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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio con-
vencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
FICHA CATALOGRÁFICA
BANCA EXAMINADORA
Professor: __________________________________________________________________
Assinatura: _________________________________________________________________
Assinatura: _________________________________________________________________
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Dedico este trabalho aos meus pais, José Carlos e Maria Amélia,
e aos meus irmãos, Helena e Pedro.
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer àquilo que faz as coisas serem como são,
pois disso parte todo o resto que se segue. Depois, agradeço aos meus pais, José Carlos e Ma-
ria Amélia por serem meu maior exemplo em tudo. Mas principalmente no amor incondicio-
nal que deles recebo. Agradeço ao apoio tanto nas condições físicas, materiais, quanto nas
emocionais, sem as quais eu não seria quem sou e não chegaria onde chego. Agradeço tam-
bém aos meus irmãos Helena e Pedro que, assim como meus pais, me são exemplos de supe-
ração, força e determinação. São minha Ohana e incrivelmente perfeitos em suas imperfei-
ções.
Gostaria também de agradecer o meu orientador, Professor Assoc. Nuno M. M. dos
Santos Coelho, por ter sempre demonstrado apoio às minhas ideias, tanto na escolha do tema,
quanto à estrutura do trabalho e principalmente do meu intercâmbio. Aproveito também para
demonstrar minha gratidão àqueles que tornaram tal aventura possível, a Universidade de São
Paulo pela concessão de minha bolsa de estudos e ao Prof. António Mendo Castro Henriques
que gentilmente me recebeu nas terras lusitanas.
Dentre os professores gostaria de destacar aqueles que me impressionam pela paixão à
arte que é ensinar: Professores Nuno e Nojiri e Professoras Flávia e Cynthia. Para além dos
professores também dependi bastante de outros profissionais na faculdade, aos quais sou grata
pela atenção, presteza, competência: Éder, Renata, Ariadne, Márcia, Érica, Omar, Marco e
Rubens.
Agradeço ao meu amigo Ricardo, exemplo de dedicação e competência, com quem ti-
ve o privilégio de dividir desde risadas a anseios, dúvidas e discussões teóricas dos mais dife-
rentes tipos.
E, por último mas não mesmos importante, àqueles que fizeram do meu cotidiano e da
minha vida nesses últimos anos algo para ser sempre lembrado com carinho e muito afeto:
Carina, Brenner, Letícia, Ruth, Sara, Raysa, Jéssica, Octávio, Gabriel, Paschoal, Sônia, Bruna,
Maisa, Francisco, Juliana e Heloísa. Aqueles que são do núcleo de convívio universitário não
deixam de me surpreender pelo fato de pessoas tão distintas e plurais poderem ser também tão
semelhantes.
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RESUMO
Palavras-chave: Teoria Geral do Estado. Filosofia Política. Hans Kelsen. Eric Voegelin. Legitimi-
dade. Representação política.
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ABSTRACT
Assuming that representation is a basic and essential element of legitimacy, this paper dis-
cusses the analysis of what is considered representation and the relationship between this con-
cept and the legitimacy in the theories of Hans Kelsen and Eric Voegelin. There is the study
of the methodological assumptions of each author, and then the analysis of theories, making it
possible to contextualize both concepts and understand them the most complete and compre-
hensive way. In Hans Kelsen's theory is presented the concept of state, law, political power,
forms of government organization, representation in parliamentary democracy, the fact that
representation is considered a fiction and, ultimately, legitimacy. Eric Voegelin, presents the
different stages of his thought, his criticism about positivism, and the representation is spoken
by the writings of the History of Ideas and The New Science of Politics. Hans Kelsen's theory
provides a more strict and easy to grasp on reality panorama, while Eric Voegelin traces a
wider panorama, ranging from human consciousness to the transcendental. Finally there is the
critique of Kelsen about Voegelin and the last, a critical analysis of both theories.
Keywords: General Theory of the State. Political Philosophy. Hans Kelsen. Eric Voegelin.
Legitimacy. Political representation.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 17
1. Hans Kelsen ........................................................................................................................ 21
1.1. Biografia ....................................................................................................................... 21
1.2. Sobre o Positivismo ...................................................................................................... 22
1.3. Sobre o Estado ............................................................................................................... 23
1.3.1. O Direito e o Estado ................................................................................................ 23
1.3.2. O território do Estado .............................................................................................. 26
1.3.3 O tempo como elemento do Estado.......................................................................... 27
1.3.4. O povo ..................................................................................................................... 29
1.4. Sobre o poder político e os três poderes ....................................................................... 30
1.5. Sobre as diferentes formas de governo e a importância da democracia ....................... 33
1.6. Representação na democracia parlamentar ................................................................... 38
1.7. Representação como ficção .......................................................................................... 40
1.8. Solução do problema da representação ......................................................................... 41
1.9. O que é Legitimidade ..................................................................................................... 43
2. Eric Voegelin ....................................................................................................................... 47
2.1. Biografia ........................................................................................................................ 47
2.2. As três fases ................................................................................................................... 48
2.2.1. A História das Ideias ............................................................................................... 49
2.2.2. Ordem e História ..................................................................................................... 50
2.2.3. Anamnese e últimos volumes de Ordem e História ................................................ 56
2.3. Críticas ao Positivismo .................................................................................................. 56
2.4. Representação na História das Ideias – Período Moderno............................................. 64
2.5. Representação na Nova Ciência da Política .................................................................. 70
2.6. Representação e Legitimidade ....................................................................................... 82
3. Crítica de Kelsen à Nova Ciência da Política ................................................................... 85
CONCLUSÃO......................................................................................................................... 91
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 95
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INTRODUÇÃO
Pela leitura dos dois autores, se percebeu uma grande dicotomia no que tange aos
pressupostos metodológicos de Kelsen e Voegelin. O primeiro autor é uma referência do mé-
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todo positivista dentro da teoria do direito, enquanto o segundo autor é um crítico do positi-
vismo, havendo até certa discussão sobre qual pressuposto metodológico sua teoria se encai-
xaria. De forma ampla ele poderia ser classificado como filósofo metafísico, com um direcio-
namento ontológico. Para Kelsen, Voegelin seria classificado como autor teológico. Por isso,
entendeu-se que caberia antes do estudo das teorias dos autores, a compreensão dos seus pres-
supostos metodológicos.
Já a abordagem do tema na teoria de Eric Voegelin não seguirá dos conceitos mais
amplos aos mais restritos, em decorrência do fato de que este autor não manteve um pensa-
mento tão linear durante a vida, sendo sua teoria marcada por duas rupturas, ou seja, consiste
em três fases. Após essa contextualização, haverá o enfoque metodológico, abordando a críti-
ca de Voegelin ao positivismo. E então sim, será possível a apresentação da teoria, que partirá
da análise do conceito de representação na primeira fase do autor e depois o da segunda fase.
A transição entre as duas primeiras fases é maior do que entre as duas últimas, de forma que
se entendeu não ser necessário tratar da última fase neste trabalho, principalmente pelo fato de
que o autor passou a se dedicar principalmente à filosofia da consciência, que é um assunto
muito complexo para ser trazido desde a consciência individual até a legitimidade do Estado.
Dessa forma, o conteúdo sobre a consciência será apenas brevemente pincelado neste traba-
lho. Por fim, haverá a relação entre o conceito de representação e legitimidade para esse au-
tor.
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Por último, haverá as conclusões retiradas das teorias tratadas no trabalho, com levan-
tamento de qualidades e críticas de ambas em separado e comparativamente. Mais do que
conclusões taxativas, que não são necessariamente as melhores, principalmente em um tema
abrangente como o deste trabalho, a pretensão é que se consiga levantar a importância da aná-
lise da sociedade por diferentes métodos e compreensões possíveis. Por vezes, a análise da
sociedade por diferentes lentes, mesmo que opostas, pode fornecer uma visão mais completa e
ampla da própria sociedade, já que todo estudo voltado para um critério ou método diferente é
específica e, portanto, excludente. Ou seja, toda delimitação de tema gera exclusão e por ve-
zes o estudo de delimitações opostas pode fornecer um panorama mais completo do tema
abordado.
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1. HANS KELSEN
1.1. Biografia
Para a realização da nova constituição, ele priorizou que houvesse uma suprema corte
constitucional. Em 1921 Kelsen foi nomeado membro da Corte Constitucional. Mas como ele
apoiava o divórcio, havia contra ele fortes oposições políticas, como a frente católica, o que
resultou em sua destituição em 1930. Em seguida ele decidiu sair permanentemente do país.
Mudou-se para Genebra e em seguida para Praga, sendo professor universitário em ambas as
cidades. Em Praga havia fascismo e antissemitismo, de forma que Kelsen, que era judeu, dava
aulas sob proteção policial. Quando foi descoberto um plano para matá-lo, decidiu deixar o
país. Dessa forma, em 1940 ele se mudou para os Estados Unidos, sendo pesquisador e pro-
fessor em Harvard e na Universidade da Califórnia. Em 1945, tornou-se conselheiro legal da
Comissão para Crimes de Guerra dos Estados Unidos, em Washington. Seu trabalho consistia
em preparar legal e tecnicamente os aspectos dos julgamentos de Nuremberg.
Ele sempre teve uma vida muito produtiva academicamente, escrevendo diversos li-
vros e aproximadamente 400 artigos, escritos em alemão, inglês e francês. Ele morreu em 20
de abril de 1973, com 92 anos1.
1
Introdução feita por A. Javier Treviño, em 2004 ao livro “General Theory of Law and State” (KELSEN, 2004)
22
A respeito do positivismo, é uma teoria que surge para se contrapor à teoria jusnatura-
lista. A teoria naturalista possui um âmbito transcendente, de caráter metafísico e, de acordo
com Kelsen, teve predomínio no período do desenvolvimento do Estado na monarquia abso-
luta. Mas quando a burguesia liberal no século XIX ascende ao poder, passa a questionar as
teorias naturalistas, criticando principalmente o aspecto religioso delas e passando a valorizar
os estudos empíricos, típicos das teorias positivistas. Nesse momento a teoria jusnaturalista é
suplantada pela juspositivista, mas não de forma total, de modo que o que se percebe é uma
mescla entre as duas vertentes, tanto que Kelsen afirma haver na teoria do Direito uma junção
com âmbitos da psicologia, biologia, ética e a teologia (KELSEN, 2006, p. 52). A “Teoria
Pura do Direito” de Kelsen surge justamente como uma crítica a essa mistura da ciência jurí-
dica com elementos considerados estranhos ao que deve ser uma ciência do direito.
Kelsen afirma que uma ciência do direito é aquela que “se propõe a investigar causas e
efeitos daqueles eventos naturais que, qualificados pelas normas jurídicas, se apresentam co-
mo atos públicos” (KELSEN, 2006, p. 58), e afirma que uma teoria que queira, por exemplo,
entender as causas de um legislador promulgar uma norma e não outra, ou quais os efeitos
dessa norma, ou como os fatos econômicos ou religiosos influem na aplicação das leis ou co-
mo o comportamento dos homens se modifica pela ordem jurídica, é uma teoria que não pode
ser qualificada como ciência jurídica, e sim como sociologia jurídica ou filosofia política.
O autor critica essas análises sociológicas e filosóficas por serem conhecimentos que
fazem um juízo de valor e disso resulta que classificam o objeto de estudo, ou seja, o Direito
como sendo justo ou injusto. Por meio dessa análise valorativa, afirma Kelsen que o teórico
ou a teoria não se compromete com nada, ou seja, que os valores dados ao ordenamento ser-
vem de instrumento para interesses políticos, criando uma ideologia que pode servir tanto
para legitimar quanto para desqualificar a ordem social (KELSEN, 2006, p. 63). Dessa forma,
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Kelsen classifica a Teoria Pura do Direito como sendo anti-ideológica, e portanto uma “ver-
dadeira ciência do direito” (KELSEN, 2006), porque a ideologia encobre a verdade, buscando
ou preservá-la ou destruí-la. A ideologia tem por base a vontade e não o conhecimento.
Esse mesmo processo ocorre quando da análise do conceito de justiça, pois como é um
conceito valorativo, de acordo com Kelsen a “Justiça é um ideal irracional. Seu poder é im-
prescindível para a vontade e o comportamento humano mas não o é para o conhecimento. A
este só se oferece o direito positivo, ou melhor, encarrega-se dele.” (KELSEN, 2006, p. 62). E
em relação a busca de saber se o conteúdo do direito é justo ou injusto, ou mesmo compreen-
der o conceito de direito como associado ao de “justiça”, afirma o autor que “o direito – e isso
é provado pela história do espírito humano, que há milênios se preocupa inutilmente com a
solução desse problema – não pode ser de modo algum alcançado através do conhecimento
racional” (KELSEN, 2006, p. 61).
O autor afirma que embora os questionamentos sobre o Direito Natural feitos pela
burguesia tenham modificado a teoria do direito, direcionando-a ao positivismo, ainda não
houve uma teoria pura, pois mesmo no positivismo adotado se fazia uso de análises éticas,
pelo chamado “mínimo ético” ou “mínimo moral”. E é assim, portanto, que Kelsen busca em
sua “Teoria Pura do Direito”, fazer um estudo dos fatos da realidade, dissociando-os de juízos
valorativos.
Kelsen afirma que um problema da teoria política, que é essencialmente uma teoria do
Estado, decorre do fato de que a palavra “Estado” é utilizada tanto em sentido amplo, como
“sociedade”, ou em restrito, como “nação”, ou “governo” ou “órgãos do governo” e por isso
autores tratam assuntos diferentes com o mesmo termo e alguns ainda fazem uma mescla,
empregando a mesma palavra com significados diferentes. E é por esse motivo que Kelsen
deixa claro que pretende valer-se da palavra no sentido puramente jurídico.
O autor defende que o Direito e o Estado são unos, mas explica que na teoria política
moderna eles são considerados em um dualismo. Dessa forma, ele analisa vários modos de
compreender o Estado, começando pelas teorias dualistas, a fim de as criticar. A primeira de-
las é o Estado como ordem e como comunidade constituída pela ordem, na qual o Estado é
uma realidade, um fato, e surge anteriormente ao Direito, sendo este “criado “por” um Estado
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ou válido “para” um Estado” (KELSEN, 2005, p. 262). Entretanto, Kelsen afirma que tal dua-
lidade não é defensável pelo fato de que o próprio termo “comunidade” significa que determi-
nado grupo de indivíduos tem a conduta regulamentada por um sistema normativo, ou seja, o
ordenamento jurídico seria a característica básica e essencial para a existência de um Estado,
de forma que não se pode dissociar os dois elementos, o Estado é a “sua” (própria) ordem
jurídica.
A respeito da interação, o autor afirma que esse fator não é suficiente para afirmar que
haja uma comunidade, pois todos os humanos e até mesmo fenômenos interagem de alguma
forma. Tão pouco se pode afirmar que a interação seria maior entre indivíduos de um mesmo
Estado pois há muitas vezes maior interação, seja econômica, política ou cultural, entre indi-
víduos de diferentes Estados do que dentro de um só.
Quanto à teoria da vontade ou interesse comum, nela se defende que essa “vontade”
ou “interesse” constituiria uma unidade, que o autor afirma ser uma ficção. É uma ficção pois
é muito improvável que todos os cidadãos queiram as mesmas coisas, principalmente em co-
munidades grandes, mas mesmo nas pequenas as pessoas dificilmente têm uma vontade una.
Isso ocorre porque os indivíduos estão em constante mudança e portanto as vontades compar-
tilhadas seriam válidas apenas nos momentos em que essa identificação prevalece, já que os
cidadãos podem decidir de uma forma e posteriormente mudar de opinião, acabando com a
unicidade.
A definição de Estado que Kelsen considera válida é a jurídica, na qual Direito e Esta-
do são elementos indissociáveis. De forma clara e sucinta, a definição do autor é a seguinte:
“o Estado é aquela ordem da conduta humana que chamamos de ordem jurídica, a ordem à
qual se ajustam as ações humanas, a ideia à qual os indivíduos adaptam a sua conduta.”
(KELSEN, 2005, p. 272), e afirma que existe apenas um conceito jurídico de Estado, qual
seja, o de ordem jurídica, centralizada.
Para reiterar o fato de que o Estado é uma ordem jurídica, Kelsen analisa a expressão:
o “Estado é uma sociedade politicamente organizada” e afirma que nessa concepção o caráter
político do Estado significa ser uma ordem coercitiva, que regula e monopoliza o uso da for-
ça. E essa ordem coercitiva é justamente o Direito, ou seja, o Estado é uma sociedade organi-
zada pelo sistema normativo. Mesmo que o caráter político se deva a uma relação de “poder”,
esse poder só é possível de ser exercido se houver uma estrutura de ordem normativa que in-
vista alguém no poder e obrigue outro a obedecer. Só quando a ordem coercitiva, ou seja, o
Direito, é eficaz, que se pode dizer que há esse poder político que se manifesta pelo monopó-
lio do uso da força.
Kelsen então questiona de que forma o Estado se manifesta na vida social, haja vista
ele ser invisível e intangível. E a resposta é que sua manifestação ocorre através de ações de
seres humanos que sejam consideradas ações do Estado. Mas nem todos os indivíduos são
capazes de realizar ações que sejam consideradas do Estado e mesmo para os que podem rea-
lizar tais ações, não se pode dizer que todas as ações por eles realizadas sejam necessariamen-
te ações do Estado. Sob esse questionamento acerca das ações, Kelsen conclui que o problema
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do Estado é um problema de imputação: “uma análise demonstra que imputamos uma ação
humana ao Estado apenas quando a ação humana em questão corresponde, de uma maneira
específica, à ordem jurídica pressuposta” (KELSEN, 2005, p. 276). Cabe o destaque de que a
ação humana é considerada como sendo do Estado quando a ordem jurídica da qual ela pro-
vém é uma ordem válida, ou seja, determinada por autoridade competente.
As partes cujos atos são considerados como sendo do Estado são denominadas órgãos
do Estado. Em outras palavras, são órgãos do Estado aqueles que são determinados pela or-
dem jurídica a cumprir funções de criação e aplicação das normas. Especificar o que são e o
que fazem os órgãos do Estado serve para compreender que o Estado não é uma entidade su-
pra individual que age e tem vontade própria, mas é uma estrutura formada por órgãos, que
são compostos por pessoas que atuam com determinadas funções prescritas em normas. Esses
órgãos podem ser compostos por uma coletividade de pessoas bem como por uma pessoa só.
Kelsen trata também da questão de como pode o Estado ter obrigações e direitos. Ele
afirma que em uma teoria que admita a dualidade (Direito-Estado) a questão é posta como de
difícil resolução por questionar como pode o Estado que cria e emana a ordem jurídica estar
ele mesmo sujeito a essa ordem? Mas Kelsen afirma que esse é um pseudoproblema, haja
vista que para esse problema existir, deve-se entender o Estado como sendo um ser supra-
individual, e que não faz sentido que se submeta à ordem que ele mesmo cria. O autor soluci-
ona a questão afirmando que não é o Estado que cria o ordenamento jurídico, são os órgãos
que o compõem que criam e esses órgãos são formados por pessoas e nesse sentido, os órgãos
criam um ordenamento jurídico regulando a conduta humana. O autor afirma que a única coi-
sa que pode ser objeto de regulamentação do sistema normativo é a conduta humana e que
não há o menor motivo para duvidar que os seres humanos, mesmo que investidos em função
de órgãos do Estado, devam ter sua conduta regulamentada pelo Direito. Em síntese, quando
se diz dos direitos e obrigações do Estado, significa direitos e deveres dos órgãos do Estado.
O território de um Estado deve ser entendido como a área na qual há uma mesma or-
dem jurídica que é válida em toda ela. Dessa forma percebe-se que o território não é uma uni-
dade geográfica ou natural e sim jurídica, podendo não ser contígua geográfica ou natural-
mente. Há uma limitação territorial na esfera de validade da ordem jurídica, diferentemente da
ordem moral ou do Direito internacional, que não possuem uma esfera territorial de validade
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limitada, a princípio, já que existem onde houver seres humanos. Essa limitação territorial de
validade da ordem jurídica significa que somente dentro desse território o Estado pode exercer
sua coerção e executar suas sanções. É o Direito internacional que “delimita as esferas territo-
riais de validade das várias ordens jurídicas nacionais.” (p. 301)
Kelsen também trata dos aumentos e diminuições dos territórios, de ocupações, anexa-
ções e cessões, questões que se relacionam com a eficácia da ordem jurídica dentro do territó-
rio. A depender dos processos de modificação de um território pode-se falar do surgimento ou
não de um novo Estado, a esse respeito, cabe a transcrição do trecho:
“Um modo de perda de território que não corresponde a um modo de aquisição é o estabe-
lecimento de um novo Estado em uma porção do território de um Estado antigo por parte de
sua população. O nascimento de um novo Estado tem lugar, como veremos mais tarde, de
acordo com o princípio de eficácia, quer seja o estabelecimento de um novo Estado resulta-
do de uma secessão revolucionária de uma parte da população como, por exemplo, no caso
dos Estados Unidos, quer seja resultado de um tratado internacional como, por exemplo, no
caso de Danzig ou do Estado do Vaticano. O fato constitutivo é o de que uma nova ordem
jurídica se torna eficaz para um território que, anteriormente, integrava o território de um
Estado existente; e que, em consequência, a ordem jurídica nacional anteriormente válida
deixa de ser eficaz para esse território.” (KELSEN, 2005, p. 312)
que o território no qual foi posta em vigor a ordem coercitiva não formou previamente, jun-
to com os indivíduos que nele vivem, o território e a população de um Estado. Ele deve ser
um território que, junto com os indivíduos que nele vivem, não pertenceu, até então, a Es-
tado algum, ou então a dois ou mais Estados, ou apenas faz parte do território e da popula-
ção de um Estado. Caso haja se estabelecido um governo capaz de obter obediência perma-
nente à sua ordem, em um território e por parte de uma população que já eram o território e
a população de um único Estado, se o território e a população forem idênticos, então ne-
nhum novo Estado, no sentido do Direito internacional, começou a existir; apenas foi esta-
belecido um novo governo. Admite-se um novo governo apenas se ele for estabelecido
através de revolução ou coup d’état.”2 (KELSEN, 2005, p. 315-316).
2
Coup d’etat significa “golpe de estado ou subversão da ordem constitucional”.
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O segundo ato é a declaração de disposição para travar relações mútuas com esse governo.”
(KELSEN, 2005, p. 327). O que torna um governo representante do Estado em âmbito inter-
nacional é a constituição eficaz dele. Há que se ressaltar que para que um Estado seja reco-
nhecido, deve-se subentender que ele possui governo, ou seja, o reconhecimento jurídico de
um Estado é também o reconhecimento de seu governo.
Como se percebe, o tempo como elemento do Estado serve para diferenciar as mudan-
ças, surgimento de Estados ou governos diferentes do que havia antes em dado território. O
autor trata sobre a sucessão de Estados e elas ocorrem quando há mudança territorial do Esta-
do, pois do contrário, se o território se mantiver, a identidade do Estado também é mantida.
No caso de haver manutenção do território do Estado, pode haver uma mudança de governo.
Kelsen fala em manutenção da identidade do Estado porque entende que a mudança de gover-
no, quando eficaz, é somente um meio de transformação do ordenamento jurídico do Estado,
mesmo que por meio de um golpe de Estado.
1.3.4. O povo
Assim como em relação ao território, o povo não é um elemento determinado pela na-
tureza, mas é uma unidade jurídica. Essa unidade reflete o conjunto de pessoas que tem a sua
conduta regulamentada pela mesma ordem jurídica nacional. E tem sua conduta regulamenta-
da aquelas pessoas que estão dentro do território de um Estado, que é a esfera de validade pra
ordem jurídica, e é o local onde essa ordem pode ser coercitiva, executar as sanções estabele-
cidas.
Entretanto, se nota que mesmo dentro de um território no qual há uma mesma ordem
jurídica coercitiva para os que ali estejam presentes, há diferenças entre aqueles que são de-
nominados cidadãos e os que não são, cabendo, portanto, analisar em que consiste tal diferen-
ça. Kelsen afirma que a cidadania ou nacionalidade é um status pessoal, do qual decorrem
direitos e obrigações específicas. Dentre os direitos comumente reservados aos cidadãos, cabe
destacar os direitos políticos, sendo o principal deles o direito de votar, de participar das elei-
ções, assim como o de ser eleito. O autor afirma que os direitos políticos têm, portanto, maior
importância para a criação e execução das leis do Estado e que aos cidadãos é dada a possibi-
lidade jurídica de participar desses processos. Ele ressalva o fato de que apenas na democracia
todos os cidadãos tem direitos políticos, ao passo que nas autocracias, os direitos políticos são
reservados a grupos maiores ou menores de cidadãos, de forma que algumas pessoas são con-
30
sideradas cidadãs enquanto outras são somente sujeitos à ordem jurídica do Estado. A questão
da democracia e da autocracia é um assunto que será tratado mais adiante.
Outro destaque que pode ser feito é o de que os direitos políticos podem não ser exclu-
sivos de cidadãos. O autor exemplifica que são direitos políticos estendidos à não nacionais,
por exemplo, a segurança, liberdade de expressão, direito contra busca e apreensões desarra-
zoadas. Nesse sentido, a diferença entre cidadãos e não cidadãos, ou seja, sujeitos, não é tão
importante, é diminuída, já que a tendência é haver uma equalização entre os residentes em
um mesmo Estado. Ele afirma que diversos são os casos em que possuir ou não cidadania não
é fator relevante quando se consideram os deveres e direitos dentro de um só Estado, e que a
cidadania é um conceito mais importante nas relações internacionais. Isso é percebido porque
a determinação de cidadãos e sujeitos serve para estabelecer quais pessoas podem ser protegi-
das contra a violação de seus direitos por parte de outros Estados, como por exemplo, o fato
de um Estado não poder extraditar seu nacional, mas poder fazer isso com um estrangeiro.
O estudo do poder do Estado deve começar com a concepção mais ampla. Na análise
comumente feita, o poder é identificado como a soberania do Estado. Kelsen, entretanto, en-
tende que é mais preciso analisar o poder como a validade e eficácia da ordem jurídica nacio-
nal. Por eficácia entende-se a capacidade coercitiva da ordem jurídica, que se manifesta pelo
monopólio do uso da força e aplicação das sanções, sendo este um fator importante do poder
político.
Embora Kelsen analise os três poderes de forma separada, ele entende que essa sepa-
ração não se sustenta em relação aos fatos. Isso ocorre porque na teoria kelseniana não há três
funções básicas do Estado, e sim duas, quais sejam a criação e a aplicação do Direito (legis
latio e legis executio). O autor defende ainda que não se pode afirmar que haja uma separação
tão clara desses poderes, pois todos os órgãos em certa medida criam e aplicam o Direito. A
criação e aplicação do Direito são intimamente ligadas à validade e eficácia, que representam
o poder político, como já dito. A criação diz respeito à validade, pois o ordenamento só é cor-
retamente criado, e portanto válido, se cumprir com certas formalidades, como ser feito por
uma autoridade competente. Já a eficácia está diretamente relacionada com a aplicação das
normas, pois só é eficaz um ordenamento coercitivo, que seja aplicado. Dada essa visão ampla
dos poderes políticos, que ainda serão mais analisados no trabalho, cabe agora destacar a fun-
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ção de cada um dos três poderes e perceber como na teoria de Kelsen eles todos acabam por
possuir as duas funções, ou seja, em maior ou menor medida, criam e aplicam as normas jurí-
dicas.
Para explicitar em que medida os órgãos do executivo e do judiciário atuam como ór-
gãos do poder legislativo, Kelsen dá alguns exemplos. Os órgãos do executivo exercem essa
função quando podem regulamentar positivamente questões que o órgão legislativo ainda não
positivou, mas isso não exclui a competência dos órgãos do legislativo depois positivarem a
mesma matéria. Além disso, o chefe do executivo também apresenta competência legislativa
quando pode ter a iniciativa dentro do processo legislativo, ou então quando a aprovação de
uma lei depende de sua sanção ou veto. Já em relação aos órgãos do judiciário, eles exercem
função legislativa quando podem anular leis inconstitucionais ou um decreto-lei, ou mesmo
quando uma decisão judicial passa a servir de precedente para o julgamento de outras causas
que sejam similares.
Resulta que a maior diferença entre os órgãos do legislativo e os outros é o fato de que
somente as normas emitidas pelo legislativo são denominadas “lei” ao passo que as dos outros
poderes possuem diferentes denominações, como “decreto-lei” ou “súmula”. Embora as no-
menclaturas sejam diferentes, a função normativa é a mesma.
Com relação ao poder judiciário, na teoria das duas funções do Estado de Kelsen, ele é
na verdade um poder executivo na medida em que executa as normas. Desse modo, cabe es-
pecificar em que medida essa função executiva difere daquela atribuída ao poder executivo. A
função executiva do poder judiciário consiste no estabelecimento de um fato como sendo um
delito tanto civil quanto criminal e a respectiva aplicação da sanção. Essa função é caracteri-
zada também por possuir uma controvérsia entre as partes envolvidas. A função executiva do
poder executivo pode ser caracterizada pela aplicação das leis que tenham caráter administra-
tivo, como as relativas ao fisco ou vigilância sanitária. Uma diferença entre os órgãos desses
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poderes consiste no fato de que os juízes possuem independência ao passo que os órgãos do
poder executivo devem obedecer a autoridade hierarquicamente superior.
Tanto os atos do poder executivo quanto os do legislativo podem ser analisados e jul-
gados pelos órgãos do poder judiciário. Os tribunais ordinários (em oposição aos que são do
poder administrativo) podem julgar tanto a constitucionalidade de uma lei que o poder execu-
tivo quer aplicar quanto os próprios atos administrativos e em relação ao poder legislativo,
julgam a constitucionalidade de leis ou decretos. Kelsen afirma que essa característica do po-
der judiciário se deve a questões históricas e surge na mudança da monarquia absoluta para a
constitucional, pois no início a independência dos órgãos do judiciário se deu em relação ao
monarca, que continuou com as funções executiva e legislativa. Posteriormente a função le-
gislativa do monarca passou a depender da atuação do parlamento, que em determinado mo-
mento o ultrapassou em importância para a criação das leis. E por meio dessa contextualiza-
ção histórica é possível notar que “o controle da legislação e da administração por tribunais
tem nítido significado político dentro de uma monarquia constitucional” (KELSEN, 2005, p.
402), pois pretendia uma distribuição das funções do Estado em diferentes órgãos e uma des-
centralização do poder do monarca. Para Kelsen não houve uma “separação dos poderes”,
tanto que os diferentes poderes cumprem determinadas funções que supostamente seriam de
responsabilidade de outro órgão e dessa forma o autor afirma que o ocorrido foi uma divisão
de competências entre o monarca, o parlamento e os tribunais. Historicamente o que houve
33
não foi uma intenção de separação de poderes, mas uma descentralização das competências
do monarca.
Mais especificamente, em relação à democracia, Kelsen afirma que essa divisão dos
poderes deve ser entendida como resultante do processo histórico, mas que não significa que a
separação é uma característica da essência da democracia. A característica essencial da demo-
cracia é o poder estar totalmente concentrado no povo e preferencialmente de forma direta,
mas quando isso não é possível, deve haver uma eleição dos membros dos órgãos dos poderes
e eles passam a ser juridicamente responsáveis para com o povo. Nesse sentido, Kelsen enfa-
tiza a eleição do órgão colegiado do parlamento e afirma que mesmo que os outros órgãos
também sejam eleitos pelo povo, eles são responsáveis em relação ao legislativo porque é por
meio das leis que ele edita que se estabelecem as competências dos outros órgãos, e é dessa
forma que o legislativo exerce controle sobre os outros. Por fim, a conclusão é de que a divi-
são de competências dos órgãos depende do que estiver estabelecido na constituição de cada
Estado e que esse processo só pode ser entendido de forma histórica, não precisamente pelo
estudo dos elementos democráticos.
Até este ponto, o presente trabalho analisou o que se poderia chamar de teoria ampla
ou das bases do Estado – o que se entende por Estado, governo, poder, qual a fundamentação
do Estado. E a partir de agora a explanação será em um sentido mais restrito, começando-se
pela análise das diferentes classificações de governos, a seguir, a importância que Kelsen dá
para a democracia e onde está a representação dentro dessa teoria. Esse percurso será feito
com o fim de observar se a representação é um fator determinante nas questões práticas de
crise e modificação do ordenamento normativo, do governo, constituição e do próprio Estado,
ou seja, em que pontos pode-se relacionar a representação com a legitimidade.
Dentro da teoria clássica de classificação dos governos, há três espécies que são a
monarquia, a aristocracia e a democracia. Kelsen afirma que na teoria clássica o fator
qualificativo é a organização do poder soberano, pois na monarquia o poder pertence ao rei,
na aristocracia à uma minoria da população e na democracia à maioria da população. Mas o
autor entende que o critério de classificação não deve ser o poder soberano, pois em uma
teoria jurídica, o que difere as formas de Estado são as constituições. Nesse sentido, a
34
depender de como é criada a constituição, há dois tipos de governo, duas formas de Estado,
que são a democracia e a autocracia.
atos devem ser ratificados pelos ministros de gabinete, embora ele continue representando o
seu Estado em relação aos outros Estados e seja o comandante-em-chefe das forças armadas.
A última forma governamental que Kelsen trata sob o título de autocracia são as
ditaduras de partido. O autor usa como exemplo o “bolchevismo” russo, o “fascismo” italiano
e o Estado social-nacionalista da Alemanha. O “bolchevismo” proveio do partido que
defendia os interesses do proletariado, já o “fascismo” decorreu de um partido de classe
média. Nesses três casos há um culto ao líder, a censura da imprensa e a proibição da
liberdade de expressão, podendo tanto os órgãos do Estado quanto os do partido intervir na
liberdade dos cidadãos. Kelsen afirma que a manutenção de tais regimes só é possível por
meio de propagação sistemática de uma ideologia pelo governo e que enquanto na ditadura do
proletáriado a ideologia é o socialismo, nas ditaduras burguesas é o nacionalismo. O autor
ainda afirma que embora nessas ditaduras possa haver eleições ou órgãos democráticos, eles
servem somente para dissimular a ditadura, já que no final ninguém poderia exprimir a sua
opinião se ela não fosse condizente com as idéias do partido, sob o risco de danos ao
patrimônio, liberdade e vida.
As sociedades são compostas por seres humanos e estes possuem algumas necessida-
des, com destaque para a liberdade, que deve estar contida na organização social.
36
teoria afirmando que nessa sociedade um ordenamento normativo seria desnecessário, pois se
houver plena sobreposição entre a conduta dos indivíduos e a ordem social, a própria ordem
não existiria ou seria útil, já que somente quando um indivíduo viola a ordem é que ele passa
a estar sujeito à ela. Nesse sentido o autor conclui que “uma ordem social genuína é incompa-
tível com o grau máximo de autodeterminação” (KELSEN, 2005).
O autor ressalva o fato de que o princípio da maioria não significa que deva haver uma
ditadura da maioria sobre a minoria. Muito pelo contrário, o direito da maioria implica que
haja uma minoria e que só há realmente uma democracia se a minoria puder participar, pois a
democracia implica a participação de todos. Não obstante, uma minoria pode tentar influenci-
ar outros grupos por meio da livre argumentação, e se tornar posteriormente uma maioria.
Essa multiplicidade de opiniões consiste em característica essencial da democracia.
Cabe um parêntese para clarear alguns pontos da teoria de Kelsen, pois ele descreve os
elementos sociais com base no pressuposto da antítese entre ideologia e realidade. Ele afirma
que há pessoas que fazem a análise da sociedade ignorando um aspecto ou o outro, mas os
dois devem ser analisados, porque as teorias ideais possuem impedimentos de ordem prática,
ao mesmo tempo em que a prática busca alcançar os objetivos ideais da melhor forma
possível. E essa divisão entre a “ideologia” e a “realidade” acompanha todas as ideias que
estão compreendidas dentro de uma teoria sobre a democracia, ou seja, os conceitos de
“povo”, “representação”, e mesmo “democracia”.
38
Já foi tratada aqui a antítese do conceito de liberdade. O plano ideal consiste na teoria
da liberdade natural, na qual os indivíduos tem uma demanda de liberdade, ou seja, a possibi-
lidade de exercerem suas vontades sem que haja interferência externa. O plano real, no entan-
to, evidencia que os seres humanos vivem em comunidade e que para tanto não é possível
viver em plena liberdade, pois isso poderia acarretar a supressão da liberdade de outros. As-
sim, a síntese consiste na transformação do conceito de liberdade natural para o político, no
qual somente há liberdade quando a pessoa participa ativamente da construção de sua comu-
nidade e que haja uma organização tal que a liberdade individual de todos seja garantida por
meio de um controle de condutas num nível social, ou seja, as ações realizadas no nível da
comunidade são controladas de modo a garantir a liberdade das ações do indivíduo em sua
vida privada e particular.
atua no lugar, representando o povo. Kelsen afirma que no Estado moderno a democracia
direta é praticamente impossível, pois seria necessária a formação da vontade estatal na
assembléia do povo. Dessa forma, a importância do parlamento é a de conseguir realizar a
democracia. O autor define o parlamentarismo como a “formação da vontade normativa do
Estado mediante um órgão colegiado eleito pelo povo com base no sufrágio universal e igual
para todos, isto é, democraticamente, portanto segundo o princípio de maioria” (KELSEN,
2000, p. 113).
Ainda assim, o autor afirma que o parlamentarismo é uma boa forma de organizar
politicamente a sociedade e ela serve bem para manter a democracia. A democracia indireta é
a forma mais viável de organizar o poder político, aliando a liberdade democrática com a
divisão do trabalho, que se mostra necessária devido à dimensão dos Estados modernos.
Como forma de solucionar essa questão da democracia direta, surgiu, como ja foi
visto, o parlamentarismo. Ele foi criado como um órgão alternativo aos poderes absolutos do
monarca e, em relação ao povo, seria a forma de um grupo menor de indivíduos, eleitos,
representarem a vontade do restante da população, cuja atuação direta seria impossibilitada
por razões práticas. E ao mesmo tempo em que havia esse impasse prático, a impressão que se
intencionava transmitir era a de que no parlamento se realizava a liberdade democrática e foi
então que surgiu a ficção da representação. Essa ficção consiste na afirmação de que o
parlamento é o representante do povo e que este só pode manifestar a sua vontade no e por
meio do parlamento, mas que, ao mesmo tempo, ele é um órgão juridicamente independente
do povo, ou seja, os deputados não são responsáveis perante a população que os elegeu.
Kelsen aponta para o fato de que a divulgação de que o parlamento é um órgão que expressa a
vontade do povo é uma forma de mascarar o fato de que na verdade criou-se um órgão
independente que atua expressando uma vontade própria e que a atuação do povo seria restrita
ao ato de escolher os membros do parlamento.
entender que o membro do parlamento não é representante daqueles que o elegeram, mas de
toda a população. Dessa maneira o eleito não é responsável perante seus eleitores e não pode
ser destituído por eles. Mas Kelsen afirma que essa independência é uma ficção política, pois
a representação do povo pelo parlamento significa que este exerce o poder legislativo da
população como se fosse por procuração, já que o povo não pode exercê-lo de forma direta. E
essa independência é incompatível com a representação jurídica, pois se não houver nenhuma
garantia de que a vontade do eleitorado será executada, a relação jurídica não existe. Assim, o
órgão representaria a vontade da população tanto quanto um monarca hereditário. Kelsen
afirma que os teóricos que defendem a independência dos órgãos eleitos de seus eleitores não
estão fazendo ciência e sim defendendo ideologias políticas, dissimulando a realidade de que
o povo tem apenas a função de criar o órgão legislativo, sob o véu de que o legislador é o
próprio povo, e este atua por meio de seus eleitos.
Kelsen entende que o sistema parlamentarista está posto em diversas sociedades e que
não seja possível criar a ordem estatal desde o início, então ele propõe uma série de medidas
modificativas da ordem parlamentar existente. Assim, ao longo de sua teoria, ele apresenta
algumas soluções em diferentes níveis que serão tratadas neste tópico.
“Não pode haver qualquer dúvida de que, julgadas por este teste, nenhuma das democracias
existentes ditas “representativas” são de fato representativas. Na maioria delas, os orgãos
administratio e judiciário são selecionados por outros méodos que não a eleição popular, e
em quase todas as democracias ditas “representativas”, os membros eleitos do parlamento e
outros funcionários popularmente eleitos, em especial o chefe de Estado, não são
responsáveis juridicamente perante o eleitorado” (KELSEN, 2005, p. 414).
A solução apontada por Kelsen para essa questão é de que não basta que os órgãos do
governo sejam eleitos pela população, eles devem ser responsáveis juridicamente perante os
eleitores, sendo obrigados a executar a vontade dos representados. O autor afirma que uma
garantia para tanto é a possibilidade dos representados de cassar o mandato do representante
caso a sua atuação esteja em desacordo com os desejos dos representados, mas ressalva que
tal medida não é usual nas constituições modernas, citando que há alguns casos de Estados
membros dos Estados Unidos da América, como a Califórnia, que criaram essa possibilidade,
mas que em via de regra os representantes não são juridicamente responsáveis para com seu
eleitorado e não podem ser destituídos por ele.
Outro aspecto que o autor aponta falhas e que deve ser solucionado é o fato de a atua-
ção popular se restringir ao direito de voto para a escolha da composição do parlamento. Kel-
sen entende que além de escolher o parlamento, os eleitores deveriam ser consultados a res-
peito das próprias matérias que são decididas pelo parlamento, pois isso indicaria uma melho-
ria na formação da vontade do Estado. O autor indica que seria positivo se houvesse consultas
ao eleitorado por meio de referendos ou plebiscitos legislativos (e não somente em matérias
constitucionais), mesmo que fossem facultativos. Outra medida de ingerência direta da popu-
lação são as iniciativas populares de projetos de lei, que seriam posteriormente analisados
pelo parlamento.
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O autor também chega a mencionar que uma medida que poderia funcionar seria a
transformação do parlamento em um órgão técnico. Ele continuaria sendo escolhido por meio
de eleições, mas seus candidatos seriam aqueles que possuem formação técnica para a criação
de leis, ou então com formação em economia ou política. Essas medidas seriam uma forma
não de diminuir o âmbito democrático do parlamento, mas tornar suas decisões melhor
embasadas e mais eficientes.
A legitimidade dentro da teoria de Kelsen pode ser encontrada em dois níveis diferen-
tes. No primeiro e mais amplo, ela se dá quando o Estado e seu ordenamento normativo pos-
suem validade e eficácia. Já em um segundo plano, mais restrito, a legitimidade nos Estados
Modernos ocorre nas democracias parlamentares, e será realmente verificada quando a repre-
sentação do povo deixar de ser uma ficção para se tornar juridicamente existente.
Toda vez que Kelsen se aproxima de tratar sobre o poder político, ou decisões
políticas e suas consequências, ou do aspecto político das ações e vontades da população, ele
se afasta sob a justificativa de que essas teorias políticas buscam justificar o comportamento
ou ações humanas e que a teoria positivista não compreende justificações desse tipo. A teoria
positivista de Kelsen aborda o Direito sob a perspectiva de “ciência” e dessa forma, analisa
aspectos de causa e efeito e não a justificação dos fenômenos. Dentro dessa teoria não se deve
analisar os aspectos políticos do poder do Estado, mas sim os jurídicos. Ele afirma que “um
Estado é livre para constituir para si qualquer governo que desejar, contanto que, ao fazê-lo,
não sejam violados direitos de outro Estado e o governo seja eficaz” (KELSEN, 2005, p. 329).
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Embora em certa medida o autor esteja correto, não se pode deixar de criticar o fato de que
posteriormente à 2ª Guerra Mundial tal entendimento já não é mais aceitável, já que um esta-
do não deve poder ser livre o suficiente para decidir dizimar parte de sua população. Pela aná-
lise histórica percebe-se que a coerção pode ser imposta, pois é simples alcançá-la pelo mo-
nopólio do uso da força, com a atuação do exército ou polícia, haja vista o Estado ser muito
mais equipado e preparado do que a população civil.
No mundo pós 2ª Guerra Mundial, essa teoria não é bem acolhida, pois ela dá ensejo a
que regimes autoritários sejam legitimados, desde que haja eficácia do ordenamento, o que
seria facilmente conseguido por meio do uso do monopólio da força, que os Estados possuem,
ou seja, por meio de imposições das forças armadas, por exemplo. Essa é uma decorrência
prática da separação entre teoria e juízos de valor. A valoração é “perigosa” tanto se for usa-
da, pois como Kelsen afirma, ela serve para justificar ou rejeitar uma ordem imposta, mas ao
mesmo tempo, a abstenção de valoração faz com que, na prática, qualquer valor possa ser
utilizado para preencher as lacunas que uma teoria livre de valorações possui, pois o ser hu-
mano não é livre de fazer juízos de valor e a tomada de decisões sempre implica uma valora-
ção. Este é o impasse de se valorar ou não as teorias. Mas o fato é que após a Segunda Guerra
Mundial não se pode mais ignorar que o Estado não pode fazer uso de sua força para oprimir,
perseguir e dizimar partes de sua população, mesmo sob a garantia de um ordenamento que
seja válido, eficaz e que parte da população concorde com ele.
Percebe-se que, embora a teoria de Kelsen seja criticada dessa forma exposta, ele, na
verdade, também não defendia que qualquer governo ou Estado fosse bom ou ideal. Ele não é
hipócrita, pois reconhece que Estados autoritários existem e atuam de forma legítima perante
os outros Estados. Mas também não defende que toda forma de governo é ideal, muito pelo
contrário, ele entende que sempre há divergências entre o plano ideal e suas realizações práti-
cas. É de suma importância frisar que a Teoria Pura do Direito teve sua primeira edição e pu-
blicação em 1933, ao passo que o livro A Democracia foi publicado pela primeira vez em
1954.
forma de democracia é aquela que inclui o maior número de pessoas possível dentro do con-
ceito de cidadãos, de indivíduos com direitos políticos. Ele afirma que a maneira que melhor
se conseguiu realizar a democracia foi através do parlamentarismo, que unia a liberdade de-
mocrática com a técnica da divisão do trabalho. Entretanto, ocorreu que esse método apresen-
ta diversos pontos com problemas, destacando-se a ficção da representação. Ela surgiu para
legitimar a atuação do parlamento, mas não é mais suficiente para manter essa legitimidade.
Dessa forma, a representação é sim um instrumento que legitima a atuação do poder do Esta-
do, mas deve ser revista e modificada, pois da forma como está posta, já não consegue suprir
as demandas da população e perde a força do seu caráter legitimador. Assim, é possível con-
cluir que quando o instituto for reformado, e deixar de ser somente uma ficção teórica, ele
dará as bases de legitimação do poder político de um Estado democrático.
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2. ERIC VOEGELIN
2.1. Biografia
Após seu retorno, ocorre a anexação da Áustria pela Alemanha e a princípio, Voegelin
permanece no país por acreditar que os países ocidentais tomariam medidas contrárias à tal
anexação. Como isso não ocorreu, o pesquisador se viu obrigado a emigrar de seu país, pois
embora não fosse comunista, católico ou judeu, já havia por diversas vezes se manifestado em
palestras, aulas e escritos de forma contrária aos regimes totalitários, especialmente ao nacio-
nal-socialismo. Quando da invasão alemã ele perdeu o seu emprego de professor na universi-
dade e em 1938 conseguiu fugir da Áustria para a Suíça, se mudando posteriormente para os
Estados Unidos, onde tinha a oferta de emprego para ser professor em Harvard, universidade
na qual possuía amigos em decorrência dos anos que tinha passado estudando nesse país. A
sua carreira acadêmica, entretanto, se desenvolveu por um período maior na Universidade da
Louisiana, onde ensinou por dezesseis anos.
Em 1958 ele se muda para Munique, onde funda o Instituto de Ciência Política, que
até então não existia. Muitos alunos se interessavam pelos seminários e a biblioteca formada
incluía livros sobre a filosofia clássica, história moderna, ideias políticas modernas, judaísmo
e cristianismo, Oriente Próximo, China, Índia, África e até estudos da pré-história, todos as-
suntos que Voegelin considerava de suma importância para uma biblioteca de ciências huma-
nas e sociais. Em 1969 regressa aos Estados Unidos, morando na Califórnia, onde permane-
ceu até o seu falecimento em 19 de janeiro de 1985.
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Uma das causas de Voegelin não ser muito estudado e divulgado consiste em sua opo-
sição às teorias de Karl Marx e Hegel. Ele afirma que ambos são teóricos ideólogos, o que
significa que são desonestos intelectualmente, já que ambos fogem da discussão de suas pre-
missas. Ele afirmou que Marx e Hegel eram “charlatões intelectuais” e isso chocou os discí-
pulos desses autores, levando Voegelin ao ostracismo.
O autor passou por duas mudanças em sua visão filosófica. A primeira ocorreu entre a
realização da coleção “História das Ideias Políticas” e da “Ordem e História”. Nesta transição
o autor passou a entender que não havia uma história das ideias, já que não eram as ideias que
tinham história, e sim o ser humano, suas formas de organização social, cultural, filosófica.
Assim, o que é passível de estudo é a ordem das sociedades e as ideias que surgem nelas e não
as ideias em si, afinal elas são o fruto da dinâmica das sociedades. Nesse processo o autor
passa a dar mais importância ao papel do homem na construção da história, pois o ser humano
não é somente um elemento de estudo, mas é um ator, um agente na história. A obra que mar-
ca a transição entre essas duas formas de pensar é “A Nova Ciência da Política”. A partir des-
se ponto, o foco dos estudos não é mais a história das ideias e as diferentes sociedades que
emergem de ideias diversas, e sim que há a ordem das sociedades e em diferentes ordens
emergem diferentes ideias. Em ambas as fases, o autor se dedica a compreender a relação da
humanidade com o tempo, assunto que será melhor tratado a diante.
A outra mudança ocorreu entre os três primeiros volumes de “Ordem e História” e os
dois últimos, pois houve imersão na filosofia da consciência. A transição ocorre da análise da
ordem das sociedades para a percepção de que a busca pela ordem é, em si, uma forma de
exploração da consciência. O autor passa a entender que a filosofia da consciência é “a peça
central de uma filosofia da política” (VOEGELIN, 2009, p. 43). Essa mudança ocorre porque
Voegelin passa a entender que, pela análise da realidade, o que há são as meditações e rela-
ções de seres humanos individuais com o Ser, ou seja, experiências pessoais de consciência. A
obra que marca essa última transição é “Anamnese”.
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Agora que as transições foram brevemente explanadas, cabe uma análise mais deta-
lhada de cada período de Voegelin.
Quando de sua ida para os Estados Unidos, o autor foi convidado a escrever um volu-
me sobre a história das ideias políticas para uma série. Então ele percebeu que em geral o te-
ma não era tratado com a devida propriedade, de modo que passou a se dedicar ao estudo das
fontes, não somente à Platão e Aristóteles, mas também ao surgimento de Israel e a respeito
das civilizações orientais antigas. Ele acreditava que as ideias do “povo de Deus” eram muito
importantes para as ideias dos povos ocidentais e nunca haviam sido tratadas com a devida
vênia. Esse estudo durou de 1939 a 1954, de modo que ele não conseguiu produzir o seu pe-
queno volume para a série, mas acabou por escrever a sua “História das Ideias Políticas”, pu-
blicada postumamente.
Durante a produção de sua História das Ideias Políticas, em uma carta a um editor,
Voegelin explica a estrutura do texto, que na época possuía três volumes, da seguinte manei-
ra:
“O primeiro volume trata das três grandes formas simbólicas desenvolvidas na Antiguida-
de, ou seja, Mito, História e Filosofia; ele termina com Aristóteles. O segundo volume co-
meça com Alexandre, e trata das ordens respectivas do império e do cristianismo, até o
momento de sua crise na Reforma. O terceiro volume é uma unidade sistemática, na medida
e que lida com o desenvolvimento da gnose moderna e sua crise em nosso tempo. A se-
quência do tema, portanto, não é mais uma sequência simples de autores e ideias no tem-
po.” (VOEGELIN, 2012, p. 35)
O trabalho do autor resultou não em três volumes, mas em oito. Nessa coleção, as
ideias políticas são entendidas não como proposições teóricas, mas como as próprias consti-
tuintes da realidade. Isso porque as ideias são ordenadoras da existência política, já que a
“comunidade política torna-se real no processo de atualização da ideia que presidiu à sua for-
mação” (HENRIQUES, 1994, p. 54) e a essas ideias que ordenam e põem a sociedade, Voe-
gelin chamou de “evocações”.
De acordo com António Mendo Castro Henriques, em sua introdução à obra História
das Ideias Políticas, o objetivo de Voegelin era “compreender de que modo as ideias políticas
se tornam socialmente eficazes” (VOEGELIN, 2012, p. 15), e para tanto, estudava os “pro-
cessos espirituais que conferem significado à existência em sociedade e os processos contra-
espirituais que as destroem.” (VOEGELIN, 2012, p. 15). Ainda de acordo com Mendo Henri-
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ques, se tratava de uma “história das ideias, porque a “ideia” é considerada como autointer-
pretação da sociedade” (VOEGELIN, 2012, p. 16).
E é assim que o autor passa a estudar as sociedades, por meio das experiências e sím-
bolos por elas produzidos e com o objetivo de compreender as ideias que surgem em cada
sociedade. Essa mudança paradigmática levou o autor a entender um novo papel do próprio
teórico quando da análise de uma sociedade. Ao analisar a realidade, o teórico deve conseguir
diferenciar os símbolos de autointerpretação da sociedade daqueles que são os símbolos da
teoria política, e dessa forma, ele acaba por escrever outra coleção, com base nesses novos
pressupostos, a “Ordem e História”, que será tratada a seguir.
A frase mais emblemática para expressar a transição metodológica das duas obras do
autor é trazida logo no prefácio de Ordem e História, volume I: “A ordem da história emerge
da história da ordem” (VOEGELIN, 1981, p. IX). Em outras palavras, as sociedades possuem
uma ordem e é ela que muda com o passar do tempo e o estudo da ordem e das suas mudanças
que permite que se apreenda uma ordem na história.
Para Voegelin, toda sociedade cria uma ordem que dota a sua existência com signifi-
cados em termos de fins divinos e humanos. Os símbolos são criados pelas sociedades como
uma forma de possibilitar a sua existência e autointerpretação e eles mudam, sendo a história
uma sequência de ordens inteligivelmente conectadas umas às outras por meio de progressos e
regressos em relação às anteriores. Mas isso não significa que toda ordem bem sucedida tenha
uma relação de progresso ou regresso em relação à anterior.
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O autor entende que embora não haja uma simples marca de progresso ou de que haja
ciclos ocorrendo através da história, o processo é inteligível como um esforço para a ordem
verdadeira. Essa estrutura inteligível da história, de qualquer forma, não pode ser encontrada
dentro da ordem de qualquer uma das sociedades concretas participantes do processo. É uma
realidade a ser entendida retrospectivamente em um fluxo de eventos.
O autor afirma que é obrigação do homem entender a sua condição, e parte dessa con-
dição é a ordem social na qual ele vive, e essa ordem se tornou, hoje em dia, mundial. Essa
ordem não é recente nem simples e contém uma força de efetividade social com sedimentos
da ordem milenar.
Analisando a ordem atual, Voegelin chama a atenção do leitor para o problema metas-
tático, presente no volume de Israel e a Revelação. O problema metastático consiste em que-
rer mudar a natureza fundamental da realidade, que é uma situação de caráter profético de
uma mudança na constituição do ser e repousa no topo das crenças contemporâneas na perfei-
ção da sociedade, tanto através do progresso quanto através da revolução comunista. Essa fé
metastática é uma das grandes forças de desordem, se não a principal, no mundo contemporâ-
neo, e é um assunto que o autor entende ser de vida ou morte para que todos entendam o fe-
nômeno e achem remédios contra isso antes que destrua a humanidade. Um dos remédios é o
próprio questionamento filosófico. Essa solução é conhecida desde Platão, que descobriu, na
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desordem do seu tempo, a importância do questionamento filosófico como uma das formas de
estabelecer ilhas de ordem dentro de uma era de desordem.
Afirma ainda o autor que o ser humano não é um espectador contido da realidade, mas
um ator, fazendo parte da peça da existência, comprometido em atuar sem saber o que é a
existência, qual é a peça e qual o seu papel, sendo a participação do homem iluminada pela
sua consciência. Há uma experiência da participação, uma tensão reflexiva na existência radi-
ando sentido na proposição: o Homem, em sua existência, participa no ser. O ser humano ex-
periência a si mesmo e é capaz de usar a linguagem para chamar essa experiência consciente
pelo nome de “Homem”, sendo que chamar por um nome é um ato fundamental de evocação.
tamente conhecido. Nesse sentido, o conhecimento caminha buscando encontrar blocos com-
pactos das coisas conhecidas e dentro desses blocos diferencia suas partes componentes, de
forma que o conhecimento acaba por gradualmente se distinguir do que é essencialmente des-
conhecido. Desse modo, percebe-se que a história da simbolização é uma progressão desde
compactas a diferenciadas experiências e símbolos.
Voegelin menciona duas formas básicas de simbolização que caracterizam grandes pe-
ríodos da história. A primeira é a simbolização da sociedade e a sua ordem como sendo aná-
loga ao cosmos e da sua ordem, enquanto a segunda é a simbolização da ordem social pela
analogia com a ordem da existência humana que está em harmonia com o ser. Sob a primeira
forma a sociedade será simbolizada por um microcosmos e, sob a segunda, como uma forma
de macroanthropos (macro-humano).
Esse é um modelo que acaba se repetindo na história, tanto que é classificado por
Toynbee como o “tempo dos problemas” e Voegelin cita diversos exemplos, como no Egito
entre o antigo e o médio reino, quando emergiu a religiosidade sobre Osiris, ou a desintegra-
ção feudal da China, quando apareceram escolas filosóficas como de Lao-Tse e Confúcio, ou
o período anterior à fundação do Império Maurya, marcado pelo aparecimento de Buda e Jai-
nism, ou quando o mundo helênico da polis foi desintegrado e os filósofos apareceram ou
mesmo os problemas subsequentes do mundo Helênico, que foi marcado pelo surgimento do
Cristianismo.
O autor toma o cuidado de afirmar que embora esse processo tenha acontecido em di-
versos períodos da história, isso não significa que ele se torna uma “lei” da história, citando
54
até exemplos nos quais esse processo não ocorreu, como na Babilônia, já que Israel não surgiu
com nenhuma quebra institucional específica conhecida ou após algum período de problemas.
Essa dissonância entre o ser e o poder simbólico do humano em nomear o ser faz com
que ele perceba que sua participação no ser é imperfeita. A participação do humano no ser
tem então a sua estrutura modificada, de modo a dar ênfase à parceria com Deus, enquanto a
participação mundana passa ao segundo plano. Essa mais perfeita harmonia com o ser através
da conversão não é um aumento na mesma escala, um aumento quantitativo, mas um salto
qualitativo. E a sociedade que fizer esse salto experienciará a si mesma de forma qualitativa-
mente diferente de todas as outras sociedades que não fizeram o salto. A comunidade será,
como no caso de Israel, um povo escolhido, peculiar, um povo de Deus. E essa nova comuni-
dade cria o seu próprio simbolismo, para expressar a sua peculiaridade. Essa comunidade pas-
sa então a fazer parte da história sacra, e a sua parceria com Deus retira a sociedade do posto
da profana existência e a constitui como representante da comunidade de Deus na história da
existência.
Entretanto, o salto no ser não é um salto para fora da existência, ou seja, embora haja
parceria com Deus, o ser humano continua a fazer parte da existência. E ao invés de criar ten-
sões entre essas duas esferas, o homem as separa, criando pares de símbolos, a teologia civilis
e a teologia supranaturalis, ou seja, os poderes temporais e espirituais, do estado secular e da
igreja.
Pelo que se sabe, a primeira forma simbólica criada pelas sociedades ao saírem do
nível de organização tribal é a cosmológica. Como exemplos de sociedades cosmológicas
estão as da antiguidade oriental. Quando o homem cria o cosmion da ordem política, ele ana-
logamente repete a criação divina no cosmos. A simbolização cosmológica não é uma teoria
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ou uma alegoria. Ela é a expressão mítica da participação, experienciada como real, da ordem
da sociedade no ser divino que também ordena o cosmos. Para comprovar, o cosmos e o cos-
mion político mantém existências separadas, mas um fluxo de ordem e criação corre do ser
através deles de forma tão massiva que, o deus é o dono de um templo, estabelecido no céu,
enquanto o aumento do poder do rei terrestre é apenas a implementação da nomeação divina;
e a ordem geográfica na terra é a imagem do original nos céus. A participação é tão íntima, de
fato, que ao invés da separação das existências, império e cosmos são partes de uma ordem
conjunta.
A coerência interna e a luta pelo poder do império, além disso, dependeu do grau no
qual a racionalização dos símbolos pode ser transferida para técnicas de um governo centrali-
zado. Assim, as sociedades que tinham maior facilidade em adequar os seus símbolos de mo-
do a centralizar o poder do governo foram as que conseguiram durar mais.
Por fim, os estudos de Voegelin resultaram na compreensão de que a busca pela ordem
era antes de uma busca da ordem na sociedade, a busca da ordem no ser humano. Nesse senti-
do, o que vem primeiro não são mais as ideias, como em História das Ideias Políticas, ou as
experiências, como no Ordem e História, mas o surgimento da própria consciência. Antes
mesmo de criar os símbolos e expressá-los, ou seja, antes da evocação, há uma compreensão
do ser humano sobre ele mesmo.
Para a filosofia da consciência, Voegelin destaca as dúvidas de Leibniz: “por que exis-
te o ser e não o nada?” e “por que as coisas são como são?”. E por meio delas o autor percebe
que o próprio questionamento é a forma de buscar a ordem na sociedade, ou seja, a consciên-
cia surge como o centro onde o ser humano experiencia a ordem. A consciência é o primeiro
fator que aparece no ser humano e ao surgir se dá por meio de questionamentos que deman-
dam a estruturação do próprio pensamento e da apreensão da realidade e é assim que surge a
experiência da ordem. Aqui, portanto, o objeto de estudo é o próprio sujeito que estuda e é por
isso que o livro Anamnese é repleto de memórias do próprio Eric Voegelin. A ordem que o
ser humano busca na vida e na realidade externa deve ser também e primeiramente compre-
endida no próprio ser humano.
Eric Voegelin é um crítico e opositor do positivismo. Suas críticas decorrem desde pe-
lo menos 1936, quando o autor escreveu o livro “The Authoritarian State: An Essay on the
Problem of the Austrian State”, do qual cabe o destaque para a parte em que critica a Teoria
Pura do Direito de Hans Kelsen. Este foi o livro que causou um abalo na relação entre os dois
autores. As críticas recaem principalmente sobre os aspectos metodológicos da teoria, ou seja,
57
A crítica que é feita até os dias de hoje sobre a possibilidade da teoria pura do direito
ser usada para embasar regimes autoritários, já era feita por Voegelin. O autor afirma que a
ideia de que os atos de criação de leis serem considerados unicamente sob o viés de sua regu-
lação pelas normas, fez com que a teoria fosse adotada não somente pelos seguidores da teo-
ria, e estudiosos, mas por seus oponentes e políticos, e isso fez com que a teoria servisse in-
clusive para a transição da democracia parlamentar para uma constituição autoritária e até
mesmo para o estabelecimento dessa constituição autoritária3. Nesse ponto, o autor se refere
especificamente ao contexto austríaco, afirmando que a constituição de 1920, na qual Kelsen
participou da formulação, foi substituída por uma autoritária, em 1934.
3
“The idea survived the founding situation, taking on crucial importance even for the transition from the parlia-
mentary-democratic to the authoritarian constitution and for the estblishment of the authoritarian constitution
itself” (the authoritarian state, pg. 164]
4
“Neo-Kantianism (and Kelsen in the same spirit), however, transfers the problems belonging to the method of
the sciences of the inorganic realm uncritically and essencially unchanged to all other scientific subject matters,”
(the authoritarian state, pg. 166)
5
“we can state that generalizing the methodolog derived from the model of mathematical physics must result in
very significant limitations for the object of a theory of the state.” (the authoritarian state, p. 167)
58
Voegelin afirma que o estudo do Estado inclui objetos como “sistema de normas”,
“massas e elites”, “relações de poder”, “legitimidade”, “ideia política” e que todos esses as-
pectos não podem ser incluídos em um sistema que analise uma só categoria. Afirma ainda o
autor que nessa percepção da realidade, qualquer demanda por “pureza” pode apenas signifi-
car que diversos objetos devem ser distinguidos uns dos outros e que não se deve criar falsas
relações entre eles6. Assim, Voegelin afirma que a escolha de um dos elementos como sendo
puro, em detrimento de todos os outros que constituem o conjunto complexo do Estado, signi-
fica um sério empobrecimento da totalidade do objeto7. Dentro da teoria de Kelsen o objeto
que é escolhido como “puro” é a “norma”, e Voegelin afirma que, exatamente por causa dessa
limitação do objeto, a própria norma (na verdade, é o ordenamento normativo) pode ser vista
como sinônimo do fenômeno “Estado”8. E o autor vai ainda além e afirma que quando a
“norma” é identificada com o “Estado”, não é somente os outros objetos que desaparecem,
mas a própria teoria do Estado.
Voegelin destaca o fato de que o Estado, ainda que seja entendido como um sistema de
normas, é mais do que isso, já que consiste em um complexo sistema de normas e de atos. E a
inclusão dos atos dentro da teoria, de acordo com a crítica de Voegelin, faria com que se per-
desse a pureza e dessa forma, Kelsen opta por excluir os atos, já que eles seriam objetos estra-
nhos à lei e o estudo dos atos caberia a disciplinas como a sociologia. Dessa forma, Kelsen
considera as reflexões intelectuais e os atos simplesmente como ideologias, e quando não,
devem ser objeto de estudo da sociologia e não de uma teoria positivista sobre o Estado.
6
“The realm of being called state includes such objects as “system of norms”, “masses and elites”, “power rela-
tions”, “legitimacy”, and “political idea”, which quite certainly cannot be included in a single object-constituent
system of categories. In this perceptual situation any demand of “purity” can mean only that the several objects
must be neatly distinguished from each other and not brought into false relations to each other.” (author. State
pag. 169)
7
“Thus, without asking which object is to be chosen as the one pure object out of the total complex of objects
that together form the perception of the essence called “state”, we can say that the positivist requirement leads to
a serious impoverishment of the total object.” (a.s. p. 169)
8
“this struggle limits the phenomenon of “state” to only one of this several objects, namely, to the phenomenon
purê theory of law calls law and which, precisely because of the limitation, can then be seen as synonymous with
the phenomenon “state”.” (the auth st p. 169)
59
Além dessa crítica, Voegelin também questiona a norma hipotética fundamental. Ele
afirma que este ato original que produz a primeira norma deve ser também delegado por uma
norma, mas como essa norma não existe, ela é hipotética. Essa norma fictícia, que é posta
pelo percebedor, delega o primeiro ato que emerge da realidade da norma e tudo se segue a
partir desse primeiro ato. Ele então afirma que é possível demonstrar que a construção dos
atos serve para auxiliar a demanda por uma “pureza” da teoria, já que o objeto legal é a nor-
ma, e a ordem legal é um sistema de normas e o Estado é idêntico à lei, e que o ponto de iní-
cio do sistema é a norma fundamental, que é por sua vez produzida pelo sujeito que percebe
(o teórico), e que portanto a ordem legal é constituída como o contexto da percepção 9. Disso
se pode inferir que a norma hipotética fundamental acaba por ser um elemento que entra em
contradição com o restante da teoria, que tenta ao máximo excluir a análise dos atos humanos
e cria uma teoria toda baseada em uma norma que foi dada pelo próprio teórico.
Voegelin então critica que um teórico que estude as questões da teoria do Estado fora
da moldura delineada por Kelsen, de acordo com esta própria teoria, deve se conformar com o
fato de que suas preocupações não têm lugar na teoria do estado e que pertencem à sociologia.
Ou então que ele está perdendo tempo com tempos remotos e sem importância, com “pseudo-
problemas”, ao invés de produzir algum conhecimento científico útil. Outra hipótese que recai
sobre aqueles teóricos que não se encaixam na delimitação da teoria de Kelsen é que seus
esforços são baseados em uma “ideologia” que ele proclama ser uma realidade, como a defesa
da ordem capitalista. E, por fim, tal teórico não tem lugar na ciência como um todo, já que
tudo que saísse de sua caneta devesse ser classificado como uma cientificamente irrelevante
construção de postulados ético-políticos10.
9
“The auxiliary construction of the “acts” can be dropped once this elevation of the systems has been reached
and the demand for “purity” has been realized: the legal object is the norm, the legal order is the norm system,
the state is identical with the law, the starting point of the system is the basic norm, the basic norm is produced
by the subject of perception, the legal order is constituted as the contexto of perception” (aut st. P. 177)
10
“The scholar who examines problems of theory of the state that do not fit into the framework delineated by
Kelsen has to put up with being told that (1) his concerns have no place in theory of the state and belong to “so-
ciology”; that (2) he is waisting his time on the idle pastimes, the “pseudoproblems”, rather than performing
some kind of valuable scientific work; that (3) his efforts are based on na “ideology” that –for irreleant motives,
such as defending the capitalista social order or to please a political party – he loudly proclains to be reality; and
that finally (4) he has no place in Science at all, since everything that comes from his pen must be classified as a
scientifically irrelevante constructo of “ethical-political postulates”.” (p. 179 aut st)
11
P. 180
60
Por fim, ainda no livro sobre o Estado autoritário, o autor afirma que a teoria do direito
de Kelsen é chamada de “pura” de forma incorreta. Isso porque não preza pela pureza, e sim
por uma limitação da interpretação às normas positivas, e principalmente a uma parte do con-
teúdo dessas normas, que é a coerção sobre condutas humanas. Voegelin afirma que nem toda
lei trata de coerção de condutas, tanto que em uma constituição uma minoria das normas teria
esse caráter. De tudo argumentado, ele conclui que a racionalidade da limitação é um dogma
metafísico, cuja legitimidade não pode ser admitida dentro da esfera da ciência das leis positi-
vas12.
O livro “A Natureza do Direito” foi elaborado em 1957, e servia de base para os uni-
versitários inscritos na disciplina de introdução ao Direito, ministrada na Faculdade de Direito
de Louisiana. Neste período o autor já tinha compreendido que as ideias não tem história, que
são as pessoas que têm e que ela consiste em êxitos e fracassos e nas experiências. Esse pen-
samento é estendido ao Direito, já que ele não poderia ter uma história separada da da socie-
dade, já que ele articula a ordem. A partir disso o autor se propõe a estudar a ordem humana
através das fontes que possam determinar os critérios pelos quais se pudesse julgar os fenô-
menos tanto da sociedade quanto do direito.
Como se percebe, a teoria do direito para Voegelin não parte da norma, mas é anterior
à ela, tendo início, portanto, no estudo da sociedade. Mas ainda para além do estudo da socie-
dade, o autor também entende “que a ordem da sociedade provém de um todo maior e anterior
à mesma, a ordem do mundo (Kosmos), que se identifica com a própria ordem do ser” (VO-
EGELIN, 1998, p. 16). O direito é entendido “como tendo por sua natureza ontológica a estru-
tura da sociedade” (VOEGELIN, 1998, p. 28), ou seja, a essência do direito é organizar a so-
12
“Kelsen’s theory of law is incorrectly called “pure” because in fact it does not call for the “purity” of examina-
tions of positive law but for the “limitation” of the norminterpretation in positive law to a particular parto d the
contente of this very norm. the rationale for the limitation, how-ever, is a metaphysical dogma, and we cannot
admit its legitimacy in the sphere of the Science of positive law.” (aut st. P. 207)
61
ciedade existente e posta, ele é mais do que as regras jurídicas, abrangendo todos os esforços
para estabelecer a ordem da sociedade.
Já no livro a Nova Ciência da Política, o autor afirma que embora hoje em dia não seja
comum unir os princípios da política com os da filosofia da história, quando a ciência política
foi fundada, por Platão, esses dois aspectos eram indissociáveis. O autor afirma ainda que, em
momentos de desintegração das sociedades, a filosofia tende a voltar-se à questões
existenciais e históricas, ao passo que em momentos de estabilidade há a degradação da
ciência política, que passa a servir como forma de instrumento do poder, consistindo em
ideologias. Exemplos de momentos de crise nos quais houve maior desenvolvimento das
teorias filosóficas e políticas são evidenciados pelas teorias de Platão e Aristóteles, Santo
Agostinho e Hegel.
Voegelin afirma que o positivismo, a partir do século XIX, destruiu a ciência e que
cabe aos novos estudiosos criar uma nova teorização, de forma a recuperar a consciência dos
princípios da política e da filosofia da história, que eram presentes antes do positivismo.
Sobre a destruição da ciência, a melhor explicação de Voegelin está em:
Ele afirma que o positivismo passou por diferentes fases e que uma generalização do
movimento seria errada. Mas ressalta que para a “destruição da ciência”, o fator primordial foi
a “tentativa de tornar “objetiva” a ciência política (e as ciências sociais em geral) através de
exclusão metodologicamente rigorosa de todos os “julgamentos de valor” (VOEGELIN,
1982, p. 23). Voegelin afirma que esse conceito surgiu apenas na segunda metade do século
XIX e ele contrapõe os fatos do mundo exterior, que seriam “objetivos” com o que chamou de
“ordenamento correto da alma da sociedade”, que seriam os fatores “subjetivos”. E assim,
pelo positivismo se considerou que os primeiros seriam científicos e os últimos não,
representando decisões pessoais que não seriam passíveis de verificação crítica, e portanto
sem objetividade. E o autor ressalta que a ética e a política tanto clássica quanto cristã não
possuiam o chamado “juízo de valor”, mas sim tinham como objeto as questões de filosofia
antropológica e que a confusão entre esses dois aspectos faz com que se acredite que os
problemas antropológicos não passariam de decisões individuais.
Os efeitos da tentativa de se fazer uma ciência isenta de valores foram duplos, afirma
Voegelin. Ao mesmo tempo em que serviu para diminuir a existência de teorias políticas não-
críticas, também resultou em uma contraposição às teorias metafísicas clássica e cristã, de
63
forma que não existiria uma ciência que fosse humana ou social, já que a antropologia
filosófica foi rejeitda.
É então que a metodologia voegeliana dá aso à própria teoria política. O autor afirma
que a sociedade é algo que está posto e é dado antes da ciência e dessa forma o ser humano
interpreta a sociedade a qual ele pertence e cria símbolos para exprimir a sua experiência. A
esse processo ele chamou de auto-interpretação da sociedade. Assim, quando o cientista vai
estudar a sociedade, ela já criou símbolos e estes passam a compôr a realidade social. Resume
ele então que “a ciência política não parte de uma tabula rasa na qual pudesse inscrever seus
conceitos; começa inevitavelmente a partir do rico conjunto de auto-interpretações da
sociedade e prossegue através do esclarecimento crítico dos símbolos sociais preexistentes.”
(VOEGELIN, 1982, p. 33).
Assim, o estudo das ciências políticas cria um outro conjunto de símbolos. Voegelin
afirma que há dois conjuntos de símbolos: o que resulta da auto-interpretação da sociedade e
aqueles que são criados pelo teórico político ao analisar a sociedade. O autor afirma que há
bastante confusão entre esses símbolos e por isso muitas teorias que são consideradas
científicas não poderiam ser precisamente definidas assim. Elas seriam apenas o resultado da
auto-interpretação da sociedade, consistindo no que Platão chamou de “doxa”, ou no que hoje
em dia poderia ser chamado de “ideologia”, embora o conceito de “ideologia” também tenha
se confundido, tornando-se ele mesmo um termo pertencente ao grupo de símbolos da
realidade social e não da teoria política. Ao se fazer uma teoria política então, é necessário
distinguir esses dois grupos de símbolos.
alma, quando ordenada em harmonia com o deus não visível, se torna um modelo de ordem
que irá fornecer símbolos para ordenar a sociedade analogamente à sua imagem.
Como se percebe pelo discorrido até aqui, a forma de solucionar o problema criado
pelo positivismo, conclui Voegelin, é a filosofia. Na Antiguidade descobriu-se a “psique
como centro de percepção da transcendência” (VOEGELIN, 1982, p. 63) e a metodologia
proposta pelo autor é a da retomada do pensamento filosófico nas áreas da metafísica,
fenomenologia e ontologia. Isso porque essas áreas levantam questionamentos do ser humano
a respeito de si próprio e sua vida em sociedade e é por meio dessa auto-consciência que é
possível a transposição das barreiras científicas criadas pela metodologia positivista. A auto-
iluminação do ser humano funciona de forma que ele passa a perceber que possui um papel na
existencia e no ser e que não é possível tentar excluir esse aspecto da sociedade, devendo esse
aspecto ser estudado, já que o importante para ordenar a alma é o desenvolvimento da psique.
“a busca da verdade com respeito aos vários domínios da existência. Para ela, é pertinente o
que quer que contribua para o êxito dessa busca. Os fatos são pertinentes na medida em que
seu conhecimento contribua para o estudo da essência, enquanto que os métodos são
adequados na medida em que possam ser usados efetivamente como meios para chegar
esse fim. Objetos diferentes requerem métodos diferentes.” (VOEGELIN, 1982, p. 19)
Percebe-se que já na História das Ideias Políticas, o autor destaca a função da repre-
sentação dos governantes dentro das sociedades. A maior ênfase na distinção dos símbolos
essenciais, existenciais e transcendentais ocorre no processo de transição que acarretou nos
primeiros livros de Ordem e História, mas ainda assim, na História das Ideias houve o estudo
do poder dos governantes dentro das sociedades. Do período da História das Ideias, destacou-
se para o presente estudo a comparação dos regimes francês e inglês, na transição de monar-
quias para as bases dos estados modernos. Esse destaque é feito com o intuito de compreender
os modelos de estado moderno e os elementos que surgiram nessa época e como eles afetaram
períodos posteriores.
A França e a Inglaterra foram escolhidos pelo autor pelo fato de seus sistemas gover-
namentais e representativos terem se desenvolvido de formas diferentes e até mesmo opostas.
Enquanto a Inglaterra pode ser descrita como sendo o lugar onde surgiram os paradigmas mo-
65
dernos de “representação” e “governo parlamentar”, a França deve ser entendida como o mo-
delo do desenvolvimento de diversos Estados continentais, no que tange à instituição da mo-
narquia absolutista.
A diferença básica entre esses dois Estados deve-se ao fato de que, enquanto a monar-
quia inglesa teve uma centralização precoce, a francesa foi tardia. A centralização precoce
possibilitou que na Inglaterra houvesse o desenvolvimento de instituições governamentais e
de uma política nacional forte. Ao passo que na França não havia um sentimento nacional
forte, nem tão pouco instituições nas quais a população pudesse se unir e debater as suas idei-
as, de forma a poder fazer valer a sua vontade e toda essa desarticulação política resultou nu-
ma maior centralização do poder régio.
Para explicar melhor o desenvolvimento do poder centralizado nesses dois países cabe
fazer uma contextualização histórica dos Estados. A Inglaterra, por ser uma ilha, não
enfrentou diversos problemas internos e externos que acometeram os Estados continentais,
como por exemplo, disputas fronteiriças, que na França demandava muitos esforços devido às
ambições imperiais deste Estado. Além disso, na Inglaterra o territorialismo dos senhores
feudais não era tão forte quanto o francês, que durou até o sec. XVII ou o alemão, que durou
até o sec. XIX. O isolamento geográfico da Inglaterra também se reflete na cultura, por meio
de uma diversificação dos costumes em relação aos paises continentais. No tangente à leis e
costumes, houve uma unificação dos costumes por meio da lei inglesa, que a princípio tinha
por base o direito romano e depois foi substituído por códigos das leis comuns.
Por esses aspectos, o poder régio da Inglaterra centralizou-se anteriormente aos outros
Estados e até o século XIV os fatores integradores do estado inglês eram predominantemente
a realeza e a lealdade feudal, além do apoio religioso do papa ao rei. Nessa época ainda havia
a aliança entre esses dois poderes, o que conferia maior legitimidade ao monarca, mas cabe
ressaltar que quando o apoio papal foi retirado, a legitimidade não resultou prejudicada. Após
66
o séc. XIV outro fator integrador a surgir foi o sentimento nacional, que, afirma Voegelin,
embora tenha sido cronologicamente posterior aos outros, os superou em importância.
Nessa estrutura governamental centralizada sob um poder régio forte, os reis tinham
condições de exigir que se cumprissem os deveres de vassalagem por parte dos nobres. Entre
os deveres de vassalagem estava o de os cavaleiros enviarem às assembléias do reino seus
representantes, o que acabou resultando em uma experiência de interdependência e ação
comunitária. Posteriormente isso acarretou o sentimento de pertencimento à um Estado, o que
“preparou a sociedade inglesa para uma capacidade invulgar de participação política”
(VOEGELIN, 2013, p. 152). E já nesse período as cidades se tornaram cidades livres com
direitos feudais.
chama de consciência de uma ordem política. Mas ao contrário do que outros estudiosos
afirmam, para ele a Carta é um documento que não corresponde nem ao início do governo
constitucional inglês, nem à evolução teleológica das instituições inglesas, e tão pouco é
somente um exemplo de documento feudal.
O primeiro problema abordado diz respeito à relação entre o poder temporal francês
com o Império Bizantino. Por um lado, se pode perceber as pretensões francesas em assumir o
Império no lugar dos imperadores alemães, e por outro houve a negação do poder imperial por
parte dos reis da França. Afirmava-se que não haveria poder temporal superior ao do rei, de
forma que cada rei teria em seu reino o mesmo direito que o imperador tem no império, tanto
que Luis IX afirma que “o rei recebe o poder só de Deus e de si mesmo” (VOEGELIN, 2013,
p. 67). Ainda para reiterar o poder do rei, João de Paris, nesta mesma época (século XIII),
afirmava que a comunidade ideal seria uma governada por um rei, já que este proporciona
uma coesão social e guia a comunidade para um “bem civil comum” (VOEGELIN, 2013, p.
68). Disso, percebe-se que o rei possui o poder temporal, na busca do bem comum, e também
o espiritual, por receber o poder de Deus.
68
A importância da união dos poderes secular e temporal na figura do monarca fica clara
pelo fato de que muitos reis entre pelo menos os séculos XI e XIII realizavam a cura de
doenças, sendo considerados milagrosos e até por vezes santos (como Luis IX, o santo). Essa
habilidade de curar doenças era interpretada como algo provido ao rei por Deus e isso lhe
garantia legitimidade.
Há que se dizer que essa independência e supremacia do poder régio também resultou
em uma ruptura com o poder imperial. Esse aspecto Voegelin resumiu em: “A ideia imperial
está morta, e o reino e sua cultura nacional secular sob o comando régio erguem-se como
novo centro político” (VOEGELIN, 2013, p. 70).
“mais importante do que o conteúdo dessa estrutura é o fato de naquele tempo já existirem
jurisconcultos intelectuais progressistas, para quem a ideia cristã imperial tinha perdido sua
força evocativa tão completamente que parecia aconselhável uma reconstrução da europa a
partir das forças das nações particularizadas sob uma hegemonia” (VOEGELIN, 2013, p.
77).
Agora que foram expostas as características das monarquias inglesa e francesa, cabe
apresentar a comparação entre ambas para que resultem claras suas diferenças. Na Inglaterra
houve o crescimento de instituições e a formação precoce de uma sociedade política nacional
forte, que se sobrepôs à administração régia, no século XVII, diferentemente da França, que
teve a sua centralização no poder régio mais tardia, o que acabou resultando em uma
sociedade cujo crescimento nacional teve forte caráter régio e absolutista.
Na Inglaterra o poder régio era forte e centralizado e impunha aos diferentes grupos
sociais o dever de participação em assembléias, nas quais representavam os condados e vilas.
Assim, os diferentes extratos acabaram por agir ativamente como grupos, por meio de
deliberações, criando uma consciência de participação política. Enquanto isso, em países
continentais como a França, o poder régio não era forte e centralizado e as funções reais
foram delegadas, de forma que os grupos sociais não precisavam se unir e não adquiriram a
noção de participação social e quando a monarquia passou a ser absolutista, a sociedade não
sabia se organizar como uma força coletiva e coesa, o que fez com que os movimentos sociais
se tornassem revoltas. Nesse sentido, resume Voegelin:
“Quando a monarquia francesa alcançou a fase do absolutismo após a Guerra dos Cem
Anos, não dispunha de uma sociedade articulada que pudesse contrabalançar o poder régio
concentrado e salvar as liberdades feudais durante o período perigoso, de modo a que
reemergissem como as liberdades da nação. Quando o terceiro estado finalmente se
articulou, o processo tomou a forma de uma revolta social.” (VOEGELIN, 2013, p. 80)
tem chegar ao poder são de importância secundária. Descobri depois que essa representação
existencial era empiricamente complementada, em certas sociedades históricas, por uma
reivindicação do que à época denominei representação “transcendental”. Por representação
transcendental entendia a simbolização da função governamental como representante da or-
dem divina no cosmos. É este o simbolismo fundamental, que aparece pela primeira vez
nos impérios do Antigo Oriente Próximo, onde o rei representa o povo perante o deus e o
deus perante o povo. Nada mudou nessa estrutura fundamental da ordem política, nem
mesmo nos impérios ideológicos modernos. A única diferença é que o deus foi substituído
por uma ideologia da história, agora representada pelo governo investido de sua função re-
volucionária.” (VOEGELIN, 2008, p. 105)
A mudança paradigmática que esse livro representa, como já visto, é o câmbio de uma
teoria das ideias políticas pelo estudo da existência histórica do homem na sociedade e no
mundo, pois se passa a entender que as ideias não têm história, quem tem são os humanos e
sua existência nas sociedades e é nessas organizações humanas que, posteriormente, surgem
as ideias. Assim, a existência e atuação na sociedade é o que faz com que os seres humanos se
sintam participantes da história, por meio da união com outras pessoas. Então, existir em uma
sociedade é se perceber em conexão com a história e essa conexão permite ainda a vinculação
com algo que vai para além da história, que é eterno, o Ser.
Mas esta é uma análise ampla e complexa que deve ser vista desde as primeiras liga-
ções humanas até a expansão mais ampla que foi tratada acima. Para compreender todos esses
níveis de relacionamentos, Voegelin analisa o conceito de representação, pois é por meio dela
que o ser humano passa a atuar e existir na história e é por isso que ele classifica o problema
da representação como sendo o problema central da teoria política. Como a abrangência do
estudo do autor é bem ampla, para ele não basta o estudo das instituições, precisando-se en-
tender a forma pela qual os humanos atuam na história. Essa conexão do homem com o eterno
cria no próprio ser humano o que Voegelin chama de representação de uma verdade transcen-
dente. Para compreender toda essa estrutura não basta, como já dito, o estudo das instituições,
mas é preciso que se entenda a interpretação que as pessoas fazem da realidade.
Esse mistério que o ser humano enfrenta é a relação com a duração e passagem do
tempo. Ao mesmo tempo em que se enxerga como um ser de curta duração, ele possui um
papel na sociedade e no mundo, e a sociedade permanecerá para além de sua existência, assim
como também o mundo continuará mesmo que as sociedades existentes deixem de existir e
novas surjam. Isso faz com que ele, como participante da “existência”, tenha contato e um
73
papel também com algo maior e mais duradouro que ele, o “ser”. Na existência se experiencia
a mortalidade, ao passo que no ser, a imortalidade. E esse ponto de contato entre o existir e o
ser, que é típico do ser humano, é o limite dado pela perspectiva de participação, entre o exis-
tir e o ser. Voegelin afirma, de forma poética, que a existência é uma pegada sutil que deixa-
mos no ser. E é nesse sentido que a sociedade deve se interpretar como sendo representante de
uma verdade transcendente.
Esclarecidos esses pontos, cabe voltar à análise dos diferentes tipos de representação
no livro A Nova Ciência da Política. No início do livro, o autor trata dos conceitos de repre-
sentação elementar e existencial. Primeiro analisa-se os elementos essenciais, que consistem
naqueles que são exteriorizados pela sociedade, ou seja, compreendem os símbolos criados
para a auto-interpretação da sociedade. Neste nível os conceitos referem-se aos dados do
mundo exterior, à construção descritiva das instituições.
Para compreender a atuação das sociedades na história, o autor afirma que a condição
para que a atuação seja possível é a articulação. Este ponto é bem analisado quando “a socie-
dade está prestes a começar a existir, quando está prestes a se desintegrar, ou quando está
atravessando uma fase crucial de sua história.” (VOEGELIN, 1982, p. 41). O processo de
articulação gera um representante que age pela sociedade. O autor afirma que as questões da
articulação foram analisadas por Fortescue para compreender os reinos da Inglaterra e da
França, questões que neste trabalho foram analisadas na parte de representação política da
História das Ideias Políticas. E afirma também que, posteriormente, quando da consolidação
das sociedades políticas da Idade Média, o assunto da articulação foi tratado por Hauriou.
Neste ponto, cabe maior destaque ao que Voegelin diz a respeito da teoria de Hauriou.
Para Hauriou o poder é legítimo por funcionar como representante da instituição que é o Esta-
do e a primeira tarefa do poder governante é a criação de uma comunidade politicamente uni-
ficada, ou seja, pela transformação da sociedade de um todo desorganizado preexistente em
um corpo organizado para agir. O governante é encarregado de realizar essa ideia historica-
mente e isso se aperfeiçoa quando há o consentimento dos membros da sociedade, sendo que
o governante tem autoridade quando ele consegue se tornar o representante dessa ideia. Já a
75
análise que Hauriou faz da relação entre o poder e a lei permite concluir que para um governo
ser representativo, não basta que ele o seja no sentido constitucional, que é o que Voegelin
chama de representação elementar, mas é preciso que o governante seja representativo no
sentido existencial. Se isso não ocorrer, independentemente do governo ser representativo
constitucionalmente, se não for existencialmente, um governo que seja o substituirá, e o re-
presentante existencial não necessariamente será dos mais representativos no sentido constitu-
cional. A relação entre o poder e a lei em Hauriou é retratado abaixo:
Neste ponto, Voegelin traça a crítica de que somente um tipo de articulação seja con-
siderado representativo. O exemplo é que não se pode considerar que somente são representa-
tivas as sociedades cuja legitimidade tenha por base a legalidade constitucional, pois ele con-
sidera isso um “provincianismo político e civilizacional” (VOEGELIN, 1982, p. 46). O autor
ainda afirma que essa forma de pensar gera distúrbios internos em algumas sociedades, pois
tenta-se aplicar um modelo das instituições representativas no sentido elementar em socieda-
des que as vezes não possuem as condições existenciais para esse tipo de representação ele-
mentar.
Neste ponto do livro o autor volta a questionar então sobre o papel do teórico dentro
da construção da teoria. As questões envolvem principalmente saber como que pode o teórico,
que está na realidade social, analisá-la de forma existencial? E a resposta é que não basta que
se emitam opiniões, ou que se busque a diferenciação e comparação dos símbolos, mas é ne-
cessário que se tente “formular o sentido da existência, explicando o conteúdo de um gênero
definido de experiências. Os argumentos usados não são arbitrários, e sim derivam sua vali-
dade do conjunto de experiências ao qual a teoria deve permanentemente referir-se para pos-
sibilitar o controle empírico.” (VOEGELIN, 1982, p. 56). A formulação do sentido da exis-
tência deve ser entendida como a ordem da alma, haja vista ela fornecer o “padrão para a me-
dida e a classificação da variedade empírica dos tipos humanos” e com isso é possível enten-
der também a ordem social na qual estão inseridos os seres humanos.
Esta análise que relaciona o ordenamento da alma humana com a posterior ordenação
da sociedade é o que se pode chamar de representação transcendente. Para compreender me-
lhor este terceiro tipo de representação, Voegelin explica que “Tornar-se-ia então necessário
76
distinguir entre a representação da sociedade por seus representantes articulados e uma se-
gunda relação, na qual a própria sociedade se torna o representante de algo que está além dela,
de uma realidade transcendente” (VOEGELIN, 1982, p. 50). Neste nível já não bastam as
autointerpretações que os seres criam para poder viver em sociedade e nem tão pouco bastam
os símbolos criados pelo teórico político para analisar as sociedades. É preciso, então, com-
preender a ordem da alma humana e a relação dessa ordem com o que é exteriorizado e dá aso
à sociedade e, ainda além, o papel da sociedade dentro da história. É nesta parte da teoria que
se percebe a relação do ser humano imortal como pertencente de algo eterno, que vem antes
dele e que continuará depois, ou seja, que ele atua na história por meio da sociedade que está
inserido. Este é o estudo da psique, onde a transcendência é experimentada. O filosofo místi-
co, que experiencia a transcendência, se torna o representante de uma nova verdade e os sím-
bolos que ele cria para explicar a ordem social formam o núcleo dessa teoria e é assim que,
por meio desses filósofos, é possível o contato com o mistério do esclarecimento.
E neste momento da teoria, Voegelin passa a transcorrer sobre as verdades, para que
seja possível compreender a relação entre os humanos e da vida em sociedade com o trans-
cendental. O autor afirma que há uma verdade do homem que é oposta a verdade representada
pela sociedade e que o conflito entre essas verdades se ampliou com o surgimento do cristia-
nismo. Há três tipos de verdades, a “cosmológica”, que surge nos antigos impérios, a “antro-
pológica”, que aparece em Atenas e abrange os problemas ligados à psique, que é entendida
como a parte de percepção da transcendência e, por fim, há a verdade “soteriológica”, que
surge com o cristianismo. De acordo com o autor, os três tipos de verdade encontravam-se em
conflito no período do Império Romano, para decidir sobre o monopólio da representação
existencial.
Explicando melhor, mais ainda assim de forma breve, a verdade cosmológica a que o
autor se refere é a dos impérios existentes antes do período grego clássico, e também se pode
77
dizer das sociedades orientais. O que em comum havia em todas elas era uma percepção da
realidade mundana como análoga à ordem cósmica, de forma que o mundo é entendido como
um cosmion. Há então um período de crise, pois os símbolos existentes já não correspondem
às necessidades das comunidades. Essa crise ocorre no âmbito dos elementos essenciais, ou
seja, nos símbolos autointerpretativos. E então a analogia com o cosmos é substituída pela
analogia com os próprios seres humanos, e é quando surge a verdade antropológica, na qual o
Homem é a medida de todas as coisas. Quando surge o cristianismo, e este é um ponto que diz
mais respeito às comunidades ocidentais, havia ainda elementos da verdade cosmológica, da
antropológica e surgiu o que Voegelin denominou verdade soteriológica. Os elementos são
imiscuídos por causa do contato de diferentes povos, devido à conquistas e guerras. A verdade
soteriológica trata da salvação dos seres humanos. Essas formas de verdade devem ser perce-
bidas na representação pública da verdade transcendente, ou seja, no papel do representante
existencial e da verdade que a própria comunidade representa na história.
O autor afirma que quando ocorreu o conflito entre essas diferentes verdades, estava
acontecendo uma disputa política a respeito do culto público do Império. No plano elementar,
havia por parte dos teólogos cristãos a oposição entre a verdade cristã e a inverdade pagã, mas
Voegelin afirma que na verdade essa era uma luta pela representação existencial, embora os
autores da época não percebessem isso com tanta clareza. O autor também afirma que havia
no cristianismo uma substância revolucionária incompatível com o paganismo, e que esse
elemento era a desdivinização do mundo (VOEGELIN, 1982, p. 79). A crença cristã é a de
que deve-se adorar e servir somente a Deus e há uma separação entre Ele e a sociedade huma-
na e o autor afirma que há uma facção religiosa e metafísica no cristianismo já que há uma
divisão contra a divindade que anima o mundo de forma harmoniosa. Voegelin diz que esses
fatores constituem uma revolta política (VOEGELIN, 1982, p. 80), já que o ataque contra os
diferentes cultos existentes, vindo de uma religião monoteísta, significa o ataque a própria
estrutura do Império Romano.
O que resultou dessa separação foi o que o autor chamou de dupla representação do
homem na sociedade. Ele se refere à representação feita pelo império e a pela igreja, já que no
sentido cristão, o homem não poderia ser somente representado pela organização do poder de
uma sociedade política, necessitando da representação feita perante Deus pela igreja. O que
resulta disso é que a esfera de poder imperial é radicalmente desdivinizada e se torna tempo-
ral, e a análise de Voegelin é a de que os problemas modernos da representação dizem respei-
78
As ordens espiritual e temporal, para a sociedade ocidental cristã, tinham como repre-
sentantes existencial e transcendental o papa e o imperador. E é a partir dessa comunidade
que, de acordo com Voegelin, surgem os problemas de representação das sociedades moder-
nas.
de “redivinização” da sociedade, pois no espaço que anteriormente foi deixado pelo ser divi-
no, passou a ser ocupado pelo próprio ser humano e a sua busca por uma participação mais
concreta na essência divina, por meio de experiências gnósticas. Essas experiências gnósticas
consistem em uma forma de conhecimento intuitivo, que é criado pelo ser humano enquanto
ser divino, sendo, portanto, um conhecimento apresentado como incontestável. O autor ressal-
ta que há diferentes gnoses que surgem nas sociedades com o passar do tempo.
O autor também ressalta que no século XVIII, ao mesmo tempo que surgiu a ideia de
progresso, surgiram os primeiros textos retratando o declínio da civilização ocidental. E então
se pergunta como pode uma sociedade progredir e declinar ao mesmo tempo. E a resposta que
ele dá é que “a morte do espírito é o preço do progresso” (VOEGELIN, 1982, p. 99), expli-
cando melhor, quanto mais os seres humanos empenharem suas energias na salvação pela
ação imanente no mundo, mais eles se afastam da vida do espírito, de forma que “o próprio
êxito da civilização gnóstica é a causa de seu declínio” (VOEGELIN, 1982, p. 99). Mas esse
processo tem um limite, que é atingida quando uma “seita” ativista se diz representante da
verdade gnóstica e organiza a sociedade sobre seu domínio, criando o totalitarismo.
Percebe-se então que a crítica recai sobre as experiências gnósticas, que são uma for-
ma de conhecimento que está dissociado do divino. Primeiro o conhecimento era ligado ao
divino, depois houve uma separação entre o que seria o mundo e as ideias divinas do que é
imanente. Os homens então se afastaram do que era divino e o espaço que era ocupado pelo
divino foi substituído pelo ser humano, que passa a ter, ele mesmo, um caráter divino. Assim
acredita-se ser possível construir na terra uma sociedade que com base nos conhecimentos
humanos dissociados do divino, seria uma sociedade perfeita, alcançada pelo progresso. Esse
processo no qual há a divinização do ser humano e do conhecimento por ele mesmo produzi-
do é chamado de “redivinização” e esses conhecimentos passam a ter um peso muito grande,
sendo considerados inquestionáveis. O que Voegelin critica é o processo de “redivinização”
da sociedade e o afastamento que ocorre entre o homem e Deus, assim como faz severas críti-
cas à inquestionabilidade imposta pelos seres humanos ao conhecimento por eles mesmos
produzidos. O autor chega a falar da proibição de perguntar, e que quem se recusa a seguir
essa forma de conhecimento que ele chama de gnóstica é posto ao exílio e ao esquecimento
intelectual.
puritanos, e afirma que para promover uma causa a pessoa deveria criticar severamente os
males sociais em algum lugar onde pudesse ser ouvida pela multidão e de forma frequente.
Isso levaria os ouvintes a crer que os oradores fossem pessoas de grande integridade, já que
somente homens bons se preocupariam tanto para combater o que fosse mal. E, depois disso,
os oradores deveriam concentrar os ressentimento popular sobre o governo instituído, gerando
insatisfação generalizada e posteriormente insurgindo com uma nova forma de governo, como
uma forma de solução dos problemas do governo anterior.
O autor entende que a tensão da verdade da alma e da verdade da sociedade não po-
dem ser eliminadas, nem uma das duas. Os dois tipos de verdades existem e existirão sempre,
e a tensão entre eles é uma estrutura permanente na civilização. Não adianta tentar resolver da
mesma forma que Platão, que tentou fazer da ordem da alma a ordem da sociedade, já que a
polis encarnaria a verdade da alma sob o governo dos filósofos místicos. Ou também de nada
adiantou tentar transformar a Igreja em uma instituição civil, pois isso gerou uma competição
pela representação existencial e diversas guerras. Voegelin destaca o pensamento de Hobbes,
no qual a “ordem pública só era genuína se o povo a aceitasse livremente e que a livre aceita-
ção só era possível se o povo entendesse a obediência ao representante público como seu de-
ver de conformidade com a lei eterna” (VOEGELIN, 1982, p. 116).Para Voegelin, esse pen-
81
samento revela uma pretensão gnóstica de que houvesse uma constituição eterna e isso só
faria sentido se a verdade da alma deixasse de agitar o homem, mas essa “agitação” não pode
ser anulada, já que as experiências de transcendência pertencem a própria natureza humana,
como se percebe pela existência da filosofia ou do cristianismo.
De todo esse panorama das teorias gnósticas, Voegelin conclui que a Modernidade es-
tá no fim. Cabe retomar a ideia de que a desdivinização da sociedade e da alma humana, pelo
afastamento criado após o surgimento do cristianismo, não faz com que se retorne ao paga-
nismo, mas cria uma redivinização. A verdade da alma é reprimida em dogmas criados pelos
gnósticos e isso gerou a atrocidade dos governos totalitários. Outras formas de apreensão dos
resultados do gnosticismo consistem no comunismo, no progressivismo, positivismo e cienti-
ficismo e ainda, de acordo com Voegelin, “estão penetrando em outras áreas sob o nome de
“ocidentalização” e desenvolvimento dos países atrasados” (VOEGELIN, 182, p. 120).
O autor afirma que a natureza do homem não muda e que embora se tente reprimir a
verdade da alma, ela sempre se fará presente. Essas teorias que tentam reprimir esse aspecto
do ser humano podem ser atuais e durar na história, mas o autor acredita que não é possível
que a repressão dure para sempre, de forma que a estrutura gnóstica da realidade como está
posta, tende ao seu fim, ela é autodestrutiva.
Por fim, o autor termina o texto retomando que primeiro ocorreu a imanentização do
Espírito, que abandonou Deus em sua transcendência e depois houve a imanentização do es-
chaton, ou seja, do paraíso na terra. Voegelin afirma que as sociedades que aderiram ao gnos-
ticismo na primeira imanentização foram menos afetadas por ele em relação as que aderiram
posteriormente, já que o movimento gnóstico ganhou força. Ele afirma que a modernidade é
82
A crítica que se faz é a de que essa relação transcendental com o que é eterno foi
reprimida e dessa forma outros tipos de relações tomaram o lugar da transcendental, criando
uma instabilidade em todos os seres humanos da sociedade ocidental de forma geral. O ser
humano se sente desconectado com a sua participação em algo maior e por isso a parte da
alma que foi reprimida está em desconformidade com o restante da existência humana, o que
gera insatisfações e guerras. Há a paz, mas ao custo da repressão do elemento transcendental
do ser humano, e o autor entende que isso cria uma situação de briga de forças que pode dar
margem a guerras. Dessa forma, o que se percebe é que embora haja legitimidade tanto nos
sentidos elementar e existencial, quando a análise passa ao nível transcendental, o ser humano
se encontra em conflito com ele mesmo e consequentemente com a realidade ao seu redor, de
forma que não é de se espantar de diversos conflitos e guerras surjam de formas muitas vezes
inesperadas e inexplicadas, já que a explicação não é aparente, mas interna no ser humano, na
sua parte que é relacionada com a transcendência.
84
85
O autor afirma que o positivismo não atribui valores absolutos, e que o absoluto em
geral e os valores absolutos em particular pertencem a uma esfera transcendental que está
além da experiência científica, que é o campo da teologia e de outras especulações
metafísicas. Ele acredita que em momentos de guerras, as fundações da ordem social
estabelecida precisam de uma justificação absoluta e é quando surgem especulações
metafísicas que servem como instrumentos ideológicos da política.
A primeira crítica que Kelsen faz a Voegelin é rebatendo que este último tinha
afirmado que o positivismo destruiu a ciência. Kelsen lembra que existem diferentes tipos de
positivismo e que Voegelin não define qual tipo está criticando, o que seria importante já que
o positivismo compreende diferentes tipos de sistemas teóricos, tendo todos eles em comum
somente o fato de que negam o recurso da especulação metafísica, que inclui a teologia e a
religiosidade. Para Kelsen, embora Voegelin esteja propondo uma nova ciência política, o que
ele quer é voltar à uma muito antiga, que já se provou ser uma pseudo-ciência, um
instrumento de definição dos poderes políticos, que é a especulação metafísica e teológica de
Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino.
Kelsen busca desconstruir as duas proposições contra o positivismo que são utilizadas
por Voegelin. A primeira é de que há a matematização das ciências humanas, já que os
métodos das ciências naturais são aplicados às ciências humanas. Kelsen afirma que esse
argumento é errado, porque embora o positivismo seja anti-metafísico e anti-teológico, há
uma escola de pensamento que distingue os problemas das ciências sociais para os quais se
deve usar métodos das ciências naturais com mais ou menos modificações, daqueles que outro
método totalmente diferente deva ser aplicado. Além de que Kelsen distingue as ciências
naturais entre aquelas que devem aplicar o método da causalidade, como a sociologia,
daquelas que devem fazer uso da imputação, que são as ciências que lidam com as normas,
como a ética e a jurisprudência.
86
Kelsen acha estranho que Voegelin pretenda restaurar a ciência de modo que ela volte
a ser como era para Platão, Aristóteles ou Tomás de Aquino. Para ele, a ciência que esses
autores representam é imbuída de especulação metafísica e teológica, sendo resultado da
imaginação de uma esfera transcendental que é resultado dos desejos e temores dos seres
humanos. De acordo com a história da humanidade, se percebe que esses fatores eram
impeditivos do progresso da ciência. O autor, entretanto, faz uma ressalva no tangente às
questões das ciências sociais, já que recorrer à metafísica ou religião seria uma forma de
alcançar a solução para um dos maiores problemas dessas ciências, que é a questão da justiça,
a determinar o que é certo e errado. Mas afirma também que o retorno a essas teorias não
resultaria em solucionar as questões propostas, pois elas podem ser usadas para justificar
qualquer sistema social positivo.
O fato de rejeitar uma teoria afirmando que os conceitos criados são somente auto-
intepretativos e que portanto não são conceitos teóricos é errado, de acordo com Kelsen. Para
ele, o que Voegelin tenta fazer é afirmar que somente uma teoria correta é uma teoria, se
valendo da dificuldade em separar o que seja um conceito teórico e o que seja
autointerpretação, e ignorando o que considerasse como um conceito autointerpretativo. Mas
que dessa forma, não haveria nenhuma teoria até hoje, porque não há uma que seja correta,
verdadeira ou absoluta, já que a história da ciência é feita por mudanças. Para Kelsen, a
distinção que Voegelin faz, ou deveria fazer, é a de que os conceitos de uma teoria política
devem ser objetivos, ao passo que os símbolos auto-interpretativos são subjetivos.
Kelsen afirma que o perigo que se corre é a de uma teoria política ser usada na
realidade política por aqueles que exercem o poder, tanto os governos quanto as oposições,
como um instrumento político. Ele afirma que tal perigo é ainda mais proeminente quando a
ciência política se recusa a ser livre de valores.
pertencimento a uma sociedade e a atuação da sociedade na história, que é eterna, faz com
que o ser humano, ainda que de forma sutil, tenha um contato com o eterno. E isso não é
misticismo, é, ousa-se dizer, tão metafísico quanto a norma pressuposta fundamental.
Ainda no que tange à crítica sobre o misticismo de Voegelin, Kelsen afirma que
apresentar a ordem social como a realização da justiça divina na terra é uma forma de
justificar a ordem social, bom como confirmar e fortalecer a autoridade do governante. Essa
crítica surge do fato de Voegelin tratar das sociedades cosmológicas e afirmar que o mundo
seria como a imagem de um macrocosmo (KELSEN, 19xx, p. 53), e que os representantes das
sociedades cosmológicas legitimam o seu poder com base em argumentos divinos. Ao afirmar
que a sociedade é representante de uma verdade transcendente, algo para além de si própria,
Kelsen novamente critica Voegelin, afirmando que esta verdade sendo considerada como um
fator científico, ou seja, em um sentido lógico e epistemológico consiste em uma ideologia na
qual a ordem social é uma imitação da ordem cósmica. Kelsen afirma que ao tratar sobre uma
verdade transcendente, na verdade não há essa cientificidade pretendida e que ao invés de o
termo corresponder à epistemologia, na verdade o que se busca é o esclarecimento de um
valor político e moral, mais precisamente, a justiça. E que a confusão entre justiça e verdade é
característico da especulação teológica.
Kelsen afirma que a teoria teológica de Voegelin não serve para resolver os problemas
que envolvem os valores sociais, como decidir questões sobre a democracia ou autocracia, se
a melhor forma de organização econômica é o capitalismo ou o comunismo. A teoria de
Voegelin apenas serviria para afirmar que existe uma verdade da alma e de Deus e que ambas
estão conectadas, ou seja que existe Deus. Além disso, nenhuma questão sobre os julgamentos
envolvendo as instituições sociais poderia ser deduzida dessas fórmulas que são vazias. A
90
teoria formulada por Voegelin tem como problema o teórico, diz Kelsen, já que ele é o
representante de uma nova verdade, que é a verdade de Deus e da alma e que só é alcançada
pelo filosofo. Kelsen critica ainda que Voegelin baseia sua teoria na expressão “verdade da
alma” e não afirma o que é essa verdade, criando uma fórmula vazia.
No que diz respeito à parte do gnosticismo, Kelsen explica que essa expressão tem
uma forte tendência ao misticismo e se refere estritamente ao conhecimento esotérico baseado
em uma revelação misteriosa feita por Jesus. O termo foi posteriormente empregado em um
tipo de maniqueísmo, no qual a esfera da vida humana é considerada demoníaca e oposta à
esfera divina. Kelsen critica o fato de que Voegelin em momento algum fornece a definição
ou sentido no qual ele está adotando o termo, o que seria essencial já que ele não parece estar
empregando o termo no seu uso comum, pois os autores que ele afirma ser gnósticos não são
místicos, além de que ele emprega o termo para se referir a uma redivinização da sociedade,
enquanto que em seu sentido original, a palavra gnose significaria o oposto, ou seja, uma
desdivinização da esfera humana.
Quando Voegelin trata da gnose como uma forma de repressão da verdade da alma, e
afirma que este é um fator que provoca guerras, Kelsen entende que o teórico místico é uma
pessoa que busca que a sociedade seja organizada por uma teologia civil, na qual a alma não
seria reprimida. Além disso, Kelsen também entende que a forma de redivinizar a sociedade é
por meio da volta de fundamentos místicos, religiosos e principalmente cristãos, de forma a
realizar a libertação da alma. No entanto, entende-se que Voegelin se referia em ambas as
situações, não precisamente a uma volta à religião, mas sim à dedicação dos seres humanos a
busca pela sua consciência, por meio de estudos filosóficos e de questionamento dos dogmas
da sociedade atual. O autor embora empregue símbolos típicos do cristianismo, não defende
especificamente essa forma de religiosidade, e sim um contato com a transcendência. Dentro
da filosofia isso se daria pelo estudo da consciência ou da ontologia. O autor questiona a
realidade posta, mas não indica qual caminho deve ser seguido pelo teórico, se é por alguma
religião ou não. Apenas afirma que esse caminho deve ocorrer no sentido de buscar um
significado maior à sua existência, à retomada com o “ser”, que é o contato da existência
humana com a eternidade.
De todo o exposto, conclui-se que Kelsen critica principalmente aspectos que ele
considere teológicos ou místicos da teoria de Voegelin. Entretanto, quando da leitura do texto
e com base em outras obras de Voegelin, sua teoria não se refere exatamente à teologia, mas à
filosofia da consciência ou ontologia.
91
CONCLUSÃO
Dessa forma, a teoria positivista em sua essência e pureza serve para o estudo dos me-
canismos mas não do que se faz com eles na prática. Isso é questionável pois o vácuo de valo-
res dentro de uma teoria permite que nela se insira qualquer tipo de valor, podendo ser facil-
mente desviada para ser aplicada em práticas que sejam lesivas a contingentes populacionais.
Crítica semelhante é feita pelos adeptos do positivismo às teorias que se valham de ju-
ízos de valor, como é, por exemplo, a teoria de Voegelin, já que este autor nega que se possa
dissociar os valores das ciências humanas e que quando se busca fazer isso há uma destruição
da própria ciência. A crítica feita às teorias que não são positivistas é a de que elas servem não
para explicar uma realidade, mas para justificá-la ou atacá-la e dessa forma, elas são meros
instrumentos do arbítrio do teórico que busca ou a manutenção ou a modificação da ordem
social. Entretanto, ao colocar o ser humano como pertencente à teoria e como um agente ativo
na sociedade, essas teorias conseguem abranger aspectos sociais que são resultantes da ação
humana e que não são respondidos por uma teoria positivista pura.
eles são repetidos de modo a criarem uma atuação prática pouco crítica, como verdades in-
questionáveis (o que pode ocorrer também na outra metodologia), ou mesmo os valores po-
dem ser interpretados à conveniência do intérprete, modificando a teoria.
Então não importa se a teoria apresentará valores ou não, o que importa é que toda es-
colha de método consiste na exclusão de fatores materiais que não serão abordados ou ao me-
nos não com a precisão adequada. Entretanto, isso não quer dizer que uma metodologia seja
melhor do que a outra, mas delimita quais perguntas serão respondidas e quais não. Nos auto-
res estudados, Kelsen responde de forma magistral a estrutura e dinâmica do Estado Moderno
em suas relações internacionais e na eficácia e validade do ordenamento jurídico e do Estado.
Mas o método do positivismo puro não permite dizer que uma forma de organização social
seja mais adequada ou justa do que outra, ou que a injustiça contra determinados grupos –
como o genocídio – seja considerado bom ou ruim, justo ou injusto, pois para chegar a uma
conclusão dessas é necessário fazer um juízo de valores. Tanto é assim que pode-se afirmar
que Kelsen posteriormente se viu em situações de realizar uma ponderação de valores, esco-
lhendo a democracia como melhor forma de organização governamental, principalmente se
for pela via direta.
Por outro lado, Voegelin responde de forma excelente a questão de sentimento de des-
locação, vazio e crise que os seres humanos parecem enfrentar nos últimos tempos em relação
a eles mesmos e consequentemente em relação à sociedade e realidade nas quais estão inseri-
dos. O ser humano é por muitas vezes esvaziado de um sentido maior de sua própria existên-
cia, vivendo na repetição de valores que foram determinados a muito tempo e que se mostram
insustentáveis e insuficientes aos anseios humanos, como a ideia de progresso ou de realiza-
ção pessoal, que se tornou sinônimo de realização econômica. Estes conflitos internos dos
seres humanos refletem na forma como eles se percebem em relação à coletividade na qual
estão inseridos, resultando também em atitudes conflituosas. Mas a teoria parte de um nível
tão íntimo e pessoal e avança para um tão amplo e abrangente, que não responde satisfatoria-
mente as questões presentes e atuais das sociedades, da forma como Kelsen faz, analisando as
estruturas e suas dinâmicas.
Percebe-se portanto que os resultados obtidos a partir da escolha metodológica dos au-
tores foram duas teorias que, embora os próprios autores pretendessem opostas, se mostram
complementares. O estudo somente de uma das teorias ou da outra resultaria em um panorama
menos abrangente e crítico do que é possível de se criar pela análise de ambas.
93
No que diz respeito à legitimidade, a teoria de Hans Kelsen fornece um bom panorama
de como é a estrutura do Estado que a possibilita. Os conceitos de eficácia e validade estabe-
lecem critérios objetivo pelos quais é possível analisar e identificar uma sociedade legítima,
principalmente para questões tangentes ao direito internacional. Especificamente tratando
sobre o conceito de representação para que ele possa servir de base para a legitimidade, em
um primeiro momento pode-se entender que não há relação entre os dois conceitos, pois a
representação seria apenas uma ficção criada para justificar que a democracia não seja exerci-
da de forma direta, já que há impossibilidade física para tanto, por causa do tamanho dos Es-
tados e da consequente necessidade de divisão de tarefas dentro da organização do Estado.
Mas apesar da aparente não relação entre os dois conceitos, percebe-se que, ao menos
em determinado momento da vida de Kelsen, a representação ganhou força como fator de
base da legitimidade. Isso é notado pela valorização da democracia parlamentar e pela indica-
ção de que é preferível que se busque aplicar métodos de democracia direta, como referendos
e plebiscitos, de modo que haveria maior legitimidade do parlamento.
A crítica que se pode fazer no que diz respeito às pretensões deste trabalho é a expli-
cação dada para a queda e emergência dos governos. Kelsen afirma que a mudança de gover-
no nada mais significa do que uma forma possível e legítima de modificação do ordenamento
normativo. Quanto às questões do Direito a resposta é satisfatória, mas no que tange aos an-
seios e motivações dos seres humanos, ela parece incompleta. Essa incompletude é proposital
e responde aos pressupostos metodológicos escolhidos pelo autor, que não pretende e não
analisa as motivações humanas, por serem elas imbuídas de valores, devendo tais estudos fi-
car a cargo da sociologia. Mas sem esse aspecto, o ser humano parece ser apenas um fator em
uma equação, algo sem vontades, servindo apenas de instrumento para a modificação do or-
denamento.
Essa questão das intenções humanas é, por outro lado, bem tratada na teoria de Voege-
lin. Não porque ele analise quais podem ser as pretensões individuais ou de certos grupos,
mas porque ele traça um panorama histórico que abrange o ser humano como um elemento
ativo e passível de estudo. Independentemente de se concordar com o aspecto transcendental
do ser humano e na existência de uma verdade da alma, fato é que o autor consegue responder
o que leva a insatisfações coletivas das sociedades com seus governantes: a ordenação da al-
ma humana tem se dado de forma que há uma repressão de alguns valores e outros são institu-
ídos como sendo ideais e preferíveis. Mas essa imposição externa de valores internos criou
uma estrutura da realidade que é insustentável. Pretende-se que a absorção de conceitos como
94
A conclusão a que se chega pela teoria de Voegelin é que todos os governos cujas so-
ciedades são organizadas e baseadas em governos ou estruturas gnoseológicas estão em crise
constante e no plano transcendental não são representativas. A grande questão é a de que, nes-
se caso, ao menos todas as sociedades ocidentais são, em maior ou menor medida, ilegítimas
transcendentalmente. Esse é um fator que possivelmente explica o fato de nos últimos anos
terem surgido pelo menos um caso de insatisfação da população em relação à representativi-
dade e legitimidade de seus governos. Como, de acordo com Voegelin, há uma situação de
autodrestruição das sociedades, a tendência é ainda aumentar a insurgência de guerras no que
diz respeito à representatividade e legitimidade dos governos, que se mantém no poder a um
muito alto custo: a repressão da verdade da alma.
Os aspectos que Voegelin não desenvolve com tanto primor são justamente aqueles
bem trabalhados por Kelsen, ou seja, os elementos estruturais dos Estados Modernos e o seu
funcionamento. Novamente aqui, como no que tange à metodologia escolhida pelos autores,
se percebe e conclui que o melhor panorama que se pode ter das sociedades atuais é aquele
que engloba a teoria de ambos os autores. Uma teoria abarca os assuntos que a outra falha e a
quem estuda ambas é possibilitada a noção de completude, que seria impossível pela análise
apenas uma vertente ou a outra.
95
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