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A Hipótese Colonial, um diálogo com
Michel Foucault: a modernidade e o
Atlântico Negro no centro do debate sobre
racismo e sistema penal*
ra no campo da Criminologia (Sociologia Criminal)10 central para resolver os problemas definidos como cri-
construiu uma “gramática” capaz de apresentar os pontos minais. Nele, como demonstramos ao tratarmos da re-
centrais dessa questão. A propósito, considerando o de- cepção da Escola Positiva no Brasil, havia uma estreita
bate anteriormente proposto por Vera Andrade11, Ales- vinculação entre teorias da raça e teorias da criminalida-
sandro Baratta12 e Stanley Cohen13 sobre as mudanças em de. Logo, os criminólogos positivistas acreditavam existir
paradigma em Criminologia e por Greene e Gabbidon14 uma criminalidade diferencial dos afrodescendentes e
e Duarte15 sobre a relação entre Criminologia e racismo, indígenas que era explicada/justificada com o argumen-
pode-se destacar a existência de três grandes momentos to da inferioridade racial, ou seja, os afrodescendentes e
no debate sobre a questão criminal e as relações raciais. indígenas seriam mais criminosos porque mais inferiores
O primeiro momento inicia com o nascimento da que outros grupos raciais. Nesse momento, portanto, as
Criminologia como ciência (Paradigma Etiológico), na teorias sobre a criminalidades eram um exemplo evidente
década de 1870 com a Escola Positiva Italiana, e a con- de racismo16 17
solidação do uso de “instituições totais” como estratégia De fato, a crítica a esse racismo teórico evidenciou
o uso e a construção da diferença como marcador de po-
der, demonstrando o “processo de racialização” operado
DINO, Daniela. Levando a raça a sério: ação afirmativa e
universidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 85-135; PE- no âmbito da cultural europeia e das relações coloniais18.
TRUCCELI, José Luis. A cor denominada: estudos sobre Logo, permitiu identificar a raça como um problema de
a classificação étnico-racial. Rio de Janeiro: DP&A, 2007.
10
Conforme afirma Baratta: “O objeto da sociologia sociedades que passaram a hierarquizar sistematicamente
jurídico-penal corresponde às três categorias de as diferenças19 20
comportamentos objeto da sociologia jurídica em O segundo momento, portanto, ocorre a partir da
geral. A sociologia jurídico-penal estudará, pois, em
primeiro lugar, as ações e os comportamentos nor-
mativos que consistem na formação e na aplicação
16
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Rober-
to Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012; BAR-
de um sistema penal dado; em segundo lugar, estu-
ROS, José D’Assunção. A construção social da cor. Petrópo-
dará os efeitos do sistema entendido como aspecto lis: Vozes, 2009.
‘institucional’ da reação ao comportamento desvian- 17
Nesse sentido, segundo Mateucci: “O termo racismo se
te e do correspondente controle social. A terceira entende, não a descrição da diversidade das raças ou dos
categoria de ações e comportamentos abrangidos grupos étnicos humanos, realizada pela antropologia físi-
pela sociologia jurídico-penal compreenderá, ao ca ou pela biologia, mas a referência do comportamento
contrário (a) as reações não-institucionais ao com- do indivíduo à raça a que pertence e, principalmente, o
portamento desviante, entendidas como um aspecto uso político de alguns resultados aparentemente cientí-
integrante do controle social do desvio, em concor- ficos, para levar à crença da superioridade de uma raça
sobre as demais. Este uso visa a justificar e consentir ati-
rência com as reações institucionais estudadas nos
tudes de discriminação e perseguição contra as raças que
dois primeiros aspectos e (b) em nível de abstração se consideram inferiores”. Cf.: MATTEUCI, Nicola. “Ra-
mais elevado, as conexões entre um sistema penal cismo”. In: BOBBIO, Norberto; PASQUINO, Gianfranco;
dado e a correspondente estrutura econômico so- MATEUCCI, Nicola. Dicionário de política. Brasília: Uni-
cial”. Cf.: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e versidade de Brasília, 1993. p. 1061.
crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito 18
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações
penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 23. culturais. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La
11
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etio- Guardia Resende. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
lógico ao paradigma da reação social: mudança e per- 19
BANTON, Michael. A idéia de raça. São Paulo: M. Fon-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
manência de paradigmas criminológicos na ciência e no tes, 1991; MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mes-
senso comum. Revista Brasileira de Ciências Criminais, tiçagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2004; SEGATO, Rita
São Paulo, n. 14, p. 276-287, abr./jun. 1996; ANDRADE, Laura. La nación y sus outro: raza, etnicidad y diversidad
Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do religiosa en tiempos de política de la identidad. Buenos
controle da violência à violência do controle penal. Porto Aires: Prometeo Libros, 2007.
Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 20
Nesse sentido, segundo Guimarães, hoje o “Racismo pode,
12
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do ademais, referir-se não apenas a doutrinas, mas a atitu-
direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio des (tratar diferencialmente as pessoas de diferentes raças
de Janeiro: Revan, 1999. e culturas, ou seja, discriminar) e a preferências (hierar-
13
COHEN, Stanley. Vísiones del control social. Trad. Elena quizar gostos e valores estéticos de acordo com a ideia
Larrauri. Barcelona: PPU, 1988. de raça ou de cultura, de modo a inferiorizar sistemati-
14
GREEME, Helen Taylor; GABBIDON, Shaun L. Race and camente características fenotípicas raciais ou característi-
crime: a text/reader. California: SAGE, 2012. cas culturais”. Cf.: GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo.
15
DUARTE, Evandro C. Piza. Criminologia & racismo. Curi- “Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e Estados
3
tiba: Juruá, 2002. Unidos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo,
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
década de 1960 e tem sido descrito como uma “revolução nal, a seletividade opera de forma quantitativa e qualita-
de paradigmas científicos” no âmbito da Criminologia tiva, determinando as condutas a serem criminalizadas
(passagem do paradigma etiológico ao paradigma da rea- (aquelas mais frequentes entre as classes mais vulnerá-
ção social) e, de modo mais amplo, como marcado por veis) e as pessoas a serem etiquetadas23. Nesse último
um “impulso desestruturador de desconstrução e deslegi- aspecto, a atuação racista das agências de controle penal
timação do sistema penal” e seus paradigmas, bem como tem sido apontada como um elemento fundamental na
pela crítica do encarceramento como método de aborda- criminalização da população negra, especialmente dos
gem do conflito social. Caracterizou-se, sobretudo, pela jovens pobres na periferia.
emergência de um período de denúncia da violência No plano discursivo, há dois movimentos impor-
institucional e da desigualdade de tratamento no sistema tantes. O primeiro mais denunciado no âmbito da Cri-
de justiça criminal, e por uma estreita vinculação entre minologia Crítica é o de que a criminologia positivista
teorias críticas do racismo e teorias sobre as funções reais vincula-se à negatividade do fato colonial. A propósito,
do sistema penal. sintetizamos24:
Há, portanto, uma mudança decisiva que conduz [...] o discurso criminológico racista, ao apro-
à descrença das teorias sobre a raça: o reconhecimento ximar o criminoso e o “selvagem”, adquire no-
vos contornos. Ele pode ser visto como uma
de que objeto de estudo deve ser o racismo, ao invés da ideologia que confundirá a agressividade e a
raça, ou seja, de que o estudo dos comportamentos dos alienação do homem sujeito ao processo de
colonização com sua intrínseca maldade, clas-
grupos raciais (essencializados em suas identidades) deve
sificando como modo de ser criminal todas as
dar lugar ao estudo do sistema de poder que exclui deter- formas de sobrevivência à realidade colonial, as
minados grupos sociais. Neste contexto, ao contrário do adaptações aos modelos impostos e à violência
classificatória sofrida, mas, sobretudo, toda a
que ocorria anteriormente, o uso da raça pelos agentes diversidade humana biológica distinta dos pa-
públicos para a identificação de criminosos é denuncia- drões europeus e todas as formas de expressão
do como uma dimensão do racismo, um aspecto da se- cultural capazes de possibilitar respostas, ainda
que simbólicas, à perda da identidade diante do
letividade desse sistema. Os conceitos de vulnerabilidade processo colonizador.
e seletividade passam a ser decisivos nesse contexto. Os O segundo, pouco estudado no caso brasileiro,
afrodescendentes e indígenas não seriam mais crimino- são os vínculos entre teorias críticas e a branquidade.
sos, mas seriam mais vulneráveis diante da ação seletiva21 Tais vínculos são capazes de demostrar opções teóricas,
dos agentes do sistema de justiça criminal.22 escolhas metodológicas, esquecimentos e, especialmente,
Ao agir no interior dos sistemas de justiça crimi- as conexões entre categorias analíticas com uma ordem
normativa-hegemônica branca, masculina, burguesa e
v. 14, n. 39, p. 105, fev. 1999.
21
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. “Do paradigma etio- heterossexual. Assim, ao reconhecer esta ordem, este tex-
lógico ao paradigma da reação social: mudança e perma- to procura se aproximar do conceito de “raça” a partir das
nência de paradigmas criminológicos na ciência e no sen- suas dimensões históricas e sociais, que incidem, por sua
so comum”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São
Paulo, n. 14, p. 276-287, abr./jun. 1996; ANDRADE, Vera vez, na criação das identidades sociais, afastando noções
Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do con- que percebam a racialização como uma característica
trole da violência à violência do controle penal. Porto Ale-
gre: Livraria do Advogado, 2003; BARATTA, Alessandro.
unitária, individual e subjetiva25.
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
O terceiro momento sobre o debate é marcado Unidos, sugerem, no que são seguidos por Zuberi30, que
pela convivência contraditória da defesa de propostas de há duas referências decisivas, W.E.B. Du Bois e Frantz Fa-
desencarceramento, descriminalização e despenalização, non, para compreender a relevância dessa variável.
fundamentadas em diversos movimentos de política cri- Ambos foram pioneiros na construção da hipóte-
minal (abolicionismo, minimalismo, garantismo etc.) e a se colonial, ou seja, em atribuir ao colonialismo um papel
bifurcação do sistema de justiça criminal, com o cresci- decisivo na compreensão do racismo e da relação entre
mento da população submetida sob a forma de medidas os sistemas penais e os afrodescendentes. Ao perceber o
de coerção que resultam ou não em encarceramento, e, colonialismo como uma dominação política e econômi-
ao final, pelo aumento da seletividade do sistema penal ca sobre uma unidade política geográfica externa, geral-
contra os mesmos grupos vulneráveis26. Nesse contexto, mente habitada por pessoas de raças e culturas diferentes,
como tem demonstrado os estudos estadunidenses e os abriram flanco para se entender a construção da crimino-
poucos estudos sobre o tema no Brasil, o encarceramen- logia como uma ciência social a serviço do imperialismo
to foi acompanhado de perspectivas tecnificantes da ad- e com repercussões profundas nas realidades pós-colo-
ministração da justiça, do discurso sobre “Lei e Ordem” niais. Evidenciando esta conexão, também contribuíram
e da difusão da ideia de controle do risco dentro de um para a apreensão de que a negligência da pesquisa crimi-
modelo de justiça atuarial27. Malgrado a pouca presença nológica contemporânea em relação ao impacto do colo-
de discursos abertamente racistas, as agências de controle nialismo sobre os seus saberes faz parte das permanên-
penal continuam discriminatórias28. cias e continuidades do modelo colonial na produção do
Por sua vez, Greene & Gabbidon29, ao inventa- conhecimento31.
riarem o amplo debate sobre a raça e crime nos Estados No mesmo passo, tiveram suas vidas e suas obras
marcadas pelo racismo acadêmico, sendo-lhes retirado,
nham: Plymouth, Rowman & Littlefield Publishers, 2008. no caso de W.E.B. Du Bois, seu papel central na constru-
26
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etio- ção do próprio campo da sociologia, e, no caso de Frantz
lógico ao paradigma da reação social: mudança e per-
manência de paradigmas criminológicos na ciência e no Fanon seu papel decisivo na crítica ao colonialismo.
senso comum. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Em primeiro lugar, W.E.B. Du Bois32 empenhou-
São Paulo, n. 14, p. 276-287, abr./jun. 1996; ANDRADE,
-se em criticar concepções biológicas sobre a situação so-
Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do
controle da violência à violência do controle penal. Por- cial dos afro-americanos. Ele foi um analista cuidadoso
to Alegre: Livraria do Advogado, 2003; COHEN, Stanley. das barreiras raciais que foram erguidas contra esse gru-
Modelos occidentales utilizados en el tercer mundo para
el control del delito: benignos o malignos? Cenipec, Me- po, especialmente após o término da Guerra da Secessão
rida, Venezuela, n. 6, p. 63-110, 1984; COHEN, Stanley. e que resultariam na Doutrina dos Separados, mas Iguais.
Vísiones del control social. Trad. Elena Larrauri. Barcelona: Du Bois percebeu que o “véu da cor” (expressão que indi-
PPU, 1988.
27
FORMIGA, Glêides Simone de. A cor vigiada: uma críti- cava o modo como os olhares preconceituosos não conse-
ca ao discurso racializado de prevenção ao crime. 2010. guiam ver as qualidades de um afro-americano) impedia
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Uni-
versidade de Brasília, Brasília, 2010; MATTOS, Márcio
o desenvolvimento humano pessoal e a integração desse
Júlio da Silva. Reconhecimento, identidade e trabalho sujo grupo. Restava aos afro-americanos lutarem por sua inte-
na PMDF. 2012. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – gração por meio da educação, ao mesmo tempo em que
Universidade de Brasília, Brasília, 2012; RAMOS, Silvia;
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denunciavam o preconceito. Antes mesmo da Escola de quanto grupo social e a de seu entorno social particular.
Chicago, ao analisar dados sobre a Filadélfia, Du Bois de- Desta forma, a raça se convertia em um sintoma e não em
fendeu a hipótese de que a criminalidade dos afro-ameri- uma casa, já que, enquanto construção histórica, é resul-
canos resultaria da “desorganização social” a que estavam tado dos processos vividos pelas comunidades35.
expostos, destacando a idade, o desemprego e a pobreza. Foram os seus estudos que começaram a mostrar
Entretanto, observou a existência de variáveis discrimi- as segregações a que eram submetidos diversos grupos
nadoras no Sistema Penal, especialmente no maior nú- raciais e as formas como esses eram oprimidos. Muitos
mero de prisões de afro-americanos do que de brancos dos resultados das análises evidenciaram um sistema eco-
e na maior quantidade de pena atribuída a afro-ameri- nômico desigual e barreiras culturais para a inclusão, de
canos quando praticavam os mesmos crimes cometidos onde surgiu a perspectiva estatística que tem como foco
por brancos33. a cultura36. Como coloca Tukufu Zuberi, a perspectiva de
Neste sentido, argumentava que o sistema policial Du Bois deslocou a forma moderna de se fazer pesquisas
do sul dos Estados Unidos: estatísticas, as quais, mesmo quando não se encontram
[...] fora preparado para lidar apenas com ne- dentro do marco da eugenia, legitimam o uso de metodo-
gros, na pressuposição tácita de que todo ho- logias que perpetuam os problemas que querem superar.
mem branco seria ipso facto um membro da-
quela polícia. Assim, desenvolveu-se um duplo Quer dizer, “empregar a estatística racial e implementar a
sistema de justiça, que errava quanto aos bran- raça como uma causa leva à essencialização da raça como
cos pela indevida brandura e imunidade prática
variável, o que mantém uma ideia de classificação e de
de criminosos capturados em flagrante delito, e
que errava quanto aos negros pelo indevido ri- estratificação racial”37.
gor, pela injustiça e pela falta de discriminação. Em segundo lugar, se Du Bois analisou as barrei-
Pois, como já disse, o sistema policial do sul foi
originalmente planejado para controlar todos ras de segregação racial construídas na “democracia ca-
os negros, não simplesmente criminosos, e, pitalista americana”, Frantz Fanon foi crítico do Colonia-
quando os negros foram libertados e todo o sul lismo, especialmente o francês e seu impacto no Caribe
convenceu-se da impossibilidade de mão-de-o-
bra negra gratuita, o recurso primeiro e quase e na África. A viragem proposta pelo médico psiquiatra
universal foi utilizar os tribunais de justiça martinicano foi surpreendente. O alvo de Fanon não foi
como meio de reescravizar os pretos. Não era,
apenas as falsas concepções científicas sobre os negros
portanto, uma questão de delito, mas sim de cor
que decidia, em quase todos os casos, a culpabi- e suas teses sobre a inferioridade racial, mas também as
lidade de alguém. Os negros, por isso, passaram reações dos indivíduos racializados. Ninguém mais do
a considerar os tribunais como instrumentos de
injustiça e opressão, e seus condenados como que Fanon ousou em sua época pensar sobre os efeitos
mártires e vítimas34 da interpelação social contida na palavra negro. Já em
A ocultação, por parte do racismo institucional “Pele Negra, Máscaras Brancas”, a crítica ao psicanalista
acadêmico, das contribuições de W. E.B Du Bois para a
Sociologia Norte-Americana e, sobretudo, para a Crimi- 35
ZUBERI, Tukufu. Más espeso que la sangre: la mentira
del análisis estadístico según teorías biológicas de la raza.
nologia representam, no debate atual, um déficit impor-
Traducción de Pablo González: Thicker than blood. How
tante de décadas de pesquisas. Ele foi o primeiro a coletar, racial statistics lie. Bogotá: Facultad de Ciencias Humanas,
junto com seus estudantes, dados empíricos sobre as rela- Centro de Estudios Sociales (CEs), Grupo de Investigaci-
ón iDCARÁn, Universidad Nacional de Colombia, 2013.
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Octave Manonni sugere pensar o comportamento dos co- sobre o “Outro”. Fanon assim expõe essa dinâmica:
lonizados não como um complexo de inferioridade, mas O questionamento do mundo colonial pelo colo-
como um processo de violência que atingiria a própria nizado não é um confronto racional dos pontos
de vista. Não é um discurso sobre o universal,
subjetividade38. De certo modo, ainda nesse momento, o mas a afirmação passional de uma originalidade
autor olha mais para as doenças que teriam causas sociais apresentada como absoluta. O mundo colonial
é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono
resultantes do colonialismo do que o próprio colonialis-
limitar fisicamente, isto é, com seus policiais e
mo. Ao falar desse complexo e das impossibilidades de guardas, o espaço do colonizado. Como que para
realização do eu do colonizado nas realidades coloniais, ilustrar o caráter totalitário da exploração colo-
nial, o colono faz do colonizado uma espécie de
ele sintetizava: quintessência do mal. A sociedade colonizada
Todo povo colonizado – isto é, todo povo no não é apenas descrita como uma sociedade sem
seio do qual nasceu um complexo de inferio- valores. Não basta ao colono afirmar que os va-
ridade devido ao sepultamento de sua origi- lores desertaram, ou melhor, nunca habitaram,
nalidade cultural – toma posição diante da lin- o mundo colonizado. O indígena é declarado
guagem da nação civilizadora, isto é, da cultura impermeável à ética. Ausência de valores, e tam-
metropolitana. bém negação dos valores. Ele é, ousemos dizer,
o inimigo dos valores. Nesse sentido, ele é o mal
Quanto mais assimilar os valores culturais da absoluto. Elemento corrosivo, destruindo tudo o
metrópole, mais o colonizado escapará da sua que se refere à estética ou à moral, depositário
selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu de forças maléficas, instrumento inconsciente e
mato, mais branco será. irrecuperável de forças cegas41.
[...] No momento em que eu esquecia, perdoava Neste contexto, a hipótese colonial traz para o centro
e desejava apenas amar, devolviam-me, como
uma bofetada em pleno rosto, minha mensa- do debate novas perspectivas que propõe uma releitura de
gem! O mundo branco, o único honesto, rejeita- categorias fundamentais, especialmente, a Modernidade, a
va minha participação. De um homem exige-se Igualdade e a Liberdade. Histórias de liberdade ou histórias
uma conduta de homem; de mim, uma conduta
de homem negro – ou pelo menos uma conduta de opressão, e seus respectivos modelos de controle social,
de preto. Eu acenava para o mundo e o mundo necessitam ser reescritas a partir de outros novos olhares,
amputava meu entusiasmo. Exigiam que eu me
confinasse, que encolhesse39.
considerando sempre que as identidades, especialmente as
Todavia, em “Os Condenados da Terra”, a doença referentes à nacionalidade e ao discurso universalista, ocul-
colonial é exposta em sua dimensão estrutural. A obra tam representações dominantes42.
representa um avanço das percepções do autor relaciona- A densidade dessa literatura não permite um crí-
das à sua própria experiência individual de envolvimento tica única, porém, elas sugerem a releitura das categorias
com as lutas por libertação no continente africano. Nela, sobre controle social a partir de uma história das ideias
argumenta-se no sentido de demonstrar como o colo- que considere as novas contribuições trazidas pelo Femi-
nialismo se entranhou em todos os rincões da vida, em nismo (Criminologias Feministas)43, a Teoria Queer44, o
que o colonizado tem o passado e suas terras roubadas.
Assim, o contexto colonial dividiu o mundo em dois: as 41
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Enilce Al-
sociedades capitalistas, local onde residem supostamente bergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
p. 57-58.
as instituições democráticas, a moral e a ordem; e as co- 42
DUARTE, Evandro C. Piza; QUEIROZ, Marcos V. Lusto-
lônias, em que o interlocutor imediato com o colonizado sa. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o constitu-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
Pensamento Decolonial45 e o Pensamento Negro46. Tais sociedades na resistência criativa na Modernidade, uma
perspectivas trouxeram para o centro da disputa acadê- positividade dos subalternos, e a compreensão de que as
mica temas importantes como a especificidade, a trans- estratégias de controle social respondem, sobretudo, a
versalidade e a interseccionalidade das relações de poder. esses efeitos. Esse movimento paradoxal de resistência
De modo direto, tais perspectivas contribuíram criativa, especialmente para os escravizados africanos,
especialmente para a construção de uma metodologia de tem sido trazido à tona pelos “Estudos Culturais” e, es-
diversificação da análise das relações de poder que colo- pecificamente, por Paul Gilroy e Stuart Hall48. Ao mes-
cam sob suspeita os usos discursivos das narrativas his- mo tempo em que o silêncio acadêmico sobre o tema
tóricas para a representação política: de fato, toda repre- pode ser compreendido pelas formas racializadas de
sentação que se pretenda não dominante deve ser sempre construção do conhecimento. Tema desenvolvido pelos
colocada “sob suspeita” da mesma forma que as represen- estudos sobre a branquidade e racismo institucional, os
tações dominantes. Os críticos contemporâneos do poder quais são decisivos para a compreensão dos campos aca-
não devem ter mais tanta facilidade em falar em nome de dêmicos, inclusive críticos49.
uma “classe oprimida” ou de um “povo”. Os “subalternos” Malgrado a abordagem introdutória, nesse con-
são múltiplos. Logo, mesmo as histórias críticas do con- texto destacam-se algumas questões centrais na cons-
trole social parecem insuficientes quando não conside- trução de uma hipótese colonial sobre o sistema penal
ram, por exemplo, as formas de sujeição das mulheres, a moderno.
aculturação forçada dos indígenas, o genocídio, o episte- A primeira questão refere-se ao uso de novas
micídio, a racialização dos corpos, a heteronormativida- categorias compreensivas da Modernidade, tais como
de, a homofobia, a exploração sexual das mulheres e dos “Atlântico Negro” e “Diáspora Africana”. Elas destacam o
homossexuais etc. A história dos “subalternos” é, e deve caráter local, continental e universal das revoltas dos es-
permanecer sendo, um “terreno minado”. cravizados, as novas dinâmicas da escravidão nas cidades,
A Modernidade, pensada a partir de Dussel47, re- a escravidão urbana e as disputas em torno do domínio
vela para além do caráter positivo, construído a partir da “cidade negra”, os fluxos de ideias e pessoas no tráfico
da racionalidade discursiva, o seu caráter negativo que continental, as lutas simbólicas em relação a modelos cul-
pode ser sintetizada no “fato colonial”. Todavia, “sob turais e sua reinvenção, as construções subjetivas da diás-
suspeita”, o fato colonial, descrito em sua negatividade pora africana e, em menor medida, as diásporas internas
oculta o movimento paradoxal de indivíduos, grupos e dos povos originários.
A segunda questão, relacionada à anterior, é a im-
de Ciências Criminais, São Paulo, v. 99, p. 187-211, 2012a; portância dos escravizados negros na “era das revoluções”
CARVALHO, Salo. Sobre as possibilidades de uma crimi- e, especialmente na Revolução do Haiti, com a reinter-
nologia queer. Sistema Penal & Violência (Online), v. 4, p.
152-168, 2012b. pretação dos princípios do Iluminismo e agenciamento
45
ALCOFF, Linda Martín. Uma epistemologia para a pró- de lutas pelo fim da escravidão negra. A igualdade racial
xima revolução. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v.
não foi oferecida, ela foi conquistada e continuo disputa-
31, n. 1, p. 129-143 jan./abr. 2016; BERNARDINO-
COSTA, Joaze. Saberes subalternos e decolonialidade: os da ao longo do século XIX. A Revolução do Haiti marcará
sindicatos das trabalhadoras domésticas no Brasil. Brasília: uma virada nos discursos e estratégias de controle social.
Universidade de Brasília, 2015; MIGNOLO, Walter. Historias
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
locales: diseños globales. Colonialidad, conocimientos A erupção da igualdade racial revolucionária possui um
subalternos y pensamiento fronterizo. Trad. Juan María vinculo direto com a consolidação da desigualdade racial
Madariaga y Cristina Vega Solís. Madrid: Akal, 2003.
proposta pela ciência. Somente os movimentos de pro-
46
BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón.
“Decolonialidade e perspectiva negra”. Sociedade e Estado, dução e contestação de hierarquias raciais e de especia-
Brasília, v. 31, p. 15-24, 2016; COLLINS, Patricia Hill. Black lização de discursos no âmbito da esfera ideológica são
feminist thought: knowledge, consciousness, and the politics
of empowerment. Nova York: Routledge, 2009; capazes de elucidar a dinâmica política da construção do
CRENSHAW, Kimberlé et al (Ed.). Critical race theory.
Nova York: The New Press, 1995; GILROY, Paul. O Atlân-
tico Negro. Trad. Cid Knipel Moreira. 2. ed. São Paulo: 34, 48
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações
2012; culturais. Organização Liv Sovik; Tradução Adelaine La
47
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a ori- Guardia Resende. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2013.
gem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. 49
WARE, Vron. Branquidade: identidade branca e multicul-
8
Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes, 1993. turalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
sistema penal a partir de padrões racializados50. não essencialista das identidades, desterritorializando-
-as56 e explorando os pontos de contato das narrativas, os
3 As “fronteiras” e as “territorialidades” na “for- fluxos e a contingência57.
mação do controle social no Brasil”: o Atlân- A multiplicidade pretendida por Gilroy é depen-
tico Negro, a Diáspora Africana e as Cidades dente de uma reinterpretação do próprio conceito de
Negras diáspora em sua forma tradicional. Para o autor, o em-
preendimento do “Atlântico Negro” depende de um con-
O conceito de “Atlântico Negro” de que fala Paul ceito de diáspora de certa forma consciente desses inter-
Gilroy, permite trazer ao debate uma noção de cultura, câmbios contínuos:
ou antes, de uma “transcultura negra”51, mais dinâmica e Este desenvolvimento está conectado com a
mais fluida, capaz de compreender a história das nações e transformação da ideia mais antiga, uni-dire-
cionada, da diáspora como uma forma de dis-
das nacionalidades não enquanto acontecimentos estan- persão catastrófica mas simples, que possui um
ques, mas como processos inter-relacionados. Na defini- momento original identificável e reversível – a
sede do trauma – em algo bem mais complexo
ção dada pelo autor: “as formas culturais estereofônicas,
e frutífero”58
bilíngues ou bifocais originadas pelos – mas não mais
Nesse ponto, a abordagem de Gilroy se aproxima
propriedade exclusiva dos – negros dispersos nas estru-
da de Stuart Hall, envolvido em uma crítica daquilo que
turas de sentimento, produção, comunicação e memória,
chama de um “conceito fechado de diáspora”59. Hall dá
a que tenho chamado heuristicamente mundo atlântico
a essa abordagem tradicional da diáspora tratamento se-
negro”52.
melhante ao dado por Gilroy, afirmando estar ela funda-
É em razão de tais aspectos que o “Atlântico Negro”
da “[...] sobre a construção de uma fronteira de exclusão”
precisa ser pensado junto a outro conceito, o de diáspora.
e dependente “[...] da construção de um ‘Outro’ e de uma
“Como uma alternativa à metafísica da ‘raça’, da nação e
oposição rígida entre o dentro e o fora”60. É preciso um
de uma cultura territorial fechada, codificada no corpo, a
conceito capaz de dar conta da complexidade dos fluxos
diáspora é um conceito que ativamente perturba a mecâ-
comunicativos e que não recaia nos binarismos do “ori-
nica cultural e histórica do pertencimento”53. A diáspora
ginal” e da “cópia”, da “influência” e do “influenciado”. É
é o conceito que desafia os nacionalismos ao explorar os
em razão disso que o conceito de diáspora, assim como
vínculos sub e supranacionais, “[...] permitindo uma re-
o projeto do “Atlântico Negro”, não se amolda às frontei-
lação mais ambivalente com as nações e com o naciona-
lismo”54. É isso o que Gilroy chama de uma propensão Moreira. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 19.
“não-nacional” da diáspora,55 dependente de uma visão 56
O uso de “desterritorialização”, bastante comum em um
filósofo como Gilles Deleuze, é do próprio Gilroy: “Mas
acima disso, como já disse, ela frisa uma reconceitualiza-
50
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade ção da cultura a partir do sentimento de sua desterritoria-
como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi- lização”. Cf.: GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid
no superior e os procedimentos de identificação de seus Knipel Moreira. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 22.
beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de 57
De certa forma, o conceito de diáspora demanda uma
Brasília, Brasília, 2011. concepção não linear e não teleológica da história e do
51
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei- processo de formação das identidades: “A rede que a aná-
ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 15. lise da diáspora nos ajuda a fazer pode estabelecer novas
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
52
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei- compreensões sobre o self, a semelhança e a solidarieda-
ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 35. de. No entanto, os pontos ou nós que compõem esta nova
53
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei- constelação não são estágios sucessivos num relato gene-
ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 18. alógico de relações de parentesco”. E continua: “Não se
54
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei- produz o futuro a partir de uma sequência de teleologia
ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 19. étnica. Nem tampouco são eles pontos de uma trajetória
55
Essa dimensão “política”, por assim dizer, do conceito de linear em direção ao destino que a identidade africana re-
diáspora e, claro, do de “Atlântico Negro” é assim explici- presenta”. Cf.: GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid
tada: “A propensão não-nacional da diáspora é ampliada Knipel Moreira. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 20.
quando o conceito é anexado em relatos não-essencialistas 58
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei-
da formação de identidades primordiais que se estabele- ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 19-20.
cem supostamente tanto pela cultura quanto pela nature- 59
HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações cultu-
za. Ao aderir à diáspora, a identidade pode ser, ao invés rais. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p. 32.
disso, levada à contingência, à indeterminação e ao confli- 60
HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações cultu-
9
to”. Cf.: GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel rais. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p. 32-33.
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
ras do Estado-nacional.61 E não se ajusta em razão de ser determinados cenários”65. Há uma dimensão “não-nacio-
a própria cultura algo continuamente produzido62 e não nal” das cidades negras, no sentido proposto por Gilroy e
uma entidade sedimentada e que se transmite em via úni- também por Hall: tais “territórios negros” existiam muito
ca: “[...] a cultura não é apenas uma viagem de redesco- antes da própria existência dos Estados nacionais consti-
berta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A tuídos. Além disso, a produção cultural que ocorria nes-
cultura é uma produção”63. ses espaços, num processo contínuo de reinvenção, não se
A diáspora e o Atlântico Negro reinterpretam, limitava aos contornos estreitos das fronteiras nacionais.
nesse sentido, a própria noção de espaço, algo útil para As cidades negras são o território da “trans-cultura
se falar de cidades negras, já que insistem na ideia de um negra”, em que, ao contrário de um processo de influência
fluxo comunicativo e não mais em um processo de in- unilateral da África sobre esses territórios localizados do
fluências unilaterais. Nas palavras do autor: “O concei- outro lado do Atlântico, havia um verdadeiro processo de
to de espaço é em si mesmo transformado quando ele é criação contínua, no qual “Áfricas” eram recriadas.66 Des-
encarado em termos de um circuito comunicativo que se modo, “[...] espalhados pelas cidades negras, [muitos
capacitou as populações dispersas a conversar, interagir africanos e seus descendentes] recriavam redes culturais
e mais recentemente até a sincronizar significativos ele- peculiares, de diferentes tradições religiosas vivenciadas
mentos de suas vidas culturais e sociais”64. O espaço se por eles mesmos, ou por seus pais e avós. Algumas rein-
torna, assim, “espaço da diáspora”, ou antes, espaço que ventadas deste lado do Atlântico”67.
constitui a diáspora e por ela também é constituído. O realizar dessa outra periodização da história,
As cidades negras partem, assim, de um conceito com enfoque no Atlântico Negro,68 ilumina a importân-
de cidade pensado a partir da diáspora e dessa ressigni- cia que a realidade marítima teve ao criar um campo de
ficação do espaço antes mencionada. São cidades tran- trocas culturais e políticas que transbordam as fronteiras
satlânticas, a exemplo do Rio de Janeiro e de Salvador, nacionais e étnicas. Ainda distante da existência do barco
onde circulavam pessoas, ideias de liberdade, igualdade, a vapor, as correntes planetárias facilitaram a transmis-
insurreições, motins, práticas culturais não oficiais, mer- são circular da experiência humana e o desenvolvimento
cadorias legais e ilegais, homens e mulheres, escravos, li- das práticas coloniais. Contra as forças centralizadoras,
bertos e foragidos. Cidades que, além de possuírem uma ordenadoras e uniformizadoras dos estados-nação, o
grande população negra, produziam sua própria identi-
dade, cotidianamente reinventada: “Africanos e crioulos
65
FARIA, Juliana Barreto et al. Cidades Negras: africanos,
crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século
não eram necessariamente uma multidão ou massa escra- XIX. Rio de Janeiro: Alameda, 2006. p. 13.
va nos centros urbanos. Os recém-chegados produziam 66
Os autores mencionam a participação significativa dos es-
identidades diversas, articulando as denominações do paços religiosos nesse processo: “Em pequenos casebres,
salas e quartos diminutos, em espaçosos terreiros, ou mes-
tráfico, aquelas senhoriais e a sua própria reinvenção em mo nos casarões senhoriais, muitos africanos e seus des-
cendentes procuraram, a todo custo, celebrar seus deuses
e antepassados”. Cf.: FARIA, Juliana Barreto et al. Cidades
Negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil es-
61
Na lição de Hall: “A relação entre as culturas caribenhas cravista do século XIX. Rio de Janeiro: Alameda, 2006. p.
e suas diásporas não pode, portanto, ser adequadamente 123. Além da religiosidade, da capoeira e das festas, os ba-
concebida em termos de origem e cópia, de fonte primária tuques também exerceram importante papel nesse proces-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
e reflexo pálido. Tem de ser compreendida como a relação so de organização da cultura negra urbana. Sobre o tema,
entre uma diáspora e outra. Aqui, o referencial nacional cf.: FARIA, Juliana Barreto et al. Cidades Negras: africanos,
não é muito útil. Os Estados-nação impõem fronteiras rí- crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século
gidas dentro das quais se espera que as culturas floresçam”. XIX. Rio de Janeiro: Alameda, 2006. p. 123-152.
CF.: HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações 67
FARIA, Juliana Barreto et al. Cidades Negras: africanos,
culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p. 34. crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século
62
Stuart Hall chama esse fenômeno de um contínuo “pro- XIX. Rio de Janeiro: Alameda, 2006. p. 123.
cesso de formação cultural”, de maneira que “A cultura 68
O argumento, trabalhado ao longo do texto, sobre a im-
não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”. portância do conceito de Atlântico Negro para deslocar as
Cf.: HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações perspectivas filosóficas, históricas e políticas em relação à
culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p. 43. Modernidade e ao colonialismo foi primeiramente articu-
63
HALL, Stuart. Da diáspora, identidades e mediações cultu- lado em: DUARTE, Evandro C. Piza; QUEIROZ, Marcos
rais. Belo Horizonte: UFMG, 2013. p. 43. V. Lustosa. A Revolução Haitiana e o Atlântico Negro: o
64
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei- constitucionalismo em face do lado oculto da modernida-
10
ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012. p. 20-21. de. Brasília, 2016 (no prelo).
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
Atlântico se formou como entremeio de uma multidão do colonizado diante das impossibilidades que lhe foram
multiétnica essencial ao surgimento do capitalismo glo- legadas. O colonialismo e a escravidão instauraram um
balizado, a qual, em sua época, foi reprimida pela expan- sistema de comunicação extremamente assíncrono, radi-
são do colonialismo e que, hoje, é invisibilizada por um calmente dividido pelos interesses econômicos e políticos
fazer da história refém ao modelo das grandes narrativas opostos73. Totalmente diferente de qualquer descrição de
clássicas modernas69. uma esfera pública pautada por instâncias discursivas de
Em sua circularidade discursiva, o Atlântico tam- alteridade e reconhecimento74, a “arena política”, na qual
bém atuou como canal de aprendizado das elites colo- negros e negras se encontravam, era formada por um es-
niais, as quais, a partir das diversas experiências de co- paço comunicativo extremamente restrito, sendo neces-
nhecimento-exploração, seja na África ou nas Américas, sárias formas alternativas de mediação com o real.
foram desenvolvendo maneiras de lidar com as possíveis Articulando o reconhecimento de uma violência
resistências e lutas dos grupos subalternizados. Por meio original do colono como “aparecimento”, as diversas for-
do gerenciamento de identidades e diferenças, do aper- mas de lutas das populações do Atlântico Negro enfoca-
feiçoamento dos modelos de violência, da criação de ram a ideia de que “o homem colonizado se liberta na e
legitimadores discursivos, do controle populacional, do pela violência”, pois é por meio dela que o subalternizado
entendimento topográfico e climático e outras práticas, age enquanto positividade formadora. Enquanto elemen-
uma rede de saber-poder atlântica, pertencente as elites to de mediação, a violência direciona meios e fins para
coloniais, foi sendo construída e remodelada no decorrer uma causa e história coletivas, gerando reconhecimento e
dos séculos70. antevisão de um futuro comum75.
A dinâmica do Atlântico Negro serve também Assim, o Atlântico permite compreender as duas
para descavar o impacto, a escala e a extensão da vio- facetas da violência enquanto dimensões constituintes da
lência proveniente do “encontro colonial”71, criadora de Modernidade globalizada. Primeiramente como violên-
novas realidades até então inexistentes. O colonialismo, cia colonial, força que regionaliza, diferencia e desterrito-
com seus efeitos globalizados, instaurou uma nova ordem rializa diferentes tradições, expressa também no genocí-
à força, deformando antigos e conformando novos pa- dio populacional e aniquilamento cultural. E, no segundo
drões sociais nas ditas sociedades periféricas. De um dia sentido, enquanto violência anticolonial, unificadora e
para o outro, as metafísicas das populações colonizadas, totalizadora, capaz de reestabelecer o fluxo linguístico
com seus costumes, instâncias simbólicas e expressivida- interrompido pela violência original do colonialismo.7677
des culturais, foram abaladas porque estavam em contra-
dição com uma sociedade que não conheciam e que lhes 73
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Trad. Cid Knipel Morei-
foi imposta. O ser desses povos passa a ser constituído ra. 2. ed. São Paulo: 34, 2012.
74
KELLNER, Douglas. Habermas, the public sphere, and
violentamente como um ser diante do mundo ocidental, democracy: a critical intervention. In: HAHN, Lewis Ed-
branco e europeu, que lhes obriga a se situar perante dois win. Perspectives on Habermas. USA: Open Court, 2000. p.
259-287.
sistemas de referência72. 75
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Enilce Al-
O que é trazido ao primeiro plano é a dimensão bergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: UFJF, 2005.
ontologicamente criadora da violência, seja por parte
76
Nada melhor que as próprias palavras de Fanon para ex-
plicitar as duas dimensões constituidoras da violência em
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
das práticas colonizadoras, seja por parte da resistência sociedades afetadas pelo colonialismo: “A existência da
luta armada indica que o povo decide só confiar nos meios
violentos. Aquele a quem sempre se disse que ele só com-
69
LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de mui- preendia a linguagem da força decide expressar-se pela
tas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história força. Efetivamente desde sempre, o colono lhe mostrou
oculta do Atlântico revolucionário. Trad. Berilo Vargas. o caminho que deveria ser o seu, se quisesse libertar-se. O
São Paulo: Cia das Letras, 2008. argumento que o colonizado escolhe lhe foi indicado pelo
70
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: for- colono e, por uma irônica inversão das coisas, é o coloni-
mação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Le- zado que, agora, afirma que o colonialista só compreen-
tras, 2000. de a força”. Cf.: FANON, Frantz. Os condenados da terra.
71
CONNEL, Raewyn. A iminente revolução na teoria social. Trad. Enilce Albergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de
Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 27. n. Fora: UFJF, 2005. p. 102.
80, p. 09-20, out. 2012. 77
Obviamente que a filosofia ocidental já tematizou a violên-
72
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. Enilce Al- cia das mais diversas formas, inclusive reconhecendo o seu
11
bergaria Rocha, Lucy Magalhães. Juiz de Fora: UFJF, 2005. caráter constitutivo de relações sociais. Walter Benjamin,
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
4 A Revolução do Haiti como ponto de tensão sedições, insurreições etc.) criou outras inúmeras formas
dos discursos sobre o medo e a raça de confinamento histórico das dimensões desses proces-
sos. Não obstante, mais recentemente, a Revolução Hai-
O Atlântico Negro produziu inúmeras tensões so- tiana (1791), tem emergido como um momento decisivo
ciais, porém o vocabulário político (revoltas, rebeliões, na “Era das Revoluções” para pensar as diversas estraté-
gias construídas no Atlântico Negro, pois desembocará
Carl Schmitt e Jacques Derrida são exemplos de pensadores na declaração do primeiro Estado negro independente
que trabalharam a dimensão violenta por trás da institu-
em 1805 e na primeira auto-declaração de um território
cionalização de arcabouços normativos (como o direito),
os quais, muitas vezes sob legitimadores míticos das suas livre da escravidão negra, sob a forma constitucional.
próprias estruturações (como discursos sobre justiça), en- Durante esse período, inúmeras discussões e disputas se-
cerram possibilidades alternativas sobre o real. Portanto,
a exposição da violência inerente a toda metafísica argu- rão realizadas nos dois lados do Atlântico a respeito das
mentativa não é algo novo. Sobre o tema, cf.: BENJAMIN, ideias de igualdade, liberdade, raça, colonialismo, nacio-
Walter. Crítica da violência: crítica do poder. Revista Espa- nalidade e cidadania, as quais tensionariam as fronteiras
ço Acadêmico, Maringá, ano 2, n. 21, fev. 2003; SCHMITT,
Carl. O conceito do político/Teoria do Partisan. Trad. Geral- das pretensões universalistas dos princípios revolucioná-
do de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2008; DERRIDA, rios do ocidente. De modo direto, na sequência da reação
Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade.
Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: M. Fontes, 2010.
napoleónica ao fim da escravidão e à independência das
Por outro lado, o que se quer trazer como novidade a res- colônias, em oposição à São Domingos, ergue-se a teorias
peito da violência por meio do Atlântico Negro é justa- das raças.
mente o apagamento que as mesmas narrativas hegemô-
nicas sobre a violência realizam, que é o silêncio sobre as A insurgência de São Domingos foi gestada em um
violências e estruturações decorrentes do encontro colo- imenso caldeirão cultural, em que a religião, as diferenças
nial. É apontar a inexistência da Modernidade (e de todos
linguísticas, as organizações comunitárias alternativas e o
os seus respectivos sistemas de pensar) sem o colonialis-
mo, ou melhor, que se há Modernidade, ela se constitui hábito das plantations desempenharam papel crucial nos
enquanto Modernidade-colonialidade. É dizer que até nas rumos das movimentações de negros e negras. O vodu,78
narrativas mais “cruas” sobre a violência do mundo mo-
derno, há uma violência racializada e colonial justamente
por não reconhecer, negar ou ocultar a violência sofrida
pelos negros e negras na diáspora. Justamente neste pon-
to, por exemplo, é que pode ser traçada divergências entre
o pensamento de Fanon e Benjamin, em que o primeiro
acredita que certos conceitos como o de “luta de classes”
não são suficientes para explicar os processos sofridos pe-
las pessoas de cor no colonialismo, evidenciando como o 78
A historiografia contemporânea atribui um papel bastante
objeto de preocupação do alemão, ainda que dotado de importante ao vodu como instância mediadora dos diver-
ares de universalidade, era precipuamente europeu. Cf.: sos grupos de escravos em São Domingos, bem como uma
GUIMARÃES, Johnatan Razen Ferreira. Coordenadas do “zona de liberdade” ao cotidiano das plantations. Assim,
possível: o lugar da violência e a legitimidade da ocupação ele era uma das únicas atividades totalmente autônomas
de terras na ADI 2.213-0. 2015. Dissertação (Mestrado em dos escravos, sendo uma religião e uma força vital pro-
Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015. porcionadora de uma liberação psicológica. Habilitava
Por outro lado, Pedro Henrique Argolo Costa aponta que os escravos a expressar e reafirmar sua própria existência
no conceito de nomos da terra schmittiano é possível en- que já tinha sido reconhecida através das experiências do
contrar, mais do que em outras noções filosóficas metro- trabalho coletivo, do medo e da violência diária. Ou seja,
politanas, um instrumento metodológico, enraizado na o vodu proporcionava um quadro no qual os escravos
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
própria tradição europeia, capaz de realizar um duplo conseguiam organizar e direcionar consciências e percep-
deslocamento: a possibilidade de uma filosofia da história ções adquiridas no trabalho e na violência decorrentes da
reorientada pelo evento da “Conquista” (do colonialismo) escravidão, agindo como um espaço de reconhecimento
e uma estratégia de leitura com força crítica suficiente para mútuo e de diálogo comum de experiências irmãs. Possi-
lançar ao texto europeu uma certa “desconfiança” sobre sua bilitava, neste sentido, a quebra psicológica das correntes
pretensa universalidade. Cf.: COSTA, Pedro Henrique Ar- reais e subjetivas da escravidão, tornando os escravos se-
golo. Entre hidra e leviatã: o nomos da terra de Carl Schmitt res independentes, dando-lhes um senso de dignidade e
e o paradoxo da história universal. 2016. TCC (Monografia os armando para a sobrevivência e a resistência. Cf.: FICK,
em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015. p. 58. Carolyn. The making of Haiti: the Saint Domingue Revolu-
De qualquer maneira, aponta-se para a importância do tion from below. USA: The University of Tennessee Press,
encontro colonial – e da sua respectiva violência – para se 1990. p. 33-45. Para uma relativização, cf.: GEGGUS, Da-
tentar reconstituir narrativas que questionem mais atenta- vid P. Haitian Revolutionary Studies. USA: Indiana Uni-
mente os limites e fronteiras das pretensões modernas de versity Press, 2002. p. 74-80; DUBOIS, Laurent. Avengers
universalidade (sejam filosóficas, de discurso, de poder ou of the new world: the story of the Haitian Revolution. Har-
12
de direitos). vard: Harvard University Press, 2004, p. 43.
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
a língua crioula,79 a prática de marronage80e a violência Influenciada pela Revolução Francesa, que de-
da escravidão evidenciam um plexo plural de identidades sestabilizaria as relações institucionais e hierárquicas na
traduzidos em um “movimento exclusivamente transcul- colônia, em poucos anos os eventos em São Domingos
tural”, formado por negros e negras de diferentes regiões fariam o poder legislativo francês garantir os direitos po-
e de contextos políticos, sociais e religiosos amplamente líticos dos homens livres de cor (1792) e, posteriormente,
diversos.81 após a abolição promovida pelos próprios escravos, abolir
a escravidão em todas as suas colônias (1794)82. Imporia
79
Segundo a historiadora Carolyn Fick, perante a imersão
derrotas aos potentes exércitos espanhol (1795) e inglês
forçada de africanos em um mundo totalmente novo, o
encontro e a mistura de culturas fizeram surgir uma língua (1798), assim como, em seus derradeiros momentos, ex-
única e unificadora. Africana na estrutura e no ritmo, mas pulsaria as tropas napoleônicas da ilha quando começa-
europeia na dinâmica lexical, teve sua gênese e consolida-
ção no século XVIII, promovendo um quadro linguístico vam a retornar os boatos de restauração da escravidão
comum de comunicação para diversos grupos de escravos (1803)83. Em 1805, a independência seria declarada sob o
que chegavam a São Domingos. Foi, neste sentido, uma nome de Haiti, em uma forma de relembrar os primeiros
essencial ferramenta unificadora que possibilitou a negros
e negras compartilharem experiências, visões de mundo, habitantes de São Domingos84 e de declarar ao mundo sua
opiniões e ideias, bem como conspirar contra o sistema oposição à herança colonial-escravocrata do ocidente.85
FICK, Carolyn. The making of Haiti: the Saint Domingue
Revolution from below. USA: The University of Tennessee
No período pós-revolução, o Haiti, por meio de
Press, 1990. p. 40. suas constituições, expressaria uma Modernidade hetero-
80
A marronage, uma espécie de quilombismo, era uma gênea diante de um mundo no qual o colonialismo, a es-
prática de resistência comum a todo o novo mundo e
influenciava os escravos de São Domingos de diferentes cravidão e a “desigualdade entre as raças” eram a norma.
maneiras. Mesmo sem criar garantias mais profundas, Nestes documentos, era possível ver os dilemas, conflitos,
os marrons diziam que o sistema não era inquebrantável
interesses e tendências políticas da época, nos quais dis-
e apresentavam-se como saídas reais à submissão. Além
disso, estabeleciam relações contingenciais com os escra- tinções, tão comuns aos discursos modernos, emergiam
vos que ainda estavam nas plantations, bem como com os no calor dos eventos: universalismo em defesa da igual-
livres de cor. O quadro de possibilidades das práticas de
marronage era aprofundado pelas relações estabelecidas dade racial contra particularismo de direitos decorrentes
com o vodu. Sendo uma forma cultura e uma força po- de certas especificidades oriundas do colonialismo;86 li-
lítico-ideológica potente, advinda de uma grande síntese
de religiões, crenças, práticas e tradições africanas que
formavam a população negra da colônia, o vodu muitas 82
DUBOIS, Laurent. Avengers of the new world: the story
vezes era praticado pelos líderes dos quilombos, os quais of the Haitian revolution. Harvard: Harvard University
também eram sacerdotes. Essa fusão propiciava a recons- Press, 2004; GEGGUS, David P. Haitian Revolutionary
trução de modos de vida africanos na América, por meio Studies. USA: Indiana University Press, 2002.
da língua, da dança, das cerimônias, da visão de mundo e 83
JAMES. C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouvertu-
das curas medicinais. Assim, todo um arcabouço herme- re e a revolução de São Domingos. Tradução Afonso Tei-
nêutico comum era possibilitado, abrindo margem a for- xeira Filho. São Paulo: Boitempo, 2007.
mação de uma consciência coletiva e de uma identidade 84
O nome “Haiti” era a maneira como os antigos habitantes
independentes dos senhores brancos. Cf.: FICK, Carolyn. da ilha, os indígenas taínos, a chamavam . Cf.: DUBOIS,
The making of Haiti: the Saint Domingue Revolution from Laurent. Avengers of the new world: the story of the Haitian
below. USA: The University of Tennessee Press, 1990. p. Revolution. Harvard: Harvard University Press, 2004, p.
56-57; DUBOIS, Laurent. Avengers of the new world: the 299.
story of the Haitian Revolution. Harvard: Harvard Uni- 85
Para Laurent Dubois, a escolha do nome “Haiti” demons-
versity Press, 2004. p. 55. tra uma espécie de política de descolonização avançada
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
81
Como aponta o historiador Laurent Dubois, São Domin- dos primeiros líderes haitianos, no sentido de uma “rejei-
gos não era majoritariamente composto de escravos, mas ção à falsa filosofia” dos colonizadores brancos e de qual-
sim de africanos, o que recoloca a Revolução Haitiana quer tipo de discussão sobre o retorno à escravidão. Cf.:
como precursora das lutas por descolonização africanas. DUBOIS, Laurent. Avengers of the new world: the story of
Ele assim coloca a questão: “agora estamos começando a the Haitian Revolution. Harvard: University Press, 2004.
entender que ela foi em si mesma, de diferentes maneiras, p. 299-300. Para uma discussão do nome Haiti enquan-
uma Revolução Africana”. Cf.: DUBOIS, Laurent. Avengers to uma mediação de interesses entre as diferentes forças
of the new world: the story of the Haitian Revolution. Har- políticas existentes no momento pós-revolucionário, cf.:
vard: Harvard University Press, 2004. p. 05. Neste aspecto, GEGGUS, David P. Haitian Revolutionary Studies. USA:
tornam-se evidentes os deslocamentos e reperiodizações Indiana University Press, 2002.
que a Revolução em São Domingos e os desafios do Haiti 86
Um grande exemplo dessa questão está na primeira
pós-independência colocam para compreensões histo- Constituição pós-independência, de 1805. Logo no seu
riográficas e filosóficas que tenham em conta a diáspora preâmbulo, fica expresso o tema da igualdade racial, mas
africana e o Atlântico Negro, como já foi pontuado e será expondo uma dialética complicada entre universalismo e
13
abordado mais adiante. particularismo. Afirma-se o princípio da igualdade uni-
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
berdade individual versus poder do Estado sobre os in- Funcionando mais como declarações de inde-
divíduos em decorrência das necessidades econômicas;87 pendência do que como constituições, as constituições
e ética internacionalista de combate a escravidão em haitianas expressam aspirações e desejos que não podem
oposição às restrições nacionalistas para se proteger do confinar-se a uma realidade política e social determinada,
imperialismo.88 redesenhavam e rearticulavam o legado da teoria política
do iluminismo e da era revolucionária. A concepção de
versal e, no mesmo gesto, a diversidade e diferença da hu- liberdade não se limitava somente à ideia de uma simples
manidade – determina-se a igualdade racial e reconhece
“porção de terra”, mas invocava uma nova e radical arti-
o exclusivismo daqueles que foram escravizados. O ápice
desse paradoxo é a determinação de que todos os habi- culação do conceito de raça e da relação entre liberdade
tantes haitianos devem ser tratados como negros, em uma e igualdade 89. Enquanto as fronteiras dos estados-nação
verdadeira reapropriação da linguagem do colonizador
pelo colonizado. Como afirma a filósofa Sibylle Fischer, iam restringindo cada vez mais as pretensões universalis-
a adoção dessa linguagem sugere que os revolucionários tas da Modernidade em signos nacionais, étnicos e locais,
haitianos começaram pelo significado herdado de um vo- o Haiti reutilizava os escombros da história90 colonial
cabulário pleno de conotações raciais e continuaram por
modificá-lo de maneira progressiva, com uma significação para especializar a cidadania em novas bases. Os haitia-
de valorização própria das pessoas tidas como negras. O nos promoveram o fim da escravidão na região, impelin-
negro, ali, adquiria o caráter de universalidade contido na
categoria cidadão. Cf.: FISCHER, Sibylle. Constituciones
do os Estados europeus a reverem os limites da noção de
haitianas: ideología y cultura posrevolucionarias. Casa de igualdade, para incluir a igualdade racial91.
las Américas, La Habana, Cuba, n. 233, p. 18-22, oct./dic. Enfim, a Revolução do Haiti revela que a “invenção
2003.
87
Para as constituições haitianas, a escravidão nunca foi do ser negro escravo”92 pelo colonialismo não era um pro-
uma divagação abstrata ou uma metáfora, como costu- cesso sem contradições. Ela expressava uma reação ao co-
meiramente ocorria nas discussões constitucionais eu-
lonialismo que articulou, porém, novas estratégias a partir
ropeias, muito menos fonte de legitimidade filosófica do
Estado. A escravidão era um dado concreto, necessaria- desse ponto. Dois aspectos interessam especialmente nesse
mente vinculado à experiência moderna e ao colonialis- contexto: a consolidação de novas dinâmicas sobre o medo
mo. É a partir deste ponto que é possível compreender os
dispositivos extremamente dirigistas no que toca a organi- e o surgimento de uma teoria sobre as raças. 93
zação do trabalho e familiar presentes em algumas das pri- O medo é um elemento constitutivo da Moderni-
meiras constituições. Por outro lado, é possível perceber
dade, sendo proporcional à desigualdade que ela instaura
que o mesmo tema da escravidão é trazido para a razão
de Estado, em que o Haiti é fundado para garantir a liber-
dade e acabar com a subordinação racial. Assim, o fim da ología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas,
escravidão não é nem metáfora nem uma lista abstrata de La Habana, Cuba, n. 233, p. 22-27, oct./dic. 2003.
direitos políticos, mas está no programa fundacional do 89
FISCHER, Sibylle. Modernity disavowed: Haiti and the
Estado. FISCHER, Sibylle. Constituciones haitianas: ide- cultures of slavery in the age of revolution. USA: Duke
ología y cultura posrevolucionarias. Casa de las Américas, University Press, 2004.
La Habana, Cuba, n. 233, p. 27-31, oct./dic. 2003. 90
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In:
88
O Haiti adotava uma postura de antiescravismo radical, BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte:
que era um movimento transnacional e transimperial. Ele Autêntica, 2013.
assim pensava e se colocava dentro da conjuntura interna- 91
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade
cional. No entanto, do mesmo modo que o universalismo como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi-
da igualdade racial aparece contraposto ao de uma iden- no superior e os procedimentos de identificação de seus
tidade historicamente modelada, o transnacionalismo beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de
antiescravista deverá, eventualmente, confrontar as res- Brasília, Brasília, 2011.
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
como projeto e realidade. Em regiões em que predomi- hatiano, mantém-se impregnadas de representações ne-
nou o sistema de escravidão negra, e especialmente após gativas e ao mesmo tempo ameaçadoras. No mesmo pas-
as revoluções de escravos, os negros passam a ocupar um so, contra elas são erguidas um conjunto de estratégias de
lugar de destaque no mito moderno94. O imaginário do controle policial e judicial.
medo de uma revolução escrava (ou um “outro São Do- Assim, o medo da “onda negra”, ou o medo da
mingos”)95 foi constituinte das práticas, discursos e estra- repetição dos eventos do Haiti, carrega consigo uma
tégias políticas das elites coloniais e da formação dos esta- transcendência ao gerar questionamentos que devem ser
dos-nação modernos. A Revolução Haitiana demonstrou realizados para interpretar todas as áreas afetadas pelo
como a reconstrução cultural dos africanos escravizados colonialismo: o que esse medo direcionou nas áreas co-
nos quadros da diáspora serviu como modo de resistên- loniais? Como esse medo criou realidades, hábitos e prá-
cia ao domínio colonial.96 Ao mesmo tempo, a liberdade ticas de dominação e subordinação? Como os medos têm
haitiana provocou a defesa de uma forma de pertenci- mais impacto sobre nós que as nossas próprias crenças
mento que não pode ser simplesmente remetida a uma positivas e reivindicações? Além disso, o outro lado da
reprodução das identidades culturais dos povos africa- “onda negra” também precisa ser tematizado: em que
nos. Embora ela fosse um apelo importante, tratava-se medida a insurgência negra, uma revolução como a Hai-
de uma reconstrução, uma invenção, um novo destino tiana, não teria significado mais como uma promessa do
comum, uma cultura de novas fronteiras, transatlântica, que como uma ameaça? Não haveria formas populares e
que deveria saber viver à deriva, sem poder voltar à Áfri- híbridas de produção cultural que escaparam das tentati-
ca ou fugir para a Europa e que, ao mesmo tempo deveria vas de negar e diminuir a resistência negra no Atlântico?
estabelecer pontes entre a África e a América. Como acessar e narrar a circulação de conhecimentos
A prova do caráter explosivo dessa situação pode produzidos pelas lutas diaspóricas no mundo Atlântico
ser avaliada pelo esmero como as práticas religiosas dos através de rumores, músicas e outras expressões?97.
negros foram retratadas negativamente pela ciência euro- Ao se debater o medo, as transformações nas
peia nas décadas subsequentes e, mais particularmente, representações dos povos escravizados aparece como
como o projeto disciplinador escravista valeu-se da reli- questão central, sobretudo, a partir dos acontecimentos
gião cristã. Demonizadas e patologizadas, na cultura de no Haiti. Os acontecimentos revolucionários, como de-
massa contemporânea, práticas culturais, como o vodu monstrou Susan Buck-Morss, demonstraram que as ví-
timas da Modernidade poderiam romper com o silêncio
94
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade do iluminismo europeu diante da escravidão real98. As
como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi- hierarquias sociais não eram mais facilmente aceitas, pois
no superior e os procedimentos de identificação de seus os negros enterraram a ideia de que a escravidão era uma
beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2011. opção viável para a organização econômica e seu desti-
95
A historiografia contemporânea dá numerosos eventos no “natural”. As ideias iluministas se propagavam com a
das repercussões da Revolução Haitiana no imaginário
tanto das elites coloniais, como de negros e negras. Ver,
escravidão sem, contudo, submeterem-se ao controle de
por exemplo: GOMES, Flávio; SOARES, Carlos Eurgênio. significados desejado pelas elites locais que silenciavam
Sedições, haitianismo e conexões no Brasil escravista: ou- sobre a escravidão negra ou a consideravam legítima por
tras margens do Atlântico Negro. Novos Estudos, São Pau-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
lo, n. 63, p. 131-144, 2002; NASCIMENTO, Washington ser uma dimensão da propriedade. As imagens sobre as
Santos. São Domingos, o grande São Domingos: repercus- resistências escravas e o destino da escravidão com os
sões e representações da Revolução Haitiana no Brasil es-
processos de independência das colônias foram, no mes-
cravista (1791-1840). Dimensões, Vitória, v. 21, p. 125-142,
2008; BATISTA, Malaguti Vera. O medo na cidade do Rio mo passo, decisivas para construir e delimitar o problema
de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: da forma constitucional, e, sobretudo, da concepção de
Revan, 2003.
96
Como isso se tornou possível? A resposta, proposta por povo na construção de direitos. Muitos do movimentos
Muniz Sodré, deveria ser buscada na própria estrutura da
cultura de várias comunidades africanas de onde os escra-
vos eram trazidos. Quer no uso das tradições cristãs ou na 97
FISCHER, Sibylle. Modernity disavowed: Haiti and the
forja de novas manifestações religiosas africanas locais es- cultures of slavery in the age of revolution. USA: Duke
taria a estrutura da Arké capaz de integrar as contradições. University Press, 2004.
Cf SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social do 98
BUCK-MORSS, Susan. Haiti, and universal history. USA:
15
negro-brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 97-100. University of Pitssburgh Press, 2009.
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
Global, 1983. p. 14. nacionalidades que fossem compatíveis com tais hierar-
100
Embora, como se verá adiante, a política e as praticas cul-
turais não se apresentem assim tão dissociadas.
101
A situação já estava se transformando mesmo antes da 2004. Paris: UNESCO, 2004. Disponível em: <http://www.
eclosão da Revolução de São Domingos: “Os mundos unesco.org/culture>. Acesso em: 05 nov. 2016. p. 48.
coloniais americanos foram regularmente abalados pelas 102
GENOVESE, Eugene Dominick. Da rebelião à revolução:
revoltas dos seus escravos, ou por ameaças de revoltas. Os as revoltas de escravos negros nas Américas. São Paulo:
administradores das colónias inglesas e francesas das Ca- Global, 1983.
raíbas reconheciam, nos anos 1730, que “um vento liber- 103
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade
tário” soprava nas Caraíbas indicando assim a existência como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi-
de um verdadeiro contágio dos fenómenos de resistência no superior e os procedimentos de identificação de seus
à escravidão, como ocorreu, meio século mais tarde, por beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de
ocasião da rebelião dos escravos de Saint-Domingue.”. Cf.: Brasília, Brasília, 2011. p. 567 e ss.; GOBINEAU, Arthur.
STENOU, Katerina. Lutas contra a escravidão; Ano Inter- Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Éditions
16
nacional de luta contra a escravidão e de sua abolição – Pierre Belfond, 1967. p. 77.
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
quias (no plano das relações entre as nações europeias e “povo” foi a desculpa da arquitetura conservadora do Es-
estrangeiras e no interior das novas nações). Ou seja, a tado Autoritário para esse “resto do mundo”. Ao mesmo
teoria da raça permitiu que o autor afirmasse a diferença tempo, a diversidade foi o outro elemento que acompa-
como fundamento da desigualdade num mundo em que nhou as preocupações de gerenciamento autoritário do
as hierarquias naturalizadas estavam sendo corroídas pe- Estado. A diversidade tolerada não poderia estabelecer
las disputas políticas revolucionárias articuladas a partir um vínculo com a política e deveria ser funcional ao sis-
de uma gramática de direitos. Isso significa que, do seu tema econômico106.
ponto de vista, os africanos escravizados e os povos origi- Em síntese, a teoria das raças foi gestada numa
nários seriam incompatíveis com a República, ou melhor, conjuntura em que a própria ideia de hierarquia racial
nos trópicos, ela somente seria possível com o domínio havia sido questionada e duramente atacada por novas
dos brancos sobre os demais grupos.104 formas de hibridismo cultural, por ressignificações e re-
Sua obra representou uma reação contra a possi- definições das teorias políticas europeias sobre igualdade
bilidade de integrar a diversidade humana subjacente à e liberdade. A teoria das raças, portanto, não criou as hie-
Conquista num modelo Republicano. Gobineau defen- rarquias raciais do colonialismo, ao invés disso, organizou
deu a diferença mais do que ninguém. Os negros somente sua defesa como teoria política referente à nacionalidade
poderiam viver sob formas tribais ou regimes autoritá- e à cidadania, tornando-se a matriz do Estado Autoritário
rios. O Republicanismo era um atributo da raça branca. A nos novos países independentes; orientou o Imperialis-
diferença racial impunha a marca da percepção ocidental mo dos países centrais e a aliança com as elites locais; e,
desde a estética, passando pela formas de organização po- ao mesmo tempo, especializou-se como discurso sobre o
lítica, até a linguagem utilizada pelos não-europeus. De controle social, ou seja, deu origem à Criminologia, como
igual modo, se os não-europeus assumiam o modelo Re- tratamos no outro capítulo.. De forma difusa, ou localiza-
publicano estariam apenas a «macaquear» a forma, sem da, estava o medo da Revolução, e especialmente, o medo
apreender o conteúdo. A forma constitucional não pode- de que a gramática dos direitos pudesse ser reconstruída
ria sobreviver sem um conteúdo determinado, o substra- por vozes múltiplas para além das fronteiras e das hierar-
to cultural dos grupos raciais desenvolvidos. Portanto, a quias do colonialismo e do Estado Nacional107.
teoria racial embranqueceu a memória do constituciona-
lismo, apagando e minimizando as disputas ocorridas no 5 Biopoder, racismo, conquista e colonialida-
Atlântico Negro105. de: notas sobre Foucault e Agamben
Como se percebe nas teorias de Gobineau, a cons-
trução da nacionalidade (ou da sua impossibilidade como De que modo, a historiografia utilizada pela Cri-
princípio unitário e abstrato) dos “locais” foi o modo minologia Crítica pensou esses eventos relacionados à
mais adequado para que a teoria política do século XIX Modernidade e ao surgimento do racismo? Michel Fou-
pudesse pensar a clausura da diferença e a submissão da cault foi quem mais se deteve sobre o tema do racismo.
diversidade humana. A inadequação das instituições não O autor trata do “poder de morte” e do “poder sobre a
se referia ao fato de que elas não representavam a vontade vida” como um par conceitual que estrutura aquilo que
democrática, calcada na Igualdade e na Liberdade, mas ele entende por “biopoder” e que marca uma transforma-
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
que tais instituições não poderiam ser democráticas por ção profunda dos mecanismos de poder. De uma época
culpa do povo (ou de uma parte dele) e porque não eram clássica, em que era exercido sob a forma de “confisco”
capazes de controlar a “natureza” desse povo. O elemento (apreensão das coisas, do tempo, dos corpos e da vida),
104
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade 106
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade
como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi- como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi-
no superior e os procedimentos de identificação de seus no superior e os procedimentos de identificação de seus
beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2011. p. 566. Brasília, Brasília, 2011. p. 571.
105
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade 107
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade
como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi- como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi-
no superior e os procedimentos de identificação de seus no superior e os procedimentos de identificação de seus
beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de
17
Brasília, Brasília, 2011. p. 556. Brasília, Brasília, 2011. p. 570.
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
para o período moderno, no qual o confisco passa a ser trutura jurídica do poder, dos Estados, das monarquias,
apenas uma das “peças”108 desse poder, que agora “se si- das sociedades, não têm seu princípio no ponto em que
tua e exerce ao nível da vida, da espécie, da raça e dos cessa o ruído das armas. A guerra não é conjurada”114. A
fenômenos maciços de população”109. Esse “poder de contra-história do discurso sobre a raça é o que permi-
morte”, antes mencionado, desloca-se e passa a se apoiar te romper com o modelo “jupiteriano” da historiografia
não mais em um poder que se apropria da vida para su- tradicional, “[...] uma história da soberania, uma história
primi-la, mas que a gerencia, promove sua majoração, sua que se desenvolve na dimensão e na função da sobera-
multiplicação. nia”115.
Foucault está envolvido em uma reinterpretação Para Foucault, entretanto, o sentido desta “guerra
teórica daquilo que se entende por “poder”: fora, portan- das raças” sofre uma importante mudança e adquire um
to, do modelo de análise proposto pela soberania jurídica sentido biológico116, com os contornos do evolucionismo
e pela instituição estatal, ou antes, “fora do modelo do e das teorias da degeneração dos fisiólogos. O próprio au-
Leviatã”110. Para tal, é necessário adotar uma postura me- tor esclarece, entretanto, em determinado momento, que
tódica orientada não para o “edifício jurídico da sobera- esse discurso da luta das raças é marcado por certa “poli-
nia”111, mas para os processos materiais de dominação, valência estratégica”117 desde o princípio. É um discurso
para os mecanismos de sujeição da vida. das oposições, de grande circulação entre os diferentes
Foi essa reorientação metódica que levou Foucault grupos, servindo como “[...] instrumento de crítica e de
a se voltar para o fenômeno da “raça”, ou mais especifica- luta contra uma forma de poder [...]” e que foi veiculado
mente, para a “guerra entre as raças”. Esta última funcio- tanto como um projeto pós-revolucionário de escrever
naria como uma “contra-história”112, que é justamente o uma história centrada no “povo” enquanto categoria fun-
que introduz o modelo da guerra para se pensar a histó- damental quanto como instrumento de “[...] desqualifica-
ria113. Com isso, o poder político deixa de ser visto como ção das sub-raças colonizadas”118.
o momento de pacificação social e passa, ao contrário, a É em momento posterior, contudo, que o discurso
ver a guerra em sua própria origem: “A organização, a es- da luta das raças passa por duas “transcrições”, analisadas
por ele a partir da Revolução Francesa: de um lado, uma
108
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria
transcrição biológica, que ocorre antes de Darwin e que
Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 128.
109
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria se apropria de seu discurso (nascimento de uma teoria
Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 129. das raças no sentido histórico-biológico do termo); de
110
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria
Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 40. outro, que tenderá a apagar todos os vestígios do conflito
111
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria de raças e se transforma em luta de classe119. A partir daí
Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 40. o autor localiza um racismo biológico-social, não mais
112
A ideia de uma “contra-história”, como explica Tomás
Abraham no prefácio da edição castelhana de “Em defesa estruturado sob o enfrentamento entre duas raças exte-
da sociedade” (Genealogía del racismo), é aquela envolvida
em uma subversão da história sustentada sobre as concep-
ções jurídico-filosóficas do contrato. Trata-se daquilo que 114
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria
Foucault chama de certo “economismo” na teoria do po- Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 58.
der, que o concebe como um direito que se adquire como 115
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria
um “bem” e que pode ser “transferido” ou mesmo “alie- Ermantina Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 79.
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
riores uma à outra, mas como o desdobramento de uma é possível que um poder cujo objetivo é essencialmente
mesma raça, dividida em uma super-raça e uma sub-raça. o de fazer viver exerça por sua vez um incondicionado
Como ele coloca: poder de morte?”124. A resposta a esse aparente paradoxo
[...] esse discurso da luta das raças – que, no é dada pelo racismo. Embora o racismo já existisse125, é
momento em que apareceu e começou a funcio- nesse momento, segundo Foucault seguido também por
nar no século XVII, era essencialmente um ins-
trumento de luta para campos descentralizados Agamben, que ele se insere nos mecanismos do Estado:
– vai ser recentralizado e tornar-se justamente Foi nesse momento que o racismo se inseriu como me-
o discurso do poder, de um poder centrado,
canismo fundamental do poder, tal como se exerce nos
centralizado e centralizador; o discurso de um
combate que deve ser travado não entre duas Estados modernos, e que faz com que quase não haja
raças, mas a partir de uma raça considerada funcionamento moderno do Estado que, em certo mo-
como sendo a verdadeira e a única, aquela que
detém o poder e aquela que é titular da norma, mento, em certo limite e em certas condições, não passe
contra aqueles que estão fora dessa norma, con- pelo racismo126.
tra aqueles que constituem outros tantos peri- O racismo é o que fragmenta o domínio do campo
gos para o patrimônio biológico120
biológico, permitindo distinguir entre o que deve viver e
Nesse momento, o discurso racista adquire para
o que deve morrer. Em outras palavras, “a raça, o racismo,
o autor a forma de um racismo de Estado, exercido não
é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa socie-
mais como um mecanismo de defesa da sociedade contra
dade de normalização”127.
uma “raça vinda do exterior”, mas que ela exercerá sobre
Para Agamben, por sua vez, o campo de concen-
ela própria, um “racismo interno” em relação a seus pró-
tração representa o espaço em que as cesuras biopolíticas
prios elementos, “[...] o da purificação permanente, que
atingem seu limite. Esse limite é aquilo que ele chama de
será uma das dimensões fundamentais da normalização
“muçulmano” (Muselmann). Trata-se da denominação
social”121. Esse é o momento em que Foucault marca, ex-
dada ao prisioneiro na linguagem do Lager, o morto-vivo
plicitamente, o “surgimento” do racismo, guardando co-
que, por ter sido privado de qualquer dignidade128, flu-
nexões importantes, inclusive, com o “discurso revolucio-
tua entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano.
nário”: “Quando o tema da pureza da raça toma o lugar
O objetivo maior do biopoder é produzir essa separação
do da luta das raças, eu acho que nasce o racismo, ou que
permanente entre o não-homem e o homem; não um po-
está se operando a conversão da contra-história em um
der que “faz viver” ou “faz morrer”, mas “faz sobreviver”,
racismo biológico”122.
enquanto uma espécie de terceiro estado da biopolítica
Esse poder sobre a vida e sobre a morte de que
inaugurado por Auschwitz: “Nem a vida nem a morte,
fala Foucault é retomado por Agamben em O que resta de
Auschwitz para também situá-lo no contexto do “racismo Michel. Em defesa da sociedade. Trad.: Maria Ermantina
de Estado”. Para Agamben, as categorias “fazer viver” e Galvão. São Paulo: M. Fontes, 1999. p. 304.
124
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arqui-
“deixar morrer”, com que Foucault interpreta a mudan-
vo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino J. Ass-
ça dos mecanismos de poder de uma concepção clássica mann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 89.
para a forma moderna, passam por um processo de ab-
125
Sobre esse ponto, Foucault esclarece: “É aí, creio eu, que
intervém o racismo. Não quero de modo algum dizer que
solutização, que coloca no debate um aparente paradoxo, o racismo foi inventado nessa época. Ele existia há muito
que é o mesmo lançado pelo pensador francês123: “Como tempo. Mas eu acho que funcionava de outro modo”. Cf.:
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
mas a produção de uma sobrevivência modulável virtual- despeito da obra deste último retomar várias das ideias
mente infinita constitui a tarefa decisiva do biopoder do desenvolvidas por aquele.
nosso tempo”129. Seguindo Foucault e Agamben, portan- De toda sorte, apresentado o percurso foucaultia-
to, é possível dizer que o racismo é o que permite matar no, a mimese acadêmica nos levaria a um mesmo lugar:
sem que ocorra qualquer punição, é a condição de aceita- transpor para o momento presente as categorias do au-
ção da matança, ou antes, a condição de possibilidade da tor. Todavia, dois elementos chamam a atenção. A teoria
vida “matável e insacrificável” do homo sacer130. da soberania jurídica serviu para explicar o conceito de
Embora racismo e biopolítica sejam articulados poder das teorias penais e também das teorias sobre a es-
por Foucault e por Agamben como faces de um mesmo cravidão. O poder encontra-se na possibilidade de um su-
fenômeno, tais conceitos ainda são pensados sob bases jeito obrigar outro sujeito a fazer, ou deixar de fazer algo,
histórico-filosóficas insuficientes. Ao delimitar o racismo em virtude do exercício da força física, mediante, quase
enquanto “racismo de Estado”, ambos acabam por limitar sempre, de uma superioridade de força física ou de um
tal fenômeno ao experimentado pela Europa no século uso de um instrumento. Assim, o lado de fora, o lado da
XX. O conceito de “racismo” tanto para um quanto para o liberdade, estaria na ausência dessa coação. Submeter-se
outro é insuficiente por se mostrar incapaz de pensar des- à força é ceder sua liberdade. Desse modo, a submissão
de a Conquista. E “Conquista” entendida não apenas en- do escravo repousa no fato de que ele é a presa de guer-
quanto evento histórico passado, mas, sobretudo, como ra, e o domínio sobre seu ser dependeria da presença da
“ordem conceitual”131 inaugurada a partir da tomada de espada sobre sua cabeça. Rousseau, em O contrato social
terra. Categorias como “racismo”, “biopolítica” e “estado ou Princípios do Direito Político133, atribui a Grotius tal
de exceção” precisam ser articuladas tendo como hori- concepção da escravidão: para este último a guerra estava
zonte a dominação colonial. O próprio vínculo entre o na origem do pretenso “direito de escravidão”134. Uma vez
“estado de exceção” e “conquista”, desenvolvido por um
autor como Carl Schmitt132, é omitido por Agamben, a século XVI com o Nomos da Conquista, Carl Schmitt
faz menção a dois “espaços de liberdade”: “O primeiro é
a América, enquanto solo a ser apropriado; um ‘espaço
129
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arqui- ilimitado de terra livre’, ou antes, ‘Land der Freiheit’, uma
vo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino J. Ass- terra da liberdade. O segundo, por sua vez, corresponde ao
mann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 155. mar, que vai compor um binômio relevante para a manei-
130
A vida “matável e insacrificável” do homo sacer é a fórmula ra com que Schmitt compreende a organização do espaço:
empregada por Agamben para definir o conceito de “vida terra firme, enquanto propriamente território estatal, e
nua”. Sobre isso, cf.: AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder mar livre”. Assim: COSTA, Pedro Henrique Argolo. Entre
soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Ho- hidra e leviatã: o nomos da terra de Carl Schmitt e o pa-
rizonte: UFMG, 2010. p. 16. O “homo sacer” é uma figura radoxo da história universal. 2016. TCC (Monografia em
do direito arcaico romano retomada por Agamben por Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2015. p. 24.
representar o primeiro momento em que a ideia de sacra- A relação entre esses “espaços de liberdade” e o conceito
lidade se aproxima da vida humana enquanto tal. Assim: de “estado de exceção” é próxima ao ponto de Schmitt tra-
AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida tar como semelhantes a “Martial Law” inglesa e “e a ideia
nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, de um espaço delimitado, livre e vazio, que se apresenta
2010. p. 74. A “vida nua” do homem sacro marca justa- na produção dos territórios ‘livres’ à época da Conquista.
mente o ponto de indistinção abordado: “Nem bios polí- Noção essa que integra também o conceito de ‘campo’ que
tico nem zoé natural, a vida sacra é a zona de indistinção Agamben deseja propor”. Sobre isso, cf.: COSTA, Pedro
na qual, implicando-se e excluindo-se um ao outro, estes Henrique Argolo. Entre hidra e leviatã: o nomos da terra
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
se constituem mutuamente”. Cf.: AGAMBEN, G. Homo de Carl Schmitt e o paradoxo da história universal. 2016.
Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique TCC (Monografia em Direito) – Universidade de Brasí-
Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 91. lia, Brasília, 2015. p. 49. De igual modo, aproximasse das
131
Pedro Argolo, em monografia intitulada “Entre Hidra e explicações de Hanna Arendt sobre o nascimento do ra-
Leviatã: o Nomos da Terra de Carl Schmitt e o paradoxo cismo. Cf.: ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo.
da história universal”, retomando o conceito de “Nomos da Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras,
Terra” de Carl Schmitt, fala em um “Nomos da Conquista” 2012.
para mostrar de que maneira a “aparição do Novo Mundo” 133
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do
atuou “[...] na reorganização do espaço e de todo um sis- direito político. Trad: Antonio de Pádua Danesi. São Pau-
tema de pensamento a partir do século XVI”. Cf.: COSTA, lo: M. Fontes, 1996. p. 13 e ss.
Pedro Henrique Argolo. Entre hidra e leviatã: o nomos da 134
Para Rousseau, entretanto, havia uma incompatibilidade
terra de Carl Schmitt e o paradoxo da história universal. radical entre direito e escravidão, desenvolvida pelo au-
2016. TCC (Monografia em Direito) – Universidade de tor no “capítulo IV” da “Parte I” do citado livro: “seja qual
Brasília, Brasília, 2015. p. 12. for o lado por que se considerem as coisas, o direito de
20 132
Ao comentar a nova ordenação do espaço surgida no escravizar é nulo, não somente porque é ilegítimo, mas
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
que o vencedor teria o direito de matar o vencido, aquele O pano de fundo implícito da visão da escravidão
poderia “resgatar sua vida” em troca de sua liberdade: a no pensamento hegemônico e contra-hegemônico de
escravidão resultaria, portanto, desse pretenso direito de tradição hegeliana identifica a relação senhor escravo na
matar garantido pelo estado de guerra. violência pura, ocultando até mesmo a dimensão de con-
Já um autor como Hegel, por sua vez, malgrado dicionamento da subjetividade do senhor encontrada em
sua construção sobre a dimensão intersubjetiva do reco- Hegel. A escravidão é representada, no mais das vezes,
nhecimento, ao afirmar que entre o par “senhor-escravo” na fórmula marxista da coação direta, pela oposição clás-
haveria uma luta de vida e de morte, faz repousar sobre a sica do iluminismo entre coação (opressão) e consenso
relação individual “senhor-escravo”, ou seja, na coação de (liberdade) e para qual parece existir somente uma outra
um sobre outro, a essência da escravidão. A escravidão, alternativa, a imagem da “escravidão contrato cotidiano”
portanto, não aparece nessas perspectiva numa dimensão que tem sido erguida pelo revisionismo histórico para
social em que a essência é a administração da vida e da fazer da escravidão um palco de curiosidades ao gosto
morte de forma coletiva. Reforça tal interpretação a pró- das elites brancas coloniais137. Muito embora herdeiros
pria diferença de tratamento dado por Hegel ao problema da crítica à noção de sujeito e da liberdade supostamente
do reconhecimento na Fenomenologia e a apresentada existente no consenso, Michel Foucault e Agamben, ao
tanto na Filosofia do Espírito (1805), quanto na Enciclo- darem as costas para a complexidade do escravismo, acei-
pédia (1830). Nestes últimos trabalhos, como esclarece tam uma visão clássica da submissão pela coação, pura,
Vladimir Safatle na aula 14/30 de seu Curso Integral – A direta, e porque não dizer, simples. Acreditam e repro-
fenomenologia do Espírito, o reconhecimento é tratado a duzem momentos geracionais das estratégias de poder
partir dos conceitos de crime, bens, lei e constituição135. na Modernidade que estão distantes das novas narrativas
Na Fenomenologia, ao contrário, Hegel está envolvido na contra-hegemônicas, produzidas pela crítica pós-colonial
questão da universalidade, em que os problemas políticos e do pensamento negro. Falta-lhes, portanto, a imagem
não desaparecem, mas surgem reconectados pelas “figu- da escravidão como processo histórico, momento gera-
ras da consciência”136. cional da burocracia e do mercado, espaço de criação e
experimentação das formas modernas de domínio138.
porque absurdo e sem significação. As palavras escravidão
e direito são contraditórias; excluem-se mutuamente”. Cf.:
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios to fundador dos processos de interação social” SAFATLE,
do direito político. Trad: Antonio de Pádua Danesi. São Vladimir. Curso integral: A Fenomenologia do Espírito,
Paulo: M. Fontes, 1996. p. 18. Susan Buck-Morss, por sua de Hegel. Brasil, 2007. Disponível em: <https://www.aca-
vez, a partir do filósofo catalão Louis Sala-Molins, critica demia.edu/5857053/Curso_Integral_-_A_Fenomenolo-
a total omissão de Rousseau em relação ao Code Noir e gia_do_Esp%C3%ADrito_de_Hegel_2007_>. Acesso em
aos “milhões de escravos realmente existentes sob o jugo 05 nov. 2016. p. 05.
de senhores europeus”. Cf.: BUCK-MORSS, Susan. He- 137
Jacob Gorender menciona a mudança operada pelo revi-
gel, Haiti, and universal history. Pitssburgh: University of sionismo que passa a ressaltar o escravo como “ser autôno-
Pitssburgh Press, 2009. p. 136. mo”, agente dotado de vontade própria, como um recurso
135
SAFATLE, Vladimir. Curso integral: A Fenomenologia do propriamente ideológico. Assim explica: “Mas, se a histo-
Espírito, de Hegel. Brasil, 2007. Disponível em: <https:// riografia brasileira pretensamente nova quis recuperar a
www.academia.edu/5857053/Curso_Integral_-_A_Fe- subjetividade autônoma do escravo, não o fez para desta-
nomenologia_do_Esp%C3%ADrito_de_Hegel_2007_>. car as reações anti-sistêmicas , como os levantes, quilom-
Acesso em: 05 nov. 2016. p. 06. bos, atentados e fugas. Ao contrário, subiram ao primeiro
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
136
Não por acaso, a “dialética do Senhor e do Escravo” apa- plano as estratégias (sic) cotidianas e suaves de acomoda-
rece na parte intitulada “Consciência-de-si” da Fenome- ção do escravo ao sistema escravocrata. Recuperou-se a
nologia. Ao final do §189, Hegel, ao se referir ao Senhor subjetividade do escravo para fazê-lo agente voluntário da
e ao Escravo, diz que “[...] os dois momentos são como reconciliação com a escravidão”. Cf.: GORENDER, Jacob.
duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. p. 20.
independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, 138
A relação entre a gestação da “raça” e da “burocracia” em
a consciência dependente para a qual a essência é a vida, meio ao processo de dominação colonial é desenvolvida
ou um ser para o Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo”. por Hanna Arendt em Origens do Totalitarismo, que os
Cf.: HEGEL Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do apresenta como “Dois novos mecanismos de organização
espírito. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. p. 147. Safatle cha- política e de domínio dos povos estrangeiros”. E continua:
ma a atenção para a ambiguidade desse trecho: o “como “Sem a raça para substituir a nação, a corrida para a África
se” hegeliano permite interpretar Senhor e Escravo tanto e a febre dos investimentos poderiam ter -se reduzido —
como a exteriorização de uma divisão interna da cons- para usar a expressão de Joseph Conrad — à desnorteada
ciência, quanto “o resultado de uma confrontação entre ‘dança da morte e do comércio’ das corridas do ouro. Sem
21
duas consciências-de-si independentes em um movimen- a burocracia para substituir o governo, a possessão britâ-
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
Quando se consideram períodos históricos mais penal sobre indivíduos pertencentes a determinados gru-
longos e outras “margens” além dos estreitos limites do pos raciais sobre os quais pesa o estigma da inferioridade.
Estado Nacional dos países centrais, percebe-se que as Logo, indica uma forma de discriminação. Nesse sentido
categorias compreensivas ali produzidas são mais do que (fraco), a racialização é apenas um conceito subsidiário
meramente insuficientes. Elas não padecem apenas de das ideias de seletividade e vulnerabilidade que conhe-
um vício de parcialidade. Não dão apenas visões particu- cemos139. Pode indicar o aumento da seletividade racista
lares alçadas à condição de universais. São parciais por- de um sistema penal ou a improvável transformação de
que não foram capazes de estabelecer relações com outros sistemas penais “igualitários” do ponto de vista racial em
particulares constitutivos de sua definição. Não se pode sistemas penais mais seletivos do ponto de vista dos mar-
afirmar que há uma história europeia que desconsiderou cadores raciais. 140
a história dos povos do “resto do mundo”. O antídoto não Todavia, numa perspectiva mais ampla (com-
pode ser a soma de duas parcialidades, pois não há histó- preensiva), a racialização apresenta um modo de ser de
ria europeia sem se fazer a história darelação constitutiva um grupo de sistema penais ocidentais, ou seja, indica a
dessa região com outras regiões do mundo. O “resto do forma como sistemas penais foram historicamente con-
mundo” está dentro da “Europa” e vice-versa. cebidos como “reguladores” e constituidores das “dife-
O mesmo raciocínio vale para grupos sociais que renças raciais”. Esse segundo sentido, capaz de subver-
tiveram sua memória normatizada pela história do Esta- ter um pouco as relações entre raça e sistema penal, é o
do Nacional. Não basta buscar, agora, uma história dos quebra-cabeça que poderia ser desmontado a partir de
excluídos. É preciso inscrever a história do excluídos da pesquisas que considerassem a hipótese colonial. Neste
historiografia oficial nas lutas sociais ao longo da histó- caso, a racialização representa a consciência progressi-
ria e das estratégias de apagamento da memória coletiva. va dos atores sociais dos vínculos genéticos da violência
Incluí-los como negatividade e como positividade dessa institucional com a violência racista. E, especialmente,
história do poder. indica o modo como o sistema penal comporia as engre-
É esse pensamento orientado pelo reconhecimen- nagens de um modelo social que produz e reproduz a raça.
to da importância da Conquista que nos possibilita ir O sistema penal não apenas incide sobre a raça como algo
além da periodização proposta tanto por Foucault quanto que lhe é externo, mas integra um conjunto de fenômenos
por Agamben na análise da experimentação biopolítica vinculados à Modernidade em que raça e sistema penal se
do poder e do racismo e nos permite localizar, por exem- constituem, ou ainda, de fenômenos dispostos num contí-
plo, já no navio negreiro essa nova organização dos meca- nuo de construção social.
nismos de poder de que falam os autores. Não é possível Todavia, a compreensão dessa segunda perspecti-
falar sobre biopolítica sem falar de escravidão, ou antes, é va pressupõe reconhecer que as explicações que se valem
necessário compreender o navio negreiro, a plantantion, de expressões como raça e racismo, infelizmente, estão
a cidade escrava etc. como espaços de experimentação da marcadas por alguns problemas iniciais.
vida pelo poder. Predomina, em diversos matizes, o cientificis-
temas penais. Raça, dispositivo, biopoder e teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011;
poder punitivo DUARTE, Evandro C. Piza; ZACKSESZKI. Sociologia dos
sistemas penais: controle social, conceitos fundamentais
e características. Publicações da Escola da AGU: direito
A expressão racialização do sistema penal é, por constitucional e biopolítica – Escola da Advocacia-Geral
óbvio, derivada da palavra raça. Ela indica, num sentido da União Ministro Victor Nunes Leal. Brasília, ano 4, n.
17, abr. 2012.
restrito (descritivo), a seletividade preferencial do sistema 140
Não negamos o caráter produtivo de pesquisas que estão
situadas no primeiro sentido. Aliás, elas são uteis para
contextualizar os delineamentos da hipótese que propo-
nica da Índia poderia ter sido abandonada à temeridade mos. Todavia, elas representam aquilo que, em outro con-
dos ‘infratores da lei na Índia’ (Burke), sem que isso alte- texto, Alessandro Baratta chamou de “teorias de médio
rasse o clima político de toda uma época”. Cf.: ARENDT, alcance”. Cf.: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica
Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito
22
São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 215. penal. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
mo positivista como teoria e como “ethos intelectual”. ceitos e a tradição hegemônica que separa o “ideal” do
Ele impõe a redução da complexidade do social a par- que pode ser considerado “real” convergem para a con-
tir da linguagem e projeta nesse reducionismo a essência clusão de que o racismo é, em essência um “erro” moral,
da compreensão dos fenômenos. O “social” deveria ser e, especialmente algo que mora “nos corações impuros”
discernido e separado, para ser testado, assim como são que podem ser “purificados” pelo entendimento (edu-
testados os fenômenos físicos. Daí a necessidade de pro- cação), pelo fim das relações econômicas de dominação
duzir um refinamento da linguagem, separar os “objetos” (revolução) ou pela expiação decorrente da pena (puni-
do “real” para, depois, reuni-los num “quebra-cabeça” ção). Como afirma Lawrence Lengbeyer: “O “coração” de
explicativo que, quase sempre, repete os pressupostos do alguém é puro em sua essência, ou não é - neste último
“marco-teórico”. Na forma de separar ou de segregar os caso, a pessoa é muito racista, um pouco racista ou algo
objetos a partir dos conceitos todas as etapas posteriores entre esses dois extremos. O fator decisivo é seu sistema
já estão pressupostas. É essa operação que, literalmente, de crenças”142. Logo, a ciência retiraria o véu da ignorân-
transformará o “fato” em seu “destino”. As tentativas de cia, a educação seria a cura, a revolução de classes finda-
compreender dimensões ideológicas no conhecimento ria o erro burguês, a religião cristã instauraria a irman-
naufragam quando o problema ideológico é posto a pos- dade universal, o direito moderno proibiria a distinção
teriori à aceitação desses artefatos do pensamento que se- e instauraria a igualdade formal etc. Todavia, pouco se
para a epiderme do corpo, a palavra do sujeito, o cultural fala sobre a natureza dessa crença e do porque e como ela
do material etc. é tão persistente a argumentos racionais ou como ele se
Nesse contexto, há uma tradição acadêmica hege- situa em práticas tão poucos elaboradas discursivamente
mônica que sobrevive no dualismo que separa discurso e como o medo.
real e que intenta colocar a raça como “mero” fenômeno Numa síntese apertada, é indispensável afastar al-
ideológico. Logo, o “real” seria a escravidão e o “ideoló- gumas dessas percepções:
gico” (secundário) seria o racismo; ou o “real” seriam as Em primeiro lugar, a politização da palavra raça
“relações de classe” e “ideológico” (secundário) seria o e a insurgência dos racializados produziu uma transfor-
racismo; ou o “real” seria “a pobreza” e o “racismo” ape- mação das palavras raça e racismo. Até os ano de 1930,
nas uma ilusão do agressor ou da vítima. Esse dualismo o termo racismo era identificado com a doutrina sobre
supõe, quase sempre, que o racismo é fruto de uma ideia as raças, ou algo semelhante como o conjunto de ideias
nascida especialmente entre os “homens de ciência” em sobre a eugenia143. Todavia, passou a significar, após
fins do século XVIII, que o racismo foi um “erro cien- a Segunda Guerra Mundial, uma prática moralmente
tífico” ou o “erro de uma época” já superada por novos condenável, ou seja, o oposto do que pretendia. E, espe-
conhecimentos e foi utilizado de forma perversa por in- cialmente, foi reconstruída com novos conteúdos para
teresses variados (escravistas, classe dominante, agressor explicitar as práticas de discriminação e os processos de
etc.) ou um “erro do olhar” inerente aos processos psí- subalternização de determinados grupos sociais. Desde
quicos de indivíduos e culturas sobre a diversidade do então, o fenômeno racismo, colocado ao lado de palavras
mundo situado fora de seu conhecimento anterior. Nessa como preconceito, discriminação, segregação etc. tem
tradição, há pouco espaço para pensar na materialidade sido identificado, nesse sentido, como algo mais intenso
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
de determinadas práticas sociais que também são discur- que o preconceito pois envolve relações de poder conso-
sos.141 lidadas em determinadas sociedades. A viragem no uso
De diferentes modos, a atual cartografia dos con- da palavra tem sido atribuída ao debate sobre o genocí-
dio dos “judeus” no holocausto, sobretudo em razão das
141
Esses dualismos dizem respeito também ao protagonismo consequências práticas atribuídas à ideias sobre as raças
social, pois como afirmou Judith Butler em contexto se-
melhante: “En realidad, el resurgimiento extemporáneo de
esta distinción favorece una táctica que aspira a identificar 142
LENGBEYER, Lawrence A. Racismo e corações impuros.
a los nuevos movimientos sociales con lo meramente cul- In: LEVINE, Michael P.; PATAKI, Tamas (Org.). Racismo
tural, y lo cultural con lo derivado y secundario, enarbo- em mente. São Paulo: Madras, 2005. p. 179-202.
lando en este proceso un materialismo anacrónico como 143
THOMAS, Laurence. Igualdade invertida: uma resposta
estandarte de una nueva ortodoxia”. Cf.: BUTLER, Judith. ao pensamento kantiano. In: LEVINE, Michael P.; PA-
El marxismo y lo meramente cultural. New Left Review, TAKI, Tamas (Org.). Racismo em mente. São Paulo: Ma-
23
Madrid, n. 2, p. 109-121, May-June, 2000. p. 109-121. dras, 2005.
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
defendidas pelo nazismo. O uso do racismo no contexto a escravidão, mas a barbárie contida na narrativa sobre
interno europeu contribuiu para sua deslegitimação. Po- uma suposta identidade da civilização ocidental. Ou seja,
rém, a mudança paradigmática foi primeiro externa ao o racismo, atribuindo aos subordinados a culpa pelo seu
campo científico e foi capitaneada anteriormente pelos destino, oculta a degradação moral do Ocidente marcado
intelectuais afro-americanos, pelos movimentos por di- pela barbárie que o constitui como processo civilizatório
reitos civis e pelas guerras de libertação africana. fundado na supremacia de técnicas e discursos para pro-
O termo racismo, assim como tantos outros, é duzir a morte humana144. Nesse contexto, o comporta-
hoje um espaço de disputa por significados. Há uma ten- mento mais comum provocado pelo racismo não é o ódio
tativa de reduzi-lo a noções legais, quer do sistema jurídi- individual, mas o desprezo coletivo, ou seja, a indiferença
co interno ou internacional. Todavia, seu significado so- moral diante da voz do “outro”, considerado como meio,
ciológico transborda esses limites. Neste caso, há diversas coisa, paisagem, natureza, animal, inferior, vivente matá-
tentativas de desacoplar o termo do contexto de seu sur- vel, mas jamais um fim em si mesmo.
gimento, ou seja, das disputas empreendidas pelos povos O “processo de racialização” não se resume a um
subalternizados pelo “Ocidente”, generalizando o seu uso ato de nomeação do “outro” ou do uso da palavra raça
para outras formas de assujeitamento. Entretanto, tal op- num “novo sentido”. Muito embora o conteúdo das “cren-
ção oculta a profunda proximidades entre os “processos ças” racistas, presentes nas ofensas cotidianas ou nos
de racialização” de negros, indígenas e judeus, bem como teóricos racistas, revelem muito do que é a raça, não é
o intercâmbio de discursos. Assim, por exemplo, no dis- a “representação” sobre o Outro que constitui relações
curso nazista o judeu aparece como “algo pior que um racistas. Essas crenças produzem um reenvio continuo à
negro”. A teoria nazista alemã não pode ser compreendi- natureza, falam de uma essencialização a partir do cor-
da sem o conhecimento da influência das teorias sobre as po. Apresentam no plano discursivo uma biologização do
raças e a eugenia no contexto norte-americano, as quais humano. Porém, essa biologização também é uma prática
tinham como foco a defesa da inferioridades dos negros. social não discursiva. Ela está presente na morte massifi-
O termo racismo não pode ser reduzido às con- cada das mães negras nos hospitais, no olhar de suspeição
cepções cientificas sobre as raças que foram desenvolvi- do segurança privado, na porta dos fundos das empre-
das a partir da segunda metade do XVIII e ao longo do gadas domésticas, nos homicídios das polícias urbanas,
século XIX. O racismo, antes da ciência, era constitutivo na proibição da festa no bairro, no toque de recolher etc.
da percepção do homem moderno ocidental. Sua origem O termo racismo pode servir para nominar o pro-
mais provável está na criação de relações de ordem práti- cesso de redução do humano ou de sociedades humanas
ca instauradas no curso do colonialismo. Trata-se de um à condição de viventes ou os mecanismos de subjetiva-
componente da subjetivação moderna, não de um mero ção a partir do corpo daqueles que são agenciados como
“desvio”. Ele define a condição humana e a humanidade pertencentes a uma coletividade de membros suposta-
do humanismo ocidental. mente semelhantes, identificados mas privados de uma
O racismo estrutura-se na separação entre mundo identidade individual ou coletiva insurgentes. Porém, de
da cultura e natureza, atribuindo ao outro a permanência modos distintos, a racialização não atinge apenas o cor-
no lado natural da fronteira, onde ao mesmo tempo vive po dos racializados como subalternizados, mas os corpos
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
o incontrolável por forças ocultas e o controlável pelo co- nas sociedades ocidentais, regulando e distribuindo os
nhecimento. Sob o ponto de vista ideológico, representa a modos de se habitar um corpo, sentir-se adequado, sofrer
inversão que oculta o retrocesso do processo civilizatório e ter prazer com este corpo, narrar-se como uma conti-
europeu quando ele se degenera em práticas de domina- nuidade biológica (a família, os antepassados, a origem
ção no colonialismo. Na medida em que o colonialismo etc.). Nesse sentido, não apenas “negros” e “indígenas” fo-
afasta o homem europeu do mundo da cultura, reduzin- ram racializados enquanto os demais grupos não teriam
do-o a comportamentos voltados à exploração máxima sido objeto de práticas racializadoras. A branquidade é
de seus semelhantes, a cultura europeia tende a projetar também um modo de subjetivação do corpo, de sentir
nos povos não europeus as marcas que caracterizam a
sua própria degradação, sua animalidade, sua ferocida-
144
MBEMBE, Achille. Necropolítica: traversées, diasporas,
modernités. Raisons Politiques, Paris, n. 21, p. 29-60, 2006.
24 de, seu canibalismo. O que se oculta no racismo não é Presses de Sciences Po. Editorial Melusina, S. L., 2011.
A Hipótese Colonial, um diálogo com Michel Foucault: a modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre racismo e sistema penal
com sua presença biológica. O racismo, como teoria ra- cidade a raça pode ser compreende. De fato, a raça como
cial, foi pensado em hierarquias internas ao grupo racial teoria transhistórica é uma categoria do racismo presente
e externas em relação ao demais grupos. nos discursos sobre as civilizações. A propósito, recente-
A raça, quando não politizada pela voz e pelos mente, Giorgio Agamben, ao investigar o pensamento de
corpos dos subalternizados, tende a produzir a subalter- Michel Foucault, foi capaz de demonstrar a importância
nidade a partir do corpo e constituir-se também numa do conceito de “dispositivo” para a ruptura epistemológi-
ofensiva contra as formas de corporeidade não adequadas ca empreendida pelas investigações desse autor:
à produção. Os processos de racialização ora negaram, Se “positividade” é o nome que, segundo
por exemplo, as crenças religiosas “bárbaras” porque ina- Hyppolite, o jovem Hegel da ao elemento histó-
rico, com toda a sua carga de regras, ritos e ins-
dequadas à produção nos engenhos, ora aceitaram essas tituições impostas aos indivíduos por um poder
crenças para incentivar os conflitos entre grupos subal- externo, mas que se torna, por assim dizer, in-
teriorizada nos sistemas das crenças e dos sen-
ternos. A disposição do corpo era, portanto, percebida a
timentos, então Foucault, tomando emprestado
partir de sua utilidade para o sistema produtivo e sua re- este termo (que se tornara mais tarde “disposi-
produção.De igual modo, desde os primeiros escritos oci- tivo”) toma posição em relação a um problema
decisivo, que é também o seu problema mais
dentais a raça está sexualizada ou diferenciada em termos próprio: a relação entre os indivíduos como se-
de categorias sexuais. As aptidões para a reprodução e a res viventes e a elemento hist6rico, entendendo
beleza dos corpos “femininos” surgem como uma parte com este termo a conjunto das instituições, dos
processos de subjetivação e das regras em que
decisiva do discurso. A racialização atingiu primeiramen- se concretizam as relações de poder. O objetivo
te os subalternizados como mulheres, jovens e crianças, último de Foucault não é, porém, como em He-
gel, aquele de reconciliar as dois elementos. E
grupos vencidos e submetidos a formas tradicionais de
nem mesmo a de enfatizar a conflito entre estes.
escravidão. A racialização é, desde sua gênese, também Trata-se para ele antes de investigar as modos
um problema de gênero. Esse último aspecto aponta para concretos em que as positividades (ou os dispo-
sitivos) atuam nas relações, nos mecanismos e
outro aspecto. O racismo não pode ser identificado ape- nos “jogos” de poder145.
nas como um modo de matar, pois é antes um modo de O conceito permearia a obra de Michel Foucault e
transformar vivos em viventes (redução biológica) e ge- se situaria para além daquilo que foi investigado, consti-
renciar suas forças, sua vitalidade. Vincula-se à reprodu- tuindo um modo de empreender a pesquisa que poderia
ção em sentido amplo. Portanto, a morte física compõe ser utilizado em outros contextos. O uso foucaultiano te-
o cálculo sistemático, mas não é a essência dessa prática. ria apreendido as três acepções da expressão dispositivo
Nesse caso, é necessário fazer a distinção entre morte do encontradas no dicionário: a jurídica - a parte da sentença
“eu”, individual ou coletivo, e a condição de vivente. O ra- (ou de uma lei) que decide e dispõe; a tecnológica - a ma-
cismo produz sempre, em arranjos distintos, a condição neira pela qual são dispostas as peças de uma máquina, e,
de vivente. por extensão a própria máquina; a militar - o conjunto de
Malgrado esses pontos acima tratarem apenas su- meios (recursos) dispostos conforme um plano. Ou seja,
perficialmente da necessidade de refletir sobre as catego- o uso da língua teria fragmentado aquilo que uma origem
rias utilizadas para pensar a raça e o racismo, eles apon- comum e o próprio Michel Foucault mostravam conexos.
tam para a ruptura do dualismo descritivo. Isso porque, Ao usar a expressão dispositivo, ele teria tratado de se re-
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como já se afirmou, antes de ser uma ideologia científica, ferir a “uma serie de praticas e de mecanismos (ao mesmo
a raça foi uma práxis do cotidiano; antes de ser um em- tempo linguísticos e não linguísticos, jurídicos, técnicos e
preendimento do Estado-Nação, ela foi um empreendi- militares) com ao objetivo de fazer frente a uma urgência
mento experimental e governada pelas forças do merca- e de obter um efeito.”
do; antes da palavra raça ser “inventada” pela ciência, ela Em outras palavras, Michel Foucault reunia, ao
era um artefato da vida social e do exercício do poder. invés de dividir, pois a multiplicidade também poderia
Os problemas apontados por esse dualismo e a propor a construção de dimensões daquilo que se inves-
síntese inicial dos argumentos podem ser organizados a
partir de outras categorias para pensar o fenômeno do ra-
cismo, especialmente aquelas derivadas do debate sobre a
145
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros
ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Nonesko. Chapecó: Ar-
condição histórica da humanidade. Somente na histori- 25
gos, 2009. p. 32-33.
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
tigava (a ciência, a punição, a sexualidade etc.). De fato, A ideia e a prática da “raça” (no sentido do ra-
segundo Giorgio Agamben, a noção de dispositivo pode cismo) dependeu sempre da segregação espacial pro-
ser resumida a partir de três pontos: porcionada por sistemas punitivos. As sociedades oci-
a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e dentais, nas quais o problema do racismo é persistente,
não-linguístico, que inclui virtualmente qual- constituíram e reconstituíram a identidade negativa das
quer coisa no mesmo título: discursos, institui-
ções, edifícios, leis, medidas de polícia, proposi- raças pela punição. Ou seja, forjaram valores sociais cujo
ções filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é cerne é identificar sem permitir uma identidade. Assim,
a rede que se estabelece entre esses elementos. b.
determinados grupos humanos foram unificados num
O dispositivo tem sempre uma função estratégi-
ca concreta e se inscreve sempre numa relação destino comum (o colonialismo, o imperialismo ou o
de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de neoliberalismo), bem como incluídos numa comunidade
relações de poder e de relações de saber146.
de vítimas reais ou potenciais da violência institucional
Enfim, três questões centrais podem ser com-
dos sistemas punitivos, mas, ao mesmo tempo, eles foram
preendidas a partir dessa perspectiva. Primeiro, ela pro-
proibidos de fazer acordos mediante processos de comu-
põe uma alternativa entre racismo como práxis e como
nicação transversais. Os sistemas penais serviram para
episteme, pensando-se a Conquista, o genocídio indígena
demarcar o início e o fim da identidade racial moderna,
e africano, a escravidão etc. como práxis constitutivas,
criando a proibição de coalizão entre todos os excluí-
mesmo antes do surgimento do signo “raça”. Segundo,
dos. Eles foram, ainda, idealizados ou construídos como
a raça não precisa ter um “referente material” (na eco-
mecanismos de defesa da civilização ocidental contra os
nomia ou na classe social) para ser compreensível. Sua
processos civilizatórios desencadeados por outros con-
compreensão se dá na historicidade, na contingência da
tingentes populacionais.
formação da Modernidade. No limite, a raça constitui-se
Porém, o mais essencial é que na escravidão puni-
a partir de funções estratégicas concretas, relacionadas às
tiva, nas práticas penais, na escravização e na racialização
insurgências e às subalternidades na Modernidade. Ter-
punitiva busca-se sempre a constituição “dos sujeitos”,
ceiro, permite compreender que a raça e a punição cons-
como vida nua ou como viventes148. O racismo científi-
tituem a mesma “rede” de práticas e significados.
co constitui-se a partir dessa redução ao biológico capaz
Ao invés da separação de duas categorias (raça e
de se propor o empreendimento (sempre frustrado, mas
punição) sugere-se, portanto, que elas existem num con-
sempre atualizado) que pretendeu a separação das vozes,
tínuo de “mecanismos” e “jogos de poder”. O racismo é
da ações e das memórias em relação às forças corporais
um “modo de ser” de um grupo de sistema penais oci-
destinadas à produção e aos corpos demarcados que po-
dentais, ou seja, identifica a forma como sistemas penais
deriam servir ao desejo do outro. Os povos originários
ocidentais foram historicamente concebidos como “cons-
das Américas e da Diáspora Africana são, de fato, o pro-
tituidores” e “reguladores” das “diferenças raciais”, forma-
tótipo em larga escala do homo saccer. Nascem quando
do por práticas, instituições e táticas. Ou seja, a racializa-
sociedades inteiras foram pensadas como vida nua, bio-
ção dos sistemas punitivos não é um evento pontual, mas
logia e geografia, população e território, espaço aberto,
o processo de constituição da categoria raça. Não poderia
“liberdade” de alguém sobre “algo”.
ter existido a construção negativa da raça sem sistema
Desse ponto de vista, dizer que o sistema penal é
penal, e não se pode compreender o sistema penal sem a
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A racialização dos sistemas penais ocorreu na história. A derem o racismo como elemento estrutural das práticas
historicidade, não a mera artificialidade do conceito vin- e discursos no país. O raciocínio não é novo – a aboli-
culada a uma mecânica social descrita na teoria social, é ção foi retardada no Brasil sob o fundamento de que a
que lhe confere uma possibilidade de compreensão. Tam- escravidão aqui era diferente. As “diferenças nacionais”
pouco há necessidade de se recorrer a uma concepção são, de fato, resultado de um longo processo histórico em
problemática de “luta entre raças”, essencialmente racista. que o medo da presença do “outro”, no espaço da política
O sistema penal representa o ponto de gravidade e do direito, produziu uma tradição acadêmica capaz de
que estabiliza sentidos sobre o ser negro no projeto co- negar uma memória coletiva de lutas sociais. Insistimos,
lonial da Modernidade. Sim, o racismo estrutura as es- porém, com a hipótese de que a ideia e a prática da “raça”
truturas repressivas no Brasil, mas não é só isso. Não é o organizam os lugares de exclusão e o controle social. No-
efeito inesperado dessas práticas, mas o principal efeito mear o racismo nas práticas de controle social não é criar
perseguido por essas instituições. Não é tampouco ape- o racismo onde não há, ao invés disso, é descumprir o
nas a repressão ao negro, como categoria externa. Aqui pacto da branquidade que consiste em silenciar as vozes
raça e punição se encontram numa simbiose em que a ra- negras149.
cialização é produzida pelo sistema penal e o sistema pe- A propósito, retornando a Agamben, até agora fa-
nal não pode operar uma renúncia à racialização. A culpa lamos de duas duas grandes classes, os seres viventes (ou
atribuída aos negros para sua escravização, a condição de as substancias) e os dispositivos. Porém, “entre os dois,
vida nua das práticas de repressão aos insurgentes à su- como terceiro, há os sujeitos”. “Chamo sujeito o que re-
bordinação, a tentativa de redução constante ao biológico sulta da relação e, por assim dizer, do corpo-a-corpo en-
e a expropriação coletiva de saberes etc. reproduzem-se tre os viventes e os dispositivos.”150. Nesse caso, o sujeito
de novos modos na negação da dignidade humana pelas não é apenas a subjetivação do poder, mas as inúmeras
diversas estratégias de controle social. contradições desse processo e, especialmente, seu cará-
A justificativa para a escravidão fazia referência à ter fragmentado, discursivo e reflexivo. Na perspectiva de
existência de uma falha moral decorrente de um peca- Judith Butler, cremos ser possível pensar a responsabili-
do natural. Os negros carregavam contra si as marcas de dade ética de um sujeito “cujas condições de surgimento
Cam. O escravo era escravo porque seu grupo de origem jamais poderão ser totalmente explicadas”151. Nessa pers-
havia pecado. A própria escravidão, na versão do Padre pectiva, abrem-se múltiplos caminhos, na perspectiva
Antônio Vieira, era um modo de purgar essa mancha. na qual escrevemos. Negar-se, no limite, à condição de
Quando Frantz Fanon escreveu “Les Damnées de la Ter- reprodução das dimensões do dispositivo que funda o
re”, rapidamente traduzido para “Os Condenados da Ter- racismo. O que implica em não validar estratégias de as-
ra”, algo se perdeu na tradução que remetia àquele senti- sujeitamento, especialmente em relação aos discursos. In-
do primeiro da danação intrínseca daqueles que nasciam sistir numa estratégia de profanação da “raça”. No sentido
negros. Nunca foram “condenados” por um tribunal, mas de “profanação” proposto por Agamben. O que implica
eram “danados” por serem negros, por sua biologia, e, por em reconhecer que a “raça” tem sido “profanada” desde
conta disso, conduzidos a tribunais. o principio pelos sujeitos submetidos a esse dispositivo.
Por fim, malgrado uma ampla produção teórica Profanar, nesse caso, é vivenciar no plano da política e
Universitas JUS, v. 27, n. 2, p. 1-31, 2016
sobre racismo no Brasil das últimas décadas, contra toda do direito, a partir daqueles que foram “racializados”, as
evidência e todas as vozes das vítimas que se levantam narrativas e agenciamentos contra os efeitos e as estraté-
contra seus agressores, há uma reorganização estrutural
da branquidade na academia brasileira. Além das dificul- 149
DUARTE, Evandro C. Do medo da diferença à igualdade
dades de reconhecimento enfrentadas por grupos excluí- como liberdade: as ações afirmativas para negros no ensi-
no superior e os procedimentos de identificação de seus
dos, sempre que se apresenta um discurso que denuncia o beneficiários. 2011. Tese (Doutorado) – Universidade de
racismo, intenta-se demarcar distinções “locais”, capazes Brasília, Brasília, 2011.
150
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros
de impedir ou dificultar a compreensão dessa importân-
ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Nonesko. Chapecó: Ar-
cia. A estratégia discursiva consiste em, ao se demarcar gos, 2009. p. 41.
uma diferença “nacional”, afastar a apropriação tanto de
151
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Crítica da violência
ética. Tradução Rogério Bettoni, Prefácio Vladimir Safat-
perspectivas brasileiras quanto estrangeiras que consi- 27
le. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Evandro Piza Duarte, Marcos Vinícius Lustosa Queiroz, Pedro Argolo Costa
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