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A (in)evitabilidade da espera(nça) Sebastiana Fadda Passos em volta Sinais de cena 6.

2006 noventa e cinco

A (in)evitabilidade da espera(nça)
Sebastiana Fadda

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Waiting for Godot,
de Samuel Beckett,
enc. Miguel Seabra,
Teatro Meridional, 2006
(Pedro Gil e
António Fonseca),
fot. Patrícia Poção
/ Rui Mateus.

Título: Waiting for Godot (À espera de Godot, 1952). Autor: Samuel Beckett. Tradutor: Francisco Luís Parreira. Encenação: Miguel Seabra. Assistência
artística: Natália Luiza. Cenografia e figurinos: Ana Limpinho e Maria João Castelo. Desenho de luz: Miguel Seabra. Intérpretes: Miguel Seabra (Estragon),
João Pedro Vaz (Vladimir), Pedro Gil (Lucky), António Fonseca (Pozzo) e Luís Martinho (Criança). Co-produção: Teatro Meridional – Associação Meridional
de Cultura e Centro Cultural de Belém. Local e data de estreia: Lisboa, Centro Cultural de Belém, 18 de Maio de 2006.

Conforme consta na cronologia de textos de Samuel Beckett Se persistir na conservação dos títulos em inglês é
representados em Portugal que se publicou em Sinais de uma opção tradutória que evidencia as ligações com o
cena n.° 5 (cronologia tão completa quanto possível), desde original de referência utilizado (apesar de terem sido
a sua estreia nacional em 1959 pelo Teatro Nacional Popular consultadas várias fontes), voltar a Beckett por parte da
dirigido por Francisco Ribeiro, são cerca de duas dúzias as companhia é um claro indício de partilha de uma visão
diferentes produções em várias línguas e leituras de En estética que privilegia o despojamento. E neste caso tratou-
attendant Godot a que teve acesso o público português. se de um despojamento perseguido até quase aos limites
O texto, originalmente escrito em francês e publicado em da aceitabilidade, pois da paisagem beckettiana desapareceu
1952, estreou-se em 1953 em Paris no Théâtre Babylone, um elemento tão significativo como a estrada, sobrando
dando a seguir a volta ao mundo com um êxito que ainda uma árvore ressequida na direita alta da cena e um ramo
perdura. torcido onde se aninha Estragon na esquerda baixa. Apesar
Dois anos volvidos desde a primeira aproximação ao de Miguel Seabra e Natália Luiza, no texto que escreveram
universo beckettiano efectuada em 2004 pelo Teatro para o programa, afirmarem não dar prioridade às
Meridional com Endgame, a experiência repetiu-se agora significações extra-cénicas, o apagamento daquele
com Waiting for Godot (À espera de Godot). O subtítulo em elemento carrega-se de sentidos malgré soi: não há
português que se regista no programa da estreia deveu- estradas, não há sentidos, não há fugas possíveis, não há
se a uma imposição unilateral da direcção do Centro Cultural caminhos, todo e qualquer caminho se equivale, toda e
de Belém, que co-produziu o espectáculo; nos restantes qualquer estrada levaria a nenhures... Mas há caminhantes,
espaços onde este foi apresentado não ficou vestígio dessa de que as botas deixadas bem visíveis no centro da ribalta
interferência. são o emblema. Caminhantes que se sucedem
noventa e seis Sinais de cena 6. 2006 Passos em volta Sebastiana Fadda A (in)evitabilidade da espera(nça)

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Waiting for Godot,
de Samuel Beckett,
enc. Miguel Seabra,
Teatro Meridional, 2006
(João Pedro Vaz
e Miguel Seabra),
fot. Patrícia Poção
/ Rui Mateus.

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Waiting for Godot,
de Samuel Beckett,
enc. Miguel Seabra,
Teatro Meridional, 2006
(Miguel Seabra
e João Pedro Vaz),
fot. Patrícia Poção
/ Rui Mateus.

anonimamente num tempo que passa e nos consome duplas e unas, complementares e antagónicas, que
malgré nous. interagem segundo jogos de poder em que vítima e
Esta omissão1 poderia assumir também outro carrasco têm papéis permutáveis, precisando cada um do
significado, pois se o espaço de Endgame aparecia outro para nessa relação se validarem mutuamente. Nem
inequivocamente fechado (com longínquas hipóteses de é fundamental saber-se se Godot é identificável com Deus
abertura), o espaço aparentemente aberto de Waiting for (Godo em irlandês estaria por God e teria o seu alter ego
Godot é assim submetido a um semelhante processo de humano em Pozzo – cf. Mayoux 1997: 65), se o título
fechamento, mantendo-se a aparente circularidade da corresponderia ao incipit de uma narrativa de Honoré de
obra ao nível do texto e estendendo-se ao nível do espaço Balzac, se Godot é um acróstico dos nomes God e Charlot...
cénico. Mas a geometria, como os restantes elementos Qualquer destas leituras parece legítima, mas talvez uma
que compõem o teatro beckettiano, é aleatória e variável, das mais contundentes, e que permite todas as restantes,
não oferece nenhuma garantia de estabilidade, nem de é a que vê em Godot, fundamentalmente, uma “ausência”
coerência. Por isso convocar a figura da espiral é mais (Worton 1997: 174). Que as personagens preenchem como
oportuno do que apelar para o círculo: a história não se podem e sabem, cientes de que toda e qualquer acção ou
repete ciclicamente igual a si própria como pressupunha palavra não passa de um entretenimento, um jogo
Heraclito, mas atira os homens para o vórtice de uma tragicómico, um faz-de-conta para passar um tempo
queda centrípeta denunciada pela degradação física de corrosivo, porque, enquanto espera, a humanidade
Lucky e Pozzo no segundo acto da peça; o espaço, contra precipita-se na espiral dantesca da degradação progressiva
a lógica da dissolvência, pelo contrário, regista um e inexorável. Mas há mais:
movimento centrífugo, materializado nas novas folhas
que despontam da árvore. Presos entre estas duas forças, O tempo que corre em direcção à morte representa ainda a vida,
os dois representantes da humanidade e da sua condição, aceita-se a vida com a espera. À espera de Godot representa uma
Vladimir e Estragon, esperam. Aguardam sem desistir da dialéctica do suicídio. (...) é evidente, como em toda a obra, que
espera, ou sem desesperar apesar de tudo, no meio de um esperar significa viver. O suicídio aparece na obra como uma decisão
caos aparentemente ordenado ou de uma ordem racional que deveria ter sido praticada desde a primeira tomada de
substancialmente caótica. Tal como afirma Gontarski, consciência do absurdo da vida. Se nos deixarmos arrastar pela
engrenagem da”espera”, nenhum momento nos parecerá decisivo.
Por certo Beckett vê a vida, quer a interior quer a exterior, como algo (Mayoux 1997: 73; tradução minha)
de caótico, absurdo, em contínuo movimento, não governado por
princípios fundamentais. Qualquer ordem existe enquanto é criada, E apesar de tudo, é ainda a vida que este espectáculo
1
Que não seria imposta ao homem arbitrária e artificialmente, para apaziguar a sua celebra. Interpelado sobre o significado da peça, o autor
propriamente uma alma e os seus nervos. Os falaciosos e artificiais sistemas do homem respondeu que o que queria dizer foi exactamente o que
omissão, pois no entender – a linguagem, a matemática, a lei, a religião, a lógica naturalmente, disse. Da mesma forma, no já referido programa do
do encenador todo o e muitas vezes a própria arte – criam a aparência enganadora de espectáculo, Miguel Seabra e Natália Luiza apropriam-se
palco seria a própria uma ordem e a tal ponto desentendem essa realidade, que para das palavras beckettianas para afirmarem o direito do
estrada, aludindo-se Beckett é simplesmente caos. (Gontarski 1992: 121; tradução minha) Teatro Meridional de não acrescentar nada ao que já foi
assim à condição dito ou feito. Houve, isso sim, um objecto cénico admirável,
passageira e em trânsito Muita tinta correu sobre o teatro de Beckett, sobre os que confere uma coerente continuidade artística ao
das personagens. sentidos de À espera de Godot, sobre as personagens programa da companhia, privilegiando o essencial do
A (in)evitabilidade da espera(nça) Sebastiana Fadda Passos em volta Sinais de cena 6. 2006 noventa e sete

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Waiting for Godot,
de Samuel Beckett,
enc. Miguel Seabra,
Teatro Meridional, 2006
(Miguel Seabra,
António Fonseca
e João Pedro Vaz),
fot. Patrícia Poção
/ Rui Mateus.

teatro tal como ela o entende: textos em que a poesia e comprometida pela tendência para a declamação de
a ternura humana são contrapontos à crueza da existência, António Fonseca, inserindo uma nota dissonante no
uma entrega generosa por parte dos actores, um grande conjunto.
cuidado no desenho de luzes, a presença de adereços Talvez o actor beckettiano devesse transmitir
quando justificada e necessária, figurinos que reforçam cambiantes e subtilezas que passam pela interiorização
a linha do espectáculo. Neste caso, é enfatizado o aspecto não apenas da essência da personagem, mas também da
lúdico, quase circense, que exalta o humor negro da peça, palavra e do gesto enquanto matérias palpáveis e voláteis,
em que os próprios conceitos de transcendência e necessárias e supérfluas ao mesmo tempo. Se a palavra
imanência são motivo de trágica irrisão. Recuperando o é algo que dá a impressão de existir a quem a profere, o
percurso do Meridional, poderíamos ver em Miguel gesto é expressão não de um papel social ou de um
Seabra/Estragon e João Pedro Vaz/Vladimir os Clowns/Cloun estereótipo, mas de uma condição metafísica. Por isso os
Dei de Beckett/Godot. actores são seríssimos, sem contudo chegarem a levar-
Em relação à tradução, ainda no programa do se a sério, seja qual for o tom em que estejam a actuar.
espectáculo, Francisco Luís Parreira fornece esclarecimentos É neste sentido que interpreto as palavras de Jean Martin,
sobre as fontes utilizadas: uma edição crítica, académica, que representou o papel de Lucky na estreia parisiense de
em inglês, fixada em 1994 pela Universidade de Reading; 1953: “Beckett não quer que os seus actores recitem. Quer
a primitiva versão francesa; uma posterior versão alemã apenas que eles façam o que ele lhes diz. Quando eles
de 1975, que contou com intervenções do autor na altura tentam recitar, fica furioso” (apud Worton 1997: 170;
da sua encenação da peça em Berlim. O tradutor desmente tradução minha).
nos factos o que afirmou numa mesa redonda sobre Ainda uma nota: é de encorajar o trabalho do jovem
“Beckett Hoje”, que decorreu no Fórum Municipal de Luís Martinho, cuja origem africana reitera o interesse e
Almada no dia 12 de Julho integrada no Festival a vocação pela lusofonia do Teatro Meridional. Segura e
Internacional de Teatro daquela cidade: “A tradução não rigorosa é a encenação de Miguel Seabra. Será que nos
tem mistérios. Basta traduzir o que lá está”. Se fosse tão voltará a levar na direcção da humanidade beckettiana?
simples, pois a determinação e interpretação do “que lá Isto é: ao reencontro da nossa própria humanidade e à
está” é susceptível de ser subjectiva, tanto zelo teria sido dos nossos semelhantes? Esperemos.
inútil. E não o foi. Antes pelo contrário, demonstra a
dignidade que merecem a tarefa, o papel e o
profissionalismo dos tradutores. Referências bibliográficas
A nível de interpretação, destacou-se a profícua
cumplicidade cénica estabelecida entre Miguel Seabra e GONTARSKI, Stanley E. (1997), “L’estetica del disfacimento”, in Sergio
João Pedro Vaz, que criaram belos diálogos sempre em Colomba (a cura di), Le ceneri della commedia, Roma, Bulzoni Editore,
aberto, bem como uma conseguida unidade de registo. pp. 107-133.
Mas a tão reiterada complementaridade das duplas MAYOUX, Jean-Jacques (1997), “Parodia d’azione, parodia di teatro”, in
Vladimir/Estragon (raciocínio/emoção) e Lucky/Pozzo Sergio Colomba, op.cit., pp. 57-81.
(servo/patrão), palpável no primeiro caso, é um pouco PROGRAMA (2006), “Waiting for Godot (À espera de Godot), de Samuel
prejudicada no segundo. Menos feliz resultou a Beckett pelo Teatro Meridional”, Lisboa, Centro Cultural de Belém.
caracterização da outra dupla beckettiana que, apesar da WORTON, Michael (1997), “Il teatro come testo”, in Sergio Colomba, op.cit.,
surpreendente gestualidade de Pedro Gil, surge em parte pp. 169-195.

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