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eterna, desejava observar dade o que se dizia de uma
pontualmente todos os pre- outra vida, e a ter incertezas
ceitos religiosos. Aplicava-me sobre se a fé prestada a tais
á leitura do Evangelho e de dogmas se casava bem com a
outras obras espirituais, per- razão, por isso que a mesma
corria as Sumas dos confesso- razão me ditava e de continuo
res, e quanto mais me entre- me metia pelos ouvidos den-
gava a estes estudos, maiores tro muitas cousas que forte-
dificuldades se me alevanta- mente contrariavam aqueles
vam. dogmas.
Acabei por cair em inextricá- Entrado nesta dúvida assosse-
veis enleios, em ansiedades e guei, e fosse o que fosse, as-
aperturas de coração. Ia-me sentava comigo que por tal
finando de melancolia e má- rota não podia alcançar a sal-
goa. Antolhou-se-me impos- vação da alma. Por esse tem-
sível confessar os pecados po cursava eu as aulas de Di-
segundo os termos da Igreja reito, segundo já disse, e an-
romana, de modo que pudesse dando nos vinte e cinco anos,
obter dignamente a absolvi- como se me deparasse ensejo,
ção e cumprir tudo quanto era obtive um beneficio eclesiás-
requerido. tico, a tesouraria de uma Co-
legiada.
A consequência foi desespe-
rar da salvação, se a salvação Não tendo, porém, encontrado
tinha de ser obtida mediante a repouso na religião católica
observância de tais normas. romana, e desejando estar
abraçado a alguma religião,
Ora sendo difícil poder apar-
cri que sabia que entre cris-
tar-me de uma religião a que
tãos e judeus havia rijo com-
desde o berço fora acostuma-
bate, pus-me a percorrer os
do e que pela fé, já tinha dei-
livros de Moisés e dos profe-
tado em mim fundas raízes,
tas, onde se me apresentavam
comecei a pensar, isto à volta
alguma cousa que estavam em
dos vinte e dois anos, que
não pequena contradição com
poderia talvez ser menos ver-
o Novo Testamento e encer-
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ravam menor dificuldade. Embarcámos, pois, não sem
grave risco, (os que descen-
Demais no Antigo Testa-
dem de hebreus não podem
mento, criam tanto os judeus
deixar o reino sem permissão
como os cristãos, no Novo
especial d’el-rei) eu, minha
Testamento só os cristãos.
mãe e meus irmãos, aos quais.
Acabei por entender, acredi-
movido pelo amor fraterno,
tando em Moisés, que devia
eu comunicara o que sobre a
obedecer á Lei, visto que ele
religião me havia parecido
afirmava ter recebido tudo de
mais consentâneo, embora
Deus, declarando-se puro
tivesse dúvidas acerca de al-
mensageiro chamado pelo
guns pontos e esta comunica-
próprio Deus para esta mis-
ção poderia redundar em
são, ou melhor, obrigado
grande mal para mim: tão
(destarte se enganam os pe-
perigoso é naquele país falar
queninos).
em semelhantes assuntos!
Isto assentado, como quer que
Ter minada a viagem, apor-
naquele reino não houvesse
támos a Amsterdam, onde
liberdade de professar de al-
encontrámos os judeus viven-
gum modo a religião de Moi-
do em liberdade. Em obedi-
sés, pensei em mudar de resi-
ência á Lei, cumprimos para
dência, deixando a terra pá-
logo o preceito da circunci-
tria.
são.
A este fim não duvidei resi-
Ao cabo de alguns dias tinha-
gnar em favor de outrem o
me a experiência mostrado
benefício eclesiástico, não
que os costumes e ordenações
cuidando dos proventos nem
dos judeus estavam longe de
da honra que dali me vinham
casar-se com os preceitos de
conformemente aos usos da-
Moisés.
quele país. Deixei também
uma formosa casa de habita- Ora se cumpria observar a Lei
ção, situada em uma parte com pureza, segundo ela pró-
magnífica da cidade e cons- pria requer, mal andaram os
truída por meu pai. chamados Doutores dos ju-
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deus com tantas invenções, liberdade deixara a pátria e
que de todo o ponto destoam desprezara outros proveitos, e
da Lei. Assim que não pude o submeter-me a homens em
acabar comigo que me conti- tal caso, mormente quando
vesse, antes entendi que faria eles não tinham poder legíti-
cousa do agrado de Deus se mo, fosse acto de pouca reli-
defendesse a Lei com isenção. gião e impróprio do homem
digno deste nome, decidi an-
Estes Doutores judaicos do
tes padecer tudo e permanecer
tempo presente – que ainda
firme no meu propósito.
conservam os seus costumes e
condição maldosa, porfiando Consequentemente fui por
galhardamente em defesa da eles excomungado e excluído
seita e das instituições dos da comunicação com todos os
abomináveis fariseus, não fieis, e os meus próprios ir-
sem esperança de benesses mãos, de quem anteriormente
pessoais e, segundo já outrora eu fora mestre, com medo
lhes foi imputado fundamen- deles passavam por mim na
tadamente, para ocuparem as rua sem me saudar.
primeiras cadeiras no templo Nestas circunstâncias resolvi
e terem as primeiras sauda- escrever uma obra em que
ções na praça pública – de mostrasse a justiça da minha
modo nenhum vieram em causa e provasse claramente à
que, sequer nas cousas mais luz da própria Lei o infunda-
pequenas, eu me apartasse do dos ensinamentos e práti-
deles, pretendendo que sem cas dos fariseus e o contraste
desvio algum lhes fosse na em que as suas tradições e
esteira; de contrário, ameaça- instituições estavam com a lei
ram-me com a excomunhão e de Moisés.
privação de toda a comunica-
ção com os fieis nas cousas Principiada a obra, vim tam-
divinas e humanas. bém – cumpre referir tudo
como se passou, sem refolho
Como, porém, ficasse muito e com verdade – a abraçar,
mal virar as costas diante de resoluta e deliberadamente, o
tal medo quem por amor da
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parecer daqueles que assen- Na sua obra o médico fartava-
tam serem temporais o prémio se de atassalhar-me, como
e a pena da Lei velha, e não que eu defendesse a seita de
crêem em uma outra vida e na Epicuro pois quem negava a
imortalidade da alma, estri- imortalidade da alma, pouco
bando-me, para não falar faltava para negar a existência
doutras razões, em que a Lei de Deus.
de Moisés guarda absoluto Neste tempo eu tinha má opi-
silêncio sobre estes pontos, e nião daquele filósofo, e fun-
aos que observam ou que- dando-me na informação par-
brantam os seus preceitos, só cial de outrem, dava sentença
promete prémio temporal ou temerária contra uma parte
pena temporal. ausente sem a ouvir; mas des-
Grande foi o regozijo dos de que soube o conceito que
meus inimigos ao saber que dele faziam algumas pessoas
eu adotara este parecer, jul- amantes da verdade, e tive
gando terem alcançado só por conhecimento da sua doutrina
este fato larguíssima defesa real, sinto haver em tempo
perante os cristãos, que em chamado louco e insano um
virtude de fé especial fundada tal sujeito, de que ainda não
na Lei evangélica, onde se faz posso formar juízo cabal por
menção expressa da felicida- me serem desconhecidos os
de eterna e das penas eternas, seus escritos.
crêem e reconhecem a imor- Os filhos dos ditos meus ini-
talidade da alma. migos, industriados pelos
Com este intuito e para me rabinos e pelos pais, junta-
taparem a boca nos demais vam-se em magotes pelas ruas
pontos e me tornarem odioso e a brados praguejavam-me e
entre os próprios cristãos, irritavam-me com toda a casta
antes de entrar no prelo o meu de impropérios, apelidando-
escrito, tiraram a lume um me, voz em grita, de herege e
opúsculo, da mão de certo de apóstata. As vezes até se
médico, com o título De im- ajuntavam diante da minha
mortalitate animarum. porta, apedrejavam-na, e tudo
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tentavam para me perturba- exemplares da obra.
rem, de jeito que nem na mi- Depois, com o rodar do tem-
nha própria casa pudesse lo- po, como quer que a experi-
grar sossego. ência e os anos descubram
Publicado que foi aquele livro muita coisa e consequente-
contra mim, logo apercebi-me mente dêem volta ao pensa-
para a defesa e escrevi um mento do homem, entrei a ter
opúsculo em resposta a ele, dúvidas sobre se a lei de Moi-
impugnando com todas as sés deveria ser tida por lei de
forças a imortalidade da alma Deus, por isso que muitas
e tocando de caminho alguns cousas havia que aconselha-
pontos em que os fariseus se vam, ou melhor, forçavam a
apartam de Moisés. dizer o contrário (seja-me
permitido, mais uma vez o
Assim que esta minha obra
digo, falar com franqueza; e
saiu a público, ajuntaram-se
efetivamente, porque não há-
os senadores e o grão-rabino
de ser lícito a quem escreve o
dos judeus e propuseram uma
seu testamento para deixar
acusação contra mim perante
aos homens as contas da sua
a autoridade civil, alegando
vida e um exemplo verdadeiro
que eu havia escrito um livro
das desventuras humanas,
em que negava a imortalidade
porque não há-de ser licito,
da alma e não só os ofendia a
digo, contar a verdade?).
eles mas até abalava o edifí-
cio da religião cristã. Assentei por fim que a Lei de
Moisés não era de Deus, mas
Por efeito desta denúncia fui
somente invenção humana,
metido na cadeia, e depois de
como outras tantas que tem
lá estar oito para dez dias
havido no mundo. É que
soltaram-me debaixo de fian-
muitos pontos brigavam com
ça. Aquela autoridade exigia
a lei da Natureza, e Deus,
de mim o pagamento de uma
autor da Natureza, não podia
multa, e em cabo fui conde-
estar em contradição consigo
nado a pagar-lhe trezentos
mesmo, e esta lei, de que se
florins e ao perdimento dos
dizia autor, propunha aos ho-
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mens a prática de atos contrá- das, ao modo de prepará-las, e
rios à Natureza. a outras cousas, donde se in-
feria que eu não era judeu.
Definido este ponto no meu
espirito, disse eu comigo: Que Desta denúncia nasceram
aproveita (oxalá nunca tal novas e violentas guerras.
ideia houvesse surgido na Aquele meu primo, que, se-
minha mente) permanecer eu gundo já disse, fora o media-
neste estado até à morte, sepa- neiro da reconciliação, enten-
rado da comunicação com dendo que o meu procedi-
estes Padres e com este povo, mento redundava em vergo-
mormente sendo eu estrangei- nha sua, soberbão e arrogante
ro nestas paragens e não ten- que era, sobremaneira impru-
do trato com os cidadãos, cuja dente e também sobremaneira
língua até desconheço? Me- impudente, abriu contra mim
lhor será voltar a comunica- guerra declarada, e levando
ção com eles e seguir-lhes as após si todos os meus irmãos,
pisadas como eles querem, não deixou por tentar meio
fazendo, segundo diz o rifão, algum que pudesse por algu-
de macaco entre os macacos. ma forma contribuir para a
ruína total da minha honra,
Movido desta consideração,
dos meus haveres e conse-
tornei a comunicar com eles,
quentemente da minha vida.
retratando as minhas expres-
sões e subscrevendo as opini- Foi ele quem desbaratou o
ões deles, havendo já quinze casamento que eu estava já
anos que deles vivia separado. para contrair (a este tempo era
Desta reconciliação foi, por eu viúvo); fez com que um
assim dizer, medianeiro um meu irmão retivesse os meus
meu primo da parte de meu bens que tinha em seu poder,
pai. e destruiu as relações que
entre nós havia, circunstância
Decorridos dias, fui denunci-
que me causou um prejuízo
ado por um rapazito, filho de
indizível em consequência do
minha irmã, que eu tinha em
estado em que as minhas cou-
casa, com respeito às comi-
sas se achavam.
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Baste agora dizer que foi ele o cobrindo tudo aos meus carís-
mais encarniçado inimigo da simos amigos, os fariseus.
minha honra, da minha vida e Nisto congregaram-se os
dos meus bens. Sobre esta príncipes de Sinagoga, infla-
guerra, por assim dizer, do- maram-se os rabinos, e a
méstica, havia outra pública, a gentalha petulante bradou
dos rabinos e do povo, que rijo: Crucifica-o, crucifica-o.
principiaram a ter-me novo
ódio e cometeram contra mim Fui chamado perante o Gran-
muitos desaforos; assim que de Conselho; propuseram as
merecidamente eu os aborre- queixas que tinham contra
cia. mim em voz baixa e triste,
como se se tratara de um caso
Entretanto sobreveio novo de morte, e por fim declara-
acontecimento. Acaso con- ram que, se eu era judeu, de-
versei com dois sujeitos, vin- via acatar e cumprir a senten-
dos de Londres para esta ci- ça que proferissem ou tornaria
dade, um italiano, o outro a ser excomungado.
espanhol, ambos cristãos ve-
lhos; declarando-me serem Ah preclaros juízes! Sois juí-
pobres, pediram-me o meu zes para me fazerdes mal;
conselho sobre se haviam de mas se eu carecer do vosso
aliar-se aos judeus e conver- tribunal para me livrardes da
ter-se ao judaísmo. Aconse- violência de outrem e me as-
lhei-os a que tal não fizessem segurardes a minha inviolabi-
e se conservassem como esta- lidade, então não sois juízes,
vam, pois não sabiam o jugo senão vilíssimos escravos
que iam por sobre o pescoço. cativados a poder alheio. Qual
é a vossa sentença a que que-
Em todo o caso advertia-lhes reis que eu me submeta?
que não falassem em mim aos
judeus; assim prometeram Então foi-me lido um papel
fazer. Estes homens ruins, em que se dizia que eu tinha
com os olhos no vergonhosís- de entrar na Sinagoga vestido
simo proveito que esperavam de luto, com uma vela negra
colher, agradeceram-me des- na mão e vomitar publica-
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mente, na presença da assem- Guerreavam-me duas hostes,
bleia, certas e determinadas uma a do povo, outra a dos
palavras, escritas por eles, parentes, que buscavam a
bem feias, em que levavam às minha ignomínia para de mim
nuvens as iniquidades por tirarem vingança. E os pa-
mim cometidas. Depois havia rentes não tiveram descanso
de consentir em ser publica- enquanto não me desalojaram
mente açoutado na Sinagoga da posição anterior. Disseram
com um azorrague de couro, entre si: Ele nada fará, se não
em seguida prostrar-me à en- for obrigado, e cumpre que
trada da própria Sinagoga seja obrigado.
para todos passarem por cima Se estava enfermo, via-me
de mim, e demais jejuar em sozinho. Se alguma outra ca-
dias determinados. lamidade pesava sobre mim,
Acabada que foi a leitura, contavam-na entre os seus
incendiaram-se-me as entra- maiores desejos. Se dizia que
nhas e ardia por dentro em se tirasse dentre eles um juiz
fogo de cólera inextinguível; que decidisse a questão entre
contudo, sofreando-me, res- nós, nada queriam menos.
pondi chãmente que não po- Tratar de tal pendência em
dia cumprir semelhantes im- juízo, passo que também ten-
posições. Ouvida a minha tei, dava muito incómodo e
resposta, determinaram ex- enfado, sendo que consumia
comungar-me segunda vez, e estiradíssimo tempo o recor-
não contentes com isto, quan- rer aos tribunais, onde, afora
do eu passava na rua, muitos muitos outros encargos, há
deles cuspiam fora e o mesmo constantemente tantas delon-
faziam os filhos industriados gas e adiamentos.
por eles; só não me apedreja- Disseram-me muitas vezes:
vam, porque não podiam. Submete-te a nós, pois somos
Outros sete anos durou esta todos iguais e não imagines
guerra, e no correr deste tem- nem temas que procedamos
po padeci cousas que não se mal contigo. Diz enfim uma
acreditam. vez, que estás pronto a cum-
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prir o que te impusermos, e honrados, cordatos e huma-
deixa-nos a nós o final, que nos, e meditai profundamente,
nós faremos tudo como é bem uma e muitas vezes, a senten-
que se faça. ça que executaram em mim,
de todo inocente, eles, pesso-
Eu, embora a questão versas-
as privadas, sujeitas ao poder
se justamente sobre este ponto
de outrem.
e semelhante submissão e
aceitação de imposições ar- Entrei na Sinagoga, que esta-
rancada à força fosse para va cheia de homens e de mu-
mim grandíssima vergonha, lheres, e quando foi tempo,
contudo para levar as cousas subi ao taburno de madeira
até o cabo e com os meus que está no meio da Sinagoga
olhos verificar-lhes o desfe- para o serviço dos sermões e
cho, venci-me a mim próprio demais actos do culto; li em
determinando-me animosa- voz alta o escrito, redigido
mente a aceitar e experimen- por eles, em que eu confessa-
tar quanto eles quisessem. va que merecia morrer mil
vezes pelos pecados por mim
De feito, no caso de as impo-
cometidos, convém a saber:
sições serem feias e desonro-
não ter guardado o sábado, ter
sas, ainda mais justificavam a
violado a fé a ponto de chegar
minha causa contra eles e
a aconselhar os mais a que
manifestavam as disposições
não viessem para o judaísmo;
dos ânimos deles para comigo
e que em satisfação de tais
e a sua lealdade, e patenteava-
culpas eu queria obedecer ao
se de vez o hediondo e exe-
que me ordenassem e cumprir
crando dos costumes desta
as penas que me impusessem,
gente que tão indecorosa-
prometendo não tornar a cair
mente abusa das pessoas mais
de futuro em semelhantes
honestas como se fossem os
iniquidades e malfeitorias.
mais vis escravos.
Acabada a leitura, desci do
Pois cumprirei, disse eu, tudo
taburno e acercou-se de mim
quanto me impuserdes. Agora
o venerando presidente, di-
dai-me atenção, quantos sois
zendo-me ao ouvido que fosse
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para um outro canto da Sina- Depois tornei a vestir-me e
goga. Assim fiz. fui para a entrada da Sinago-
ga. Prostrei-me no chão, am-
Então o porteiro ordenou-me
parando-me o guarda a cabe-
que me despisse. Despi-me
ça. Então todos quantos des-
até à cintura, atei um lenço à
ciam, passavam por cima de
cabeça, descalcei os sapatos e
mim, quero dizer, levantando
ergui os braços, pondo as
um pé, passavam para além
mãos em uma espécie de co-
junto da parte inferior das
luna.
minhas pernas. Isto pratica-
Chegou-se a mim o porteiro e vam todos, moços e velhos.
atou-me as mãos à coluna Não há bugios que possam
com uma faxa. Depois vem o apresentar a olhos humanos
precentor e, pegando de um nem actos mais desentoados,
couro, deu-me trinta e nove nem gestos mais ridículos.
tagantes conformemente à
No fim, quando já não restava
prática tradicional. A Lei
mais ninguém, ergui-me, e
prescreve que não sejam mais
tendo-me limpado do pó, com
de quarenta, e sendo estes
ajuda daquele que estava ao
varões tão escrupulosos ob-
meu lado. Ninguém diga que
servadores das leis, guardam-
eles não me honraram, pois,
se de cair em pecar por exces-
se me atagantavam, em todo o
so.
caso, choravam e afagavam-
Durante a flagelação cantava- me a cabeça.
se um salmo. No fim assentei-
Voltei para casa.
me no chão, e o grão-rabino
(que ridículas que são as cou- Ah gente, a mais desfaçada do
sas do género humano!) che- mundo! Ah padres execran-
gando-se à minha beira e le- dos, de quem, dizeis, eu não
vantou-me a excomunhão. devia temer que me fosse
Destarte já me estava aberta a dado mau trato!
porta do Céu, que antes disto, «Espancarmos-te? Longe tal
de valentemente trancada, me pensamento!»
impedia de entrar.
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Avalie agora quem isto ouvir, que por minha intervenção
que cena era aquela: um ve- haviam recebido na sua vida e
lho, nada baixo de condição, que me foram pagos com ig-
por natureza sobremodo en- nomínias, perdas, calamida-
vergonhado, em uma assem- des, fealdades e abominações,
bleia pública, despido na pre- tantas, que uma pessoa se
sença de toda a gente, ho- corre de referi-las.
mens, mulheres, crianças, e Dizem os meus nunca assaz
açoutado de ordem de juízes, detestados inimigos, que me
e de juízes destes, que são castigaram justamente para
mais escravos abjetos do que exemplo dos mais, para que
juízes. daqui em diante ninguém ou-
Considere que dor não seria se ir contra as suas determi-
cair aos pés de inimigos en- nações nem escrever contra os
carniçadíssimos. de quem lhe sábios.
tinham vindo tantos males, Ah gente a mais perversa do
tantos agravos, e prostrar-se mundo e pais de toda a menti-
para ser pisado. ra! Quanto mais justamente
Pense-o que ainda mais é, e não pudera eu castigá-los a
pode com razão chamar-se eles, para que depois vós não
caso fora do natural, mons- tivésseis tais atrevimentos
truosidade horrenda, de cuja contra pessoas amantes da
vista hedionda a gente foge verdade, aborrecedoras de
arrepiada. enganos, amigas, sem distin-
ção, de todo o género huma-
Que meus irmãos, filhos do
no, de quem vós sois inimigos
mesmo pai e da mesma mãe,
comuns, sendo que não tendes
criados juntos na mesma casa,
em estimação nenhuma os
trabalharam afincadamente
mais povos, havendo-os na
para isto, esquecendo o afecto
conta de irracionais, e vós
que eu lhes tinha.
subis protervamente a vós sós
Que tal sentimento era feição até às nuvens, afagando-vos
distintiva da minha índole e com mentiras, quando vós
esquecendo os muitos favores nada tendes de que com ver-
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dade vos ufaneis, a não ser Eles pugnam pela mentira
que por ventura para vós seja para cativarem os homens e
gloria o andardes desterrados, escravizá-los; eu pugno pela
serdes desprezados e odiados verdade e pela liberdade natu-
de toda a gente por causa do ral do homem, a quem o que
ridículo e exquisito dos vos- melhor fica é, livre de falsas
sos costumes, pelos quais superstições e ritos inaníssi-
pretendeis separar-vos do mos, passar uma vida que não
resto da humanidade. seja indigna do homem.
Que se quiserdes fazer glória Confesso que teria sido para
da simplicidade da vida e da mim mais proveitoso, se de
justiça, ai de vós, que palpa- principio me houvera calado,
velmente vos mostrareis infe- e reconhecendo como anda o
riores a muitos a tais respei- mundo, preferisse permanecer
tos. mudo, que assim convêm que
faça quem tem de viver no
Digo, pois, que se tivera for-
meio dos homens, para não
ças, eu teria podido tirar deles
ser vítima, segundo costuma
justa vingança dos males
acontecer, da multidão igno-
grandíssimos e atrocíssimos
rante ou de tiranos injustos,
agravos de que me abebera-
de feito cada qual com a mira
ram e que me levaram a ga-
nos seus interesses busca aba-
nhar aborrecimento à própria
far a verdade, e armando la-
existência. Sim! Que pessoa
ços aos pequenos, calca aos
amante do honesto terá ânimo
pés a justiça todavia, depois
e gosto para viver uma vida
de, incautamente iludido por
coberta de ignomínia? E se-
uma religião vã ter descido
gundo já foi dito com acerto a
com eles a campo.
urna pessoa dotada de fidal-
guia de sentimentos, cumpre É melhor morrer gloriosa-
ou viver arrazoadamente ou mente, ou ao menos morrer
morrer com honra. Tanto po- sem desgosto, que, nas pesso-
rém a minha causa é mais as de bem, é o companheiro
justa do que a deles, quanto a de uma retirada vergonhosa
verdade se avantaja à mentira. ou de uma resignação inepta.
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Costumam eles alegar em seu por isso que a pátria é alguma
favor a vontade da grande cousa que nos pertence, por-
maioria. «Tu, que és um só, que razão não há de ser belo
deves de submeter-te a nós, pelejar até morrer em defesa
que somos muitos». da honra própria, que é pesso-
almente nossa e sem a qual
Amigos, é útil sem dúvida
não podemos viver arrazoa-
que o indivíduo se submeta à
damente, a não ser que, à se-
maioria, para não ser dilania-
melhança de cerdos imundos,
do por ela; mas nem tudo o
nos revolvamos no imundo
que é útil se segue que seja
tremedal do lucro?
belo. Belo certamente não é o
retirar-se com ignominia e Mas dizem os meus detestá-
deixar o campo aos violentos veis motejadores, estribando
e injustos. no número todo o seu direito:
«O que poderias tu, que és um
Deveis logo confessar que é
só, contra tantos?» Confesso e
virtude merecedora de louvor
deploro ter sido esmagado
ter rosto quanto possível aos
pelo número que vós sois,
soberbos, para que não acon-
contudo esses vossos pensa-
teça que, procedendo mal e
mentos e palavras ainda mais
colhendo proveito da sua
me fazem referver a cólera no
maldade, se tornem cada vez
meu interior e bradar que é
mais soberbos.
impiedade ter piedade de ím-
E formoso, na verdade, e di- pios, soberbos, contumazes e
gno de um homem piedoso e obstinados.
generoso fazer-se pequenino
Sei bem que aqueles inimi-
com os pequeninos, ovelha
gos, para me desacreditarem
com as ovelhas; mas é sandi-
perante a multidão indouta,
ce, é ignominioso e repreen-
costumavam dizer: «Ele não
sível vestir, em combate com
tem religião nenhuma; não é
leões, a mansidão da ovelha.
judeu, não é cristão, não é
Ora, se se põe entre as cousas maometano».
mais formosas pelejar até
Olha primeiro, fariseu, o que
morrer em defesa da pátria,
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dizes; que tu és cego, e con- podem agradar a Deus.
quanto te sobre maldade. dás Com efeito, se todos os po-
entretanto topadas como um vos, exceptuando os judeus,
cego. que haveis sempre de separar-
Anda, diz-me, se eu fosse vos dos demais e não vos as-
cristão, o que dirias? É claro sociar a gente baixa e humil-
que havias de dizer que eu era de, observarem os sete man-
um abominável idólatra, e que damentos, que, segundo vós
juntamente com Jesus Naza- dizeis, foram observados por
reno, Mestre dos cristãos, Noé e pelos que foram antes
havia de ser punido pelo Deus de Abraão, basta-lhes isto
verdadeiro, de cujas bandeiras para se salvarem.
havia desertado. Já há, conseguintemente, se-
Se fosse maometano, também gundo as vossas próprias idei-
todos sabem de que honras as, uma religião em que eu
me cumularias; e assim nunca posso fundar-me, embora
poderia escapar à tua língua, descenda de judeus, pois com
tendo por único refúgio pros- súplicas alcançarei de vós o
trar-me aos teus joelhos e consentirdes que eu me mistu-
beijar os teus execrandos pés, re com a demais multidão, e
quero dizer, as tuas detestá- se não o alcançar, tomarei a
veis e vergonhosas institui- licença por mim próprio.
ções. Ah cego fariseu, que, olvi-
Agora suplico-te que me di- dando aquela lei, que é a pri-
gas se conheces mais alguma mitiva, e existiu desde sempre
religião além das que menci- e sempre há-de existir, só
onaste, às duas últimas das fazes menção das outras leis
quais tu, havendo-as por fal- que só posteriormente come-
sas, chamas antes cismas do çaram a existir, e que tu pró-
que religiões. Já te ouço con- prio condenas, exceptuando a
fessar que conheces mais tua, a respeito da qual, queiras
uma, e é a verdadeira religião, ou não, também os mais jul-
por meio da qual os homens gam conformemente à reta
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razão, que é a verdadeira Se porém o desvio é grande,
norma daquela lei natural, que quem bastará a fazer revista
tu esqueceste e que bem de- dos males e das horrendas
sejas sepultar, para pores so- monstruosidades que deste
bre o colo dos homens o teu adultério nascem e tomam
execrando jugo, desalojá-los crescimento?
da sã razão e torná-los pareci- Que preceitos soberanos tem
dos a loucos. a lei de Moisés, ou qualquer
Mas já que viemos a este outra, que digam respeito á
ponto, apraz-me demorar-me sociedade humana, para que
aqui um pouco e não calar de os homens vivam bem e em
todo os louvores desta lei concórdia uns com os outros?
primitiva. Digo pois, que esta Sem dúvida o primeiro é
lei é comum a todos os ho- honrar os pais; o segundo não
mens e neles inata pelo pró- violar os bens alheios ou seja
prio fato de serem homens. a vida ou a honra ou as outras
Liga a todos uns aos outros cousas úteis para a vida. Qual
pelos laços de mutuo amor, destes preceitos, dizei-me,
desconhecendo divisões, que não se contém na lei natural e
são a origem primordial de regra certa que está gravada
todos os ódios e dos maiores nos corações?
males. É a mestra da moral.
estabelece a distinção do justo Por impulso natural amamos
e do injusto, do feio e do belo. os filhos, os filhos amam os
Tudo quanto há excelente na pais, o irmão ama o irmão, o
lei de Moisés ou em qualquer amigo o seu amigo. Por im-
outra, a lei natural encerra-o pulso natural desejamos a
em si integralmente na perfei- conservação intacta do que é
ção; e se há algum desvio, por nosso e aborrecemos os que
pequeno que seja, desta regra nos perturbam a paz, os que
natural, logo surgem as con- por violência ou por fraude
tendas. e a divisão dos espí- nos querem tirar o que é nos-
ritos, e não pode encontrar-se so.
sossego. Deste nosso desejo sai uma
17
conclusão evidente, e é que muitas futilidades; vivemos,
nós não devemos praticar o porém, como é de dever
que nos outros condenamos. quando vivemos conforme-
Efectivamente, se condena- mente à razão.
mos os outros que invadem o Alguém dirá que a lei de Moi-
que e nosso, desde logo a nós sés ou a lei do Evangelho
mesmos nos condenamos se contem alguma cousa mais
invadirmos o alheio. E aqui alevantada e perfeita, e vem a
temos já facilmente tudo que ser o amarmos os nossos ini-
é capital em qualquer lei. migos, preceito que não se
O que respeita á alimentação, contem na lei natural.
deixemo-lo aos médicos; eles Respondo-lhe como acima
nos farão saber assaz apropri- disse. Se nos apartamos da
adamente qual é a comida que Natureza e pretendemos des-
faz bem á saúde, qual, pelo cobrir alguma cousa mais
contrário, é a que a prejudica. levantada, logo surge a luta,
No que toca ás mais cerimó- perturba-se o sossego.
nias, ritos, regulamentos, sa- De que serve ordenarem-se-
crifícios, dízimos (fraude in- me impossíveis que eu não
signe para uma pessoa se go- tenho forças para cumprir?
zar do trabalho alheio sem Nenhum bem daí resultará,
fazer nada), ai, ai!... choramos senão a tristeza do espírito se
por serem tantos os labirintos assentarmos ser impossível,
em que nos meteu a malícia pela ordem da Natureza, amar
dos homens. Reconhecendo o nosso inimigo.
este ponto, são muitos para
louvar os verdadeiros cristãos, Ora se não é de todo impossí-
que mandaram embora todas vel, segundo a ordem natural,
as cousas deste género, con- fazer bem aos inimigos (o que
servando só o que interessa á pode fazer-se sem haver
moralidade. amor), por isso que, geral-
mente falando, somos por
Não vivemos como é de de- natureza propensos á piedade
ver, quando observamos e compaixão, não devemos já
18
negar em absoluto que uma natural e manchando tão fei-
tal perfeição se compreende amente os sentimentos mater-
na lei natural. nos, filhos da Natureza!
Vejamos agora outro ponto, e Quanto mais agradável não
é, que males brotam quando a fora, se os homens se tives-
gente se aparta muito da lei sem conservado dentro das
natural. raias marcadas pela Natureza
e não houvessem feito inven-
Dissemos que há um laço
ções tão hediondas!
natural de amor entre os pais
e os filhos, entre os irmãos e Que direi dos enormes terro-
entre os amigos. Este laço res e ansiedades em que a
desata-o e desfá-lo a lei posi- maldade de uns homens tem
tiva, seja ela a de Moisés ou a lançado os outros homens? E
de qualquer outro, quando de tais males bem podia estar
ordena que o pai, o irmão, o livre todo o indivíduo, bas-
cônjuge, o amigo, mate ou tando que escutasse a voz da
traia por amor da religião o Natureza, a qual desconhece
filho, o irmão, o cônjuge, o absolutamente semelhantes
amigo. E uma lei assim quer cousas.
uma cousa superior ao que Quantos não são os que de-
pode ser efectuado por criatu- sesperam de salvar-se, os que,
ras humanas, e que, se se imbuídos em varias crenças,
efetuasse, seria o maior aten- padecem martírios, passam
tado contra a Natureza, sendo espontaneamente uma vida
que a Natureza tem horror a toda de amarguras, mortifi-
semelhantes atos. cando lastimosamente o cor-
Mas para que lembrar destas po, buscando solidões e luga-
cousas, quando os homens res apartados da conversação
levaram a insânia ao ponto de humana, vexados perpetua-
oferecerem os próprios filhos mente de tormentos interiores,
em holocausto aos ídolos a pois que já pranteiam como
que rendiam vaníssimo culto, actuais os males de que se
apartando-se tanto daquela lei arreceiam no futuro!
19
Estas e outras calamidades Mas estes meios são profícuos
sem conto foi uma falsa reli- enquanto a criança é criança:
gião, maldosamente inventada tão depressa como abre os
pelos homens, a que as acar- olhos da inteligência, ri-se do
retou à humanidade. engano e já não tem medo do
papão.
Não sou eu próprio um, entre
muitos, que fui grandemente Neste caso estão as vossas
enganado por tais impostores invenções ridículas, que só a
e, acreditando neles, me deitei crianças ou a bolonios podem
a perder? Falo por experiên- meter medo. Mas as outras
cia. Mas objectam: Se não pessoas que vos conhecem as
houver outra lei mais que a manhas, riem-se de vós.
natural, se os homens não Ponho agora de parte o tratar
souberem pela fé que há outra do justificado de semelhante
vida, e não temerem as penas fraude, quando vós mesmos,
eternas, que motivo há para os autores de tais invenções,
que não se tornem perpetua- tendes uma regra de direito
mente culpados de malfeito- que diz que não se hão de
rias? fazer males para virem bens, a
Vós, excogitando tais inven- não ser que não ponhais na
ções (quiçá por qualquer ou- conta de males o mentir com
tro motivo oculto; que é de grave prejuízo dos outros,
temer que por interesses vos- dando aos fracos ocasião de
sos quisésseis pôr uma carga perderem o juízo.
sobre os mais), assemelhais- Ora se em vós houvesse uma
vos aos que, para amedronta- sombra sequer de religião ou
rem as crianças, fingem pa- de temor, infalivelmente não
pões ou fantasiam nomes ater- deveríeis ter tido pouco medo,
radores, até que as pobres quando introduzistes no mun-
crianças, batidas do medo, se do tantos males, quando le-
submetam á vontade deles, vantastes tantas discórdias
escravizando, enfadadas e entre os homens, quando cri-
tristes, a vontade própria. astes tantas instituições iní-
20
quas e ímpias, a ponto de não sais falsamente a malícia hu-
duvidardes açular impia- mana, á qual quereis dar re-
mente os pais contra os fi- médio com os vossos papões
lhos, e os filhos contra os e terrores fantásticos, injurio-
pais. sos para com Deus, que apre-
sentais aos olhos dos homens
Uma pergunta desejaria eu
como cruelíssimo algoz e
fazer-vos, e é, se quando, em
horroroso torturador, injurio-
razão da malícia dos homens,
sos para com os homens, que
fazeis essas invenções a fim
pretendeis terem nascido para
de conterdes dentro dos ter-
tão deplorável miséria, como
mos do dever, com terrores
se não bastassem os desares
imaginários, os homens, que
que sucedem na vida a cada
doutro modo não observariam
um de nós.
o bem, vos acode ao pensa-
mento que vós sois seme- Mas conceda-se que é grande
lhantemente pessoas cheias de a malícia humana, o que eu
malícia, que não sois capazes próprio confesso, e de que vós
de fazer nada bom, nem pôr mesmos me servis de teste-
em obra senão perpetuamente munhas, sendo maliciosos em
o mal, prejudicar os demais, extremo, aliás não poderíeis
não usar de misericórdia para idear tais invenções. Procurai
com ninguém. então remédios de grande
eficácia, que sem maior dano
Já vejo que vós vos encoleri-
façam desaparecer esta doen-
zais contra mim, que ousei
ça de todos os homens em
fazer-vos uma pergunta as-
geral, e deixai-vos de papões,
sim, e que cada um de vós
que só têm efeito em crianças
batalha denodadamente em
e tolos.
defesa da justiça dos seus
actos. Nenhum há que não Se, porém, esta enfermidade é
diga que é piedoso, miseri- incurável no género humano,
cordioso, amante da verdade e deixai-vos de mentiras e não
da justiça. Consequentemente, prometais, á guisa de médicos
ou não falais verdade dizendo charlatães, a saúde que não
de vós o que dizeis, ou acu- podeis dar. Contentai-vos
21
com estabelecer entre vós leis Semelhante gente pode bem
justas e racionais, premiar os comparar-se ao ratoneiro
bons, punir devidamente os nocturno, que insidiosamente
maus, livrar de violências os acomete quem está adormeci-
que padecem violências, para do e não espera por tal. An-
que não bradem que neste dam sempre a dizer: sou ju-
mundo não se faz justiça e deu, sou cristão; crê em mim,
que não há quem salve o fraco não te enganarei.
das garras do forte. Ah alimárias ruins! aquele
Sem dúvida, se os homens que não diz nada disto e só
quisessem nortear-se pela faz profissão de ser homem, é
recta razão e viver em con- muito melhor do que vós.
formidade com a Natureza, Sim! Se não quereis acreditar
amar-se-iam todos uns aos nele, como homem que é,
outros, e cada qual, na pro- podeis precatar-vos; de vós,
porção de suas forças, acudi- porém, quem se há de preca-
ria á desventura do próximo, tar de vós que, embuçados na
ou pelo menos ninguém ofen- capa falsa de falsa santidade,
deria outrem só pelo gosto de á maneira do ladrão nocturno
ofender. Proceder de modo coando-vos pelas abertas, dais
contrário é proceder contrari- sobre os que mal precatados
amente á natureza humana. E dormem, e os estrangulais
se muitos destes actos se pra- miseravelmente?
ticam, é porque os homens
têm inventado diversas leis Uma cousa entre muitas me
opostas á Natureza, e uma maravilha, e é certamente
pessoa irrita a outra com as para maravilhar; vem a ser,
suas malfeitorias. como é que os fariseus, vi-
vendo no meio de cristãos,
Muitos há que andam hipo- podem gozar de tanta liberda-
critamente, fingindo-se por de que até julgam em tribunal.
extremo religiosos, e iludem Na verdade posso dizer que,
os incautos cobrindo-se com a se Jesus Nazareno, a quem os
capa da religião para apanha- cristãos rendem tanto culto,
rem os que podem.
22
discursasse hoje em Amster- vida tão vã e instável. Agora,
dão, e aos fariseus aprouvesse filhos dos homens, julgai com
açoutá-lo novamente por ele justiça e, despidos de todo o
impugnar as tradições dos afeto, com isenção, proferi a
fariseus e lhes lançar em rosto vossa sentença conforme-
a hipocrisia, poderiam fazê-lo mente á verdade, que isto é,
muito á sua vontade. Tal cou- sobre tudo, digno de homens
sa é seguramente uma vergo- que são verdadeiros homens.
nha que não devia tolerar-se E se alguma cousa encontrar-
em uma cidade livre, que faz des que vos force á compai-
profissão de manter as pesso- xão, reconhecei e deplorai a
as em liberdade e paz, e toda- desventurada condição huma-
via não as defende dos agra- na, de que também vós parti-
vos dos fariseus. cipais.
Ora quando um indivíduo não E para que nem esta circuns-
tem quem o defenda ou vin- tância fuja ao vosso conheci-
gue, não é de estranhar que mento, ficai sabendo que o
procure por si mesmo defen- nome que eu tinha quando
der-se e vingar os agravos cristão em Portugal, era Ga-
recebidos. briel da Costa; entre os judeus
Aqui tendes a história verídi- para o meio dos quais oxalá
ca da minha vida Pus-vos eu nunca tivera vindo, fui,
diante dos olhos o papel que com leve alteração, chamado
representei neste vaníssimo Uriel.
teatro do mundo na minha
23
BIOGRAFIA DE URIEL ACOSTA
(Tradução de A. Epiphanio da Silva Dias em Uriel da Costa,
Espelho da vida humana, Lisboa, Impr. Lucas, 1901, 36 págs. )
24
em que mostrava claramente pelos fundamentos da mesma ley
como lhe erão totalmente opostas, e repugnantes as tradiçoens
dos Fariseos de que se originou hum tão furioso odio dos Iu-
deos contra a sua pessoa, principalmente por negar a immorta-
lidade da alma, que lhe chamavão publicamente herege, e era
apedrejado nas ruas todas as vezes que aparecia. Não forão
bastantes tão graves oprobrios para que refolutamente animozo
sahisse com hum Tratado em que sustentava a sua opinião de
não ser a alma immortal por cuja causa sendo delatado pelos
Iudeos aos Magistrados de Amsterdão acuzando-o de ofender
igualmente a ley de Moyses como arruinar os fundamentos da
Religião Christaã, de que resultou depois de estar preso 18.
dias ser condenado em trezentos Florins com perda de todos os
livros. Cahindo de hum abismo, em outro mayor começou a
afirmar que a Ley de Moyses não fora dada por Deos, mas era
hum invento humano por conter muitos preceitos repugnantes à
ley da natureza, e não podia Deos como Author da mesma na-
tureza ser contrario a si mesmo; e certamente o seria se propu-
zesse aos homens preceitos, que se não podião observar. Sendo
acuzado por hum seu sobrinho de ser infiel aos Rabinos conci-
tou contra si a colera dos sequazes da Sinagoga com tal exces-
so, que tumultuariamente o levarão à prezença dos Juizes, e
sendo exarninado escrupulosamente das suas propofiçoens o
condenarão a que despido até a cintura, e descalso dentro da
Sinagoga fosse açoutado recebendo trinta, e nove açoutes não
chegando ao numero de quarenta por ser prohibido pela Ley.
Estimulado desta publica injuria resolveo vingar-se de quem
fora o seu principal author contra o qual disparando hum ba-
camarte como errasse o tiro, e fosse conhecido, com a mesma
arma se privou da vida no mez de Abril de 1640 como escreve
João Mallero in Prolog. ad Judaism. detect. pag. 71 . ou no
anno de 1647. como querem João Clerc Bib. Univ.Tom. 7. pag.
327. e João Christovão Wolfio Bib. Hebraic..pag. 131. §. 203.
Fazem delle menção Imbonato Bib. Latin. Hebraic. pag. 201.
25
col. 1. pag. 208. Bib. Magna Eccles. Tom. 1. pag. 70. col. 2.
Bayle Diccion. Historiq. e Critiq.Tom. 1. pag. mihi 67. Joan.
Moller Homonymoscopia. pag. 784. e Bern. Mart. Diefenbach.
in Judaeo convertend. p. 132.
*****
26
EXEMPLAR HUMANÆ VITAE
29
vanitatem eorum, quæ Pharisæi tradunt et observant, et repug-
nantiam, quam cum lege Mosis traditiones et institutiones eo-
rum habent. Post cæptum opus accidit etiam (oportet omnia
plane et vere, quemadmodum evenerunt, enarrare) ut cum re-
solutione et constanti deliberatione accederem sententiæ illo-
rum, qui legis veteris præmium et pœnam definiunt tempora-
lem, et de altera vita et immortalitate animorum minime cogi-
tant, eo præter alia nixus fundamento, quod predicta Lex Mosis
omnino taceat super his, et nihil aliud proponat observantibus
et transgressoribus, quam præmium, aut pœnam temporalem.
Valde lætati sunt hostes mei, simulatque intellexerunt me in
talem opinionem devenisse, existimantes, se satis amplam de-
fensionem apud Christianos per hoc solum adeptos fuisse, qui
ex speciali fide in lege Evangelii fundata, ubi expresse mentio
fit de æterno bono et supplicio, animæ immortalitatem et cre-
dunt, et agnoscunt. Hac intentione ducti, et ut mihi os in cæteris
obturarent, ac odiosum redderent inter ipsos Christianos, ante-
quam liber iste meus, quem scripseram, typis rnandaretur, libe-
llum in lucem ediderunt opera cujusdam Medici, cui inscriptio
erat : De Immortalitate Animarum. In hoc libello Medicus iste
copiose me lacerabat, quasi Epicuri partes tuentem (per hoc
tempus male ego de Epicuro sentiebam, et contra absentem et
inauditum ex aliorum iniqua relatione setentiam temere profe-
rebam; postquam vero aliquorum veritatis amaritium de illo
judicium, et doctrinam ejus ut erat, intellexi, doleo, quod ali-
quando talem virum amentem et insanum pronunciavi, de quo
etiam nunc non possum plene judicare, cum ejus scripta mihi
sint incognita): qui enim immortalitatem animarum negabat,
parum aberat, quin Deum abnegaret. Pueri istorum, a Rabbinis
et parentibus edocti, turmatim per plateas conveniebant, et ela-
tis vocibus mihi maledicebant, et omnigenis contumeliis irrita-
bant, hereticum et defectorem inclamantes. Aliquando etiam
ante fores meas congregabantur, lapides jaciebant, et nihil in-
tentatum relinquebant, ut me turbarent, ne tranquillus etiam in
30
domo propria agere possem. Postquam libellus ille contra me
fuerat editus, paravi me ego statim ad defensionem, et alium
libellum huic contrarium scripsi, immortalitatem impugnans
omnibus viribus, aliqua obiter eorum percurrens, in quibus
Pharisei a Mose recedunt. Simulatque libellus iste in lucem
prodiit, convenere Senatores et Magistratus Judaicus, et de me
accusationem proposuerunt apud Magistratum publicum: di-
centes me talem librum scripsisse, in quo immortalitatem ani-
morum negabam, nec solum illos lædebam, sed etiam Christia-
nam religionem convellebam. Ex hac eorum delatione fui ego
ad carcerem vocatus, et cum ibi fuissem per dies octo aut de-
cem, solutus fui sub cautione: Mulctam enim Prætor a me
postulabat, et tandem condemnatus sum, ut illi solverem flore-
nos trecentos cum amissione librorum.
33
donec me a statu priori dejicerent: Dixerunt enim inter se, non
faciet quicquam nisi coactus, et debet cogi. Si ægrotabam, so-
lus ægrotabam. Si aliquod aliud onus incumbebat, hoc inter sibi
valde optata expetebant. Si dicebam, ut esset aliquis judex ex
medio ipsorum, qui inter nos judicaret, nihil minus. Agere co-
ram Magistratu de talibus rebus, quod etiam cæpi tentare, res
erat valde molesta. Longa enim erat via lites persequi in judi-
cio, cui, præter multa alia onera, tot dilationes et procrastinati-
ones inhærent. Dixerunt isti sæpius, subjice de nobis, omnes
enim patres sumus, nec putes aut timeas nos tecum fœde actu-
ros. Dic jam semel paratum te esse, omnia implere, quæ nos
tibi imposuerimus et tunc relinque nobis exitum rei, nos enim
omnia faciemus, quemadmodum decet. Ego, licet super hoc
ipso quæstio vertebatur, et talis subjectio et acceptio, per vim
extorta, mihi erat valde ignominiosa, tamen, ut rem usque ad
finem perducerem, et exitum ejus oculis comprobarem, meip-
sum devici, constanter deliberans, omnia, quæ vellent, accepta-
re et experiri. Si enim fœda mihi imponerentur et inhonesta,
causam meam contra ipsos magis justificabant, et palam facie-
bant, quinam illorum erga me erat animus, quæ fides in ipsis.
Et tandem palam fiebat, quam fœdi et execrandi sint hujus
gentis mores, qui honestissimis hominibus, quasi vilissimis
mancipiis, ita fœde abutuntur. Ergo, dixi, omnia implebo,
quæcunque mihi imposueritis. Nunc animum mihi præbete,
quicunque honesti, prudentes et humani estis, et defixis mentis
oculis iterum atque iterum expendite, quale judicium isti in me
exercuerunt, particulares homines alienæ potestati subjecti, sine
ullo peccato meo.
35
fœdum quidquam! Hoc te percutiemus? dicebant, absit hoc
cogitare. Judicet nunc qui hæc audierit, quale esset spectacu-
lum, videre hominem senem, sortis non abjectæ, naturaliter
verecundum super omnem modum, in concione publica coram
omnibus tam viris quam mulieribus et pueris nudatum, et flagro
cæsum ex mandato judicum, et talium judicum, qui servi potius
abjecti, quam judices sunt. Consideret, qualis dolor cadere ad
pedes infestissimorum hostium, a quibus tot mala, tot injuriæ
acceptæ sint, et se conculcandum prosternere. Cogitet (quod
majus est, et miraculum portentosum, ac monstrum horrendum,
cujus intuitum et fœditatem exhorrescas et fugias dici merito
potest) fratres naturales et uterinos, ex eodem patre et matre
genitos, in eadem domo simul educatos, in hunc finem omnem
operam impendisse, oblitos dilectionis, quæ a me fuerunt per-
petuo dilecti, mihi enim erat hoc proprium et nativum, et obli-
tos multorum beneficiorum, quæ per me in vita acceperant,
quorum loco pro retributione habui ignominiam, damnum,
mala, tot fœda et nefanda, ut referre pudeat.
37
quæ proprie nostra est, et sine qua bene vivere non possumus,
nisi forte tanquam porci fœdissimi volutemur in fœdissimo luto
lucri. Sed dicunt nefarii illusores mei, totum jus suum in mul-
titudine constituentes, quid tu unus contra tam multos posses?
Fateor, et lugeo me a multitudine vestra oppressum esse; tamen
propter cogitationes istas, et sermones vestros, æstuat magis ira
in præcordiis meis, et clamat, impium esse erga impios, super-
bos, contumaces, et perseverantes, pietate uti. Unum dixi, de-
sunt vires.
41
hujus disserere; cum vos ipsi, qui talia fingitis, inter juris regu-
las habeatis, non esse facienda mala ut veniant bona. Nisi forte
inter mala non numeratis, mentiri in grave aliorum præjudi-
cium, occasionem pusillis dantes insaniendi. Quod si vel umbra
Religionis veræ, aut timoris in vobis esset, procul dubio non
modice timere debuissetis, quando tot mala in orbem terrarum
induxistis: tot dissidia inter homines excitastis: tot iniqua, et
impia instituistis, adeo ut parentes contra filios, et filios contra
parentes impie incitare non dubitaveritis. Unum vellem a vobis
interrogare, nempe, si quando ista fingitis propter hominum
malitiam, ut illos fictis terroribus in officio contineatis, alioquin
male victuros, subit vobis in mentem vos similiter homines
esse malitia repletos, qui nihil boni potestis præstare, nihil nisi
malum perpetuo exequi, aliis nocere, in neminem misericordi-
am exercere? Video jam vos mihi irasci, qui tale quidquam
ausus sum a vobis interrogare, et unumquemque vestrum stre-
nue contendere pro justitia actionum suarum. Nullus est, qui
non dicat se esse pium, misericordem, veritatis et justitia
amantem. Aut igitur falsa loquimini talia de vobis annuncian-
tes; aut falso accusatis omnium hominum malitiam, cui vestris
larvis et fictis terroribus mederi vultis, contumeliosi in Deum,
quem tanquam crudelissimum carnificem et horribilem torto-
rem oculis hominum exhibetis, contumeliosi in homines, quos
ad tam deplorandam miseriam natos esse vultis, quasi illa satis
non sint, quæ cuique in vita accidunt. Sed esto, quod magna sit
hominum malitia, quod et ipse fateor, et vos ipsi mihi testes
estis, cum sitis extreme malitiosi, alioquin talia commenta
comminisci non valeretis; quærite remedia efficacissima, quæ
citra majorem læsionem morbum hunc ab hominibus omnibus
generaliter expellant, et deponite larvas, quæ tantum contra
infantes et stolidos vim habent. Si vero morbus hic in homini-
bus insanabilis est, desistite a mendaciis, nec tanquam inepti
medici promittatis sanitatem, quam non potestis præstare.
Contenti estote inter vos leges justas et rationabiles stabilire:
42
bonos præmiis ornare, malos digno supplicio afficere: eos, qui
vim patiuntur, a violentis liberate, ne clament justitiam non
fieri in terra, nec esse, qui infirmum eripiat a manu fortioris.
Profecto si homines rectam rationem sequi vellent et vivere
secundum naturam humanam, omnes se mutuo diligerent, om-
nes sibi mutuo condolerent. Unusquisque alterius calamitatem,
quantum posset, sublevaret, vel saltem nullus alium gratis
offenderet. Quæ contra fiunt, contra humanam naturam fiunt; et
multa fiunt, quia homines diversas leges a natura abhorrentes
sibi invenerunt, et alius alium irritat malefaciendo. Multi sunt,
qui ficte ambulant, et se extreme religiosos simulant, et incau-
tos decipiunt, tegumento Religionis, ad capiendos, quos pos-
sint, abutentes; qui recte comparari possunt furi nocturno, qui
somno sopitos, nec tale quid cogitantes, per insidias adoritur.
Hi in ore solent habere, Judæus sum, Christianus sum, crede
mihi, non te decipiam. O! malæ bestiæ: ille, qui nihil horum
dicit, et se tantum hominem profitetur, multo melior vobis est.
Si enim ei tanquam homini non vultis credere, potestis cavere;
vos autem quis cavebit, qui, amicti ficto pallio sanctitatis fictæ,
tanquam fur nocturnus incautos et dormientes per foramina
invaditis ac misere strangulatis?
44