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Distributismo versus Materialismo: entre a Ortodoxia e a loucura


em G. K. Chesterton

Igor Awad Barcellos1

Resumo

O presente artigo trata da contraposição entre distributismo e materialismo à luz do pensamento de


Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). O embate entre capitalismo e comunismo se desvela como
superficial e estéril na medida em que ambas as teorias econômico-sociais partem do pressuposto
materialista. Desse modo, o distributismo aparece não como uma terceira via, mas como um real
opositor de capitalismo e comunismo, denunciando sua raiz comum materialista. Tudo isso é
mostrado à luz da filosofia chestertoniana, qual seja, a Ortodoxia.

Palavras-chave: Chesterton; distributismo; Ortodoxia; materialismo; capitalismo; comunismo.

Distributism versus Materialism: between Orthodoxy and insanity in G. K. Chesterton

Abstract

The present article is about the contraposition between distributism and materialism, considered inside
the thougth of Gilbert Keith Chesterton (1874-1936). The clash between capitalism and communism
unveils itself as superficial and sterile because both social-economic theories are materialists. So,
distributism is not a third way, but a real opponent of capitalism and communism, denouncing the
materialist character of both perspectives. All this points will be shown considering Chesterton´s
Philosophy: the Orthodoxy.

Key-words: Chesterton; distributism; Orthodoxy; materialism; capitalism; communism.

Introdução

Gilberth Keith Chesterton foi um intelectual inglês cuja produção nos remonta
à primeira metade do século XX. Convertido ao catolicismo tardiamente, Chesterton,
desde muito antes de seu ingresso à Igreja de Roma, já estava convencido de que a
verdade se encontrava na imutável doutrina católica, o que ele entendeu por bem
chamar de Ortodoxia. Desse modo, antes mesmo de seu batismo, já passara a fazer

1 Advogado, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Professor da
Faculdade Estácio de Sá de Vitória (FESV) e da Faculdade Novo Milênio.

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a defesa do cristianismo em face de suas diversas ameaças, tais como o globalismo,


o comunismo e até mesmo o capitalismo.

Nesse sentido, juntamente com Hillaire Belloc (1870–1953) 2 , Chesterton


elaborou e propôs uma teoria econômica oposta ao materialismo moderno cada vez
mais concretizado no desenvolvimento do capitalismo e rumo ao inexorável advento
do comunismo.

Para Chesterton, o único caminho a ser tomado seria o retorno à Ortodoxia


que propiciara, antes do advento do capitalismo industrial, uma organização social
baseada em uma salutar distribuição da propriedade privada, garantindo a liberdade
do homem. Desde já, podemos ver no pensamento do autor um primeiro paradoxo:
a defesa da propriedade privada como meio de combate ao materialismo.

No superficial embate entre capitalismo e comunismo, o materialismo 3 é


sempre vencedor, pois este é o ponto em comum entre ambas as doutrinas
econômicas. É justamente contra o materialismo que Chesterton se volta. Nesse
sentido, a oposição “capitalismo x comunismo” é analisada por Chesterton de modo
que vem à tona uma outra oposição, mais completa e que nos permite visualizar o
problema econômico sob uma perspectiva mais ampla: trata-se da oposição
Ortodoxia versus Materialismo.

Como capitalismo e comunismo são oriundos da mesma matriz materialista,


podemos desdobrar a oposição acima da seguinte forma: “distributismo" versus
"capitalismo - comunismo”, sendo o distributismo a teoria econômica calcada na
Ortodoxia, e capitalismo e comunismo as doutrinas oriundas do materialismo.

2 Escritor e intelectual britânico, autor de diversas obras, dentre elas O Estado servil, um clássico da
literatura distributista, amigo pessoal de Chesterton, juntamente com quem defendeu o sistema
alternativo ao materialismo vigente até os tempos atuais.

3 Segundo o Catecismo da Igreja Católica (285), os adeptos do materialismo “não aceitam nenhuma
origem transcendente do mundo, vendo neste o mero jogo de uma matéria que teria existido sempre.”
Portanto, o materialismo pensa toda a realidade a partir da matéria: todas as outras dimensões da
realidade são baseadas e dependem da dimensão material. Um dos maiores expoentes do
materialismo é Karl Marx, ao conceber a realidade a partir do materialismo-histórico dialético. Seu
materialismo fica evidenciado também nas categorias de superestrutura e infraestrutura, sendo
aquela completamente determinada por esta. Tal doutrina é condenada pela Igreja Católica, o que dá
ensejo ao embate promovido por Chesterton em defesa da Ortodoxia.

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Desse modo, necessária se faz a explanação da Ortodoxia no pensamento de


Chesterton, pois todos os temas de seu pensamento dependem deste entendimento
primordial.

O paradoxo ortodoxo ou a ortodoxia paradoxal

A necessidade de se demonstrar em que consiste a Filosofia primeira de


Chesterton vem do próprio autor, na medida em que esta é a luz a partir da qual
todas as coisas se fazem claras. “Mas há algumas pessoas - entre as quais me
incluo – que pensam que a coisa mais prática e importante sobre o homem ainda é a
sua visão a respeito do universo.” (CHESTERTON, 2014, p.41).

Se a filosofia de Chesterton está toda contida na palavra Ortodoxia, esta, por


sua vez, também encerra todo o seu sentido em uma figura de linguagem bastante
comum nos escritos chestertonianos: o paradoxo. Em um primeiro momento, a
simples afirmação da tese de uma ortodoxia calcada no paradoxo parece, por si só,
paradoxal. No entanto, essa constatação, ao contrário de contradizer, acaba por
ratificar a tese aqui sustentada, ou seja, a ortodoxia de Chesterton consiste mesmo
no paradoxo.

No entanto, essa afirmação ainda parece arbitrária e sem sentido: de onde


provém o paradoxo? Por que o paradoxo? A resposta pode ser encontrada no
capítulo 5 do livro Ortodoxia, intitulado Os paradoxos do Cristianismo. No
personagem central dessa religião, Jesus Cristo, enquanto verdadeiro Deus e
verdadeiro Homem, consiste a luz paradoxal que ilumina todo o mundo do fantástico
pensamento de Gilbert Keith Chesterton (2013, p.140):

A teologia ortodoxa tem, especialmente, insistido em que Cristo não era um


ser à parte de Deus e do Homem, como um elfo, nem também um ser
metade humano e metade não, como um centauro, mas ambas as coisas
ao mesmo tempo, ambas as coisas inteiramente – verdadeiro homem e
verdadeiro Deus.

Se Deus, como pode ser homem? Se homem, como pode ser Deus? Este
paradoxo fundamental é o traço essencial de nosso Senhor Jesus Cristo, o que fica
evidenciado no título de outro livro de Chesterton, O Homem eterno: se é homem,

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como pode ser eterno? Se eterno, como pode ser homem? “Porque a Deus nada é
impossível” (Lc I, 37).

O Deus do Cristianismo (que é Uno e Trino ao mesmo tempo – outra marca


paradoxal) consiste essencialmente no paradoxo acima elucidado. “Eu sou a luz do
mundo;” (Jo, VIII, 12): sendo o próprio Cristo a verdadeira Luz, e consistindo esta no
paradoxo acima exposto, não poderia ser outra a maneira pela qual Chesterton vê
as coisas. Não coincidentemente a grande marca de seus escritos é justamente o
paradoxo.

Uma vez tendo elucidado de maneira brevíssima a filosofia primeira de


Chesterton, passemos à análise do tema ora proposto à luz de seu pensamento,
qual seja, o distributismo em contraposição ao materialismo. Comecemos tecendo
considerações sobre este e sobre a forma de estado própria da mentalidade
materialista.

O materialismo como uma das manifestações da loucura e o


totalitarismo/comunismo como a forma de estado própria dos loucos

A tese proposta neste artigo é de que o comunismo (uma manifestação do


totalitarismo), é a forma de estado própria dos loucos. A loucura é um tema tratado
por Chesterton em sua obra Ortodoxia e consiste basicamente na homogeneidade
da mente. O louco possui uma mente homogênea: tudo se dá sempre e
absolutamente em uma única perspectiva: “É a homogeneidade da sua mente que o
torna estúpido e faz dele um louco.” (CHESTERTON, 2013, p.34).

Exemplo claro de loucura é toda a forma de racionalismo. Segundo tal


concepção, toda a realidade deve estar submetida a parâmetros estritamente
racionais. O mundo, então, de forma total, ganha o aspecto unidimensional da
racionalidade: “A imaginação não produz loucura: o que produz loucura é
exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem, os jogadores de xadrez sim.”
(CHESTERTON, 2013, p.35)4.

4 Mais um belíssimo paradoxo chestertoniano: a razão como fonte da loucura.

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Para Chesterton, a marca central da loucura é a combinação entre uma


completude lógica com uma contração espiritual. O louco consegue racionalizar tudo
o que passível se estar sob o julgo da racionalidade, no entanto, a realidade é mais
ampla do que aquilo que pode ser abarcado pela razão. Dessa maneira, “A teoria de
um lunático explica muitas coisas, mas não as explica de uma forma ampla”
(CHESTERTON, 2013, p.40).

O louco, para Chesterton, busca explicação racional para cada item da


realidade, até mesmo para coisas que comumente escapam à razão. Dessa
maneira, para o autor não é aconselhável travar uma discussão racional com um
louco, pois provavelmente ele logrará êxito. Tudo, em termos totais e absolutos, fica
submetido ao Tribunal da Razão5.

O materialismo segue a mesmo caminho do racionalismo, ou seja, da loucura:


tudo é visto pela ótica da matéria. Nas palavras do Papa Pio XI, na encíclica Divinis
Redemptoris, “Essa doutrina proclama que não há mais que uma só realidade
universal, a matéria[...]” 6 . Em uma sociedade materialista, como é o caso da
sociedade moderna de uma forma geral, a teoria de Marx, por exemplo, pode fazer
muito sentido, no entanto, isso não quer dizer que a realidade se reduza à dimensão
material:

Como explicação do mundo, o materialismo tem uma espécie de louca


simplicidade, e a sua argumentação é, precisamente, a de um doido. Temos
a sensação de que ela abrange tudo e, ao mesmo tempo, deixa todas as
coisas de fora. (CHESTERTON, 2013, p.43).

É justamente nesse cenário que se encontra o embate entre capitalismo e


comunismo: os oponentes estão a duelar em defesa de uma única perspectiva, qual
seja, o materialismo. Em outras palavras, trata-se de um duelo em que a vitória já
está garantida de antemão.

5 O Tribunal da Razão é uma figura e uma expressão usada por Immanuel Kant, eminente filósofo da
modernidade.

6 Disponível em https://w2.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-
xi_enc_19370319_divini-redemptoris.html

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As duas teorias econômicas explicam a realidade de forma racional, mas,


evidentemente, ficam restritas à dimensão material, o que faz do embate entre
ambas uma contraposição completamente falaciosa, uma vez que tanto capitalismo
quanto socialismo quedam indiferentes no que tange aos seus próprios
fundamentos.

Não poderia ser de outra forma: se um defensor do capitalismo, por exemplo,


começar a se questionar sobre os pressupostos do materialismo, ele não mais é um
defensor do capitalismo (em outros termos, um materialista) enquanto tal. O mesmo
pode-se dizer de um comunista. Dessa maneira, para que haja a defesa do
capitalismo ou mesmo do comunismo, o materialismo deve necessariamente estar
pressuposto. Nessa perspectiva, capitalismo versus comunismo é um debate para
loucos. “Considerado, portanto, como uma figura, o materialista tem o fantástico
contorno da figura de um doido.” (CHESTERTON, 2013, p.47).

Qual seria, então, a forma de Estado própria dos loucos? O Estado


homogêneo, ou, em outras palavras, o Estado comunista. Essa homogeneidade,
quando considerada do ponto de vista da forma de Estado, não é outra coisa que o
conhecido fenômeno do totalitarismo. O Estado total é aquele que está em toda
parte, de modo a não haver diferença alguma entre Estado e sociedade.

Sendo assim, o Estado comunista é aquele no qual todas as pessoas são


comunistas, de modo a estarmos diante de uma homogeneidade total, uma
verdadeira loucura em termos chestetonianos projetada da esfera psicológica do
indivíduo para o âmbito político-social. É o próprio Chesterton que nos fala sobre
isso ao contrastar o que seria o Estado distributista em face do Estado comunista:
“O sentido ordinário do comunismo não é que algumas pessoas são comunistas,
mas que todas as pessoas são comunistas.” (CHESTERTON, 2016, p.54).

Resta demonstrado, então, que o Estado comunista ou Estado total estão


calcados no materialismo, o que, em termos do pensamento de Chesterton quer
dizer que o Estado total tem como premissa a loucura, na medida em que provem e
promove a homogeneidade, esta tão detestada e combatida por Chesterton (2016,
p.53): “É exatamente dessa simplificação e uniformidade que rogo por ser salvo, e

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que me orgulharia se pudesse salvar alguém.” Como dito, trata-se de uma projeção
da alma do louco para a dimensão estatal-institucional.

Qual seria, então, a rota de fuga à simplificação, à uniformidade, à


homogeneidade ou mesmo à loucura? Seria a Ortodoxia?! Ora, essa não seria mais
uma perspectiva que tenderia a fechar a realidade à luz de seus próprios parâmetros
exatamente como o materialismo? Qual seria o caminho para sanidade, então?

A armadilha para os lógicos

No seu livro Ortodoxia, obra sobre sua filosofia primeira, Chesterton nos
apresenta aquilo que ele chamou de armadilha para os lógicos. Nunca é demais
recordar que o homem lógico para o pensamento paradoxal de Chesterton é
sinônimo de homem louco: “A experiência nos demonstra que o doido é,
comumente, um lógico e, frequentemente, um lógico bem sucedido.”
(CHESTERTON, 2013, p.43).

Os loucos caem na armadilha de pensar que o mundo é tão-somente lógico.


Ao se deparar com uma situação ou com um fenômeno que não possam ser
abarcados pela lógica, tem-se a fortíssima tentação de se concluir que o mundo é
ilógico. Ledo engano. Ao proceder dessa forma, não se consegue sair da loucura,
isto é, da pressuposição equivocada de que o mundo é uniforme e homogêneo.

Da mesma forma que o racionalista pensa que o mundo é totalmente racional,


o defensor da irracionalidade pensa que o mundo é totalmente irracional. O
problema não está na racionalidade ou na irracionalidade, mas sim no fato de se
buscar a uniformização de todas as coisas sob a égide de um único julgo, seja este
racional ou irracional. Racionalismo e irracionalismo se equivalem em loucura.

Ao contrário disso, para Chesterton a porta de saída do manicômio moderno


racionalista está em compreender exatamente que o mundo é lógico e, ao mesmo
tempo, ilógico, ao sabor do mais refinado dos paradoxos do pensador inglês:

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O VERDADEIRO PROBLEMA deste mundo não é o fato de ser ele um


mundo insensato, nem o fato de ser sensato. A questão é que o mundo é
quase, mas não totalmente, sensato. A vida não é uma negação da
lógica: é uma armadilha para os lógicos. Ela apenas parece um pouco
mais matemática e regular do que de fato é; a sua exatidão é evidente,
mas sua inexatidão está oculta, e sua fúria selvagem está à espreita.
(CHESTERTON, 2013, p, 125). (Grifo nosso).

O que rompe com loucura homogeneizante é a clareza de que o mundo, ao


mesmo tempo, possui uma dimensão que pode ser abarcada pela racionalidade, no
entanto, comporta também uma dimensão que escapa por completo à lógica
racional. Aqui começa ser esboçada a sanidade. Para se escapar da loucura é
preciso não cair na armadilha dos lógicos.

Para arrematar a pergunta que finalizou o item anterior, Chesterton (2013)


sustenta que materialismo é muito mais limitador do que qualquer religião. Ele nos
apresenta a comparação entre um cristão e um ateu. De certa maneira, ambos são
igualmente limitados pela perspectiva a partir da qual vêem o mundo: o cristão,
enquanto tal, não pode colocar Cristo em dúvida, assim como o ateu, nessa
condição, não pode se abrir para a experiência da revelação, pois se o fizer deixará
de ser ateu7.

No entanto, a limitação imposta pela perspectiva do materialismo ateu é muito


maior que aquela imposta ao cristão pela Ortodoxia. O cristão pode livremente
compreender que existe um mundo natural pautado por regras lógicas, passíveis de
serem aferidas pela razão humana. Além disso, o cristão entende haver também
outra dimensão que é completamente misteriosa, que, em certa medida, escapa à
razão humana. O fato, porém, de ser misteriosa não a torna inexistente.

O ateu, por outro lado, fica restrito à dimensão racional, imanente, não
estando autorizado a acreditar no transcendente, mas apenas no material, aferível
pela razão. Em síntese, o cristão pode admitir a dimensão material da realidade,
mas o ateu não pode admitir a espiritual. Dessa forma, o cristianismo é uma
perspectiva mais ampla do que o materialismo:

7 O ateu é apresentado por Chesterton no mesmo estado de loucura que o materialista e o lógico.

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O cristão tem plena liberdade de acreditar que existe no Universo uma


ordem estabelecida e um inevitável desenvolvimento, mas o materialista
não pode admitir, na sua irrepreensível máquina, a menor parcela de
espiritualismo ou de milagre [...] O cristianismo admite que o universo é
multiforme e, por vezes, misto, exatamente como o homem normal admite a
própria complexidade. O homem são sabe, perfeitamente, que há em si
qualquer coisa de animal, de demônio, de santo e de cidadão, chegando
mesmo a admitir, quando é verdadeiramente são, que há em si alguma
coisa de louco. Mas o mundo do materialista é perfeitamente simples e
sólido, exatamente como o louco está convencido de que é uma criatura
perfeitamente sã. (CHESTERTON, 2013, p.45).

O caminho de saída da loucura típica do hospício moderno racionalista é,


para Chesterton, o Cristianismo como forma de Ortodoxia, como uma perspectiva
mais abrangente da realidade, na medida em que não busca limitá-la e subjugá-la
sob uma única medida.

Se o totalitarismo/comunismo é a forma política mais acabada da loucura,


resta agora esclarecer qual seria a forma político-social da Ortodoxia.

O Distributismo

O distributismo é a "teoria econômica" que se apresenta como uma via


alternativa tanto ao capitalismo quanto ao comunismo. Como já esclarecido,
capitalismo e comunismo se equivalem, na medida em que ambos provêm da
loucura do materialismo. Desse modo, o usualmente empregado termo “terceira via”
se torna inadequado, pois não há três opções, uma vez que capitalismo e
comunismo são originados da mesma opção do materialismo, que contrasta com o
distributismo que Chesterton vê como uma forma de Ortodoxia.

A expressão “teoria econômica” está entre aspas exatamente para destacar


que se trata de uma teoria não econômica, lançando a luz paradoxal chestertoniana
à questão. O problema econômico moderno não tem raiz econômica (material), mas
sim moral. A revolução em termos chestertonianos deve ser operada primeiramente
no coração e na mente de cada homem, o que, em um segundo momento, levará a
adoção de medidas de ordem maior, ao contrário das revoluções materialistas que
acontecem com derramamento de sangue alheio em larga escala. Exemplo disso
são as revoluções francesa (liberal) e russa (comunista), ambas materialistas.

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Uma revolução distributista, ao contrário, consiste na mudança de direção do


Materialismo para a Ortodoxia. “Somos revolucionários no sentido de que uma
revolução significa uma inversão: uma inversão de direção, mesmo que
acompanhada de um ritmo mais vagaroso.” (CHESTERTON, 2016, p.50). A filosofia
primeira de Chesterton se baseia, como já vimos, no paradoxo, centrado na figura
de nosso Senhor Jesus Cristo. Este ponto é digno de uma importante ressalva para
que não se caia em um erro bastante comum em um tempo materialista como o
atual.

Poder-se-ia em um primeiro momento pensar que uma ordem social


distributista proviria da mera adoção de uma série de medidas legislativas em prol
8
da melhor distribuição da propriedade privada , no seguinte esquema de
pensamento: mudam-se as medidas estatais, e por consequência mudar-se-á a
cultura, a mentalidade das pessoas. Tal raciocínio não é correto em termos
distributistas, pois se move dentro do materialismo determinista. Esclareçamos tal
ponto.

A ideia de mudar o estado como meio de mudança da mentalidade acaba por


replicar, de certa forma, a ideia de Marx de determinação da superestrutura pela
infraestruruta. Além disso, corre-se o perigo de se concentrar toda a fonte da
produção cultural9 no Estado, o que seria uma loucura em termos chestertonianos,
na medida em estar-se-ia a caminho da homogeneização.

Por outro lado, seria lícito perguntar se não haveria, então, medidas estatais a
serem tomadas no distributismo?! Se logo acima afirmamos que o Estado não
poderia estar à frente da revolução distributista, pois isso de certa forma nos
manteria no âmbito da engenharia social materialista, então seria lícito descartar por
completo o Estado e as medidas de cunho legislativo, por exemplo?

8 É importante destacar que o distributiismo se baseia em uma teoria de proteção da propriedade


privada. Não teremos espaço, infelizmente, para tratarmos da propriedade em específico no presente
artigo, o que deixaremos para uma oportunidade futura. No entanto, destaca-se, mesmo que em sede
de nota de rodapé, que o que o distributismo visa distribuir é a propriedade privada de forma
descentralizada.

9 Entenda-se por produção cultural toda a produção espiritual, abstraindo do fato de que, para Marx,
a produção legislativa também é superestrutural. Exatamente por isso que usamos a expressão “de
certa forma” mais acima.

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Esta pergunta também mantém o leitor na loucura da homogeneidade. Da


mesma forma que o fato de o mundo não ser totalmente lógico, não o torna
totalmente ilógico, o fato do Estado não ser o protagonista na implantação de uma
ordem social distributista, não significa que não haja medidas distributivas de cunho
estatal10. Não podemos cair na armadilha dos lógicos.

Dessa forma, em lugar de um Estado totalitário, homogeneizante, como é o


caso do Estado comunista, Chesterton nos fala em um senso de proporção. Em Um
esboço da sanidade, ele nos lança um exemplo que deveras elucidativo para a
compreensão do que se quer dizer por proporção.

Se alguém dissesse que se deve culpar os reis medievais ou os modernos


países camponeses por tolerarem um bolchevismo descarado, quão
surpresos não ficaríamos em descobrir que o comentário, na realidade,
referia-se apenas ao seu tolerar monastérios. Não obstante é um tanto
verdadeiro que em um sentido os monastérios são devotos do comunismo,
e que todos os monges são comunistas. (CHESTERTON, 2016, p. 54).

Com a pena afiada em seu melhor estilo, Chesterton afirma o caráter comunal
da vida nos monastérios. No entanto, na sociedade medieval, a qual ele se refere na
citação, os monastérios ocupavam um espaço proporcional dentro do corpo social
visto como um todo. Mais uma vez, o problema não está na vida comunal, mas sim
em tornar absoluto esse modo de organização para toda a sociedade, o que seria
homogeneizá-la como quer a doutrina comunista/materialista: “O que afirmamos é
que meramente nacionalizar todas as terras é como meramente tornar todas as
pessoas monges”. (CHESTERTON, 2016, p.54).

Para Chesterton, o Cristianismo (a Ortodoxia) conseguiu criar um tipo de


equilíbrio deveras curioso, ao conjugar paixões antagônicas, sem excluí-las
mutuamente ou mesmo abrandá-las, ao contrário do paganismo, que busca o
equilíbrio entre os contrários por meio de uma diluição de ambos, de modo a se
encontrar um meio-termo. No exemplo das cores usado por Chesterton (2013,
p.148), a Igreja manteve intacto o branco e o vermelho sobrepostos, mas não
aceitou o equilíbrio como a cor rosa - mistura de branco e vermelho.

10 Também não teremos oportunidade no presente artigo de adentrarmos em possíveis medidas


estatais de cunho distributista.

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O pensador inglês descobriu que o segredo do cristianismo está justamente


em equilibrar os opostos, intensificando-os. No entanto, para conciliar o que, a
princípio é inconciliável, a Igreja teve de dar o peso devido (a proporção) a cada uma
das coisas e colocá-las em seus devidos lugares: “Separou as duas ideias e
exagerou ambas, Por um lado, o homem tinha de ser mais presunçoso do que
jamais fora e, por outro, tinha de ser mais humilde do que nunca.” (CHESTERTON,
2013, p.143). E ainda, “É verdade que a Igreja histórica defendeu simultaneamente o
celibato e a família; defendeu ao mesmo tempo e violentamente ter filhos e não tê-
los. E conservou ambas, lado a lado, como duas cores fortes” (CHESTERTON,
2013, p.147).

Dessa forma, a Igreja, por meio da Ortodoxia, conseguiu criar uma nova
forma de equilíbrio, ou mesmo, de proporção. Só é possível equilibrar coisas
distintas, ao contrário do desequilíbrio próprio da loucura. Dessa maneira, à luz da
Ortodoxia, e somente à luz dela, podemos entender a proposta do Estado
distributista: no equilíbrio proporcional entre coisas, pessoas, vocações, modo de
organização social completamente diferentes entre si, entretanto coexistentes.

No mundo moderno, ou todos devem ser super-empreendedores ou todos


devem ser funcionários públicos, sendo a primeira opção própria do mundo
capitalista liberal e a segunda do mundo socialista-comunista. Mais uma vez,
insistimos que o problema não está em empreender ou em ser funcionário do
Estado, mas sim em querer submeter toda a sociedade a somente uma dessas
opções. Para Chesterton, trata-se de loucura, homogeneização.

A ordem social-econômica distributista surge como a possibilidade de


equilibrar e, por conseguinte, dar lugar as mais diversas vocações possíveis. Nem
todos tem vocação para a vida empresarial, assim como nem todos são
vocacionados para o funcionalismo público, para aproveitarmos o nosso exemplo.

Justamente nisso encontra-se o insight do distributismo. No Estado


distributista, nem todos os indivíduos devem ser distributistas, ao contrário do
Estado comunista, como já demonstrado acima. Mais uma vez, uma imagem de
Chesterton (2016, p.55) nos ajuda na questão: um homem que deseja um jardim

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florido vai plantar muitas flores, mas na devida proporção, de modo a não plantar
flores, por exemplo, no muro de sua casa. Tal homem:

Sabe a coisa principal que está tentando atingir; mas, não sendo um
completo palerma, não julga poder atingi-la em todos os lugares,
exatamente no mesmo nível, ou de modo igualmente não misturado com
coisas de outro tipo. (CHESTERTON, 2016, p.55).

Somente calcada na Ortodoxia poderá vir a lume a ordem social distributista.


O paradoxo de um Estado distributista feito para distributistas e não distributistas
não é uma situação tão longe de nossa realidade. Note-se o exemplo do Estado
laico, sobretudo no Brasil: trata-se de um Estado que, tecnicamente, não professa
nenhuma religião oficial, mas que é criado por e para uma sociedade notadamente
religiosa, com indivíduos religiosos e não religiosos, crentes e ateus.

Nesse simples exemplo vemos dois grandes paradoxos sobrepostos: o


Estado laico e uma sociedade religiosa é o primeiro paradoxo. O segundo consiste
justamente no fato de essa sociedade profundamente religiosa comportar indivíduos
religiosos, não religiosos, crentes e ateus. Como pode algo ser o que é e comportar
em si o seu contrário?11 Em outras palavras, como é possível haver uma sociedade
religiosa que comporta indivíduos crentes e não crentes?

Do mesmo jeito que o Estado laico comporta religiosos e ateus, o Estado


católico é feito para católicos e não católicos, e o Estado distributista, para
distributistas e não-distributistas. Por outro lado, o Estado comunista não é feito para
comunistas e católicos, por exemplo: ele não é feito para comunistas e não
comunistas. O comunismo visa um Estado total, que não suporta a diversidade, não
consegue, como a Ortodoxia, equilibrar forças contrárias em seu mosaico doutrinal.

11 Uma nota de rodapé se faz necessária para evitar qualquer equívoco do leitor neste ponto. A
pergunta “como algo pode ser o que é e comportar em si o seu contrário?” de forma alguma pode ser
remetida a uma dialética do tipo hegeliana. Isso porque, para Hegel, as coisas são o que são
comportando em si o seu contrário (tese e antítese). No entanto, em lugar de um movimento antitético
como aquele proposto por Hegel, Chesterton em sua Ortodoxia essencialmente paradoxal mantem e
intensifica cada um dos elementos antagônicos. A diferença central entre a dialética hegeliana e o
paradoxo chestertoniano está exatamente no fato de que aquela busca pôr fim à contradição em uma
síntese homogeneizante, sendo que este, por sua vez, mantém a contradição. Isso pode ser visto
justamente na figura de Jesus Cristo: ao se fazer Homem, não deixou de ser Deus, sendo ambos,
Deus e Homem, ao mesmo tempo - o Homem Eterno.

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Ao contrário disso, o Estado comunista (total) está baseado na homogeneidade, na


mente homogênea, o que em Chesterton que dizer loucura.

Conclusão

No presente artigo demonstramos com base no pensamento de Gilbert Keith


Chesterton o antagonismo entre distributismo e materialismo desde seus
fundamentos, respectivamente, a Ortodoxia e a loucura. Para tal, passamos pelo
totalitarismo como a forma de Estado próprio dos loucos, por se basear na
homogeneidade da mente, traço essencial da loucura no pensamento
chestertoniano. Por fim, demonstramos de maneira bastante breve um esboço do
distributismo chestertoniano, tendo como referência primordial sua própria obra
Ortodoxia. Se a Ortodoxia é a saída para a loucura, em termos de forma política, o
distributismo é a rota de fuga do materialismo, este cristalizado no falacioso e
superficial embate entre capitalismo e comunismo.

Referências

Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida.


Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
CHESTERTON, G.K. Hereges. São Paulo: Ecclesiae, 2014.
______. Ortodoxia. São Paulo: Ecclesiae, 2013.
______. Um esboço da sanidade: pequeno manual do distributismo. São Paulo:
Ecclesiae, 2016.
Encíclica Divinis Redemptoris. PIO XI. Disponível em:
https://w2.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-
xi_enc_19370319_divini-redemptoris.html Acesso em 10 de dezembro de 2017.

Submetido em 2017-05-18.

Publicado em 2018-01-09.

Revista de Geopolítica, v. 9, nº 1, p. 153 - 166, jan./jun. 2018.

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