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Gosto de Palavrões de Miguel Esteves Cardoso

Gosto muito de palavrões, como gosto de palavrinhas e de palavras em geral. Acho-


os indispensáveis a quem tenha necessidade de escrever ou falar. Mas como sou
moralista tenho uma teoria, que é a seguinte: quando se usam palavrões, sem ser
com o sentido concreto que têm, é como se estivéssemos a desinfectá-los, a torná-
los decentes, a recuperá-los para o convívio familiar e quando um palavrão é usado
literalmente é repugnante. Dizer que "a sanita está entupida de merda." ou "tenho
uma verruga na ponta do caralho" é inadmissível. No entanto, dizer que um filme "é
uma merda" ou que "comprar uma casa em Massamá não lembra ao caralho", não
mete nojo a ninguém. 

Cada vez que um palavrão é utilizado fora do seu contexto concreto e significado,
é como se fosse reabilitado. Dar nova vida aos palavrões, libertando-os dos
constrangimentos estritamente sexuais ou orgânicos que os sufocam, é
simplesmente um exercício de libertação.
Quando uma esferográfica pode ser "puta" - não escreve - desagrava-se a mulher
que se prostitui. 
Quando um exame de Direito Administrativo é fodido, há alguém, algures, deitado
numa cama, que escusa de se foder. 

Em Portugal é muito raro usarem-se os palavrões literalmente. É saudável. Entre


amigos, a exortação "Não sejas cona", significando "Despacha-te! Não percas tempo
a decidir!", nada tem a ver com a cona em si, palavra bastante feia, que se evita a
todo o custo nas conversas do dia-a-dia. Ao separar os palavrões dos seus
significados libertam-se! O verbo "foder", por exemplo, fora da cama quase nunca
se usa para dizer "fornicar". Quando se conta uma aventura, e caso se queira ser
ordinário, diz-se "fiz" ou "papei" ou "comi". Geralmente, "foder" significa "estragar",
"prejudicar" ou "fazer mal". Quando o Sr. Marques da contabilidade diz que "fodeu"
o Sr. Sousa do contencioso, refere-se apenas a um acerto de contas entre eles. 
Pessoalmente, somente gosto da utilização "é fodido". Quando tem o sentido de
"triste sorte a minha". Por exemplo, quando não se encontra uma peça
sobressalente para a mota, ou se não se acerta no TotoLoto por um único número,
ou se vê que alguém nos passa a frente numa promoção só porque conhece o
patrão, diz-se "é fodido". Qual é o sujeito? Deveria ser a vida, mas nesse caso dir-
se-ia "é fodida". Na minha opinião, a frase subentendida é algo como "é fodido um
gajo andar para aí a tentar safar-se e ver que não tem sorte nenhuma". Do mesmo
modo, quando dizemos "foda-se", é raro que a entidade que nos provou a
intercação seja passível de ser sexualmente assaltada. Quando nos queimamos no
ferro de engomar, ou quando temos visitas em casa e se acaba o whiskey, não
existe, ao dizer-se tranquilamente "foda-se" qualquer intenção de mandar fornicar
o ferro ou a garrafa.

Quando o verbo é usado com o sentido que tem, eu acho indelicado e grosseiro, até
porque fornicar ou ser fornicado não são coisas assim tão más quanto isso. Sendo
aceite que o sexo é divertido, não se percebe como é que "vai-te foder" exprima
um desejo antipático. Eu acho muito mais ofensivo "vai pentear macacos" ou "vai
dar uma volta ao bilhar grande!".

Os palavrões supostamente menos pesados, como "chiça" e "porra", escandalizam.


São violentos. Enquanto um pai, ao não conseguir montar um avião da Lego para o
filho, pode suspirar após três quartos de hora, "ai o caralho", sem que daí venha
grande mal à família, um "chiça", sibilino e cheio, pode instalar o terror. E quando
o mesmo pai, recém-chegado do Ikea, ou do Aki, perde uma peça para a armação
do estendal de roupa e se põe, de rabo para o ar, a perguntar "onde é que se
meteu a puta da porca?", está a dignificar tanto as putas, como as porcas, como as
que acumulam as duas qualidades.

Se há palavras realmente repugnantes são as decentes como "vagina", "prepúcio",


"glande", "vulva" e "escroto". São palavrões precisamente porque são tão
inequívocos. 
Para dizer que uma localidade fica fora de mão, não se pode dizer que "fica na
vagina da mãe" ou no "ânus de Judas". Todas as palavras eruditas soam mais porcas
e dão menos jeito. Quem se atreve a propor expressões latinas como "fellatio" ou
"cunnilingus"? Tira a vontade a qualquer um. Da mesma maneira, "masturbação" é
pesado e maçudo, prestando-se pouco ao diálogo, enquanto o equivalente popular
"punheta", com a ressonância inocente que tem de uma treta que se faz com o
punho, é agradavelmente infantil. 
O sexo... O sexo como a vida deveria ser o mais simples e amigável possível.
Misturar as duas coisas através dos palavrões parece-me muito saudável. Deixá-los
fechados debaixo dos lençóis e atrás das portas é condená-los a uma existência
bafienta que não merecem.
Por que é que uma prostituta não há-de dizer "puta de vida!" sem se ofender a si
mesma? Os palavrões são palavras multifacetadas, muito mais prestáveis e jeitosas
do que parecem. É preciso usá-los, para que não se tornem obscenos e propagá-los,
para que deixem de ser chocantes.

É pior falar mau português do que falar mal em bom português! 


Quem anda para aí a foder a língua não são os que dizem "foda-se" de vez em
quando. São os que dizem "acabou de terminar..." e "eventualmente estão
assegurados...".
 Se não usarmos os palavrões, livre e inocentemente, eles tornar-se-ão em meras
obscenidades.
E para obscenidade já basta a vida em si.

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