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O PAPEL DO MEDO JUSTIFICADOR DO ESTADO EM HOBBES1

César Romero Fagundes de Souza*


e-mail: caesarsouza@gmail.com

Resumo: Neste trabalho, procuro investigar as razões pelas quais os homens se associam, contratam e
constituem a sociedade civil —segundo o tratado político Leviathan, de Thomas Hobbes— e o que sustenta
essa transição, uma vez que o contrato é realizado na condição natural, em que nada é garantido. O
objetivo é mostrar, através da reconstrução dos pontos principais da argumentação de Hobbes, que o medo,
sob diferentes formas, leva os homens a contratarem o Estado, e garante o acordo, até que este seja
instituído.

De acordo com Hobbes, no Leviathan2, o Estado (Commonwealth) é um ser artificial, criado pelos
homens, por meio da razão, para saírem da condição natural, em que todos têm direito a tudo,
inclusive aos corpos uns dos outros, na luta por se auto-preservarem. Numa tal condição, todo
homem está em disposição constante de guerra contra todos os outros homens, numa luta incessante
por cada vez mais poder, que é o meio pelo qual cada um pode obter segurança e bem-estar, além
de manter-se vivo.
Os homens constituem o Estado, através do contrato, que é um acordo entre todos através, primeiro,
da renúncia de cada um ao seu direito de tudo fazer para se auto-preservar na condição natural, e,
segundo, da transferência simultânea desse direito a um terceiro, que é a entidade artificial
personificada no soberano. Esses direitos somados, auferidos da transferência, conferem a ele um
poder absoluto: o poder de decidir sobre quais os meios mais adequados para a manutenção da vida
de todos os pactuantes. A instituição do Estado marca a passagem dos homens da sua condição
natural para a condição civil, fundando-se, portanto, a sociedade. Mas isso não é tão simples quanto
pode parecer à primeira vista, e inúmeras dúvidas surgem à medida que se vai tentando entender o
mecanismo do contrato hobbesiano. Eu me ocuparei aqui de duas dessas dúvidas, uma mais geral e
outra mais específica, que podem ser formuladas nas seguintes perguntas: 1. ''Por que os homens
constituem o Estado por meio do contrato?'' e 2. ''Segundo Hobbes, na condição natural, todos têm
direito a tudo na busca da auto-preservação; ninguém está seguro nem a salvo; e nenhum acordo
tem validade, pois nada garante que venha a ser cumprido. Qual é, então, a garantia de cumprimento
do acordo feito entre os homens para saírem do estado de natureza e passarem ao estado de
sociedade?''. Em outros termos, pretendo investigar, nesse trabalho, as razões pelas quais os homens
se associam, contratam e constituem a sociedade civil —segundo o tratado político Leviathan, de
Thomas Hobbes— e o que sustenta essa transição, uma vez que o contrato é realizado na condição
natural, em que nada é garantido. Pretendo revelar, através da reconstrução dos pontos principais da
argumentação de Hobbes, que o medo, sob diferentes formas, leva os homens a contratarem o
Estado, e garante o acordo, até que este seja instituído.

1. Ao lermos sobre a história do pensamento ocidental, vemos que Hobbes representou para o
pensamento moral e político, na Idade Moderna, o mesmo que Descartes, para a teoria do
conhecimento, pois ambos propuseram um rompimento que se pretendeu radical com a chamada
filosofia escolástica —e que tinha como paradigma a filosofia de Aristóteles—, realizando, no
campo da moral e da epistemologia, a passagem do pensamento antigo para o moderno.

1
Publicado na revista Momento, Rio Grande, v. 9: 191-212, 1996.
*
Doutorando em Filosofia, PUCRS.
2
HOBBES, Thomas, Leviathan, in 'Great Books of the Westerns World', ed. by Encyclopædia Britannica,
Inc., U.S.A, 1952.
2
Motivados pela matematização do universo, proposta por Galileu na sua Física, e pelo
método da Geometria, Descartes, por seu lado —principalmente no Discurso do Método e nas
Meditações—, propôs um novo método científico, e com ele uma nova maneira de ver o mundo.
Com a teoria do contrato social, desenvolvida, na sua forma acabada, no tratado político Leviathan,
Thomas Hobbes operou, por assim dizer, a transição da concepção do chamado ''Estado Antigo''
para o ''Estado Moderno''; grosso modo, antes, os homens obedeciam às leis para que o Estado
existisse; agora, os homens obedecem às leis porque o Estado existe.
Nos seus trabalhos políticos, Hobbes pretende explicitamente romper com a doutrina de
Aristóteles3 —especialmente a que professa em seus escritos sobre temas morais e políticos.
Entretanto, é importante ter presente que várias posições que Hobbes desenvolve nos seus trabalhos,
mesmo distantes, se mantêm bem próximas de algumas importantes noções elaboradas por
Aristóteles. Por essa razão, é possível identificar nessas diferentes visões pontos em comum,
principalmente porque Hobbes, em diversos momentos de sua argumentação, utiliza muitas dessas
noções de Aristóteles. Em outros termos, podemos dizer que a gramática de Hobbes —assim como
a de Descartes— é bem aristotélica! E por isso parece importante, de certo modo, considerar de
perto alguns desses aspectos comuns, pois eles nos ajudam a entender melhor a concepção que
Hobbes desenvolve em seu tratado político.

2. Aristóteles, na 'Política'4, considera a pólis (a cidade-estado grega) como o resultado de


uma série de associações naturais; i.e., como o resultado de um processo natural de
desenvolvimento; tão natural como a união de homem e mulher —com o fim de preservar a
espécie— e como a união de quem manda com quem obedece 5. Da união natural de homem e
mulher advém a família —o núcleo da cidade; da união de várias famílias, a vila6; e da associação
de diversas vilas, a cidade7.
Essas associações têm como fim um determinado bem, pois, para Aristóteles, todas as ações
do homem são realizadas com vistas a algo ''que lhes parece ser bom''. Ora, se todas as associações
humanas tendem a algum bem, a maior de todas as associações, ''que inclui em si todas as demais'',
deve ter em vista o maior de todos os bens. Esta associação maior entre os homens, que resulta na
cidade (pólis), Aristóteles denominará ''associação política''8.
Uma associação humana qualquer é um todo composto por pelo menos mais de um
indivíduo. E enquanto associação humana, esse todo deve ter por fim um bem para esses indivíduos
associados. Mas essa associação entre os homens é voluntária? Sim e não. Sim, na medida em que
cada um dos que se associa ao outro tem em vista um bem para si com essa associação. Não, porque
os indivíduos, segundo Aristóteles, associam-se uns com os outros naturalmente; i.e., é um impulso
natural, um instinto, o que os leva a se associarem com o objetivo de viver melhor, pois, do
contrário, aquele que, por natureza (instinto) e não devido às circunstâncias, não necessite associar-
se com outros, ''é certamente ou um ser degradado ou um ser superior'' ao homem; em outros

3
E, de acordo com Barker, não ''é Aristóteles, mas os aristotélicos da Idade Média, quem Hobbes condena''.
BARKER, E., Political Thought of Plato and Aristotle, Dover Publications, Inc, U.S.A., 1947, p. 518.
4
ARISTOTE, Politique, traduite en français par J. Barthélemy-Saint-Hilaire, Paris, Librairie Philosophique
de Ladrange, 1874.
5
Pois, para Aristóteles, a natureza, com o objetivo de se conservar, criou uma sorte de seres que não podem
viver um sem o outro, tal como no caso da mulher em relação ao homem e no do escravo em relação ao
senhor. Ibid., L.I, ch. I, §§ 1-6, pp. 3-6.
6
Cf. Aristóteles, a comunidade (associação) que se constitui naturalmente para atender às coisas cotidianas é
a família; por outra parte, porém, ''a primeira associação de várias famílias'', para a satisfação das
necessidades já não meramente cotidianas, ''é a vila''. Ibid., §§ 6-7, pp. 05-06.
7
Ibid., § 8, p. 7.
8
Ibid., § 1, pp. 1-2.
3
termos: é ou bem ''um bruto ou um deus''9. E, nesse sentido, o homem é por natureza um ''animal
político''10.
O objetivo das associações que resultam na cidade, portanto, é a promoção da vida; i.e., o
seu fim é o de permitir aos indivíduos uma vida boa. Sendo assim, o maior de todos os bens a que
deve visar, portanto, a maior de todas as associações humanas é a vida dos indivíduos que a
constituem. E, mais do que a mera vida, a vida com qualidade, a boa vida. E assim, tendo começado
a existir simplesmente para promover a vida, a cidade ''subsiste para uma existência feliz'' 11.
Mas o fim de cada indivíduo na cidade —que é a manutenção com qualidade de sua própria
vida— só pode ser atingido à medida em que esta atinja seu próprio fim, que é seu bem principal, a
saber, a sua auto-suficiência; i.e., ao contrário do indivíduo, a cidade tem de bastar-se a si mesma.
A cidade é anterior à família e aos indivíduos, e é naturalmente necessária, porque, se todos
os homens (sãos) por natureza são levados a se associarem uns com os outros, visando a um bem
para si; e se a cidade é a maior associação entre os indivíduos; ela tem por fim o maior de todos os
bens. E esse bem maior —fim da maior associação— é a vida de todos os associados.
De acordo com Aristóteles, o todo é anterior às partes, e estas só se definem em função dele.
Se a cidade existe para a manutenção da vida de todos, e se a soma da vida de todos é maior do que
a vida de cada indivíduo —pois fora da cidade ele não pode realizar seu fim maior que é a sua auto-
preservação—, então, é necessário que o fim da cidade se sobreponha ao fim do indivíduo, pois ela
existe por e para todos12.
Do que foi dito até aqui, nós podemos extrair três teses importantes na argumentação de
Aristóteles: (1) Toda associação humana tende a um bom fim; (2) É necessário que o todo seja
anterior às partes; e (3) A natureza leva instintivamente todos os homens à associação política.
Como vimos acima, para que a cidade existisse e pudesse cumprir com sua função, ela
deveria ser auto-suficiente. Para tanto, era necessário que ela estivesse organizada de tal modo que
permitisse a vida comunitária e a compatibilização dos diferentes desejos dos seus constituintes.
Aristóteles vai justificar a natureza política do homem, i.e., a sua capacidade de constituir e
manter a cidade, no fato de ele, dentre os demais animais, ser o único a possuir a fala, pois ''só ele
concebe o bem e o mal, o justo e o injusto, e todos os sentimentos da mesma ordem, cuja associação
constitui precisamente a família'' e a cidade13. Portanto, era necessário que os homens, em acordo,
por meio da linguagem (razão), constituíssem leis artificiais (nomos)14, que permitissem o convívio
sem conflitos. Segundo esse raciocínio, as leis, que regulam as relações na cidade, passam a ser a
condição de possibilidade da sua existência, e, por conseguinte, da vida de seus habitantes. E ''não a
vida, mas uma boa vida, é principalmente apreciada. ... E uma boa vida é equivalente a uma vida
justa e honrável''15.
Visto assim, se as leis que existiam para permitir a vida em comum não fossem seguidas, a
vida se tornaria inviável, e a cidade, enquanto associação, se desfaria. Nesse sentido, as leis
deveriam ser seguidas para que a cidade existisse e a vida boa fosse possível. Em outros termos, se
os cidadãos quisessem viver bem, eles deveriam viver na cidade, e, para viver na cidade, era
necessário seguir as leis. Portanto, as leis passam a ser a condição de possibilidade da vida na
cidade. E, mais do que elas, a sua observância.
9
Ibid., §§ 10-13, pp. 7-9.
10
Para Hobbes, as coisas se passam de maneira diferente, pois os homens não se encontram sozinhos, e ''não
têm prazer (mas ao contrário uma grande quantidade de aflição) em manter-se em companhia [um do outro]
onde não exista um poder capaz de intimidá-los todos''. HOBBES, op.cit., part I, ch. XIII, p. 85.
11
ARISTÓTELES, A Política, cap. I, da trad. de Torrieri Guimarães, ed. Hemus, SP, 1966, p. 1.
12
Pois, ''nosso país é mais precioso e elevado e sagrado do que qualquer antepassado aos olhos dos deuses e
dos homens de entendimento...''. PLATO, Crito, 51a-b, tr. by B. Jowet, in 'The Dialogues of Plato', v. I,
Oxford at The Clarendon Press, 1953.
13
ARISTOTE, op.cit, L.I, ch. I, § 10, p. 08.
14
Cf. a distinção que Barker estabelece entre fusis, leis naturais, e nomos, leis artificiais. BARKER, op.cit.,
ch. I, § 3, pp. 28-38.
15
PLATO, op.cit., 48b, p. 377.
4
Se é válida essa interpretação, seguia-se, para o cidadão grego, a seguinte regra: 'se eu quero
viver bem, eu devo me integrar à cidade; e, se eu quero viver na cidade —pois ela me permite a
vida com qualidade—, eu devo seguir suas leis, uma vez que elas, se obedecidas, garantem seu bom
funcionamento'. Em outros termos, 'se quero a vida boa, quero a cidade; e, se quero a cidade,
quero as suas leis; portanto, se quero viver bem, devo seguir as leis'.
Por isso, a atitude do cidadão Sócrates, frente à sua condenação pelo tribunal de Atenas,
pois ele poderia ter apelado, fugido ou pago indenização, e não o fez. Por quê? Segundo os
Diálogos de Platão, que tratam da condenação e morte de Sócrates pelo tribunal de Atenas, a sua
atitude decorre da característica do homem virtuoso que ele era. E, como tal, ele deveria colocar as
leis da cidade acima de tudo, inclusive da sua própria vida. Pois, segundo essa maneira de ver, era
necessário colocar o interesse de todos acima do interesse do indivíduo 16.
Hobbes, de acordo com sua teoria moral e política, condenaria veementemente a atitude de
Sócrates. Por quê? Bem, parece que aqui podemos encontrar, de certo modo, a cisão entre a
concepção antiga de Estado e a concepção moderna. Vejamos, então, como isso se dá.

3. Hobbes, no Leviathan, pretende construir uma ciência política a priori, ''procedendo —de
acordo com Gauthier— de um estudo do corpo em geral ao estudo deste corpo particular, o homem,
e então para um estudo do homem artificial feito de corpos'', o Estado. Mas, para isso, Hobbes
necessitará, primeiro, de um conceito de corpo; segundo, de um conceito de homem.
É importante considerar então o ponto de partida de Hobbes, qual seja, a sua visão da
realidade, pois, conforme Gauthier, a explicação mecânica da realidade é a marca fundamental do
pensamento de Hobbes, uma vez que para ele tudo pode ser visto e explicado por meio do conceito
de movimento. Sob essa perspectiva mecanicista, o 'princípio de identidade' aristotélico será
necessário inicialmente para que Hobbes possa definir o que é um corpo em geral, e, por meio dele,
conceber sua definição de homem.
Supondo que a realidade seja composta, também, por corpos, como é possível identificar um
corpo? Todos os corpos têm propriedades; e dentre essas propriedades, há algumas que o corpo tem
de possuir sob pena de, sem estas, ele deixar de existir. Ora, são essas propriedades —sem as quais
um corpo não é, ou existe—, que, se mantidas, conferem ao corpo sua identidade; i.e., são elas que
o tornam distinto, que o tornam aquilo que ele é. Por quê? Porque a propriedade fundamental dos
corpos é serem mutáveis, e identificamos as mudanças no corpo por intermédio da alteração ou não
de suas propriedades: aquelas que se mantêm em meio às mudanças são as propriedades essenciais
desse corpo, as que se alteram são as acidentais.
Se considerarmos agora os corpos animais, a propriedade essencial que os distingue, e que
determina a sua identidade, é a vida, i.e., o fato de serem dotados de alma (anima), que é o
movimento auto-sustentado do corpo. Mas, conforme Gauthier, para Hobbes, ''(t)odos os animais
possuem, além do movimento vital, o movimento voluntário...''. Pois, de acordo com Hobbes,

16
A esse respeito, Sócrates diz, perante o tribunal: ''e quando os oradores ameaçaram denunciar-me e
prender-me, e vocês [exigiram minha presença e a aclamaram], eu resolvi que correria o risco, tendo a lei e a
justiça comigo, em vez de tomar parte em sua injustiça por temer a prisão ou a morte.''. Cf. PLATO,
Apology, 32c, tr. by B. Jowett, in 'The Dialogues of Plato', v. I, Oxford at The Clarendon Press, 1953, p.357.
E, depois da condenação, já na prisão, quando Crito lhe propõe usar de seu dinheiro para ajudá-lo a escapar,
e lhe suplica que fuja e evite a morte, Sócrates, por meio de vários argumentos, pergunta a Crito se é correto
ou não escapar da prisão sem o consentimento dos atenienses —i.e., das leis—, que o condenaram. Julgando
ser o dever do homem agir segundo a razão, Sócrates conclui que deve fazer sempre o que admite ser o
correto. E para explicar a Crito o que ele deve fazer, ele simula uma conversação com as leis da cidade, ao
ser por elas surpreendido em fuga. A passagem inicial dessa conversação (bem como todo o diálogo) é
bastante esclarecedora a respeito do que estamos tratando: ''Diga-nos, Sócrates, ...você não está nos levando
à ruína por um de seus atos —as leis, e todo o Estado...? Você imagina que um Estado possa subsistir e não
ser derrotado, [se] as decisões da lei não têm força, mas são colocadas de lado e maltratadas pelos
indivíduos?''. Id., Crito, 50b, p. 379.
5
''[e]xiste nos animais duas sortes de movimentos peculiares a eles: um é chamado vital, que
inicia na geração, e continua sem interrupção por meio de toda sua vida; tais são o curso do
sangue, o pulso, ... a nutrição, a excreção, etc.; tais movimentos não necessitam da ajuda da
imaginação: o outro movimento é o movimento animal, de outro modo, chamado de
movimento voluntário; tais como andar, falar, mover qualquer um de nossos membros, tal
como é fantasiado [imaginado] em nossa mente.''17

Similarmente, para Aristóteles, são dois os princípios que movem os animais: o apetite
(desejo) e a inteligência —a que ''calcula em vista de algum fim'', denominada inteligência prática,
e que se distingue da especulativa pelo fim que persegue. Todo desejo tem por fim um objeto
qualquer. O objeto desejado é ao mesmo tempo o princípio e o fim da ação, i.e., o seu móbile: o
apetite do animal é despertado pelo objeto, originando o movimento pela representação
(imaginação) desse objeto pelo pensamento. Por isso, a inteligência, mesmo quando move o animal,
não o move sem o apetite, pois, o objeto do apetite é o único que determina o movimento. A
''inteligência [portanto...] não pode determinar o movimento sem o apetite; porque a vontade é uma
forma de apetite, e quando o ser se move como resultado de um cálculo'' é a vontade que o move 18.
Disso se segue que o que determina o movimento nos animais, conforme Aristóteles, é a vontade.
Pois, sem vontade, o animal não pode ter apetite. Sem apetite, nenhum objeto pode motivar a
inteligência19. Sem a motivação desta, não há movimento voluntário 20.
Para Aristóteles, quando desejamos algo, visamos ao objeto para o qual nossa ação se dirige.
Ao agirmos, consideramos os meios que podem nos conduzir a esse objeto, i.e., ''nós desejamos os
fins (telos) em vez dos meios; mas escolhemos os meios para o nosso fim'' 21. E a escolha dos meios
para atingir um objeto é, conforme Aristóteles, a deliberação.
Nossa vontade pode ter por objeto qualquer coisa, esteja ou não em nosso poder: ''nós
podemos desejar coisas que são impossíveis, e.g., a imortalidade'', mas não podemos ter por objeto
da nossa escolha coisas impossíveis. Porque só deliberamos sobre ações que estão em nosso poder
executar. Nesse sentido, o homem é ''a origem de suas ações'', e cabe à deliberação ''descobrir as
ações que cada um pode executar; pois todas as nossas ações visam a outros fins que não elas
mesmas. Disso se segue que nós não deliberamos sobre fins, mas apenas sobre meios'' 22.
Portanto, se o objeto de nossa escolha é sempre ''uma coisa que está em nosso poder fazer —
e que depois de deliberação desejamos—, podemos definir o ato da escolha como um desejo
deliberado de coisas que estão em nosso poder; porque nós primeiro deliberamos, selecionamos, e
finalmente fixamos nosso desejo de acordo com o resultado de nossa deliberação'' 23. Se, conforme
Aristóteles, ações que resultam de alguma operação do pensamento24 são ações voluntárias, e
17
HOBBES, op.cit., part I, ch. VI, p. 61.
18
ARISTOTLE, op.cit., III, x, pp. 187-9.
19
Cf. Aristóteles, o ''pensamento, entretanto, por si próprio não move nada, mas somente o pensamento
dirigido a um fim, e relacionado a uma ação''. Id., Nicomachean Ethics, VI, ii, p. 331, tr. by H. Rackham,
London, William Heinemann Ltd, 1956.
20
É nesse sentido que, para Hobbes, ''a imaginação é o primeiro princípio interno do movimento voluntário'',
pois todos os movimentos voluntários são precedidos por um pensamento. HOBBES, op.cit., part I, ch.. VI,
p. 61.
21
Por ''exemplo, nós desejamos ser saudáveis, mas escolhemos coisas que nos tornam saudáveis; nós
desejamos ser felizes, e esta é a palavra que usamos nesta conexão, mas não seria próprio dizer que nós
escolhemos ser felizes; uma vez que, de um modo geral, a escolha parece dizer respeito a coisas que estão
sob nosso próprio controle''. ARISTOTLE, op.cit., III, ii, p. 131.
22
Ibid., III, iii, p. 139. Numa outra passagem, na Ética a Eudemo, encontramos a seguinte formulação de
Aristóteles: ''ninguém delibera sobre seu fim —pois isto está igualmente fixado para todos; mas os homens
deliberam sobre os meios que dirigem aos seus fins... [Mas, porque] nós deliberamos sobre tudo que
escolhemos fazer, não se segue que escolhemos fazer tudo sobre o que deliberamos''. Id., Eudemian Ethics,
II, x, tr. by H. Rackham, London, William Heinemann Ltd, 1952, p. 294-5.
23
Id., Nicomachean Ethics, III, iii, p. 141.
24
Id., Eudemian Ethics, II, viii, p. 275.
6
sendo o objeto da nossa vontade o fim a que aspiramos; se os meios que conduzem a esse fim estão
submetidos à nossa deliberação e à nossa escolha, então ''os atos que se referem a estes meios são
feitos por escolha, e são, portanto, voluntários''25.

4. O fim do movimento vital e voluntário é sempre a manutenção da vida. Essa empresa é


satisfeita à medida que os bens necessários à sobrevivência são obtidos. Mas, dentre todos os
objetos, alguns se prestam à realização desses fins e outros não, i.e., alguns são desejados, e outros
não. Aqueles que são desejados, e para os quais o ser dirige sua ação, devem satisfazer essas
necessidades vitais. Em outros termos, de acordo com Gauthier, ''essa ação é dirigida em direção
àqueles objetos cujos efeitos intensificam o movimento vital, e para longe... [dos] objetos cujos
efeitos impedem o movimento vital'' 26. Mas há um problema exatamente em determinar o efeito
desses objetos desejados, i.e., se eles podem ou não satisfazer as necessidades visadas pelo ser que
os deseja e a eles se dirige com a intenção de obtê-los.
Para Aristóteles, o fim de toda a ação é o mesmo, a saber, a obtenção (ou realização) do
bem, e o que difere são os meios para tal obtenção. Porém, esse bem desejado pode ser relativo,
pois há vezes em que queremos algo que julgamos ser bom quando na verdade é mau. Mas por
que isso? Ora, isso se deve à natureza representacional do bem —pois ''para cada pessoa em
particular o bem desejado é tal como lhe aparece''27— que lhe confere a sua propriedade essencial
de ser relacional —pois, para Hobbes, um objeto qualquer não é nem bom nem ruim, mas só o é em
relação ao ser humano que o representa (imagina) assim; na medida em que é considerado como
meio para sua auto-preservação28. O bem representado, portanto, é relativo.
Como no caso do ser humano o movimento é mediado pela representação (imaginação), e
como todo movimento dos corpos finitos naturais tende à preservação da vida deste corpo; todo
movimento humano tem como fim um bem representado. Ora, se não conhecemos senão a
aparência, esse bem é aparente, podendo não corresponder ao que de fato é. E, portanto, ''coisas
diferentes e opostas podem parecer boas a diferentes pessoas'' 29.
Mas por quê? De acordo com Aristóteles, não é todo bem que pode ser objeto de apetite e
gerar movimento, mas apenas o bem prático; que é aquele que podemos representar de diferentes
maneiras. Portanto, um mesmo desejo (apetite), por meio da imaginação, pode produzir um
movimento contrário ao cálculo, porque a ''inteligência está sempre certa; mas o apetite e a
imaginação podem estar errados''. É por essa razão que o movimento gerado pelo objeto do desejo
pode dirigir-se a um bem real (material) ou a um bem aparente30.
Em outros termos, no caso do homem, na medida em que meios e fins são representados,
bens, enquanto fins, podem ser aparentes ou materiais. No primeiro sentido, o bem pode permitir as
condições materiais. No segundo sentido, o bem pode permitir a realização da preservação
efetivamente. Sendo assim, um bem, ou um meio, porém, pode coincidir com sua realização
material ou não; pois, enquanto representado, está sujeito à correspondência ou não com a
realização efetiva a que pretende.

5. Para Hobbes, assim como para Aristóteles, o que difere o homem dos demais animais é o
fato de ele possuir a capacidade da linguagem. Pois é por meio dela que ele pode realizar o que

25
Id., Nicomachean Ethics, III, iv, p. 143.
26
GAUTHIER, op.cit., p. 7.
27
ARISTOTLE, loc.cit..
28
Pois, para Hobbes, ''qualquer que seja o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem, este é o que ele
por sua parte chama bom; e o objeto de seu ódio e aversão, mau; e de seu desprezo, mau e desprezível.
Porque essas palavras bom, mau e desprezível são sempre usadas com relação à pessoa que as usa: não há
simples e absolutamente nada assim; nem regra comum de bem e de mal que seja extraída da natureza dos
objetos eles próprios; mas [somente] da pessoa do homem...''. HOBBES, op.cit., part I, ch. VI, pp. 61-2.
29
ARISTOTLE, op.cit., III, iv, p. 141.
30
Id., On the soul, III, x, p. 189.
7
Hobbes chama de cálculo na obtenção dos bens necessários à satisfação do desejo de se auto-
preservar.
Mais especificamente, para Hobbes, a linguagem é o instrumento que capacita o homem a
estabelecer maneiras diferentes de obter os objetos de seus desejos. Essas maneiras diferentes são
os meios sobre os quais ele delibera. Por isso, Hobbes define o homem como ser dotado de razão
(ratio —cálculo), i.e., enquanto um ser que raciocina, que realiza o cálculo de meios e fins 31; uma
operação que só a linguagem possibilita 32. A ''razão, nesse sentido, nada mais é do que o cálculo
(i.e., adição e subtração) das conseqüências de nomes gerais33 estabelecidos para marcar e
significar nossos pensamentos''34.
O animal é, portanto, um corpo natural dotado de movimento vital e voluntário. No homem,
esse movimento voluntário é mediado pela razão. Sendo assim, o homem é um ser dotado de razão
e de desejo —enquanto uma forma de paixão—, donde: o desejo é movimento de auto-preservação;
e a razão, o instrumento que o permite realizar o cálculo para obter os bens necessários à sua auto-
preservação35. Vista desse modo, a razão não é um fim mas um meio. Por isso, em Hobbes, ela se
encontrar subordinada ao desejo (as paixões).
Se considerarmos, agora, os bens desejados como necessários à preservação do homem
segundo a distinção aparente (formal) e real (material), ser racional, portanto, é saber
compatibilizar a definição material com a definição formal de bem, i.e., só querer o que pode
preservar minha vida.
Ora, mas se todo desejo humano que resulta de um cálculo de meios e fins depende da
faculdade da razão —que opera por meio da linguagem—, então, podemos dizer que, nesse sentido,
essa sorte de desejo é racional36.
Se essa conclusão procede, o desejo do homem de auto-preservação e dos meios que a
permitem, não é irracional, mas racional. Em outros termos, a auto-preservação do homem,

31
Cf. Gauthier, ''[s]e nós aceitamos ... a alegação de Hobbes de que 'as ações mais racionais são as que
conduzem mais para seus fins' [cit.cit.], nós podemos então derivar de 'um homem tem de fazer X para
conseguir o que ele deseja', a ... conclusão 'um homem, se racional, quer fazer X'. Esta proposição é uma
descrição ideal, uma descrição de como um homem inteiramente racional necessariamente se comportaria.
Não é uma descrição do comportamento humano atual porque os homens não são completamente racionais,
equivocando-se sobre fins e meios''. GAUTHIER, op.cit., p. 21.
32
Ao comparar os homens com as demais criaturas, Hobbes diz que sem a linguagem ''não existiria entre os
homens nem Estado, nem sociedade, nem contrato, nem paz, assim como entre leões, ursos, e lobos''.
HOBBES, op.cit., part I, ch. IV, p. 54. Porque ''o acordo dessas criaturas é natural; o dos homens é por
convenção somente, o que é artificial: e todavia não seria de admirar se fosse requerida alguma outra coisa,
além da convenção, para tornar seu acordo constante e duradouro; qual seja um poder comum para mantê-los
em respeito e para dirigir suas ações para o benefício comum''. Ibid., part II, ch. XVII, p. 100.
33
Cf. Gauthier, ''[q]uando Hobbes fala de 'nomes gerais', é claro que ele não está dizendo que nós
raciocinamos sobre coisas gerais, porque seu nominalismo nega que existam tais coisas. No entanto, ele está
lembrando-nos isso, nós raciocinamos sobre coisas particulares, nós não raciocinamos sobre sua
particularidade; nomes próprios não têm conseqüências''. GAUTHIER, op.cit., p. 11.
34
HOBBES, op.cit., part I, ch. V, p. 58.
35
Cf. Gauthier, ''[s]e nós aceitamos a perspectiva de Hobbes de que o homem é uma máquina auto-
sustentável (a self-maintaining engine), então nós podemos estabelecer a natureza básica da natureza
humana. Os homens desejam, e necessariamente desejam, preservar-se. Portanto, tudo o que pode ser
mostrado é a condição da preservação humana, [que] desse modo mostra ser um meio para o fim do homem.
Pois das premissas da forma 'X é um meio necessário para a auto-preservação', Hobbes pode derivar
conclusões da forma 'um homem tem de fazer X para conseguir o que ele deseja' ''. GAUTHIER, op.cit., p.
21.
36
Conforme Gauthier, ''[a] sucessão de apetites e aversões na deliberação reflete a sucessão de opiniões no
discurso. Assim como determinamos outras conseqüências de algum ato, nosso desejo de realizá-lo, ou não,
se altera. Nossa última opinião é julgamento; nosso julgamento de várias conseqüências de uma ação
determina nosso último apetite, desejo. Visto que nós julgamos correta e completamente, nós desejaremos o
que conduz mais para nossos fins. E então o raciocínio correto torna o apetite racional.'' Ibid., p. 12.
8
portanto, é resultado de um cálculo. E, dada a noção mesma de cálculo, e dada a natureza falível —
dos mecanismos de percepção da realidade— do homem, ele pode errar ao realizar esse cálculo dos
meios necessários à obtenção dos fins desejados. Pois, de acordo com Gauthier, o desejo ''é sempre
dirigido em direção da promoção do nosso bem-estar, tal como o concebemos. Mas a deliberação,
que é a versão de Hobbes do raciocínio prático, é falível. Não podemos somente errar o significado
do nosso próprio bem-estar, mas a paixão pode levar-nos a mal compreender o próprio bem-
estar''37.

6. De acordo com Espinosa, ''tudo quanto existe em si mesmo se esforça por conservar o seu
ser''. Ora, como ser existente e pertencente à Natureza, o homem, dotado de movimento vital e
voluntário, se esforça por conservar seu ser, e é essa sua propriedade essencial que determina o seu
caráter finito. Portanto, se a vontade determina o homem a agir em causa própria na obtenção dos
objetos por ele desejados para sua auto-preservação, não importando se esses desejos se originam
na razão ou não, ''uns e outros, efetivamente, são efeitos da Natureza e manifestam a força natural
pela qual o homem se esforça por perseverar no seu ser'' 38.
Barbosa Filho propõe denominar esse princípio de ''a definição ou o axioma da finitude'',
que Hobbes formula, no Leviathan, a partir do princípio de inércia de Galileu 39. Conforme Barbosa
Filho, ''todo ser finito persevera em seu estado de movimento. Ora, sendo dado que 'a vida é
somente um movimento'..., o ser vivo busca necessariamente a preservação do movimento que o
constitui, a vida''40. Conforme Gauthier, os homens, enquanto ''mecanismos que se auto-preservam
são constantemente ativos, procurando sempre novos objetos de desejo, evitando sempre novos
objetos de aversão''41.
Ora, é o poder de cada homem, i.e., o conjunto de bens de que ele dispõe, o que lhe permite
ou não se preservar. E, de acordo com Hobbes, o ''poder de um homem, tomado universalmente, é
seu meio presente para obter algum bem futuro aparente''42. Donde, nessa incessante atividade de
auto-preservação, o poder de um homem ser o meio de seu sucesso. Por isso, conforme Gauthier, o
homem precavido procurará aumentar tanto mais quanto possa a extensão de seu poder 43, pois,
para Hobbes, há ''uma inclinação geral de todo homem a um perpétuo e incessante desejo de power
after power, que cessa somente na morte''44.
Nessa condição natural45, o homem se encontra na posse de um direito absoluto de poder
fazer tudo o que estiver ao seu alcance a fim de preservar a sua vida, a sua identidade. E essa
''liberdade que cada homem tem para usar seu próprio poder como ele mesmo quiser para a
preservação de sua própria natureza; quer dizer, de sua própria vida; e conseqüentemente, de fazer

37
Ibid., p. 8. Ver também, acima em 4, citação referente à nota 30.
38
Pois, ''[q]uer seja sábio ou insensato, o homem é sempre parte da Natureza, e tudo aquilo através do qual é
determinado a agir deve ser relacionado como o poder da natureza, tal como este pode ser definido pela
natureza deste ou daquele homem. Quer seja conduzido pela Razão ou apenas pelo desejo, o homem,
efetivamente, nada faz que não esteja conforme com as leis e as regras da Natureza, i.e., ... em virtude do
direito natural.''. ESPINOSA, B., Tratado Político, trad. por Manuel de Castro, em 'Os Pensadores', Abril
Cultural, SP, 1983, p. 308.
39
De acordo com a formulação que Hobbes apresenta, quando um corpo está parado, a não ser que alguma
outra coisa mexa nele, ele permanecerá parado para sempre; quando um corpo está em movimento, ele
permanecerá assim eternamente, a não ser que alguma outra coisa o faça parar. HOBBES, op.cit., part I, ch.
II, p. 50.
40
BARBOSA FILHO, Balthazar, Condições da autoridade e autorização em Hobbes, da Revista 'Filosofia
Política', n. 6, SP, p. 66.
41
GAUTHIER, op.cit., p. 9.
42
HOBBES, op.cit., part I, ch. X, p. 71.
43
GAUTHIER, op.cit., p. 14.
44
HOBBES, op.cit., part I, ch. XI, p. 76.
45
Cf. Barbosa Filho, ''a condição natural em Hobbes não é —e não pode ser— senão uma hipótese lógica e
de modo algum histórica''. BARBOSA FILHO, op.cit., p. 70.
9
qualquer coisa que, em seu próprio julgamento e razão, ele conceba ser o meio apropriado para
isso''46, Hobbes chama de direito de natureza47.
Essa condição de busca desenfreada pelo aumento do poder e a posse do direito a tudo
predispõe os homens à inimizade, pois, dado que todos querem a mesma coisa: preservar-se; todos
buscam o mesmo: aumentar seu poder para manter-se vivo. Dessa inimizade nasce a desconfiança, e
dela a disposição para a luta. E numa tal situação, ''porque a condição do homem ... é uma condição
de guerra de todos contra todos, ... cada um é governado pela sua própria razão''. Ora, essa
condição de guerra de todos contra todos é o que Hobbes, por outro lado, chama de estado de
natureza.
A necessidade, portanto, de realizar seus desejos e de se manter vivo leva o homem a lançar
mão de todos os meios que estiverem ao seu alcance para que possa obter ou garantir tal fim,
mesmo que tenha de sobrepor-se a outro homem48. Essa possibilidade lhe é assegurada por um
direito original de natureza que lhe permite fazer tudo quanto possa na consecução dessa empresa: a
sobrevivência49. Mas essa possibilidade se torna problemática à medida em que o homem, vivendo
assim, em relação aos outros homens, não tem, em momento algum, paz e segurança sem que se
sinta constantemente ameaçado50.
Dada essa situação de perpétuo conflito potencial, que jamais permitiria que os homens
chegassem a conviver entre si, pois suas paixões sempre os colocariam em rivalidade e os
destruiriam, surge a necessidade, racional, de os homens chegarem a um acordo que propicie uma
paz estável e os mantenha um em relação ao outro em situação de respeito, e não de vigilância
constante. Esse acordo é obtido por meio de um pacto ou contrato, que se pode manifestar por
palavras e/ou ações, no qual todos os indivíduos combinam entre si de renunciarem a esse direito
original de fazerem tudo quanto queiram, independentemente dos demais, na satisfação de seus
desejos.
E, uma vez que esse pacto é celebrado para garantir a paz, que, por sua vez, tende a garantir
a vida, o único direito que não pode ser renunciado é o direito à vida. Pois, dado que as condições
existentes sejam insatisfatórias e atentem contra a vida do indivíduo pactuante, ele está autorizado,

46
HOBBES, op.cit., part I, ch. XIV, p. 86.
47
Cf. Gauthier, ''Hobbes exige que eu tenha o direito de fazer tudo o que eu considerar necessário para minha
própria preservação —nesse sentido, certamente, eu tenho o direito natural de viver. Mas ninguém, por essa
razão, tem o dever de permitir-me fazer o que eu considerar necessário para minha preservação''. (Inclusive
tirar a vida de outro para evitar seu exercício ao seu direito de natureza). GAUTHIER, op.cit., p. 31.
48
Cf. Gauthier, o que a teoria de Hobbes se esforça para demonstrar é que ''um indivíduo normal tem de
executar aquelas ações que ele acredita [ser] a condição necessária para sua preservação, porque ele tem de
ser motivado por um interesse de se manter a si-mesmo.'' (Essa posição de Hobbes é empiricamente
insustentável, basta confrontá-la com o suicídio). Ibid., p. 23. Gauthier, a seguir, levanta algumas objeções
contra o caráter essencial da auto-preservação na teoria da natureza humana de Hobbes, e propõe uma
mudança de enfoque. Para ele, nós ''temos de dizer, não que o homem é uma máquina que se auto-mantém,
mas que ele é uma máquina que tende a procurar manter-se a si-mesma. Em outras palavras, nós podemos
dizer que a auto-preservação é um motivo muito importante, mas não necessariamente o motivo básico. E,
portanto, da premissa 'X é um meio necessário para a auto-preservação' nós podemos derivar somente a
conclusão 'um homem tem de fazer X para conseguir o que, muito provavelmente, ele quer'. A teoria
psicológica de Hobbes pode ainda suportar suas conclusões normativas, mas o suporte pode ser
substancialmente fraco''. [grifos meus]. Ibid., p. 24 .
49
A tese de Gauthier é a de que ''no puro estado de natureza, o direito de natureza é estritamente ilimitado —
porque tudo o que fazemos neste estado é considerado com sendo proveitoso para a preservação, e portanto
de acordo com o direito''. Ibid., p. 50.
50
Mas, cf. Gauthier, esse direito absoluto a tudo no estado natural se torna irracional, pois, ''[n]o início todo
o homem tem um direito ilimitado de fazer o que ele quiser, desde que seja para sua preservação. Mas o
exercício de seu direito ilimitado é o que causa a guerra de todos contra todos, que é a inimiga da
preservação. Então o direito de natureza revela-se contraditório em seu uso; o homem que exercita seu
direito a fim de preservar a si mesmo contribui todavia para a guerra de todos contra todos, que tende à sua
própria destruição''. Ibid., p. 51-2.
10
pelo seu direito de natureza, a lançar mão de todos os meios possíveis para garantir sua vida,
protegendo-se, inclusive o de matar o outro.

7. A tese inicial de Hobbes, no Leviathan, é a da universalidade das paixões humanas, i.e.,


para ele, há algo de constante, semelhante e universal no domínio destas. Dentre essas paixões,
Hobbes destaca o desejo, o medo e a esperança. O desejo de conforto, o medo da morte e a
esperança de obter a satisfação dos desejos e a prolongação da vida por meio do trabalho geram no
homem a necessidade de uma certa ordem que lhe possa garantir isso, uma segurança mínima. Mas
acontece que, sem que haja um poder comum que sustente esta ordem, não há respeito mútuo. E os
homens vivem todos com medo uns dos outros, na luta individual pela sobrevivência e pela
satisfação de seus desejos.
Essa situação, que Hobbes chama de ''guerra de todo homem contra todo homem'' 51, não
chega a efetivar-se realmente, mas se encontra sempre na iminência de se configurar. Ou seja, esse
estado de guerra não é atual, mas potencial. (Hobbes considera estado de guerra, aqui, não só a
situação de guerra, mas também a disposição para ela). Nessa situação de medo constante, advindo
do estado permanente de insegurança frente à guerra potencial, na qual nada há que os proteja uns
dos outros, não há respeito, e, por conseguinte, não há sociedade. E o medo de que essa guerra
venha a se tornar fato, leva os homens a se unirem, pelo interesse comum de satisfação dos desejos
e de proteção à vida, buscando ajuda mútua na associação.
Para demonstrar, portanto, a necessidade do Estado, enquanto capaz de garantir a ordem
social, Hobbes afasta o homem, hipoteticamente —por intermédio do artifício da descrição do
estado de guerra— do estado de sociedade, demonstrando as conseqüências decorrentes dessa
situação, que, peculiarmente nos homens, gera, não naturalmente, uma necessidade de eles,
gradativamente, unirem-se numa relação de cooperação mútua com um fim comum; e, por meio
dessa relação, chegarem a um acordo, lógico e não natural, de que para poderem meramente viver é
necessário que abdiquem de determinadas potencialidades que lhes pertencem por natureza em
favor de um indivíduo ou grupo que, com poder sobre eles, tornará possível a coexistência sem
prejuízo mútuo.
De acordo com Hobbes,

''[d]esta guerra de todo homem contra todo homem, isto também é conseqüência: que nada
possa ser injusto. As noções de certo e errado, justiça e injustiça, não têm lugar. Onde não há
poder comum, não há lei; onde não há lei, não há justiça. ... Justiça e injustiça não são
faculdades do corpo nem da mente ... são qualidades que dizem respeito aos homens em
sociedade, não na solidão''52.

Portanto, nessa situação de guerra de todo homem contra todo homem, em que predomina a
busca dos desejos, nada pode ser injusto, pois, nessas condições, os homens pensam a partir de seus
próprios interesses, que são motivados por suas paixões e necessidades particulares, sem levar em
conta os demais indivíduos. Donde, sem uma ordenação comum, que determine o que seja bom ou
mau, justo ou injusto, não há lei, não havendo, portanto, justiça. E, na satisfação dos desejos
individuais e na proteção à vida, tudo é justo, pois, num estado no qual o homem é governado por
sua própria razão e necessidade

''não há nada que ele não possa usar que não possa ser um auxílio para ele na preservação de
sua própria vida contra seus inimigos; segue-se que em uma tal condição todo homem tem um
direito a todas as coisas, mesmo ao corpo do outro. E portanto, enquanto este direito natural
de todo homem a todas as coisas durar, não pode haver segurança a nenhum homem, quão

51
HOBBES, op.cit., part I, ch. XIII, p. 86.
52
Id., loc.cit.
11
forte ou sábio ele seja, de viver o tempo que a natureza ordinariamente permite aos homens
viver''53.

Como, então, segundo Hobbes, o homem pode sair dessa situação? Para Hobbes, o meio
para que o homem saia do estado de guerra iminente, no qual não há ''propriedade, nem domínio,
nem distinção de meu e teu.... consiste parcialmente nas paixões, parcialmente na sua razão'' 54. Pois
o desejo de uma vida confortável e o medo da morte são paixões que, segundo Hobbes, levam o
homem a buscar a paz. Mas, para que essa paz se dê, são necessárias normas adequadas, ''sob as
quais os homens podem formular o acordo''55. Essas normas, por sua vez, são propostas pela razão,
e ''são aquelas que por outro lado são chamadas leis de natureza''56.
Portanto, a paixão ''determina'' que o homem deseje viver; e o direito de natureza lhe
assegura isso. Mas a razão determina que o homem busque a paz, enquanto lei de natureza57, pois
a paz assegura a vida. Ao direito original de o homem fazer tudo o que deseja de modo a garantir e
proteger sua vida, se opõe uma lei natural que o proíbe de exercer esse seu direito à medida que
possa impedir um outro de exercer esse mesmo direito à vida. Por conseguinte, a lei de natureza
obriga o homem a buscar a paz. E o meio para buscar a paz, entre os homens, é o pacto, acordo
mútuo, firmado em torno desse direito e dever comuns: viver e deixar viver.
Ao direito ilimitado que ao homem é garantido por natureza, na consecução das condições
necessárias à sua sobrevivência, que Hobbes chama jus naturale ou direito de natureza, contrapõe-
se uma lei de natureza ou lex naturalis, que, segundo Hobbes, é ''um preceito, ou regra geral,
constituído pela razão, pelo qual um homem está proibido de fazer aquilo que é destrutivo para sua
vida, ou [que o] afaste dos meios de preservar a mesma, e de omitir aquilo pelo qual ele pensa que
pode ser melhor para preservá-la''58. Mas, para Hobbes é necessário distinguir o direito da lei, pois
o primeiro dá a liberdade de fazer ou omitir, enquanto a lei determina ou obriga a uma destas duas
operações59.
Da primeira lei de natureza, que ordena ao homem que ''procure a paz e a siga'', Hobbes
extrai uma segunda lei, a saber:

''que um homem esteja de acordo, quando outros estão assim também, tanto quanto para a sua
paz e defesa ele pense ser necessário, renunciar este direito a todas as coisas; e contentar-se
com a mesma liberdade em comparação com os outros homens do mesmo modo que ele
permitiria [aos] outros homens em comparação a si mesmo. Porque enquanto todo homem
conservar seu direito, de fazer qualquer coisa que ele queira; todos os homens se encontrarão
na condição de guerra''60.
Um elemento importante dessa lei deve ser destacado, no sentido de situar melhor a
definição de contrato, que aqui se encontra, em linhas gerais, esboçada. Este elemento vem a ser a

53
Ibid., part. I, ch. XIV, p. 86.
54
Ibid., part I, ch. XIII, p. 86.
55
Id., loc.cit.
56
Id., loc.cit.
57
Cf. Gauthier, ''[a]s leis de natureza são preceitos racionais, que estipulam o que a razão requer, em vez do
que ela meramente permite... [Em outros termos,] o que é contrário às leis de natureza é o que é contrário à
razão...''. GAUTHIER, op.cit., p. 36.
58
Hobbes, op.cit., part I, ch. XIV, p. 86.
59
Cf. Gauthier, ''parece que as leis de natureza são preceitos que nos instruem no exercício do direito natural.
Isto é, nós podemos fazer tudo o que estiver de acordo com a razão; as leis de natureza nos aconselham não
somente o que está de acordo com a razão, mas o que é requerido por ela. Portanto, agir segundo as leis de
natureza é agir corretamente, exercitando o direito de natureza, mas naquelas circunstâncias especiais em que
agir de outro modo seria agir erroneamente''. Nesse sentido, o direito de natureza é imune às leis de
natureza., pois elas ''desempenhariam o papel comum de nos capacitar mais efetivamente a agir de acordo
com a razão''. GAUTHIER, op.cit., p. 39.
60
HOBBES, op.cit., part I, ch. XIV, p. 87.
12
''renúncia do direito original''. Para Hobbes, ''[r]enunciar a um... direito a alguma coisa é privar-se
da liberdade de impedir um outro do benefício de seu próprio direito à mesma coisa''61. Ou seja,
abre mão de gozar desse benefício a outro indivíduo. ''Porque aquele que renuncia ou transfere seu
direito não dá a qualquer outro homem um direito que ele não tivesse antes, porque não existe nada
a que um homem não tenha direito por natureza...''. Portanto, essa ''transferência mútua de direito é
aquilo que os homens chamam contrato''62.
Conforme Hobbes, uma vez que renunciou a um direito, esse alguém está ''obrigado, ou
compelido, a não impedir aqueles a quem tal direito é concedido, ou abandonado, do benefício
dele: e que deve, e é seu dever, não tornar nulo esse seu próprio ato voluntário: e que tal
impedimento é injustiça, e injúria, ... antes do direito ser renunciado ou transferido'' 63, pois os
vínculos pelos quais os homens renunciam a seus direitos, em favor da paz, na situação de
contrato64, ou seja, as palavras e/ou ações, recebem sua força, não de sua própria natureza, mas do
''medo da conseqüência de quebrar sua palavra''65.

8. Como vimos (acima, em 2), para Aristóteles os homens constituem a cidade saindo da
condição natural para fugirem da solidão que a vida fora do convívio humano gera, pois, conforme
Aristóteles, um homem que vive só, i.e., fora da cidade, ou é um deus ou é um selvagem. Por quê?
Porque, de acordo com a interpretação proposta aqui, Aristóteles considerava o vínculo político —a
união entre os homens na cidade— como uma ''coisa natural''. E, enquanto ''coisa natural'', o vínculo
político para ele tinha, como tudo na natureza, um fim, um bom fim. Portanto, nesse sentido, a
cidade era o resultado último da união entre as pessoas para fugirem da solidão e realizarem o fim
da boa vida, da vida com qualidade.
Agora, se perguntássemos para Hobbes o que leva os homens a saírem da condição natural e
a formarem o estado civil, por meio do contrato, ele certamente responderia: ''Para evitar o medo
constante da morte violenta, na condição natural, que é uma disputa incessante por power after
power, e uma constante disposição para a guerra de todos contra todos''.
Apresentadas dessa maneira, as duas posições diferem radicalmente. Para Aristóteles, a
cidade era constituída para a vida com qualidade, para Hobbes, para a mera vida. Para Aristóteles,
os homens são políticos por natureza; para Hobbes, os homens são competidores naturais. Mas por
quê? Porque todos querem a mesma coisa: manter-se vivos. Ora, e como não é racional supor que
os bens necessários para a preservação da vida sejam infinitos 66, convém supor que outros, assim
como eu, desejam manter-se vivos também.

61
Id., loc.cit.
62
Cf. Gauthier, '' '[a] transferência mútua de direito' tem de ser entendida em um sentido especial, visto que
os direitos hobbesianos —permissões ou liberdades— não podem literalmente ser transferidos. O que
Hobbes pretende é que cada parte da convenção concorde [em] não opor o exercício de algum direito pelo
outro, e isto é realizado pela sua própria renúncia ao direito correspondente''. GAUTHIER, op.cit., p. 41.
63
HOBBES, loc.cit.
64
No cap. XV, Hobbes deriva da lei de natureza, que obriga a transferência dos direitos, a de que ''os homens
cumpram os pactos que celebrarem''. Para Hobbes, nessa lei se encontra ''a fonte e a origem da justiça''.
Hobbes chega ao seu conceito de justiça argumentando negativamente, a partir do conceito de injustiça; onde
a justiça cobriria o campo não tocado pela injustiça, pois esta não sendo outra coisa senão o não
cumprimento de um pacto, ''onde nenhum acordo precedeu, nenhum direito foi transferido, e todo homem
tem direito a tudo; conseqüentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Mas, quando um acordo é feito, então
quebrá-lo é injusto''. Ibid., part I, ch. XV, p. 91. Portanto, a justiça, para Hobbes, i.e., ''a observância dos
pactos, é uma regra da razão pela qual nós estamos proibidos de fazer qualquer coisa que destrua nossa vida,
e conseqüentemente uma lei de natureza''. Ibid., p. 92.
65
Ibid., p. 90.
66
Pois, cf. Barbosa Filho, ''não é absolutamente necessário que a escassez seja dada: é suficiente admitir que
seu contrário, a abundância sem limites, não pode ser pressuposta''. BARBOSA FILHO, op.cit., p. 68.
13
Para Aristóteles, o princípio do surgimento da cidade (cidade-estado) era teleológico, i.e., a
cidade era a conseqüência natural da realização de um fim da natureza 67. Para Hobbes, o princípio
do surgimento do Estado é, primeiro, racional —''natural'', mas num sentido diferente do de
Aristóteles: a necessidade da manutenção do movimento, a auto-preservação do ser; depois,
psicológico68: da necessidade racional (''natural'') de auto-preservar-se e da possibilidade de não
conseguir, advém o medo. Isso, graças à natureza racional e passional do homem.
Ora, se você aceitamos a premissa de Hobbes de que todos os seres humanos são seres
finitos racionais, dotados de movimento vital e voluntário, e se aceitamos que, por essa razão, todo
homem tende a buscar todos os meios para prosseguir se movendo —i.e., manter-se vivo,
preservando sua identidade—, e se aceitamos, ainda, que esta busca incessante de aumento de poder
cria entre os homens uma disposição natural para lutarem uns contra os outros; então, temos de
aceitar que, numa situação assim: ou os homens podem dizimar-se ou eles têm, racionalmente, que
limitar seu direito de tudo fazer para se manterem vivos, realizando portanto o pacto da renúncia e
transferência desse direito absoluto a um poder soberano. Essa é a lógica do contrato.
Para finalizar minha interpretação dos argumentos de Hobbes na demonstração da
necessidade do Estado, eu gostaria de tentar responder à pergunta que, inicialmente, formulei de
outro modo, e que agora pode ser formulada assim: ''Em que medida o medo pode ser uma base
racional e psicológica suficiente para fundar o Estado e, por meio dele, mantê-lo?''. Em outros
termos, o que eu quero saber é se é unicamente o medo da morte a razão, ou o motivo, suficiente
para os indivíduos convencionarem entre si restringindo seu direito de natureza, e manterem seu
acordo.
Considere a situação do pacto, o momento em que ele é realizado: ''Que garantia tem, aquele
que cumpriu primeiro sua parte no contrato, de que o outro venha a cumprir a sua?'' e ''Que
conseqüência pode resultar desta falta, numa situação meramente contratual, na condição natural?''.
Gauthier chama atenção aqui para um aparente paradoxo na teoria de Hobbes: se nenhum pacto é
válido na condição de natureza, e se só podemos sair da condição natural após o pacto da renúncia e
transferência dos direitos na condição natural, então, não é possível sairmos da condição natural,
pois o meio em que se vai realizar o pacto para sair da condição natural é ela própria. A esse
respeito, Gauthier escreve o seguinte:

''Hobbes supõe que escapamos do estado de natureza, e entramos na sociedade política, pelo
pacto, mas ele pode ser interpretado como sustentando que os pactos feitos no estado de
natureza são inválidos. E essas posições são inconsistentes, porque se os pactos feitos no
estado de natureza são inválidos, nenhuma convenção pode ser feita para sairmos do estado de
natureza''69.

67
E sua maneira de conceber o Estado (a pólis), assim como todas as outras coisas, deriva de sua maneira de
ver o mundo, pois, cf. Barker, ''[s]ua visão do mundo é teleológica: todas as coisas são vistas como [se
dirigindo] em direção a um determinado fim''. BARKER, op.cit., ch. III, p. 219.
68
Cf. Gauthier, ''o corpo político, que dá substância para nossas concepções morais, é o produto da razão
humana refletindo sobre a paixão humana''. A tese principal do argumento de Gauthier é que a psicologia de
Hobbes é ''o fundamento necessário da ciência moral e política''. GAUTHIER, op.cit., p.1.
69
Pois, para Hobbes, ''aquele que cumprir primeiro não tem segurança de que o outro venha a cumprir
depois, porque os vínculos das palavras são muito fracos'' contra as paixões humanas, ''sem o medo de algum
poder coercitivo'', que não existe no estado de guerra de todos contra todos. ''E portanto, aquele que cumpre
primeiro não faz senão entregar-se a si mesmo ao seu inimigo, contrário ao direito que ele nunca deve
abandonar de defender sua vida e seus meios de viver''. Nesse caso, ''sob qualquer suspeita razoável'', esse
pacto é nulo; ''mas se houver um poder comum colocado sobre eles, com direito e força para obrigar o
cumprimento, ele não é nulo'', pois, ''num estado civil, onde existe um poder instituído a obrigar aqueles que,
por outro lado, violaram sua fé, esse medo não é mais razoável; e por causa disso, aquele que pelo contrato é
o primeiro a cumprir está obrigado a fazer assim''. HOBBES, op.cit., part I, ch. XIV, p. 89.
14
Mas a posição inicial de Hobbes admitia que acordos de confiança mútua poderiam ser
estabelecidos, e o medo70 que torna um tal acordo inválido surge sempre depois do acordo feito,
pois,

''[a]cordos de confiança mútua são, portanto, precariamente válidos no estado de natureza. De


outra parte, agir de boa fé pode esvaziar um tal acordo por indicar algum fato, posterior à
realização do acordo, como base para suspeitar da outra parte de não-cumprimento. Mas nós
não necessitamos supor que isto sempre e inevitavelmente acontece. E assim os homens, no
estado de natureza, não deixam de fazer este acordo que termina com o estado de natureza, e
inicia a sociedade política''71.

Ora, em que medida, na condição natural, o medo pode, além de levar ao pacto, sustentá-lo?
Para Hobbes, na condição de natureza, todos os homens são iguais. ''A desigualdade que existe
agora foi introduzida pelas leis civis'', pois, a natureza ''fez os homens tão iguais quanto as
faculdades do corpo e mente que, embora se encontre por vezes um homem manifestamente mais
forte de corpo, ou de mente mais rápida do que outro, mesmo quando tudo é considerado junto, a
diferença entre um e outro homem não é tão considerável a ponto de que ele possa por causa disso
exigir para si mesmo qualquer benefício a que qualquer outro não possa pretender tanto quanto
ele''72. Pois somente em sociedade os homens são considerados desiguais, no sentido do valor que
um atribui ao outro em função do poder que possuem, do lugar que ocupam ou dos serviços que
prestam.
Referindo-se à posição de Aristóteles, na Política, Hobbes argumenta contra a tese de que
haveria, por natureza, escravos e senhores, pois, para ele, ambos foram instituídos pelos próprios
homens, e não porque fossem diferentes quanto às capacidades. Pois, conforme Hobbes, isso ''não é
somente contrário à razão, mas contra a experiência também. Porque existem muito poucos tão
tolos que não tenham querido governar-se a si mesmos em vez de serem governados por outros''. E
se ''a natureza fez os homens iguais, essa igualdade é para ser reconhecida: ou se a natureza fez os
homens desiguais, todavia, porque os homens se pensam iguais, não entrarão em condições de paz,
mas sob termos iguais, tal igualdade tem de ser admitida''.
Desta constatação, Hobbes deriva mais duas leis de natureza, a saber, a de ''que todo homem
reconheça o outro por sua igual natureza'', e a de ''que ao entrar em condições de paz, nenhum
homem deseje reservar para si mesmo qualquer direito que ele não deseje que seja reservado para
qualquer um dos outros''73.
Para Hobbes, portanto, é a suposição racional de que todos os homens sejam materialmente
iguais por natureza o que vai permitir a realização e a sustentação do pacto, enquanto se dá a
transição da condição natural para a condição civil, que culmina com a criação do Estado. Pois, é

70
Para Hobbes, ''os pactos admitidos por medo, na condição de mera natureza, são obrigatórios''; se num
estado de natureza alguém se compromete com o inimigo a lhe fazer algo em troca da vida, por medo, este
pacto ou compromisso é obrigatório, pois, mesmo quando não há outra lei (como se dá no estado de
natureza), que proíba o cumprimento, o pacto é válido. ''Porque tudo aquilo que eu posso legitimamente fazer
sem obrigação, o mesmo eu posso legitimamente contratar fazer por medo: e o que eu legitimamente
contratei, eu não posso legitimamente quebrar''. HOBBES, op.cit., part I, ch. XIV, pp. 89-90. A tese de
Gauthier é a de que as convenções, os pactos, obrigam necessariamente, pois é necessário que os homens
reconheçam os pactos que fazem entre si; ''ao menos que os homens reconheçam eles-próprios estarem
obrigados pelos seus pactos a executarem o que eles patamar, então uma transferência não real de direito
tomou lugar, e em conseqüência um pacto inválido foi feito. Um pacto é válido somente se ele transfere
direitos, mas ele transfere direitos somente se as partes não podem reduzir os direitos ao seu prazer. As
partes não podem reduzir seus direitos somente se elas estão obrigadas a isso, mas elas estão obrigadas a isso
somente se elas estão assim obrigadas pelo pacto''. GAUTHIER, op.cit., p. 47.
71
Ibid., p. 59.
72
HOBBES, op.cit., part I, ch. XIII, p. 84.
73
Ibid., part I, ch. XV, p. 94.
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só quando se dá a renúncia de todos ao seu direito natural e a sua transferência simultânea em favor
de um terceiro, contratando um poder representante e comum acima de todos, que o Estado passa a
existir, e, com ele, a garantia do cumprimento dos pactos feitos, por medo, agora, da punição,
legalmente contratada, pelas leis artificiais, i.e., o direito civil.

Resumindo nossa interpretação, no argumento de Hobbes, o medo é o elemento que


fundamenta três estágios da elaboração do pacto, a saber, dois anteriores e que levam a ele, e um
durante o próprio pacto e que o sustenta, garantindo a transição da condição natural para a condição
civil: o primeiro (i), no nível meramente formal do argumento de Hobbes, traduz-se pelo desejo
racional de preservar-se (como vimos acima, em 3 e 4): é a 'tese racional' do seu argumento; o
segundo (ii), no nível material —o da aplicação da teoria do contrato—, esse elemento pode ser
interpretado como a contrapartida psicológica da possibilidade de detenção do movimento vital, que
se traduz pelo medo da morte violenta: é a 'tese psicológica'; e o terceiro (iii), uma vez realizado o
pacto no estado de natureza, os pactuantes, com base em (i) e (ii), não quebram o pacto, e permitem
que ele valha durante a transição do estado de natureza para o Estado civil, por medo, agora, das
conseqüências que a quebra do pacto possa gerar. Pois, se todos, racionalmente, se consideram
materialmente iguais, e o que um puder o outro também poderá, segue-se que o medo das
conseqüências da quebra do pacto é o elemento que possibilita a transição do estado de natureza
para o estado civil. Porque não basta que o homem, por racional, reconheça a validade do pacto
mediante a necessidade de sua auto-preservação, validada teoricamente por ele, para entrar em
acordo. Agora é necessário também, para o assentimento, a crença de que assim será caso o acordo
seja realizado; i.e., é necessário que seja incluída uma cláusula não racional no contrato, a saber, a
vontade, o desejo de que assim seja: os homens têm de querer o pacto. É por isso que o contrato —
que é o meio para sair da condição natural— se encontra em parte na razão e em parte nas paixões.
Portanto, (i) dá a razão do pacto; (ii) dá o motivo e (iii) dá a sua sustentação, enquanto a
transição se efetiva. Em suma, o medo, visto sob esses diferentes aspectos, é a razão, o motivo e a
garantia da realização do pacto e da transição do estado de natureza para o Estado civil em Hobbes.
Nesse sentido, o medo pode ser considerado como a paixão civilizadora, pois, de acordo com
Hobbes, a mesma paixão que levou os homens a associarem-se através do pacto com vistas à paz,
ou seja, o medo, é a que vai garantir o cumprimento dos pactos. Este medo pode ser o medo dos
espíritos invisíveis, de acordo com Hobbes, e/ou do poder dos homens. O medo dos espíritos
invisíveis, dirá Hobbes, ''é em todo homem sua própria religião, que toma lugar na natureza do
homem antes da sociedade civil'' 74.

74
Ibid., part I, ch. XIV, p. 90.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Philosophique de Ladrange, 1874.
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ESPINOSA, B., Tratado Político, tr. por Manuel de Castro, em 'Os Pensadores', Abril Cultural, SP,
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GAUTHIER, David P., The Logic of Leviathan: The Moral and Political Theory of Thomas
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