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Nelson Rodrigues

SEM AMAR,
NEM ODIAR
O brasileiro é um feriado. Vi isso, anteontem, e de repente. Era
uma terça-feira e – note-se – o primeiro dia útil depois de sexta,
sábado, domingo e segunda de Natal. Imaginei que, exausto da
própria ociosidade, o brasileiro estivesse no escritório, na oficina ou na
pedreira, fazendo a sua pátria. O meu táxi ainda deslizava pela rua
Francisco Sá. E eu já via, com olhos da imaginação, uma praia
deserta, sem uma mísera alma ou de calção ou de biquíni.
Todavia, quando dobro para a avenida Atlântica, eis o que
vejo: do Forte de Copacabana ao Vigia, era uma só multidão que
daria para lotar várias vezes o maior Fla-Flu. Por um momento, eu, na
mais amarga perplexidade, não sabia o que pensar. Eram os mesmos
umbigos paradisíacos da véspera, e de todas as vésperas. Essa nudez
multiplicada deu-me o que pensar. Foi aí que descobri esta verdade
nacional: – o brasileiro é um feriado, temos alma de feriado.
Até a dobra do Leme tive tempo de propor a mim mesmo a
seguinte questão: – “Se o brasileiro não sai da praia, quem faz o
Brasil?”. Mas vejam vocês: não era bem isso que eu queria dizer. Ia
falar de Adolpho Bloch e não dos umbigos em flor. Imaginem que o
homem da Manchete fez uma recente viagem à Rússia. Andou por lá,
olhou, olhou e voltou correndo para o Brasil. Desembarca ali no
Galeão, e é assaltado por amigos, conhecidos e parentes. Todos
perguntavam: – “Que tal? Que tal?”. Mas Adolpho Bloch fez mistério,
fez suspense. Só falou quando, finalmente, entrou no seu apartamento
de mármore. E, então, fez esta síntese fulminante: – “O russo ainda
come três pepinos por dia”. Os presentes se entreolharam, num mudo

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horror. Adolfo repetiu: – “Três pepinos”.
Foi então que o Paschoal Carlos Magno que, num canto, ouvia
tudo, abriu a boca: – “Hoje, o russo come três pepinos. No tempo do
czar, comia um”. E assim, segundo o Adolpho de um lado e o Paschoal
de outro, o papel da Grande Revolução foi acrescentar, no prato do
povo, mais dois pepinos.
Eis o que eu queria dizer: quando veio, garoto, da própria
Rússia, não sei se o Adolpho teria um pepino para lamber. No tempo
em que eu morava na rua Alegre, ele ia residir, com a família, na
Pereira Nunes, no limite de Aldeia Campista com Andaraí. Nem
sempre, naquele tempo, tínhamos um pepino para comer. Hoje, as
varandas do seu apartamento pendem sobre a piscina do Copacabana
Palace. Mas o menino da Pereira Nunes continua enterrado na sua
carne. O velho Adolpho toma banho numa piscina de Paulina
Bonaparte; a pia onde escova os dentes tem bica de ouro. Não
importa, nada importa. O menino está encravado na sua vida. E,
ainda hoje, milionário, sua voz tem uma pungência, uma plangência
insuportáveis. Sim, por vezes, usa uma humildade crispada de certos
mendigos patéticos. E a vontade que se tem é de pingar-lhe, no pires
imaginário, a moeda da nossa esmola.
As nossas fomes eram paralelas, eram vizinhas. Lembro-me de
um garoto louro, sardento, que vi muitas vezes na Pereira Nunes.
Talvez fosse, ou não, Adolpho Bloch. Seja como for, não nos falamos
nunca. Não vou dramatizar, mas existe entre nós o vínculo físico da
fome.

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Já contei o episódio da merenda no pátio da escola pública. Eu,
com uma mísera e humilhadíssima banana (nem sempre a levava) e
outros com sanduíches de goiabada, de bife, de ovo. O que então me
fascinava era pão com ovo. Havia, lá, um garoto que não mudava de
merenda. E a trazia embrulhada em papel fino. Sem pressa desfazia o
nó, atirava fora o barbante, o papel e, então, começava a comer. Pão
com ovo, sempre. A gema escorria-lhe como baba amarela.
Quase meio século depois, entro em casa. Beijo Lúcia e digo à
empregada: – “Manda fazer sanduíche de pão com ovo”. Lúcia
intervém: – “Não faz não, que nós vamos jantar”. Insisto: – “Meu
anjo, quero pão com ovo. Estou com vontade. Cismei”. Pouco depois,
tirou-se o jantar. Mas eu comi mesmo pão com ovo. Lúcia não
entendeu, nem podia entender. Eu fazia, ali, uma maravilhosa imitação
de vida. De repente, baixara em mim a fome de 1919. Era, de novo, o
pátio de colégio. Lúcia diz: – “Meu filho, limpa no queixo”. Era a
gema que escorria. Tudo como na infância profunda. Ah, um dos meus
traumas infantis foi um sanduíche.
Eu entendo o ressentimento do Adolpho Bloch contra os três
pepinos da Revolução. É a velha fome que se crispa como uma víbora.
Aí está: ela não passa e repito: – a fome não passa, nunca. Outro
dia, Adolpho Bloch passou por mim. Paramos no sinal, lado a lado, eu
no meu táxi, ele no seu carro. O seu automóvel nunca parece o mesmo
da véspera. É como se ele comprasse um por dia. Se me disserem que
seu carro tem uma cascata artificial, com filhote de jacaré, eu direi: –
“Tem”.

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Senti, ao mesmo tempo, que o luxo não o mudou em nada. O
apartamento de mármore, a bica de ouro, o automóvel suntuário –
tudo isso é, para ele, irreal, eis a palavra, irreal. Nada substitui a fome
pretérita, mas inarredável. Janta ou almoça como um Nero. E o menino
esfomeado continua gemendo mansamente dentro dele.
Mas eu dizia que a fome não passou para Adolpho Bloch, nem
para mim. Na infância, ainda conheci uma fome relativa. Havia um
mínimo para comer (eu me vejo comendo mariola. Ou melhor: não a
mastigava. Simplesmente, lambia a mariola, para eternizá-la. Levava
assim horas). Mas, de 30 a 35, conheci a grande fome. Às vezes,
entrava num botequim e pedia:
– “Me dá um copo de água, por obséquio”. Não estava
bebendo, estava comendo água.
Nesse período, de 30 a 35 (nosso jornal fora empastelado em
30), eu aprendi o seguinte: – o sujeito que não come não se revolta. É
a verdade: – não se revolta. Fui a menos indignada das fomes. Eu me
sentia inteiramente desfibrado. Certa vez, aconteceu uma que me feriu
para sempre. Vinha eu pela rua dos Ourives e olhei acidentalmente
para um casal. O rapaz perguntou insolentíssímo: – “Que é que está
olhando?”. Baixei a cabeça e apressei o passo. Mas ia pensando: –
“Se ele me der um bofetão, eu não reajo”. Naquela ocasião, não tinha
emprego, não tinha nada. E certos pundonores, certos brios exigem um
salário e as três refeições. Aprendi mais: a fome não odeia nem ama.
Se me aparecesse a Ava Gardner, de Salomé, eu continuaria
incomovível. Durante esses cinco anos, não namorei. Fui incapaz de

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um sentimento forte. A fome esvaziou-me; e eu me sentia oco, sem
entranhas, como um autopsiado.
[O GLOBO, 28/12/1967]

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