

mangas. Se fossem cupus, teria sido mais forte.

Abriu a portinhola de baixo e deixou a de cima fechada,

fez um rangido baixo e não deu pra acordar ninguém, acho. Na

cozinha, que ficava do lado de fora, os gatos dormiam em cima

do fogão de barro, engurujados de frio. No terreiro ainda um

pouco escuro, o sol ainda estava se espreguiçando. Do céu

cinza azulado dava pra ver as gotículas da noite e a neblina

da madrugada. Que frio e que umidade! Abriu a outra portinhola

e saiu correndo para pegar as mangas. Qual nada! Terra Alta já

tinha pegado tudo. Ele acorda muito cedo e lá estava já de

chapéu, banho tomado. Dizem que ele come um ovo cru todos os

dias de manhã, credo. Voltou arrasada pra rede.


Já com o sol meio quente, umas 7:30, as meninas

levantaram e foram direto pro igarapé escovar os dentes, de

moletom mesmo. Lá pelo mato faziam xixi, se desse vontade. Os

adultos já teriam ido bem cedo e já voltavam tomados banho.

Elas, com frio, só escovavam os dentes.

Na cozinha velha, atrás da casa, foi inaugurado um

banheiro tempos depois, com pia. Então passaram a usar este

expediente.

Tem início a rotina da casa. Tomaram café, lavaram a

louça na bomba ou, se for muita, arrumavam numa bacia e

levavam para o igarapé. Já de biquíni para ficar o dia todo,

iniciavam o rojão de banhos nesta primeira lavada de louças.

As panelas usadas no fogão à lenha tinham o fundo bem preto,

esfregavam na areia do igarapé para amenizar este preto. Na

volta, a bacia de louça areada ficava em cima da mesa

comprida.

Então cada uma das meninas tinha sua tarefa: passar pano

nas coisas, levantar os paninhos de crochê, arrumar o que

tivesse desarrumado na estante, bibelôs, relógios, retratos,

santos, tudo embaixo dos paninhos. A casa de barro deixava

cair vários insetos durante a noite, por isso era necessário

passar pano nas coisas todos os dias. Aliás, os insetos

moravam nos buracos das paredes e, de noite, ficavam bestas

com a luz das lamparinas e caíam nas coisas. Outra menina,

geralmente a mais velha, deveria varrer. As pequenas eram


eximidas destas tarefas. Os meninos não precisavam fazer nada,

aliás, eram indesejados no ambiente interno nestes momentos de

limpeza e arrumação. Continuamente eram enxotados quando

resolviam entrar com pé cheio de areia. Não se passava pano na

casa, pois o chão era de barro batido. Na sala o chão era o

vermelhão e deveria ser encerado, mas isso já não era as

meninas novas. Uma das filhas mais velhas faria esse serviço.

Então iniciava o serviço do almoço, também a cargo das filhas

mais velhas. Aliás, o café da manhã era feito bem cedo pela

avó, pois o avô tomava bem quente e bem cedo antes de ir pra

roça, junto com caribé.

Depois da limpeza da casa – liberdade! Iniciava então a

jornada dos caminhos, igarapés, roçados, matos, sítios e

bosques. O dia todo passando pelos igapós, correndo pelo

terreiro dos outros e pegando frutas, procurando ninhos de

passarinhos nos roçados do avô. Quando os ninhos eram

encontrados era preciso cuspir nos ovos, para que as cobras

não os comessem. Bacana também era encontrar frutas do mato,

as chamadas murta e remela de gato. Deliciosas ameixinhas

pequenas que misturavam azedo com doçura.

Depois do almoço, louça outra vez. Tudo pro igarapé, pois

era grande a quantidade. Depois de entregue a louça, liberdade

outra vez. Então já emendavam com a procura enloquecida pelas

mangas da casa do Neneco. Isso durava a tarde toda.


No cair da tarde, já se ouviam as cigarras, o céu estava

cinza. Haviam pegado chuva o dia todo e, tinindo de frio,

precisavam tomar o banho da tarde. Cadê a coragem? Pés e mãos

roxas. Mas a chuva já havia passado, ouviam as cigarras. O

caminho para o igarapé do fundo mudava de cor, ficava escuro,

frio, com infinitos barulhos. Os macacos guaribas com sua

sinfonia desesperada. Parecia outro lugar. Correndo por causa

das mutucas, morrendo de frio, levavam suas toalhas. Assim que

chegavam já se jogavam no igarapé. Peladas emprestavam-se,

umas das outras, xampu e sabonete. A água muito morna quebrava

o frio, mas tinham que ir logo, antes de escurecer, por causa

da mãe d’água. O problema era o frio fora da água. Estava tão

bom, sentiam a água entrar e sair pelos corpos nus. Os cabelos

se misturavam com as raízes do igapó. Esfoliavam a pele com

areia, às vezes misturada com creme de cabelo, às vezes pura.

Estavam nesse enlevo quando ouviram o grito:

- HUUUUU!

- Tem gente! – Disseram.

Na tênue parede de mato, numa esquina alta na metade do

caminho descendente do igarapé, a pessoa parou e esperou.

Então tiveram que se apressar, terminar o banho, lavar os

biquínis e calcinhas, e nos enrolar nas toalhas. Subindo o

caminho, deram de cara com os meninos que, domesticadamente,

aguardavam no alto do caminho que terminassem o banho da tarde

e passassem morrendo de frio de volta pra casa. De longe já se


divisavam os vestidos na cozinha e as fumaças das lamparinas

já resvalavam no ar. Demoraram muito. Entre as lamparinas

existiam, também, os lampiões e suas camisas de fogo que não

se queimavam na chama. Dois velhos lampiões auxiliavam na

última jornada de louça, que seria novamente lavada na bomba.

Sob a noite de luar, sentadas aos pés de milhares de estrelas,

muitos sons golpeavam o frio do inverno amazônico que, de

madrugada, chegava gelando as redes sob o nome de cruviana. Os

sopapos das frutas no chão davam início à rotina diária, as

louças, o igarapé, o sol, as frutas, o frio, a chuva, as

lamparinas, as mutucas, piuns, mucuins, maruins, meruanhas,

cupins de asas, paquinhas e tantos bichos que rodeiam a luz e

permeiam o rodopiar do tempo das meninas após o banho da

tarde.
Da rede rasgada

Ao desembarcar no porto de Curralinho logo se avista a

orla alegre, num misto de urubus e água barrenta, o casario

que se forma sorrindo para o rio. Caminhando na rua, pouco a

pouco outras vias alagadas e calçadas com pequenas pontes em

precaríssimo estado de conservação oferecem o caminho para os

chalés de madeira construídos em palafitas. Era um janeiro

especialmente invernal e, naqueles furos marajoaras, as águas

sobem muito e as chuvas ditam os horários das visitas.

Vestido numa larga e rota calça jeans, com camisa de

algodão de manga enrolada, Ab seguia embaixo d’água rumo ao

cheiro dos tucunarés cozidos. Caminhando nas pontes altas e

quebradiças que se erguiam naquela parte da cidade, ao longe

se ouviam as ladainhas em latim a quatro vozes. Era tempo de

São Sebastião. Ab sabia que os fiéis se reuniam em uma tapera

descaída, bem ao largo das palafitas, mais ou menos perto e

mais ou menos longe, para onde o acesso se dava de montaria.

Os cantores eram irmãos, e suas esposas, irmãs, tias e

sobrinhas respondiam o Ora Pro Nobis. O padre italiano já

havia proibido aquele latinório, até mesmo porque depois do

lanche servido aos festeiros o dançará era regado a bebidas

alcoólicas locais. Mas Ab já lambia os beiços ao pensar no

chocolate quente de caroço de cupuaçu ou cacau, mingau de

tapioca, café e tapioca quentinha. Ele concordava com o padre.


Aquilo tinha que acabar. E no caminho, encharcado, pensava no

tucunaré cozido que lhe esperava no pequeno chalé de madeira

colorida.

Chegara há poucos dias, mas já de outras vindas passadas

sabia do santo que um dia foi achado grudado na seringueira. O

senhor que achou o santo era um cidadão importante do lugar,

mas não conseguia desgrudar a imagem da árvore. Certa vez

conseguiu e levou a imagem pra casa, mas, no meio da noite,

foi à sala e viu que não estava mais no altar improvisado. No

outro dia voltou ao local da seringueira e lá estava o santo

grudado outra vez. Então teve ideia de chamar uma criança,

pois sua pureza certamente haveria de fazer crer ao santo as

boas intenções do povo. E foi o que aconteceu. Desde então

este santo é venerado por aquela família. – Oh povo de

imaginação! – pensava Ab, ao mesmo tempo em que se

impressionava com os cânticos a quatro vozes, ao longe, num

latim estropiado.

No outro dia Pedro chegou para ajudar na missão. Haveriam

de cortar os furos em montarias buscando fiéis. Aqui e acolá

achavam pequeno templo em formato de chalé, numa ilhota,

acessível somente de barco. O chão ancho e muito liso de tanta

cera, com pequeno púlpito ornado com flores de plástico, sem

cadeiras, apenas bancos de madeiras rústicas não envernizadas.

Quase sempre, ao abrir o templo escuro, morcegos, aranhas e

tudo o mais saíam de lá de dentro e esse fato era percebido


pelos fiéis como mau agouro. Mais adiante, sempre havia uma

capelinha católica, com o mesmo chão, bancos e flores de

plásticos, mas com altar, cruz e santos, e com morcegos,

aranhas, piuns e toda sorte de bichos lá dentro. Às margens do

rio, as pequenas casas isoladas – quase ilhas – ofereciam

aconchego ao visitante, com seus caldos de peixes ou camarão,

mingau de farinha. Compunha o cenário da casa-ilha um canteiro

com ervas comestíveis e medicinais, uma casa de farinha, e o

alojamento das montarias.

Nessas pequenas comunidades familiares, os cultos

protestantes alternavam-se com as ladainhas católicas, na casa

de um ou de outro, ou nos templos (quando havia). Após as

funções, os presentes confraternizavam-se com uma merenda de

iguarias locais, sob a luz de lamparina, e ao ecoar de

histórias de visagens, matintas-pereras, castigos de santo,

fados e outras artes do sobrenatural. Notícias de quem nasceu,

de quem morreu, de quem casou, das festas dos santos, do coral

da igreja protestante, da visita do padre ou do pastor, sob as

estrelas e o luar. Depois os convidados atavam suas redes

onde podiam, ou voltavam de montaria para suas casas mais

abaixo ou mais acima do rio, iluminando o rio-estrada com suas

lamparinas.

Nestas andanças Ab e Pedro conheceram Nassar, um mercador

libanês com diversos tecidos bordados, redes, sandálias

coloridas, mas principalmente tecidos muito bons e de todos os


tipos e estampas. Muita discussão na negociação de preços das

redes. Belíssimas redes bordadas com motivos coloridos,

algumas tinham estes motivos emoldurados com linha prateada e

outras com linha dourada. Ao final da discussão, Ab ficou com

a rede dourada e Pedro com a rede prateada. Empacotaram bem e

não utilizaram as redes ao longo da viagem.

Juntos, andaram por muitos lugares, nas ilhas ou no

continente, saboreando de tudo o que a generosidade do povo

alcançava, dormindo em suas casas, conhecendo seus costumes e,

paradoxalmente, querendo transformá-los. Criam em um outro

tipo de civilização e caminhavam segundo essa crença. Atrás de

si, um legado multicultural recriava suas novas no caldeirão

megadiverso do imaginário amazônico. Separaram-se, pois, no

oeste do Pará. Ab foi designado para o Salgado e Pedro, para o

alto Oiapoque. No Salgado, numa fria madrugada, Ab arfava na

rede, não a rede de motivos coloridos contornados de dourado,

numa rede simples esgarçada. A esposa deu-lhe o remédio.

Sentou-lhe na cadeira e a população acudiu aos gritos. O corpo

mole desvaneceu-se diante do filho e da esposa e da população

que, do lado de fora, acudia aos gritos. Ligaram do orelhão da

cidade para família e logo de manhã providenciaram o cortejo

fúnebre.

Quatro décadas depois, ninguém sabia mais de nada, de

ladainha, de mercadores libaneses, de Marajó. Mas descobriu-se

a rede de motivos coloridos e dourados guardada no fundo do


armário e, assim, a rede desnudou-se a contar sua história. O

filho, então com 38 anos, passou a deitar-se na rede todos os

dias sob o mormaço inclemente das tardes paraenses. A rede

macia adornava a sala nua de móveis. Completava o espaço com

suas cores e seu dourado. Apesar do mercador libanês, os

motivos eram europeus, damas que dançavam e tinham as pontas

de seus dedos dourados seguros por cavalheiros, rodeados com

flores. Nos embalos desses mormaços a rede cedeu ao peso de

quatro décadas. Uma enorme fenda quase partiu a rede de fora a

fora, longitudinalmente. Quatro décadas de histórias que

caminharam das ilhas marajoaras ao cerrado amazônico do Oeste

do Pará e às águas salinas de São Caetano de Odivelas. Da rede

rasgada se fez história e, juntados os pedaços restantes,

outros balanços são embalados nela, no corpinho minúsculo de

criança que se deita a qualquer hora do dia e da noite numa

paragem até então desconhecida da rede: a Alça Viária, no

baixo Amazonas, embalando velhas e novas histórias.


A prisão12

No fundo do quintal estava ela, pequena, com tábuas

demolidas de outras prisões, um pouco alta em relação ao solo,

de cores singelas e com um pequeno telhado de zinco. Eram dois

andares. No andar de cima, umas senhoras mal humoradas

reclamavam o tempo todo ao perceber qualquer proximidade.

Estavam bem acomodadas em cima de uns tapetes velhos de

retalhos, sob o mormaço preguiçoso da sesta do almoço,

deixando um ambiente propício para sua principal função:

aconchegar e aquecer aqueles pequenos seres em

desenvolvimento. Uma delas possuía uma produção gemelar,

configurando um misto de raridade e tortura em razão da força

despendida com exaustão diariamente. As duas senhoras gordas

não se bicavam muito bem, e sempre estavam olhando de soslaio

uma para a outra, ainda que impregnado de cumplicidade pela

sina com a qual conjugam a vida. No andar de baixo, o

prisioneiro se remexia. Alto, jovem e magro, tinha à sua

disposição comida e água, bem como uma pequena cama coberta de

tapetes de retalhos velhos. Seu único crime foi ser broco.

Crime e fado. Aliás, o fado que acompanha essas criaturas de

terreiro, que amanhecem cantando e se recolhem ao cair da

tarde, ajuntando-se e aquecendo-se com aconchego generoso de

quem não conhece o amanhã.

1
Publicado originalmente no blog experimentacaopoetica.blogspot.com.br
2
Trata-se de uma ficção cujo assunto principal são galinhas num quintal.
O terreiro limpo sempre foi varrido por elas. Mais por

elas do que por eles, pois sempre estiveram em menor número e,

muitas vezes, na condição de prisioneiros. Elas também ficam

presas vez por outra, muitas vezes junto com sua prole, por

qualquer razão, mas, em geral, por broquice. Houve o caso de

Genoveva que, somente após muitos anos, descobriu-se que o seu

caso não era exatamente de broquice e sim de cegueira. Isso

mesmo, cegueira. Quanta calúnia ouviu, quanta difamação e

surras à toa fora vítima e quantas vezes ficou com fome,

sempre sob vaias e gritos. Até que a prisão lhe veio como

alívio, sem surras, sem gritos ou vaias, com comida e água

sempre. Baixa, gorda, desengonçada, Genoveva produzia mais e

mais e, ao fim, sucumbiu ao fado de todos e todas que habitam

aquelas paragens. O fim da prisão e libertação da alma.

O caso de sua vizinha foi um pouco diferente. Todos os

dias ao cair das tardes elas e eles se preparavam para

recolherem-se às suas moradas, menos a Pedrêz. Ela não sabia o

que fazer e andava com sua prole de um lado para o outro,

mundiada, no frio ou sob chuva. Já ao anoitecer, era

necessário um ajuntamento ou ordens superiores para que

tomasse tino e corresse para o acerolal procurando seu rumo, e

para suas crias. Assim, depois que seus filhos e filhas

cresceram, foi para a prisão e lá ficou até a morte. Diante de

sua inabilidade para a vida, não teve outro jeito a não ser

seguir o fado de todos e todas que habitam aquelas paragens.


O caso de Josefina também vale a pena ser rememorado. Ela

estava sempre solteira e não havia produção. Não se

interessava por eles e nem eles por ela. Parte da tarde,

sempre lhes procurava para aconchegar-se e aquietar-se. As

demais senhoras gordas com suas proles não lhe davam atenção.

As jovens empedernidas estavam mais preocupadas em procurar

por eles. Josefina estava sozinha. Assim, não teve remédio,

diante de sua inabilidade para produção, cumpriu sua sentença

e foi para prisão. Lá ficou até a morte.

Em situações de epidemias era necessário aguardar as

providências gerais de vacinas. Nestes casos sempre ocorriam

mortes. Em outras situações, as mortes eram em decorrência de

aleijo ou ferimentos severos que gangrenavam e tornavam-se

incuráveis, conduzindo ao rumo certo da prisão e, ao fim do

túnel, da libertação da alma.

Nos momentos de sol do meio dia, na busca incessante pelo

terreiro, sempre topavam com variedades de alimentos

interessantes e já conhecidas. Todavia, cada pedaço daquele

terreiro já estava recortado e constituía propriedade privada.

Não lhes pertencia. A fome, a gula e o roubo também faziam

parte daquele cotidiano e poderiam encurtar o caminho para a

prisão, dependendo da intensidade da ação de repressão.

Havia certo quê de mistério que rondava aquelas paragens.

Além da prisão, especialmente por parte da noite, dava-se fé

do sumiço de umas e outras. Os pequenos eram vítimas fáceis. O

perigo vinha de todos os lugares e eram bem piores que a


prisão. Aliás, em muitos casos, o melhor que havia era a

prisão. Pela parte da noite, a sombra que lhes tirava a vida

andava às cegas, atordoada pelo cheiro e pelo barulho. No

outro dia, apenas a notícia corria solta pelo terreiro e todos

e todas cochichavam esse mistério e lamentavam por mais essa

face da sina de todos e todas daquelas paragens. Ainda bem que

havia o sol, havia o canteiro, os pequenos e as pequenas, os

cantos, o acerolal, comida, água e a prisão com cores amenas

no final do terreiro.
7 mulheres e um menino3

Foram oito partos. O menino morreu. Sobraram sete

mulheres. Seis nasceram em casa, a última nasceu na cidade.

Nasceu de parto cesariano, com sete dias de internamento. A

mais nova mamou na mais velha, tal a diferença de idade entre

as irmãs. Seu sobrinho (da mais nova) mamou na avó. Trocas de

leites e de peitos impensáveis nos dias contemporâneos. O

atestado de óbito do menino está guardado até hoje, e até se

sabe onde está sua sepultura. No tempo da Iluminação costuma-

se visitá-la, sem grandes comoções, apenas para não esquecer o

local. Uma por uma as meninas se revezavam em cima do

banquinho, abanando o fogo. A mãe, exausta de asma, escorada

no espaldar da cadeira, sentada de costas, precisaria sentir o

cheiro da panela ao fundo do corredor. Os homens chegariam do

roçado, antes, porém, passariam no igarapé. As

mulheres/meninas da casa revezavam-se no fogo, revezavam-se no

terreiro, revezavam-se na limpeza do chão batido, no carrego

da água e no cuidado com a criação.

Ao fundo, escorada no espaldar da cadeira de costas, a

mãe suspirava temendo pelas meninas. Que futuro lhes restava

ali naquele mato? As meninas, em meio àqueles homens do

roçado. O caminho até a estrada apresentava-lhe o destino

distante das casas dos parentes da cidade. Os familiares

3
Publicado originalmente no blog experimentacaopoetica.blogspot.com.br
haveriam de acolher, ao menos, dando um quarto para dormir e

comida para comer. O resto elas aguentariam.

Vez por outra passava o vendedor com sacolas de roupas,

panelas, vasilhas plásticas, biscoitos, sapatos, retalhos. O

marreteiro percorria as estradas das colônias levando

novidades da cidade para os caboclos. Sete meninas. Um fato de

roupa para todas. O mesmo tecido barato, diferentes cortes de

vestido. Na Festa de São Sebastião, haveriam de passar no

ferro a carvão.

Em tempos de colheita de milho e de mandioca, a colônia

recheava-se de habitantes do salgado que vinham com sua

morenice, seu carimbó, seus cordões de bichos e seus bumbás.

Vinham também com sua brejeirice. A casa cheia de meninas, a

mãe tinha muito cuidado e se preocupava. Precisava mandá-las

para a cidade.

No fundo do corredor, a mãe arfava de asma escorada no

espaldar da cadeira ao contrário. Dava as ordens de limpar o

terreiro, prender as galinhas e os pintos. Já era quase hora!

Meninas vão tomar o banho da tarde!

Após revezavam-se no banco do fogo, revezavam-se no

carrego da água, revezavam-se na bacia de louça que seria

lavada no outro dia, no igarapé.

A mais velha completou nove anos e já havia destino para

ela. Então tudo mudou e seu destino desenrolou-se no único

aceito para as mulheres da época: o casamento. Assim mesmo

aconteceu uma por uma na escadinha das meninas. Depois, o


destino se desfez, uma por uma. Casaram-se e descasaram-se.

Haviam aprendido desde o fundo do corredor que precisavam

caminhar na vida, precisavam revezar-se na diligência, não

poderiam ser paradas pelo destino traçado para todas as

mulheres. Uma a uma desfizeram-se deste lugar traçado para

elas. Uma a uma manchou o coração com a aflição de não se

modelar àqueles apertos do lugar traçado para elas.

Uma a uma fortaleceu o coração no exemplo da outra, na

fortaleza da outra e uma a uma lacrimejou o seu fracasso. Não

se deram conta de sua fortaleza, lacrimejavam sem saber o quão

determinadas e fortes eram. Assim seguiram sempre lembrando

das diligências do fundo do corredor, dos revezamentos entre

uma e outra. A certa altura, uma delas morreu, de um sopro

surgido aos 34 anos. As seis irmãs restantes choraram esta

lágrima real e revezavam-se no acolhimento das arfadas agora

ao fundo da cama. Seis mulheres e uma força que se mantém

desde o fundo do corredor. A elas juntaram-se outras mulheres

da redondeza, cada uma com sua verdade e sua força de seguir

em frente.
Barriga de todas as mãos

Ao chegar na boca do caminho, foi surpreendida com o bafo

da farinha quente. Esbaforida, ainda pegou uma mãozada e jogou

à boca, bem em frente à casa de farinha. Cumprimentou aquela

família que torrava farinha no sistema de meio, combinado com

sua tia Tonha.

Logo no pátio, diversas mãos pegaram em sua barriga, que

agora nem parecia mais sua, mas de todas as mãos do 21.

Buscaram a linha que divide a pança ao meio, procuraram umbigo

protuberante (sem sucesso, pois a barriga ainda era de cinco

meses), abaixaram a saia e a calça para apalpar e ver onde o

útero estava, se a barriga era pontuda ou espalhada, a largura

dos quartos, as veias do peito. Uma inspeção da natureza bruta

calcada nas mãos calejadas de tanto ter filho daquelas

parentas do 21.

Após este rito inicial, finalmente ela pôde sentar-se,

tomar água e tomar café com beiju. Oh delícia! Logo depois

banho gelado de igarapé.


A menina que desenhava

O cheiro de chuva apontava o chão endurecido e

encharcado, cheio de furinhos. Grossos pingos ainda caíam do

jambeiro, exalando frecor abafado e sol já despontava

ameaçando torrar a terra empapada. Da janela cor de terra

Marieta avistava Claudia de costas e bumbum para o céu, a

tatuar a terra. Cega de raiva, Marieta buscava uma vara

qualquer e largava no lombo da menina aos gritos. Que largasse

daquela doidice, que ficar de cara para o chão rabiscando com

um pau na mão deixava a pessoa lesa. Aos gritos, Claudia

corria para o igarapé querendo refrescar a dor daquela

cipoada.

O sol torrou o chão e apagou a tatuagem riscada por

Claudia. Uma grande casa, com árvores, sol, galinhas, era o

cenário que conhecia e que traduzia no solo. Naquele tempo,

cadernos e papeis eram coisas difíceis. Seu caderno mesmo, o

que usava na escola, era feito de papel de embrulhar pão

costurado.

De onde vinha aquela vontade de desenhar? Porque sentia

tanta necessidade de desenhar galinhas,jambeiros, mangueiras,

cercados, igapós. De que valia se a chuva ou o sol logo, logo

apagariam? De que valia se aqueles rabiscos lhe deixariam

lesa, como dizia a mãe?


No caminho de terra branca, cercada de matinho verde,

apanhava murta e chutava a Maria-vai-fecha-a-porta.

- Maria fecha a porta que tua mãe já morreu.

Que horrível falar isso para uma planta. Apesar das

surras, Claudia não podia nem pensar na que um dia sua mãe

morreria.

Terra branquinha, mas muito esvoaçante. Logo pegou um

graveto e riscou a areia fina. O vento deu e apagou. O caminho

para o igarapé só prestava depois da chuva.

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