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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI

Departamento de Filosofia e Métodos

Unidade Curricular: Introdução à Filosofia


Docente: Fábio de Barros Silva
Discentes: Diego Claudino de Paula Borges – 2023000186
Flávio Henrique Merlim de Souza – 2023008676
Patrícia Cristina da Silva – 2023001746

ATIVIDADE AVALIATIVA III

RELATÓRIO

Secção 1 – Considerações iniciais


O presente relatório refere-se a um estudo acerca do fragmento da obra Os sertões,
inicialmente, publicada em 1902 e produzida pelo escritor e jornalista brasileiro Euclides da
Cunha (1866-1909); e, igualmente, da música 1965 (Duas tribos), composta pelo cantor
brasileiro Renato Russo (1960-1996), integrante à época da banda Legião Urbana, lançada em
outubro de 1989.
A finalidade do relatório consiste em uma concatenação de ideias entre o fragmento da
obra e a canção aludida ao livro utilizado como referência, a saber, Brasil: mito fundador e
sociedade autoritária, inicialmente, publicado em 2000 – ano do 5º Centenário do
descobrimento do Brasil –, e produzido pela filósofa brasileira Marilena de Souza Chauí.

Secção 2 – Descrição da obra “Os sertões” e da canção “1965 (Duas tribos)”


A obra Os sertões, de Euclides da Cunha, é o livro que inaugura a fase pré-modernista
no Brasil (1902-1922), um período literário que faz a transição entre o simbolismo e o
modernismo brasileiro. Nessa perspectiva, a obra exibe características de estilos anteriores, tais
como: o realismo, o naturalismo, o parnasianismo e o simbolismo. Outrossim, as obras desse
período apresentam um nacionalismo crítico, uma temática sociopolítica e uma linguagem
jornalística.
Diante dessa conjuntura, na parte II da obra, especificamente no capítulo II – intitulado
O homem –, Euclides da Cunha introduz uma descrição do homem, da vida e dos costumes do
sertão, isto é, o autor estabelece um perfil para descrever o sertanejo. Contudo, suas análises
são fundamentadas em estudos sociológicos e antropológicos, alicerçados no positivismo e na
teoria determinista do historiador francês Hippolyte Taine, na qual, resumidamente, o homem
é determinado e influenciado pela seguinte tríade: a raça – campo genético; o meio – espaço
geográfico e social; e, por fim, o momento histórico. Nesse sentido, o autor, a princípio, analisa
os três elementos étnicos constituintes das raças mestiças brasileiras, nomeadamente: o
indígena, o africano e o português.

A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as


conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma
raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é
um retrocesso. (CUNHA, 2003, p.48)

Posteriormente, examina o meio físico em que essas raças mestiças constituíram-se e a


ação desse meio na formação dessas raças.

E o mestiço — mulato, mamaluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um


decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos
ancestrais superiores.” (Ibidem, p.48)

E finalmente, recorre à história do país para entender como surgiu o “jagunço” – termo
utilizado como sinônimo de sertanejo –, centrando-se, assim, na formação do Norte brasileiro
e na figura do mulato.
Por sua vez, no que tange à canção 1965 (Duas tribos), essa enfatiza o período do regime
militar, no qual os militares apossaram-se indevidamente do poder vigente à época e cercearam
os direitos políticos de inúmeros brasileiros, dentre eles artistas, políticos e estudantes,
perseguindo-os brutalmente. Nesse contexto, portanto, o país dividiu-se em “duas tribos”, a
saber, a dos militares e a dos civis. É imperioso acentuar que no título da música há um recurso
poético, que avança um ano na História brasileira a fim de evitar a grafia do famigerado 1964.
Nos versos iniciais da canção, o autor relata uma possível abordagem indevida em que
foi submetido, aproximadamente nos anos de 1980. “Vou passar/ Quero ver/ Volta aqui/ Vem
você.” (RUSSO, 1989)
Posteriormente, evidencia-se uma imprecisão, uma dúvida suplantada na população,
tendo em vista que havia uma incongruência entre a perspectiva dos militares e a da população
– uma vez que a qualquer momento, um indivíduo poderia ser abordado e, até mesmo, preso
pelos militares, caso julgassem a circunstância pertinente. Contudo, indaga-se se esse aspecto
constatava-se em uma verdade, haja visto que a propaganda ufanista difundia o contrário.
“Como foi/ Nem sentiu/ Se era falso/ Ou fevereiro” (Ibidem)
De modo análogo, propagava-se a noção de paz estabelecida pelo regime militar, em
que haveria uma tranquilidade e tempo para a nação; “Temos paz/ Temos tempo” (Ibidem)
Outro aspecto, que pode-se observar na letra, consiste na experiência da tortura,
apresentada nos versos em que a brutalidade da ação sofrida pelo narrador é inteligentemente
contraposta pela ideia de normalidade; essa, sugerida pela citação da estação do ano, associada
às férias e ao lazer – além da lembrança de que o mesmo tipo de atrocidade poderia ter
acontecido aos seus familiares. “Cortaram meus braços/ Cortaram minhas mãos/ Cortaram
minhas pernas/ Num dia de verão/ (…) Podia ser meu pai/ Podia ser meu irmão”. (Ibidem)
Igualmente, é possível interpretar o fragmento mencionado da seguinte maneira:
primeiramente, o “cortar” no sentido denotativo, demonstrando, assim, a brutalidade do regime
militar – uma ocasião similar ocorreu no Chile, na ditadura militar de Pinochet, nos anos de
1970, em que cantor Victor Jara teve as suas mãos cortadas, impossibilitando-lhe de escrever
novamente contra o regime vigente. Ulteriormente, pode-se destacar o ‘cortar’ no sentido
conotativo, ou seja, com o propósito de limitar o cidadão ante as suas ações e o seu
comportamento no quotidiano, caracterizando-se, portanto, em uma ruptura física e intelectual.
Posteriormente, notabiliza-se também uma referência direta aos militares que, em uma
tentativa de inversão dos valores estabelecidos, promoviam a balbúrdia em detrimento ao seus
ideais de governo. “Quando querem transformar/ Dignidade em doença/ Quando querem
transformar/ Inteligência em traição/ Quando querem transformar/ Estupidez em recompensa/
Quando querem transformar/ Esperança em maldição.” (Ibidem)
É imprescindível ressaltar que, nos versos supracitados, os indivíduos sucumbiam às
investidas dos militares e, muitas vezes, divulgavam segredos com o objetivo de serem
recompensados.
A música também oferece uma interpretação no que tange à escolha de seu título, em
que o autor coloca-se do lado do bem, ou seja, do lado da “tribo do bem” — que pode ser
entendido como o lado opositor ao regime militar. “É o bem contra o mal/ E você de que lado
está? /Estou do lado do bem/ E você de que lado está? /Estou do lado do bem. /Com a luz e com
os anjos.” (Ibidem)
Outro enfoque que a letra proporciona está relacionado com o extermínio de militantes
de organizações de esquerda que empregavam a luta armada, enquanto o narrador lembra os
objetos lúdicos de sua infância – nesse ponto, poeticamente, o autor refere-se à realidade dos
jovens estudantes, que concentravam as fileiras do polo mais extremado da resistência à
ditadura: “Mataram um menino/ Tinha arma de verdade/ Tinha arma nenhuma/ Tinha arma de
brinquedo/ Eu tenho Autorama/ Eu tenho Hanna-Barbera/ Eu tenho Pêra, Uva e Macã/ Eu tenho
Guanabara/ E modelos Revell”. (Ibidem)
No entanto, também é possível interpretar essa “morte” no seu aspecto metafórico,
referindo-se, assim, à perda da inocência de um menino, da ‘morte da sua juventude’, dos seus
sonhos. E, de modo semelhante, no sentido de cercear o seu desenvolvimento como cidadão
livre, capaz de pensar e de refletir, sem que haja a intromissão do Estado e de suas medidas
manipuladoras.
Uma outra dimensão da ditadura salientada na letra diz respeito à propaganda política
ufanista, que amparava ideologicamente a repressão e buscava ocultá-la. “O Brasil é o país do
futuro (3x) /O Brasil é o país/ Em toda e qualquer situação/ Eu quero tudo pra cima/ Pra cima
(2x)” (Ibidem)
De maneira semelhante, o ufanismo – propagado pelas agências do governo que, em
alguns casos, dispunha de profissionais notadamente opositores ao regime –, tinha o objetivo
de conduzir a população à crença de que o regime militar seria a direção certa a ser seguida e
que as medidas governamentais adotadas garantiriam o progresso e desenvolvimento da nação.
Nesse sentido, conforme a escritora Heloísa Buarque de Hollanda (1980, p.90), o governo
enfatizava esse discurso, salientando:

Passa-se a viver um clima de ufanismo, com o Estado construindo seus grandes


monumentos, estradas, pontes e obras faraônicas, enquanto a classe média,
aproveitando-se das sobras econômicas do “milagre”, vai, maravilhada, comprar seus
automóveis, televisões coloridas e apartamentos conjugados para veraneio.
(HOLLANDA, 1980, p.90)

Secção 3 – Encadeamento dos conceitos abordados na obra “Os sertões” e na canção “1965
(Duas tribos)” com o livro referencial “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”

No tocante ao livro utilizado como referência, a saber, Brasil: mito fundador e sociedade
autoritária, evidencia-se na obra aludida – Os sertões – uma congruência com primeiro trabalho
científico sobre o “caráter nacional brasileiro” nas respectivas obras de Silvio Romero,
notadamente, O caráter nacional e as origens do povo brasileiro (1881), e A História da
literatura brasileira (1888). Dessa maneira, a filósofa destaca, inicialmente, como os inúmeros
estereótipos produzidos pelo pensamento social da literatura positivista deturpam a
representação do Brasil para os próprios brasileiros.

A partir da literatura positivista, portanto, a ideia de um progresso da humanidade que


passa por três estados (fetichista, teológico-metafísico e científico ou positivo), em
que Silvio Romero afirma que o caráter nacional foi formado por três raças em
estágios distintos da evolução: o negro se encontrava na fase inicial do fetichismo, o
índio, na fase final do fetichismo e os portugueses já estavam na fase teológica do
monoteísmo. (Cf. CHAUÍ, 2000, p.49)

Posteriormente, Chauí ressalta o carácter mitológico, que pode ser compreendido na


ideologia, ou seja, através das ideias produzidas com intencionalidade evidente de ocultar a
verdadeira situação de uma determinada realidade.

Romero julga que a imigração, ao trazer povos num estágio mais avançado da
evolução, poderá ampliar a correção de tais defeitos – pobreza cultural, ausência de
unidade das tradições e das artes. (Ibidem, p.49)

Por sua vez, no que tange ao encadeamento dos conceitos no texto referencial em relação
à música 1965 (Duas tribos), observa-se, inicialmente, uma consonância com a periodização
proposta por Eric Hobsbawn, em seu estudo sobre a concepção histórica de Estado-Nação, em
que o historiador destaca o período designado de “questão nacional”, na qual a consciência
nacional é definida por um conjunto de lealdades políticas, legitimadas pelo autoritarismo
vigente – evidenciado durante o período do regime militar. (Ibidem, p.14)
Nesta perspectiva, conforme Marilena Chauí (2000, p.24), é necessário distinguir o
lugar da nação na elaborações político-ideológicas, do período denominado de “questão
nacional”, no qual a autora destaca o segundo período. Esse contexto vai ao encontro do que
foi observado na música aludida, tendo em vista que os militares visavam legitimar a sua
autoridade, por meio da violência e da repressão explícita

No segundo período, porém, isto é, desde 1980 mais ou menos, nação e nacionalidade
se deslocam para o campo das representações já consolida das - que, portanto, não são
objeto de disputas e programas -, tendo a seu cargo diversas tarefas político-
ideológicas, tais como legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer mecanismos
para tolerar várias formas de violência e servir de parâmetro para aferir ou avaliar as
autodenominadas políticas de modernização do país. (CHAUÍ, 2000, p.24)

De modo análogo, a filósofa ainda salienta a questão do movimento verdeamarelismo,


como pano de fundo difuso e ambíguo, significando nacionalismo espontâneo e alienação,
reforçado nos anos de Ditadura Militar (1964-1985) – que também pode ser observado na letra
da canção. (Ibidem, p.40)
E, por fim, ainda no que diz respeito à Ditadura Militar, a autora ressalta três tarefas
fundamentais que foram desenvolvidas no período em evidencia, com o intuito de assegurar a
“questão nacional”

A ditadura, desde o golpe de Estado de 1964, deu a si mesma três tarefas: a integração
nacional (a consolidação da nação contra sua fragmentação e dispersão em interesses
regionais), a segurança nacional (contra o inimigo interno e externo, isto é, a ação
repressiva do Estado na luta de classes) e o desenvolvimento nacional (nos moldes
das nações democráticas ocidentais cristãs, isto é, capitalistas). (Ibidem, p.41-42)

Nesse sentido, com a difusão dessas ideias, por intermédio do sistema educacional,
especificamente através da disciplina de educação moral e cívica, o regime militar ratificava
essa representação da “questão nacional” interiorizada na população brasileira, mesmo quando
as condições da realidade divergiam-se dessa concepção. (Ibidem, p.42)

Secção 4 – Considerações finais


Ao longo deste estudo, foi examinado o fragmento da obra Os sertões à luz de uma
perspectiva determinista, alicerçada no naturalismo, na qual o indivíduo é analisado e
determinado consoante a sua raça, o seu espaço geográfico e o seu contexto histórico; e,
concomitantemente, a música 1965 (Duas tribos), sob o prisma do período do regime militar –
no qual os generais do Exército apossaram-se indevidamente do poder vigente à época e
cercearam os direitos políticos de inúmeros brasileiros, dentre eles: artistas, políticos e
estudantes, perseguindo-os brutalmente –, estabelecendo um encadeamento desses conceitos
com o texto referencial da filósofa Marilena Chauí, a saber, Brasil: mito fundador e sociedade
autoritária, em que a autora enfatiza que o Mito da fundação do Brasil tem a finalidade de
ocultar os conflitos e as tensões sociais vigentes, por meio dos inúmeros estereótipos produzidos
pelo pensamento social da literatura positivista e dos ideias políticos, que deturpam a
representação do Brasil para os próprios brasileiros – de modo que, para o reconhecimento de
fato da identidade do povo brasileiro, é preciso suprimir as ilusões projetadas intencionalmente
pelas elites brasileiras, com a finalidade de evidenciar, sobretudo, a inexistência da unidade
social.

Referências Bibliográficas
CHAUÍ, Marilena de Souza. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2000.
CUNHA, Euclides. O homem. In: _____________. Os sertões. Rio de Janeiro. Ediouro, 2003.
p.48
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde
1960/70. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980.
RUSSO, Renato. 1965 (Duas tribos). In: LEGIÃO URBANA. As quatros estações. Rio de
Janeiro: EMI-Odeon, 1989. 1 CD. Faixa 6.

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