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RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar em que medida a jurisprudência da Corte Interamericana
de Direitos Humanos acerca do controle de convencionalidade pode contribuir para o aprimoramento do
instituto no Brasil. O estudo inicia com uma análise teórica acerca do controle de convencionalidade, em
que são feitas digressões a respeito do conceito e das tipologias inerentes ao instituto, bem como sobre as
questões de Direito Constitucional Internacional que se relacionam com o mesmo e a sua conformação
com as normas previstas na Constituição Federal brasileira. Então, passa-se a abordar, de modo mais
específico, o funcionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e as sentenças da Corte
Interamericana que versaram sobre o controle de convencionalidade. Por fim, é feita uma análise do caso
Gomes Lund e outros Vs. Brasil que fornece importante subsídios para a investigação do problema
proposto.
ABSTRACT: This article aims to analyze to wich extent the jurisprudence of the Inter-American Court
of Human Rights about the conventionality control can contribute to the improvement of the institute in
Brazil. The study starts with a theoretical analysis about the conventionality control, in wich digressions
about the concept and the types inherent in the institute are made, as well as the International
Constitutional Law issues that relate to it and its conformation with standards set by the brazilian Federal
Constitution . Then, it’s approached, more specifically, the operation of the Inter-American System of
Human Rights and the judgments of the Inter-american Court that were about control of conventionality .
Finally, it is made an analysis about the case Gomes Lund and others vs. Brazil that provides important
benefits to research the proposed problem.
INTRODUÇÃO
1
Graduado e Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Maranhão em Direito pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade
do Sul de Santa Catarina. Advogado e professor universitário.
Dentre as diversas e interessantes questões surgidas dessa intersecção entre
o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Constitucional, destaca-se o
chamado controle de convencionalidade, que se apresenta como um importante
instrumento para evitar que a atividade legiferante dos órgãos do Poder Legislativo
brasileiro implique em descumprimento de compromissos assumidos pelo país quando
da assinatura e ratificação dos TIDH.
Embora a jurisprudência dos tribunais pátrios ainda seja bastante incipiente
em admitir e efetivar o controle de convencionalidade das leis, a Corte Interamericana
de Direitos Humanos (CorteIDH), que corresponde ao órgão jurisdicional do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), tem fornecido importantes contribuições
para a consolidação e efetivação do instituto, através de diversas sentenças em que a
Corte realiza o referido controle e ainda determina que os tribunais do país condenado
também o façam.
Diante desse cenário, pretende-se analisar, no presente trabalho, em que
medida a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos pode contribuir
para o aprimoramento do controle de convencionalidade no Brasil.
Por ser um tema cujo estudo demanda conhecimentos de Direito
Constitucional Internacional e Direito Internacional dos Direitos Humanos, será feita
uma pesquisa bibliográfica, que partirá de obras doutrinárias desses ramos do Direito,
mas que também contará com o exame de julgados de tribunais brasileiros e da Corte
Interamericana de Direitos Humanos acerca de assuntos relacionados ao tema.
Quanto à estruturação do artigo, em um primeiro momento, será feita uma
análise acerca das questões suscitadas no âmbito do Direito Constitucional Internacional
que motivaram o surgimento do controle de convencionalidade das leis, seguida de um
estudo acerca das normas da Constituição Federal brasileira de 1988 que tornam
possível a aplicação do instituto no Brasil.
Já o terceiro tópico versará sobre as tipologias relativas ao controle de
convencionalidade cuja compreensão é necessária para o estudo da sua aplicação no
âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Brasil.
Por fim, após a apresentação de algumas considerações concernentes à
criação, à estrutura e ao funcionamento do SIDH, será feita uma análise da
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca do controle de
convencionalidade, com um enfoque especial na sentença do caso Gomes Lund e outros
Vs. Brasil, o único caso em que a CorteIDH realizou o controle de convencionalidade
de uma lei brasileira e determinou que os juízes e tribunais do país também o fizessem.
2
Vale ressaltar que a expressão “controle de convencionalidade” corresponde a um neologismo criado
pelo Conselho Constitucional francês, na Decisão n. 74-54 DC, de 15 de janeiro de 1975, ocasião em que
“entendeu não ser competente para analisar a convencionalidade preventiva das leis (ou seja, a
compatibilidade destas com os tratados ratificados pela França, notadamente – naquele caso concreto – a
Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950), pelo fato de não se tratar de um controle de
constitucionalidade propriamente dito, único em relação ao qual teria competência dito Conselho para se
manifestar a respeito” (MAZZUOLI, 2011, p.81-82).
3
Neste ponto, convém transcrever os esclarecimentos feitos por Piovesan acerca do Direito
Constitucional Internacional: “Por Direito Constitucional Internacional subentende-se aquele ramo do
Direito no qual se verifica a fusão e a interação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional,
interação que assume um caráter especial quando esses dois campos do Direito buscam resguardar um
mesmo valor — o valor da primazia da pessoa humana —, concorrendo na mesma direção e sentido.[...]
Isto é, o trabalho se atém à dialética da relação entre Constituição e Direito Internacional dos Direitos
Humanos, na qual cada um dos termos da relação interfere no outro, com ele interagindo” (PIOVESAN,
2013a, p.52).
Jurídicos internos para os tratados constituem um requisito indispensável para que eles
produzam efeitos práticos.
Desta forma, observa-se que, assim como o controle de constitucionalidade
surgiu para assegurar a supremacia da Constituição no Ordenamento Jurídico interno e
para evitar que a produção normativa do Poder Legislativo comprometesse a
concretização das normas constitucionais (MENDES; BRANCO, 2014), o controle de
convencionalidade surge como uma forma de assegurar que a eficácia dos tratados
internacionais não seja comprometida pela atuação dos poderes constituídos de cada
país.
Por outro lado, quanto à questão relativa às formas de solucionar os
conflitos existentes entre os tratados e as normas jurídicas de Direito Interno, que
também se relaciona diretamente com o instituto do controle de convencionalidade,
como se observa na pesquisa feita por Mirkine-Guetzévitch (2009), os países têm
adotado diversos posicionamentos a esse respeito. Há aqueles que consideram que os
tratados sempre devem prevalecer, mesmo sobre as normas constitucionais, outros que
consideram que o tratado deve prevalecer sobre as leis, mas não sobre a Constituição e,
por fim, aqueles que consideram que mesmo as leis ordinárias prevalecem sobre os
compromissos firmados pelo país através de um tratado internacional. Sendo que essa
pluralidade de entendimentos também têm se manifestado no âmbito doutrinário4.
Considerando que uma análise mais profunda dos argumentos que
fundamentam cada uma dessas posições excederia os limites e a proposta do presente
trabalho, adotar-se-á como premissa o posicionamento de Mirkine-Guetzévitch acerca
de como a solução do conflito normativo em comento deve ocorrer em países que, como
o Brasil, possuem uma jurisdição constitucional. Diz o autor:
El problema de la validez interna de los Tratados internacionales recibe una
solución constitucional particular en los Estados en que funciona la justicia
constitucional. Si la Constitución reconoce al Derecho internacional como
parte integrante del Derecho nacional y si en ese país funciona la justicia
constitucional, el conflicto entre la ley y el Tratado no puede tener más que
una solución: la primacía del Tratado. [...] (MIRKINE-GUETZÉVITCH,
2009, p.298).
4
Mendes e Branco, ao analisarem o art.5º,§2º da Constituição Federal de 1988 afirmam que: “Essa
disposição constitucional deu ensejo a uma instigante discussão doutrinária e jurisprudencial – também
observada no direito comparado – sobre o status normativo dos tratados e convenções internacionais de
direitos humanos, a qual pode ser sistematizada em quatro correntes principais, a saber: a) a vertente que
reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções em matéria de direitos humanos; b) o
posicionamento que atribui caráter constitucional a esses diplomas internacionais; c) a tendência que
reconhece o status de lei ordinária a esse tipo de documento internacional; d) por fim, a interpretação que
atribui caráter supralegal aos tratados e convenções sobre direitos humanos” (2014, p.537).
Logo, para os fins deste artigo, considerar-se-á como base para o
reconhecimento da superioridade hierárquica dos tratados internacionais sobre as leis do
país – que corresponde a um pressuposto do controle de convencionalidade das leis – a
existência de normas constitucionais que confiram esse status especial aos tratados.
Tal posicionamento, no entendimento deste pesquisador, é o que melhor
atende à necessidade de sujeição dos Estados a exigências oriundas de normas
supranacionais - que é crucial para o funcionamento do Direito Internacional - sem
comprometer a soberania dos Estados, que corresponde a um outro elemento de
legitimação da Ordem Jurídica internacional que se pretende constituir através dos
tratados internacionais (PIOVESAN, 2013a).
Além disso, a opção por esse entendimento também se justifica por ele estar
em conformidade com a cultura jurídica brasileira, manifestada tanto no âmbito
doutrinário5 quanto jurisprudencial6.
A partir dessa premissa, verifica-se que é necessário discorrer sobre a
abertura da Constituição brasileira para os tratados internacionais, para que se possa
analisar a conformidade do instituto do controle de convencionalidade com o
Ordenamento Jurídico pátrio.
5
Cfr.PIOVESAN (2013b); MAZZUOLI (2011); CANÇADO TRINDADE (2003).
6
Conforme será visto no tópico posterior, o entendimento firmado no Supremo Tribunal Federal a partir
do julgamento do RE nº 466.343-1 (MENDES; BRANCO, 2014) no sentido de reconhecer a
superioridade dos tratados em relação às leis do país têm como fundamento as normas previstas na
Constituição Federal de 1988.
fundamentais que, apesar de não constarem naquele rol, podem ser considerados como
tal, quando decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos ou do regime e
dos princípios adotados pelo Ordenamento Jurídico Constitucional pátrio, integrando,
assim, o “bloco de constitucionalidade”7.
Realmente, como assevera Sarlet:
[...]para além do conceito formal de Constituição (e de direitos
fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos
que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental
da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo.(SARLET,
2004, p.91)
7
Como ensina Carpio Marcos (2005, p.2-3): “La expresión ‘bloque de constitucionalidad’, de origen
francés, y desconocida en el derecho constitucional de todo el siglo XIX y casi todo el XX, no es de cuño
legislativo o jurisprudencial, sino doctrinal. La opinión más extendida es que ésta fue acuñada a
mediados de la década de los 70´ por Louis Favoreau, quien la utilizó en un trabajo dedicado a explicar
la Decisión D-44, de 16 de julio de 1971, emitida por el Consejo Constitucional francês.[...] En dicho
trabajo Favoreau daba cuenta de una Decisión innovadora del Consejo Constitucional, mediante la cual
declaró la inconstitucionalidad de una ley, que modificaba, a su vez, una disposición legislativa de 1901,
que limitaba el régimen de las asociaciones. Para declarar su invalidez, el Consejo consideró que la ley
cuestionada debía ser analizada no sólo a partir de la Constitución francesa de 1958, sino también
tomando como norma paramétrica a la Declaración Francesa de los Derechos del Hombre y del
Ciudadano de 1789.”
possuindo, assim, o status sui generis de norma supralegal8. É válido transcrever os
ensinamentos de Mendes e Branco sobre a matéria:
Uma importante corrente doutrinária sustentou que os direitos humanos
previstos em tratados internacionais configurariam não apenas normas de
valor constitucional, como também cláusulas pétreas. A tese não obteve a
adesão do Supremo Tribunal Federal, que, antes do advento da Emenda
Constitucional n. 45/2004, diversas vezes recusou status constitucional aos
direitos individuais previstos em tratados como o Pacto de San José.
A partir da Emenda Constitucional n. 45/2004, passou-se [...] a admitir que os
tratados “que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais”. Nesses casos, e apenas nesses,
essas normas gozarão de status constitucional. A emenda não impede que se
opte pela aprovação de tratado sobre direitos humanos pelo procedimento
comum, meio que facilita o seu ingresso no ordenamento brasileiro. As
normas do tratado valerão, nessa hipótese, com status infraconstitucional. Os
tratados aprovados antes da Emenda continuam a valer como normas
infraconstitucionais, já que persiste operante a fórmula da aprovação do
tratado com dispensa das formalidades ligadas à produção de emendas à
Constituição da República. Nada impede, obviamente, que esses tratados
anteriores à EC 45 venham a assumir, por novo processo legislativo
adequado, status de Emenda Constitucional. Vale o registro de precedentes
do Supremo Tribunal Federal, posteriores à EC 45/2004, atribuindo status
normativo supralegal, mas infraconstitucional, aos tratados de direitos
humanos. (MENDES; BRANCO, 2014, p.135)
10
Neste ponto, é importante fazer menção ao fato de Mazzuoli defender que, embora o STF não
reconheça sequer a supralegalidade dos tratados internacionais comuns (que não versam sobre direitos
humanos), aqueles tratados possuiriam status de norma supralegal. No entanto, o referido autor não
considera que tais tratados seriam passíveis de controle de convencionalidade, por entender que tal
instituto se aplicaria apenas aos tratados equiparados a normas constitucionais, enquanto que os demais
estariam sujeito ao “controle de supralegalidade” (MAZZUOLI, 2011, p.75).
necessárias para que se possa compreender melhor as contribuições analisadas neste
trabalho.
11
A título de exemplo, Menezes menciona que, assim como ocorre em relação ao controle de
constitucionalidade, também seria possível classificar o controle de convencionalidade como “prévio (ou
preventivo)” ou “posterior (ou repressivo)” (2009, p.264), considerando-se como critério o momento da
realização controle.
devem realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos. O
fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos
humanos) imediatamente aplicáveis no âmbito do direito doméstico, garante
a legitimidade dos controles de convencionalidade e de supralegalidade das
leis no Brasil. (2011, p.133)
12
Neste ponto, é importante destacar que a tipologia dos modelos de controle de constitucionalidade que
os distingue em concentrado e difuso tem sido objeto de convincentes críticas baseadas na
impossibilidade de se “reconducir los muy heterogéneos y plurales sistemas de justicia constitucional de
nuestro tiempo a una clasificación tradicionalmente sustentada en una única o principal variable”
(SEGADO, 2009, p.210). Porém, por se tratar de uma classificação amplamente aceita pela doutrina e
jurisprudência brasileiras e por ser a mesma suficientemente adequada aos propósitos do presente
trabalho, ela será aqui utilizada sem maiores reservas.
direitos humanos aprovados pela sistemática do art. 5.º, § 3.º, da Constituição
e em vigor no país. (2011, p.148)
.
Uma importante ressalva a ser feita, a esse respeito, corresponde ao fato de
Mazzuoli (2011) considerar que, no Brasil, apenas os tratados internacionais de direitos
humanos aprovados conforme o procedimento previsto no art.5º,§3º da Constituição
Federal seriam sujeitos ao controle concentrado de convencionalidade, por serem os
únicos que são formal e materialmente constitucionais. Já os demais, por serem apenas
materialmente constitucionais, somente estariam sujeitos ao controle difuso.
Entende-se, todavia, que essa conclusão é equivocada, porque, além de não
haver regras na Constituição Federal que excluam do controle concentrado as normas
materialmente constitucionais, tal entendimento não é compatível com uma
interpretação teleológica das normas que regem o controle vertical das normas jurídicas
do país e nem com o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.
Com efeito, tendo em vista que a finalidade do controle concentrado de
constitucionalidade, assim como a do controle difuso, é a de resguardar a superioridade
hierárquica das normas constitucionais e que a atribuição de status constitucional a uma
norma jurídica é suficiente para que ela adquira essa superioridade hierárquica,
independentemente dela ser apenas materialmente constitucional ou formal e
materialmente constitucional, não há como se considerar correta a distinção de
tratamento proposta por Mazzuoli.
Além disso, não se pode deixar de levar em conta o princípio da máxima
efetividade das normas constitucionais, que, como ensina Canotilho, traduz-se na
exigência de que “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que mais
eficácia lhe dê” (2003, p.1224).
Logo, em face do aludido princípio e ante a ausência de restrição expressa
na Carta Magna de 1988 que limite a aplicação do controle concentrado às normas
formal e materialmente constitucionais, os dispositivos constitucionais que
regulamentam essa forma de controle devem ser interpretados de modo a abranger,
também, as normas que são apenas materialmente constitucionais (no caso, os tratados
de direitos humanos não submetidos ao procedimento do art.5º,§3º da Constituição), a
fim de assegurar a máxima eficácia das mesmas.
Ainda a respeito do controle concentrado, convém fazer menção à
observação de Mazzuoli (2011) no sentido de que o controle de convencionalidade
realizado pela Corte Interamericana é sempre concentrado, na medida em que, por ser a
Corte o único órgão jurisdicional do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, não
haveria como se falar em controle difuso no âmbito daquele sistema.
Para encerrar o presente tópico, resta apenas discorrer sobre o controle
difuso de convencionalidade das leis. Quanto a este tema, é também Mazzuoli quem
observa que:
Para realizar o controle de convencionalidade (ou o de supralegalidade) das
normas de direito interno, os tribunais locais não requerem qualquer
autorização internacional. Tal controle passa, doravante, a ter também caráter
difuso, a exemplo do controle difuso de constitucionalidade, em que qualquer
juiz ou tribunal pode (e deve) se manifestar a respeito. Desde um juiz
singular (estadual ou federal) até os tribunais estaduais (Tribunais de Justiça
dos Estados) ou regionais (v.g., Tribunais Regionais Federais) ou mesmo os
tribunais superiores (STJ, TST, TSE, STF etc.), todos eles podem (e devem)
controlar a convencionalidade ou supralegalidade das leis pela via incidente.
À medida que os tratados forem sendo incorporados ao direito pátrio os
tribunais locais [...] podem, desde já e independentemente de qualquer
condição ulterior, compatibilizar as leis domésticas com o conteúdo dos
tratados (de direitos humanos ou comuns) vigentes no país. (2011, p.134)
Por esta razão é que o presente estudo se concentrará apenas nas decisões
proferidas pela CorteIDH no exercício de sua competência jurisdicional.
Um outro caso que merece destaque é o Barrios Altos Vs. Peru, relativo à
execução de quinze pessoas por agentes policiais que não foram punidos em razão de
leis de anistia promulgadas pelo Estado peruano. O referido caso foi julgado pela
CorteIDH em 14 de março de 2001. Naquela ocasião:
[...] a Corte entendeu que a promulgação e aplicação das Leis de Anistia nº
26479 e 26492 no Estado Peruano caracterizou afronta aos artigos 1.1 e 2 do
Pacto de São José, violando os seu artigos 4 (direito à vida), 5 (integridade
pessoal), 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial), declarando que
referidas leis de anistia eram incompatíveis com a Convenção Americana e,
em consequência, careciam de efeitos jurídicos. [...] Por essas razões, sendo
referidas leis incompatíveis com o Pacto de São José e carecedoras de efeitos
jurídicos, concluiu a Corte que elas não podem continuar a ser obstáculo à
investigação dos fatos e à identificação e sanção dos responsáveis, não
apenas com relação àquele caso sob julgamento, mas a qualquer outro caso
igual ou similar. (MENEZES, 2009, p.169-170)
Assim, pela primeira vez a Corte Interamericana declarou que o fato de uma
norma jurídica de Direito doméstico ser contrária às disposições da Convenção
Americana implica na impossibilidade de que ela produza efeitos jurídicos. Conclusão
essa que é de crucial importância para a efetivação do controle de convencionalidade.
Por outro lado, o termo controle de convencionalidade, como assevera
Pizzolo, “[...] surge como expresión de manera directa y concluyente, por primera vez
en la jurisprudencia de la Corte Interamericana, en el caso Myrna Mack Chang (2003)
de las consideraciones del voto concurrente del juez García Ramírez” (2013, 429-430).
Naquele caso, embora não tenha sido afirmada expressamente a
incompatibilidade da legislação da Guatemala com os tratados de direitos humanos da
OEA, o juiz supracitado, em seu voto concorrente, argumentou que:
27. Para los efectos de la Convención Americana y del ejercicio de la
jurisdicción contenciosa de la Corte Interamericana, el Estado viene a
cuentas en forma integral, como un todo. En este orden, la responsabilidad
es global, atañe al Estado en su conjunto y no puede quedar sujeta a la
división de atribuciones que señale el Derecho interno. No es posible
seccionar internacionalmente al Estado, obligar ante la Corte sólo a uno o
algunos de sus órganos, entregar a éstos la representación del Estado en el
juicio-sin que esa representación repercuta sobre el Estado en su conjunto--
y sustraer a otros de este régimen convencional de responsabilidad, dejando
sus actuaciones fuera del “control de convencionalidad” que trae consigo la
jurisdicción de la Corte internacional. (CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS, 2003, p.7)
15
É útil salientar que nas decisões que determinaram o arquivamento das duas primeiras ações penais
acima mencionadas, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região afirmou expressamente que “A decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso Gomes Lund, cujo resultado, ao que
se afirma, impôs ao Estado Brasileiro a realização, perante a sua jurisdição ordinária, de investigação
penal dos fatos ocorridos na chamada Guerrilha do Araguaia, não interfere no direito de punir do Estado,
e nem na decisão do STF sobre a matéria” (BRASIL, 2012b; BRASIL, 2013).
outros Vs. Brasil, em que pese a veemência com que a CorteIDH reiterou, ainda em
outubro de 2014, o dever do Estado brasileiro de cumprir a sentença e de modificar a
interpretação que foi conferida à Lei de Anistia (CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS, 2014), traz à tona possíveis (ou prováveis) fatores que
prejudicam o funcionamento adequado do Sistema Interamericano no Brasil.
A título de exemplo, pode-se mencionar a existência de uma cultura jurídica
que desconhece e/ou menospreza a importância dos sistemas internacionais de proteção
aos direitos humanos e que é marcada por um excessivo grau de discricionariedade dos
tribunais brasileiros quanto às matérias que devem ser postas em pauta, bem como pela
ausência de um controle social que pressione as instâncias judiciais a debater sobre
assuntos de tamanha relevância.
Ademais, os problemas relativos à efetividade do controle de
convencionalidade realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos também
podem decorrer do fato da Corte, no caso Gomes Lund e outros Vs. Brasil e em outros,
impor a ideia de que a Convenção Americana de Direitos Humanos deve prevalecer
sobre quaisquer normas jurídicas de um Estado, sem fazer uma necessária e adequada
fundamentação capaz de demonstrar porque se deve admitir tal prevalência, ainda que
ela implique na mitigação da soberania do Estado, mediante a invalidação de normas
que compõem o seu Ordenamento Jurídico.
Neste ponto, vale transcrever as pertinentes reflexões feitas por Marinoni a
respeito da legitimidade da decisão da Corte que considerou a lei de anistia uruguaia
incompatível com o Pacto de San José da Costa Rica. Diz o autor:
Os atos praticados por ditaduras militares em detrimento de direitos humanos
são reprováveis e merecedores de severa condenação. Trata-se de obviedade. O
problema é que a Corte, sem questionar a qualidade democrática das formas de
participação direta que deram base à lei uruguaia, disse serem elas insuficientes
para legitimar a lei perante o Direito Internacional. [...] Argumentou-se que a
inconvencionalidade da lei de anistia não deriva da ilegitimidade do processo
que a fez surgir ou da autoridade que a editou, mas sim da circunstância de
deixar os atos de violação aos direitos humanos sem punição. A
inconvencionalidade, afirmou a Corte, decorre de um aspecto material, e não
de uma “questão formal, como a sua origem”. [...] A Corte não está dispensada
de legitimar suas decisões, confrontando os direitos humanos com a vontade da
maioria de um país. Diante disto, terá que evidenciar quando não é possível
deliberar e, especialmente, quando uma decisão majoritária, apesar de
formalmente tomada, não expressa a vontade real de um povo, por ter sido
elaborada sem adequada discussão ou com a exclusão real ou virtual de parte
da população [...]. É preciso demonstrar, mediante argumentação racional, que,
em determinados casos, os direitos humanos são inconciliáveis com a
democracia. Frise-se que não se está dizendo que a extinção da punibilidade o
seja – até porque não é este aspecto da decisão que aqui importa -, mas que
faltou à Corte legitimar a sua decisão, assim evidenciando. (MARINONI,
2011, p.76-77)
Considerando que, na sentença do caso Gomes Lund e outros Vs. Brasil, a
CorteIDH também baseou a conclusão de que a aplicação da lei de anistia brasileira em
favor dos militares afrontava a Convenção Americana de Direitos Humanos apenas com
base no entendimento acerca do assunto firmado pela Corte em outros casos, sem que
tenha havido uma fundamentação racional que levasse em conta as circunstâncias
concretas do caso, as críticas apresentadas por Marinoni são perfeitamente aplicáveis
àquele julgado.
Desta forma, entende-se que a deficiência da fundamentação da sentença
corresponde a um outro importante elemento capaz de explicar os óbices ao seu
cumprimento pelos órgãos do Poder Judiciário brasileiro.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS