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Jornal das Famílias. Tomo 1, agosto de 1863, p. 225-230.

“A sinhazinha”
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I
Aos politicos, aos diplomatas, aos senhores do mundo, a noite dá conselhos.
Pelo menos Richelieu e outros assim dizião.
Pois que seja.
Crimes e mysterios só nas sombras e mysterios da noite se segredão, se decidem e se executão, quando, não perdendo
de todo o pudor moral, não esperão a claridade, o dia, a luz de Deos.
Aos poetas, aos doudos, a noite segreda... fantasias, sombreia de sonhos.
Aquelle nosso tristissimo poeta – o Azevedo – disse em bem doces versos:
Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas,
Passão tantas visões sobre meu peito!
O noite! comtigo o poeta vive, sonha, soffre... mas que dôres!... dôres que o levantão superior a todos os demais
homens!
A’ noite o corpo fallece, langue; o espirito porém ergue-se febrento, e sonha, e crea!
Roméo esperava a noite, e suas vozes ião mais doces e electricas aos castos, aos puros ouvidos de Julieta. A lua era
mysteriosa, as estrellas brilhavão intermittentes, e o arfar das plantas e os perfumes das flores, as phalenas erão tantos
outros protestos de amor... que aos olhos da triste vinhão as lagrimas, as quentes lagrimas de convicção. A’ noite, ás horas
da noite, é que o Mouro deslumbrava Desdemona com as abrasadas narrações dos seus combates e vida de azares e de
aventura.
A’ noite pranteava Jeremias, Christo buscava conforto nas Oliveiras; á noite clamavão por elle os prophetas.
Oh! a noite!... Na noite dos tempos sonhou Deos o mundo: á noite sonhou elle os deslumbramentos do dia.
Eu amo a noite, porque ella é triste e sombria como a minha alma; amo-a, porque então achego-me de Deos, esqueço
os desvarios do dia, e sonho a pureza, o céo, as virgens, as flores, a felicidade, a dôr!!!
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Estava no theatro. Indifferente ao que se representava, percorri os camarotes, aonde dúbias mulheres mais ou
menos pintadas ostentavão todas as extravagancias da moda para serem vistas; no meio porém de todos esses destroços do
gosto, da elegancia e da dignidade, vi alguem que logo me impressionou.
Era uma mocinha triste e trajando luto; apoiava a face em uma mão pequenina.
Os olhos vião e não vião: persistião fixos no ar... em que sonho, em que lembrança?
Contemplei-a por instantes e continuei a contempla-la.
A virgindade attrahe tanto! É mais limpida que uma estrella, mais perfumosa do que uma flor.
Ella era virgem: um meu amigo da direita logo m’o disse quando risonho perguntou-me:
- Para quem olhas tão fixo?
- Para aquella mocinha de preto.
- Ah! a Sinhazinha!
Sinhazinha não é nome e nem quer dizer nada.
- Sinhazinha! repeti encantado pela melodia do nome. Sinhazinha!
- Sinhazinha quer dizer menina, solteirinha, lindazinha! tornou-me o amigo.
- O nome do baptismo?
- Emma.
- Emma!... Mas quem é?
- É filha do finado commendador D... É muito rica. Não tem mais parentes proximos do que o irmão, que ali está
com ella.
- Conheces-a na intimidade?
- Conheço-a.
- Que tristeza sympathica!
- Sympathica e natural.
- Natural pela morte do pai, o commendador...
- Do pai e mais alguem.
- Mais alguem!... Quem?

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- É um romance inteiro.
- Conta-m’o!
- Aquella menina tão triste e fragil e calma tem uma alma de fogo e traga uma dôr immensa. Amou um mocinho
esbelto e poeta, rico e de nome; já ella, triste, corava de jubilo antes as sedas brancas do noivado, as puras e immaculadas
capellas de flores de laranja, quando o doudo, que dizia ama-la, fugio para a Europa com uma das nossas hetairas 1 , ou,
mais explicito, Magdalenas da moda.
- Pobrezinha!
- O golpe veio de par com outro não menos terrivel, a morte do pai. A coitadinha chorou penso que todas as lagrimas
da sua vida. Não seguio porém as ideias prudentes da sociedade nem as imaginosas do romance; não entregou-se aos braços
do primeiro que fallou-lhe de amor e julgou-se proprio e capaz de substituir o homem que a vilipendiára; não, nem ha
despeitos que justifiquem taes loucuras, taes crimes. Chorou e resignou-se com sua desgraça; porém soffre, soffre muito, e a
morte mina-lhe a existencia. Aquella moça está tisica: deita sangue pela bocca que faz dó! Anjo, não tardará muito que
volte ao céo!
- Pobrezinha! repeti eu. E, porque não dize-lo? verti uma lagrima pela triste.
Findo o espectaculo, Emma, Sinhazinha, retirou-se, apoiada, frouxa, languida, ao braço do irmão.
Tinha um sorriso meigamente brando, o olhar incerto, melancolicamente descuidoso.
Desappareceo... como um sonho... nas trevas.
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Desde já convem declarar: isto que aqui escrevo não é um romance; é sim a narração de uma curiosa coincidencia,
ou, se quizerem, algumas recordações apparentemente illogicas e sem nexo.
Pois seja, e por tal queirão aceitar; são recordações que dou ao papel a estas horas da noite, tristes e silenciosas, por
cuja razão no principio d’estas linhas invoquei-a e delirei por ella.
Está dito, não é romance; são recordações.
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II
Estava d’esta vez ainda no theatro. Olhei e vi num camarote de segunda ordem uma mulher. Vestia-se toda de
branco, de cambraias e rendas. Era no verão.
Escondia-se nas sombras do camarote, como uma estrella entre nuvens.
Ainda d’esta vez estava eu com o meu amigo.
- Que mulher bonita! disse-lhe eu.
- É... respondeo-me.
- Como se chama?
- Francisca de Paula. Não te lembras d’aquella historia de outra noite? Não te fallei de uma Magdalena que
arrastára ao vicio o noivo da Emma, da Sinhazinha?
- Sim, lembro-me.
- Pois é aquella.
- Francisca de Paula!... É uma belleza deslumbrante, diabolica; é uma flor esplendida, mas venenosa.
Esplendida!... Mas a lindeza da Sinhazinha é celeste, e aquella beleza de Francisca de Paula é terrena.
- Infernal!
- E no emtanto!... Mas conta-me por inteiro essa dupla historia.
- Contar-t’e, e para o que? É vulgar. O Julio esteve com ella na Europa dous annos; passou dous annos de
contrariedades, de lutas, de desgostos e desgraças, de miserias, ainda que sob os andrajos da opulencia, com aquella mulher.
Não sei... ás vezes explico quasi como uma fatalidade essas desgraçadas paixões por mulheres d’aquella ordem.
O Julio era um rapaz poeta, porém sensato, timido e prudente. Amava a Sinhazinha; vio porém aqui, neste mesmo
theatro, aquella mulher, e ficou fanatizado.
Passárão-se tempos: nem as distracções de Petropolis, nem as cascatas, o céo azul, os pinheiraes de Friburgo, nem os
sonhos de felicidade com Emma, nada arrancava-lhe da imaginação a ideia abrasadora d’aquella mulher.
Julio tinha dinheiro: unírão-se e fugírão para a Europa.
Dous annos durou o martyrio. Rompêrão-se a final as cadeias, e ella voltou sósinha e coberta de joias. Julio lá está
pela Europa, dizem que idiota.

1 De hetera, quer dizer, prostituta de luxo, que se faz sustentar por clientes ricos

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Passárão-se mezes.
Gaspar, o meu amigo, appareceo-me um dia pela manhãa:
- Irás hoje a um enterro no cemiterio de S. João Baptista.
- Quem morreo?
- A Sinhazinha!
- Dolorosa!... murmurei.
- Hontem levantou-se com o dia, adornou-se de roupas brancas e flores brancas tambem. Recebêra uma carta de
Julio, onde o desgraçado pedia-lhe perdão, porque o remorso estrangulava-o, e elle ainda amava a outra.
Ella, a virgem, chorou e sorrio-se pela carta do noivo; foi ao piano, cantou todas as suas queridas arias; cantou
muito; vierão-lhe as golfadas de sangue... e o ultimo nome que murmurou foi Julio!...
Enterra-se hoje; virás ao enterro.
- O que rasgas? perguntou-me Gaspar.
- Não sei... uma loucura!
- Mas emfim... Versos!
- Versos que, pensando nella, escrevia...
- Porque rasgaste-os?...
- Era uma profanação!
- Deixa-os. Iremos ao enterro.
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E fomos...
E vimos...
Pobre anjo!...
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- Viste? perguntou-me á porta do cemiterio Gaspar.
- Vi... uma mulher bexiguenta, que vai naquelle carro...
- Não reconheceste?
- Não... Quem é?
- Francisca de Paula.
- Bexiguenta!
- Bexiguenta e velha de rosto, quando tem ainda os ardores da mocidade. Harpia sem garras!
- Desgraçada!
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- E Julio?
O’ mocidade! tu que nos ardores naturaes levas de vencida os severos e prudentes prejuizos da senectude; ó
mocidade! com todos os teus desvios e extravagancias, eu te amo!
Coroada de santas flores da primavera, o olhar em fogo, palpitante o seio, febrenta a fronte de divinaes sonhos,
gozas; mas no gozo tens um holocausto – sacrificio da mariposa na chamma dos seus amores! Não importa! mocidade,
quem te não ama?
- E Julio?
- E Julio, leitores... O que padecerá o triste entre os remorsos de um amor santo sumido no tumulo, e as lembranças
mais vivas de outro, desencantado pela desgraça, pela velhice, pelas molestias!
José Ferreira de Menezes.

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