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RELATÓRIO
E finalmente, recorre à história do país para entender como surgiu o “jagunço” – termo
utilizado como sinônimo de sertanejo –, centrando-se, assim, na formação do Norte brasileiro
e na figura do mulato.
Por sua vez, no que tange à canção 1965 (Duas tribos), essa enfatiza o período do regime
militar, no qual os militares apossaram-se indevidamente do poder vigente à época e cercearam
os direitos políticos de inúmeros brasileiros, dentre eles artistas, políticos e estudantes,
perseguindo-os brutalmente. Nesse contexto, portanto, o país dividiu-se em “duas tribos”, a
saber, a dos militares e a dos civis. É imperioso acentuar que no título da música há um recurso
poético, que avança um ano na História brasileira a fim de evitar a grafia do famigerado 1964.
Nos versos iniciais da canção, o autor relata uma possível abordagem indevida em que
foi submetido, aproximadamente nos anos de 1980. “Vou passar/ Quero ver/ Volta aqui/ Vem
você.” (RUSSO, 1989)
Posteriormente, evidencia-se uma imprecisão, uma dúvida suplantada na população,
tendo em vista que havia uma incongruência entre a perspectiva dos militares e a da população
– uma vez que a qualquer momento, um indivíduo poderia ser abordado e, até mesmo, preso
pelos militares, caso julgassem a circunstância pertinente. Contudo, indaga-se se esse aspecto
constatava-se em uma verdade, haja visto que a propaganda ufanista difundia o contrário.
“Como foi/ Nem sentiu/ Se era falso/ Ou fevereiro” (Ibidem)
De modo análogo, propagava-se a noção de paz estabelecida pelo regime militar, em
que haveria uma tranquilidade e tempo para a nação; “Temos paz/ Temos tempo” (Ibidem)
Outro aspecto, que pode-se observar na letra, consiste na experiência da tortura,
apresentada nos versos em que a brutalidade da ação sofrida pelo narrador é inteligentemente
contraposta pela ideia de normalidade; essa, sugerida pela citação da estação do ano, associada
às férias e ao lazer – além da lembrança de que o mesmo tipo de atrocidade poderia ter
acontecido aos seus familiares. “Cortaram meus braços/ Cortaram minhas mãos/ Cortaram
minhas pernas/ Num dia de verão/ (…) Podia ser meu pai/ Podia ser meu irmão”. (Ibidem)
Igualmente, é possível interpretar o fragmento mencionado da seguinte maneira:
primeiramente, o “cortar” no sentido denotativo, demonstrando, assim, a brutalidade do regime
militar – uma ocasião similar ocorreu no Chile, na ditadura militar de Pinochet, nos anos de
1970, em que cantor Victor Jara teve as suas mãos cortadas, impossibilitando-lhe de escrever
novamente contra o regime vigente. Ulteriormente, pode-se destacar o ‘cortar’ no sentido
conotativo, ou seja, com o propósito de limitar o cidadão ante as suas ações e o seu
comportamento no quotidiano, caracterizando-se, portanto, em uma ruptura física e intelectual.
Posteriormente, notabiliza-se também uma referência direta aos militares que, em uma
tentativa de inversão dos valores estabelecidos, promoviam a balbúrdia em detrimento ao seus
ideais de governo. “Quando querem transformar/ Dignidade em doença/ Quando querem
transformar/ Inteligência em traição/ Quando querem transformar/ Estupidez em recompensa/
Quando querem transformar/ Esperança em maldição.” (Ibidem)
É imprescindível ressaltar que, nos versos supracitados, os indivíduos sucumbiam às
investidas dos militares e, muitas vezes, divulgavam segredos com o objetivo de serem
recompensados.
A música também oferece uma interpretação no que tange à escolha de seu título, em
que o autor coloca-se do lado do bem, ou seja, do lado da “tribo do bem” — que pode ser
entendido como o lado opositor ao regime militar. “É o bem contra o mal/ E você de que lado
está? /Estou do lado do bem/ E você de que lado está? /Estou do lado do bem. /Com a luz e com
os anjos.” (Ibidem)
Outro enfoque que a letra proporciona está relacionado com o extermínio de militantes
de organizações de esquerda que empregavam a luta armada, enquanto o narrador lembra os
objetos lúdicos de sua infância – nesse ponto, poeticamente, o autor refere-se à realidade dos
jovens estudantes, que concentravam as fileiras do polo mais extremado da resistência à
ditadura: “Mataram um menino/ Tinha arma de verdade/ Tinha arma nenhuma/ Tinha arma de
brinquedo/ Eu tenho Autorama/ Eu tenho Hanna-Barbera/ Eu tenho Pêra, Uva e Macã/ Eu tenho
Guanabara/ E modelos Revell”. (Ibidem)
No entanto, também é possível interpretar essa “morte” no seu aspecto metafórico,
referindo-se, assim, à perda da inocência de um menino, da ‘morte da sua juventude’, dos seus
sonhos. E, de modo semelhante, no sentido de cercear o seu desenvolvimento como cidadão
livre, capaz de pensar e de refletir, sem que haja a intromissão do Estado e de suas medidas
manipuladoras.
Uma outra dimensão da ditadura salientada na letra diz respeito à propaganda política
ufanista, que amparava ideologicamente a repressão e buscava ocultá-la. “O Brasil é o país do
futuro (3x) /O Brasil é o país/ Em toda e qualquer situação/ Eu quero tudo pra cima/ Pra cima
(2x)” (Ibidem)
De maneira semelhante, o ufanismo – propagado pelas agências do governo que, em
alguns casos, dispunha de profissionais notadamente opositores ao regime –, tinha o objetivo
de conduzir a população à crença de que o regime militar seria a direção certa a ser seguida e
que as medidas governamentais adotadas garantiriam o progresso e desenvolvimento da nação.
Nesse sentido, conforme a escritora Heloísa Buarque de Hollanda (1980, p.90), o governo
enfatizava esse discurso, salientando:
Secção 3 – Encadeamento dos conceitos abordados na obra “Os sertões” e na canção “1965
(Duas tribos)” com o livro referencial “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”
No tocante ao livro utilizado como referência, a saber, Brasil: mito fundador e sociedade
autoritária, evidencia-se na obra aludida – Os sertões – uma congruência com primeiro trabalho
científico sobre o “caráter nacional brasileiro” nas respectivas obras de Silvio Romero,
notadamente, O caráter nacional e as origens do povo brasileiro (1881), e A História da
literatura brasileira (1888). Dessa maneira, a filósofa destaca, inicialmente, como os inúmeros
estereótipos produzidos pelo pensamento social da literatura positivista deturpam a
representação do Brasil para os próprios brasileiros.
Romero julga que a imigração, ao trazer povos num estágio mais avançado da
evolução, poderá ampliar a correção de tais defeitos – pobreza cultural, ausência de
unidade das tradições e das artes. (Ibidem, p.49)
Por sua vez, no que tange ao encadeamento dos conceitos no texto referencial em relação
à música 1965 (Duas tribos), observa-se, inicialmente, uma consonância com a periodização
proposta por Eric Hobsbawn, em seu estudo sobre a concepção histórica de Estado-Nação, em
que o historiador destaca o período designado de “questão nacional”, na qual a consciência
nacional é definida por um conjunto de lealdades políticas, legitimadas pelo autoritarismo
vigente – evidenciado durante o período do regime militar. (Ibidem, p.14)
Nesta perspectiva, conforme Marilena Chauí (2000, p.24), é necessário distinguir o
lugar da nação na elaborações político-ideológicas, do período denominado de “questão
nacional”, no qual a autora destaca o segundo período. Esse contexto vai ao encontro do que
foi observado na música aludida, tendo em vista que os militares visavam legitimar a sua
autoridade, por meio da violência e da repressão explícita
No segundo período, porém, isto é, desde 1980 mais ou menos, nação e nacionalidade
se deslocam para o campo das representações já consolida das - que, portanto, não são
objeto de disputas e programas -, tendo a seu cargo diversas tarefas político-
ideológicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer mecanismos
para tolerar várias formas de violência e servir de parâmetro para aferir ou avaliar as
autodenominadas políticas de modernização do país. (CHAUÍ, 2000, p.24)
A ditadura, desde o golpe de Estado de 1964, deu a si mesma três tarefas: a integração
nacional (a consolidação da nação contra sua fragmentação e dispersão em interesses
regionais), a segurança nacional (contra o inimigo interno e externo, isto é, a ação
repressiva do Estado na luta de classes) e o desenvolvimento nacional (nos moldes
das nações democráticas ocidentais cristãs, isto é, capitalistas). (Ibidem, p.41-42)
Nesse sentido, com a difusão dessas ideias, por intermédio do sistema educacional,
especificamente através da disciplina de educação moral e cívica, o regime militar ratificava
essa representação da “questão nacional” interiorizada na população brasileira, mesmo quando
as condições da realidade divergiam-se dessa concepção. (Ibidem, p.42)
Referências Bibliográficas
CHAUÍ, Marilena de Souza. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2000.
CUNHA, Euclides. O homem. In: _____________. Os sertões. Rio de Janeiro. Ediouro, 2003.
p.48
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde
1960/70. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
RUSSO, Renato. 1965 (Duas tribos). In: LEGIÃO URBANA. As quatros estações. Rio de
Janeiro: EMI-Odeon, 1989. 1 CD. Faixa 6.