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Sebenta Português 12º ano

Contos

Manuel da Fonseca «Sempre é uma companhia»


Maria Judite de Carvalho «George»

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Manuel da Fonseca «Sempre é uma


companhia»
O real é o alimento para a escrita.

Manuel da Fonseca nasceu em Santiago do


Cacém, a 15 de outubro de 1911 e morreu em
Lisboa, a 11 de março de 1993. Escreveu em prosa
e em poesia, foi contista, romancista, poeta e
cronista.

Nas suas obras, carregadas de intervenção social e política, relata como


poucos a vida dura do Alentejo e dos alentejanos.

Era presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores quando esta


atribuiu o Grande Prémio da Novelística a José Luandino Vieira pela sua
obra Luanda, o que levou ao encerramento desta instituição.

Manuel da Fonseca, um dos vultos do Neorrealismo literário Português,


descreveu, como ninguém, a paisagem, sobretudo aquela do Alentejo,
aquela que viria a ser símbolo revolucionário ao Estado Novo. Local de
valores primordiais, é aí onde se senta a maior tristeza, o tédio e a
desesperança. Para além da denúncia social evidente, vemos também a
caracterização das personagens: as paixões, as desilusões, as memórias do
passado perto ou distante. Estas situações são evidenciadas nas reuniões
da população nas tabernas ou nas pracetas da aldeia, por exemplo.

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O neorrealismo permite, assim, dar relevo às camadas populares através


de uma análise profunda das condições de vida e das contradições da
organização social. Não interessa a esta corrente literária os motivos
populares, mas a posição ideológica tomada perante a realidade.

Solidão e convivialidade.
O título «Sempre é uma companhia» remete para a companhia que a rádio
vinha trazer à população isolada, invadindo a taberna e as suas vidas, com
as notícias da II Guerra Mundial.

No conto de Manuel da Fonseca, as primeiras páginas anunciam o


isolamento geográfico, a solidão e o silêncio, bem como referem a chegada
do automóvel.

Os habitantes de Alcaria viviam em condições indignas, de tao forma que


perderam, praticamente, as suas características humanas.

A chegada da rádio viria a permitir a ligação com o mundo, a tomada de


contato com informação nova e que permitia aos habitantes ter novos
assuntos de conversa. Até mesmo as mulheres, que não costumavam
frequentar a taberna, passaram a fazê-lo.

Se a vinda da rádio havia interferido com a vida do casal, a possibilidade


de ficarem sem a rádio era dolorosa, pois os habitantes regressariam
novamente ao seu isolamento. A mulher de Batola, apresenta-se, no final,
com um ar ternurento, contrastando com a altitude altiva inicial,
afirmando que a radiofonia «sempre é uma companhia neste deserto»

Caracterização das personagens

 António Barrasquinho, o Batola – preguiçoso, improdutivo,


sonolento, bêbado, bate na mulher; tem nome e alcunha típica do
Alentejo; a sua indumentária é própria do homem alentejano. A
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morte do seu amigo Rata, acentua a sua solidão. É «atarracado, as


pernas arqueadas», usa «chapeirão» e um «lenço vermelho atado
ao pescoço».
 Mulher de Batola – expedita, trabalhadora, incansável, é ela quem
abre a venda e atende os clientes, voltando depois para a lida da
casa; ela é «alta, grave, um rosto ossudo», dotada de um sossego
único, característica advinda da sua possibilidade de por e dispor
do governo da casa e do negócio.
 Rata – era mendigo e viajante, uma espécie de mensageiro. Quando
Batola o escutava a tarde inteira, parecia que também ele havia
viajado pelo mundo. Quando deixou de poder viajar, suicidou-se.
 Caixeiro-viajante – vendedor de aparelhos radiofónicos,
comerciante e amigo de vender.
 Os homens de Alcaria – figurinhas metaforicamente apresentadas
com gado e que vivem em casas «tresmalhadas»: «o rebanho que se
levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo
cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão.» Têm
falta de esperança numa vida velhor. Batola contrasta com estes,
pois pode preguiçar, bebe o melhor vinho da venda, tem um fio de
ouro no colete, mas é solidário com os aldeãos. Partilha com este, a
condição animalesca dos conterrâneos: “rumina” a revolta; os
suspiros saem-lhe “como um uivo de animal solitário”.

A intriga

 Peripécia banal: um engano de percurso leva um vendedor a


Alcaria.
 Isolamento geográfico da aldeia e ausência de comunicação:
abandono, solidão e desumanização da população. Chegada do
novo aparelho: a radiotelefonia.
 Ligação ao mundo: música e notícias.
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 Alteração de comportamentos: devolução da humanidade.

O espaço

 Aldeia de Alcaria: “quinze casinhas desgarradas e nuas”.


 Estabelecimento do casal Barrasquinho: “a venda” é um local onde
reina o desleixo.
 “Fundos da casa”: espaço de habitação sombrio separado da venda.
 Locais “longínquos” por onde viajava Rata: Ourique, Castro
Marim, Beja.

O tempo
 Tempo histórico: anos 40 do século XX (referência à eletricidade e à
telefonia).
 Passagem do tempo condensada: “há trinta anos para cá”, “todas
as manhãzinhas”.
 Tempo sintetizado: da chegada do vendedor à partida do vendedor
e prazo de entrega do aparelho – um mês.

O narrador
 O narrador de terceira pessoa narra os acontecimentos, comenta,
conhece o passado e o mundo interior das personagens (presença:
não participante; ponto de vista: subjetivo; focalização:
omnisciente)
 O narrador centra a atenção do leitor no abandono e solidão
sentidos pelo protagonista.

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 O narrador conhece os pensamentos de Batola e desvenda como se


vão formando: o desgosto leva-o a fechar-se num mundo de
evocações

A atualidade
 Isolamento e falta de convivialidade.
 Relações entre homem e mulher.
 Vícios sociais: o alcoolismo, a violência doméstica.
 As inovações tecnológicas e alterações de hábitos sociais.

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Plural 12 ano, Raiz, 2018.
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Maria Judite de Carvalho «George»

Nasceu em Lisboa a 18 de setembro de 1921 e morreu


na mesma cidade em 18 de janeiro de 1998.

A obra de Maria Judite de Carvalho é constituída


basicamente por novelas, contos e crônicas, ocorrendo
frequentemente uma interpenetração entre esses gêneros, sendo difícil,
desta forma, sua delimitação.

A escritora publicou uma infinidade de crónicas em jornais e revistas,


tendo sido algumas delas reunidas e publicadas em livros, mas a grande
maioria ainda não foi recolhida. A crónica foi, portanto, o género predileto
de Maria Judite de Carvalho.

 As três idades da vida; o diálogo entre realidade, memória


e imaginação; metamorfoses da figura feminina; a
complexidade da natureza humana.

 O título George rapidamente adquire mais duas formas: Gi e


Georgina, permitindo identificar a mesma personagem em três
fases distintas da vida, isto é, a juventude, a maturidade e a idade
adulta; esta é a idade ideal para olhar para trás com espírito crítico
e também para a frente, com esperança ou desalento, mas com
alguma lucidez;
 George é uma pintora de sucesso, com 45 anos, que mora em
Amesterdão;
 Esta é uma súmula da visão feminina de Maria Judite de Carvalho;
 Com 20 anos, Gi surge envolta numas pinceladas; passado
recuperado pela memória; através do diálogo imaginário
(solilóquio), a mocidade dela é apresentada com a tacanhez
provinciana, o ambiente sociocultural, a falta de sintonia com a

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família, a vocação artística e a vontade de fugir às restrições


impostas pelo lugar de nascimento;
 Numa viagem de comboio (metáfora da passagem e da mudança)
George confronta-se com Georgina, uma mulher velha que vive
muito confortavelmente; o dinheiro advém das vendas da pintura
de George; afirma que o único crime é a velhice, pois embora não
tenha marido nem filhos, ela tem-se a si própria, não tendo sido
vencida pelos estereótipos antigos de família;
 Ser velho pode ser mau, mas ser jovem ou estar a meio caminho
também pode não ser assim tão entusiasmante;
 A viagem e a errância são a metáfora da vida – um outro tema deste
conto.

“George” e a questão da(s) identidade(s) 2

Ao iniciarmos a leitura do conto “George” percebemos, logo nas primeiras linhas,


um elemento que causa estranhamento: a descrição dos vestidos daquelas que, a
princípio, seriam duas personagens: “Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a
aragem empurra-os de leve, um deles para o lado direito de quem vai, o outro para
o lado direito de quem vem, ambos na mesma direção, naturalmente.”
(CARVALHO, 1995, p. 32). O trecho transcrito nos remete à imagem do espelho,
já que os dois sujeitos que caminham têm seus vestidos empurrados em sentido
contrário, mas “ambos na mesma direção, naturalmente”, como uma imagem
refletida em espelho. A partir da leitura desse trecho e de tal reflexão, sugere-se a
possibilidade de tratar-se de uma só pessoa e não duas como se havia imaginado
antes. A questão, portanto, que nos parece ser a principal deste conto, (mas não a
única) é a fragmentação da representação unitária da identidade, já que a
personagem George dialoga com seu passado e com seu futuro personificados em
Gi e Georgina, respetivamente. Diversos críticos, como o já citado Stuart Hall
(2006, p. 12), apontaram para uma compreensão da identidade como algo
complexo e fragmentado: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma
identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de
uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não
resolvidas.” Gi, essa suposta “outra” pessoa com quem George se encontra,
revela-se como alguém mais jovem. A descrição de Gi apresenta-se extremamente
difusa: faltam-lhe contornos precisos. Ora, se considerarmos Gi uma outra
figuração de George, essa descrição imprecisa poderia ser explicada como o resgate
pela memória, já que esta sempre recupera fatos de forma difusa. George estaria,
então, travando um diálogo com o seu passado, através da mediação da memória,
que o resgata sem precisão. Gi seria quem George foi um dia e quer esquecer. Para
complexificar ainda mais esta questão, surge na narrativa Georgina. Agora, mais

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Renato Quintella de Oliveira, «George», a errância em busca de liberdade in
https://periodicos.fclar.unesp.br/itinerarios/article/download/9703/6390
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velha que George, em oposição à Gi, Georgina passa a aconselhar a artista plástica
renomada. A narrativa dá diversos indícios de que se trata, de fato, de um
desdobramento do próprio sujeito que finge ser outro, ao projetar-se, agora no
futuro. À maneira de Fernando Pessoa, Maria Judite de Carvalho constrói um ser
disperso, sem unidade aparente. George aparece multifacetada e, tentando
compreender-se, trava um intenso diálogo (ou monólogo?) consigo própria. O
narrador apresenta ao leitor o que se passa no espaço interior de George: o
confronto incessante entre esses diferentes “eus”. Tentando compreender e
esquecer o que foi, George dialoga com Gi, jovem de 18 anos e ainda ingênua e
inexperiente em relação às decisões importantes da vida. Tentando visualizar seu
futuro, George dialoga com Georgina, senhora de quase 70 anos, já vivida,
experiente e fisicamente decrépita, que não é, contudo, quem George quer ser.
Nesta busca incessante e permanente, a personagem George procura uma
explicação que confira sentido à sua existência interior. Terá encontrado? Ou
julga ter encontrado pelo fato de ser bem sucedida, artística e financeiramente?

A busca de George: a febre de além


Por não aceitar os espaços designados para Gi, George resolveu partir. Em busca
de uma identidade, o sujeito da narrativa torna-se transgressor, rompe com as
antigas relações, transforma sua aparência e habita novos espaços. Ao abandonar
a sua raiz – a casa na vila – George cria asas e, ao não desejar criar vínculos, aluga
casas com mobília (novo espaço privado) e adota o estilo de vida da cidade grande
(novo espaço público). Na cidade, a personagem se desenvolve cultural e
economicamente. Torna-se uma profissional das artes: a pintura, que seria um
hobby para Gi, transforma-se em profissão para George. Ela ganha o mundo, ao
viajar para vários países. A relação de submissão, na casa dos pais e na vila, é
substituída por uma relação de poder absoluto sobre si. Nesse novo espaço público
e privado, a estabilidade do sujeito não depende do casamento ou dos filhos que a
completarão como mulher. A possibilidade de completude se baseia nas várias
experiências amorosas e realizações profissionais. O respeito adquirido não se
associa ao seu caráter como exímia dona de casa, mas como alguém que
multiplicou seu capital através do próprio trabalho. No encontro com Georgina,
a narrativa propõe uma reflexão a respeito da efemeridade do poder em uma
sociedade excludente. De acordo com a futura versão de George, a casa mobiliada
e a cidade grande não lhe farão sentido em sua velhice. Sua capacidade de
produção não será mais a mesma e ela será excluída do jogo de interesses. Através
da fala de Georgina, a narrativa nos deixa a seguinte questão: nessa constante
troca de espaços, de valores e de ausência de determinados conhecimentos, chegará
George a algum lugar?: “E, se for um pouco sensata, ou se souber olhar em volta,
descobrirá que este mundo já não lhe pertence, é dos outros, dos que julgam que
Baden Powell é um tipo que toca guitarra e que Levi Strauss é uma marca de
calças.” (CARVALHO, 1995, p. 32). A vontade da personagem é o motor que
impulsiona todas as suas conquistas, principalmente, a ânsia de liberdade. Por
isso, George, ao optar pela não criação de laços afetivos permanentes, não quer se
prender a móveis e família. Dessa forma, estará sempre pronta a partir. Há,

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inclusive, uma incerteza quanto à sexualidade da personagem, que assumiu um


pseudônimo ambíguo (masculino/feminino), tanto que não se sabe se “o último
dos seus amores” é um homem ou uma mulher: “[...] Vai morar com o último dos
seus amores.” (CARVALHO, 1995, p. 44). Além disso, o nome George não é um
nome próprio típico de Portugal. Uma família portuguesa tradicional não
nomearia um de seus membros por George, o que reafirma a negação de uma
identidade originária e o desejo de ser outro. Observa-se, assim, uma diluição de
fronteiras antes demarcadas, no que diz respeito às questões de gênero, à
temporalidade (passado, presente, futuro) e aos níveis do real e do imaginário,
presentes no espaço textual.

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