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Nelson Rodrigues

SÓ OS IDIOTAS
RESPEITAM
SHAKESPEARE
Quando vi o Cláudio Mello e Souza pela primeira
vez, fui levado a um paralelo irresistível. Sim, eu o com-
parei ao jovem da minha infância. E que abismo entre as
duas gerações. O Cláudio era um havaiano de filme, um
falso moreno de sol, de praia. E o rapaz de 1920?
Em primeiro lugar, cabe a seguinte observação: —
o Brasil de 1920 era uma paisagem de velhos. Os moços
não tinham função, nem destino. A época não suportava
a mocidade. Lembro-me de casos como os de Rui Bar-
bosa e Paulo de Frontin, dois septuagenários natos. Do
último, dizia-se que nascera, como o personagem de Go-
gol, já de sapatos e já de guarda-chuva. Sim, o Brasil era
um lúgubre ermo de rapazes.
De vez em quando, porém, aparecia um ou outro.
Cabe então a pergunta: — e qual a dessemelhança entre
os dois brasileiros, ou seja, entre o presente Cláudio
Mello e Souza e o antigo rapaz da minha infância? Diria
eu que tal dessemelhança estava, antes de mais nada, na
pele.
As Novas Gerações não imaginam o que era, em
1919, 20, a pele do brasileiro. Hoje, desapareceram as
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espinhas. Há uns vinte anos que não vejo, na cara de nin-
guém, uma única e escassa espinha. Todo mundo tem
uma pele salubérrima. Tanto é assim que, anos atrás,
houve uma pequena e afetuosa altercação entre mim e
Bibi Ferreira. Ela estava dirigindo, para o Municipal, a
minha peça Senhora dos afogados. Gostava do texto e posso
mesmo dizer que adorava o texto. Fazia-lhe, porém, uma
restrição única, mas irredutível. É que, no 3º ato, ouvia-
se a palavra “eczema”.
Senhora dos afogados é uma tragédia varrida de suici-
das, adúlteras, insanos e incestuosos. A única coisa que
agrediu a grande atriz foi justamente a palavra “eczema”
e o que ela representa de horror visual e auditivo. Bibi
não queria dirigir eczemas. Fiz-lhe a vontade e suprimi a
palavra. Mas no meu tempo, o brasileiro ostentava seus
eczemas com a mais cínica naturalidade.
Toda a minha infância transcorreu na época das es-
pinhas. E por que elas floriam em todas as caras, em todas
as costas e até nos cotovelos? Uma moça da vizinhança
andou mostrando, e não sem vaidade, uma espinha que
irrompeu justamente no cotovelo. Ora, um Cláudio
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Mello e Souza com espinhas não seria admissível. Mas in-
sisto na pergunta: — e por quê?
Vejamos. Há certos insultos que marcam uma ge-
ração. No meu tempo, quando um brasileiro queria ofen-
der outro brasileiro xingava-o de “sifilítico”. E o patrício
assim chamado rangia os dentes de humilhação. Mas o
que tornava o ultraje válido era, precisamente, a massa
de espinhas. E imaginem caras com a cor da orquídea e
da gangrena.
E assim o jovem vagava pelas esquinas, como um
ser triste, feio e sifilítico. Em suma: — o brasileiro era o
anti-Cláudio. Fiz toda esta introdução para chegar a um
sarau de grã-finos, ao qual compareceu o nosso havaiano
de filme. Mas acontece que o Cláudio não quer ser ape-
nas uma festa visual para terceiros. Ele é bonito e, além
de bonito, inteligente. Foi crítico de cinema, de arte, po-
eta etc.
Seria melhor que o brasileiro bonito, por uma exi-
gência do seu equilíbrio, fosse burro. Eis a composição
perfeita: — bonito e burro. Mas, por azar, o Cláudio

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nasceu inteligentíssimo. No referido sarau, as damas co-
chichavam: — “Rapaz de talento!”. E, durante uma meia
hora, o meu amigo foi, ali, uma espécie de solista. Só ele
falava, só ele pensava, só ele brilhava. E, para delícia das
senhoras, dizia tudo em forma de paradoxo. Esse êxito
físico e espiritual chegava a ser humilhante. Até que um
dos ouvintes, o Hélio Pellegrino, não se conteve. Virou-
se para o Cláudio e fez-lhe o apelo: — “Seja burro, Cláu-
dio, seja burro!”.
Deu-se o milagre. O crítico, o poeta, o libertário,
caiu em si. Deixou o tom de Andrea Chénier no impro-
viso. Coincidiu que, em seguida, uma dama fizesse a per-
gunta melíflua: — “E o que é que o senhor me diz do
Proust?”. O Cláudio respondeu-lhe, com sublime des-
caro: — “Sossega, leoa”. (Já contei a mesmíssima histó-
ria umas quinze vezes.) Ato contínuo, foi beber com o
Hélio Pellegrino, às gargalhadas.
O que há de sábio no episódio acima é a exortação
dramática à burrice. Nada mais atual, e repito: — o apelo
do Hélio me parece de uma atualidade espetacular. Ve-

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jam o teatro brasileiro. Temos aí uma geração teatral in-
teligentíssima. E, sobretudo, os diretores. Do ator para
o autor, do autor para o diretor, há graus diferentes de
vaidade intelectual. Se fizéssemos um concurso hípico
entre os três, o diretor ganharia por oito corpos de van-
tagem, no mínimo.
Outro dia, conversei com um dos nossos diretores.
Ouvindo-o, eis o que dizia eu, de mim para mim: —
“Como é inteligente! Como abusa do direito de ser inte-
ligente!”. Pouco falei. Na verdade, o nosso diálogo foi o
seu monólogo. E em tudo o que ele dizia estava o peso
da infalibilidade. Claro que os atores, as atrizes e os au-
tores são outras tantas vaidades suicidas e homicidas. Mas
ninguém se compara ao diretor.
Falei ontem do copydesk. Escrevi que ele, na sua
imodéstia, é capaz de reescrever qualquer Proust e qual-
quer Dante. Façam a seguinte experiência: — ponham
um Dante na mesa do copydesk e não ficará de pé uma
vírgula da Divina comédia. Do mesmo modo, o nosso di-
retor atual não concede a menor indulgência aos autores
passados, presentes e futuros.
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O leitor, que não conhece as sutilezas da vida tea-
tral, há de querer saber como se exerce tamanha imodés-
tia. Explico: — reescrevendo os textos dramáticos. Nem
se pense que os dramaturgos profanados sejam do nível
do Zezinho dos Anzóis Carapuça. Em absoluto. O dire-
tor está sempre disposto a cortar, o que seria o de menos.
O patético é que reescreve, sim, reescreve. Seja Shakes-
peare, Sófocles ou Ibsen. O sujeito vai ver o Sófocles, e
não é o Sófocles; vai ver Shakespeare, e não é Shakespe-
are: e tampouco o Ibsen é o Ibsen. Ninguém é ninguém,
ou por outra: — é o diretor que anda por aí atropelando
os textos eternos.
Degrada-se um Sófocles com os mais deslavados ca-
cos. A plateia nunca sabe se está admirando um Ibsen ou
um reles enxerto. Muitos poderão pensar que essa falta
de respeito pelo autor, vivo ou morto, é uma feia e vil
desonestidade. Não. Não é desonestidade e pelo contrá-
rio: — é inteligência. Os nossos diretores são inteligen-
tíssimos. E fazem o bestial copydesk como se Sófocles fosse
um repórter analfabeto de atropelamento. Eis o que eu
quero dizer: — para salvar o teatro brasileiro, é preciso
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que o Hélio Pellegrino vá de diretor em diretor, repe-
tindo a exortação patética: — “Seja burro, rapaz, seja
burro!”.

[O GLOBO, 23/2/1968]

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