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Nau - um fôlego náufrago

Por Maicyra Leão

Quando de sua primeira exposição individual no Brasil, Marina Abramovic comparou a


arte da performance à Fênix, ave mitológica que morre e renasce das cinzas. Pareceu-me
uma boa imagem para localizar o movediço desconforto da linguagem e seu recorrente
ciclo de falência.

Pessoalmente e de forma mais intensa no último ano, convivi com uma nítida sensação de
viuvez para com minha parceira: a performance na rua. E dessa forma, me recobri de suas
cinzas resistindo a qualquer aparição farsante ou fadada a uma visualidade histriônica.

Queria evitar os olhos. Queria evitar a constituição de um corpo visual que despertasse
estranhamento por sua dimensão criaturesca. Já havia me esbaldado nesses lençóis e era
sim um momento de luto particular para com minha parceira.

Por outro lado, vinha ensaiando o envolvimento de agentes “não-especializados” na


composição artística1 e, na ocasião, parecia coerente ter alguém próximo. Alguém que
desestabilizasse a categoria Arte e o convencimento de uma condição de apreciação dada
como prerrogativa.

De forma geral, é nesse contexto que surgiram então os primeiros indícios de Nau: a
relação com a vastidão irresoluta do mar; o soteareiamento mediado pela respiração; a
companhia de um salva-vidas profissional, no caso, Santiago.

Enquanto ação, sinteticamente, iniciava com um passeio simples pela beira da praia,
carregando um barquinho de brinquedo, até dirigir-me a uma cova de aproximadamente
70 cm de profundidade, previamente cavada pelo salva-vidas. Lá, deitaria e passaria a
respirar por um tubo transparente enquanto ia senda coberta por ele com areia, deixando
apenas a ponta de meus pés do lado de fora, que serviriam como um sinal caso eu

1
Os próprios experimentos iniciais de soterramento (pré-Nau) ocorreram em 2008, na abertura da
exposição Vizi – Clube Social da Unidade de Vizinhança realizada por mim, Gisel Carriconde e Krishna
Passos, através do Programa Amplificadores do Museu Murilo La Greca, na qual convidávamos moradores
dos arredores, bem como trabalhadores do Museu e amigos, a participar da exposição através de um objeto
pessoal (e sua história), o qual considerassem uma relíquia que merecia exposição pública.
necessitasse socorro imediato. Passados 35 minutos, o salva-vidas desenterraria, a mim e
ao barco, carregando-me até o mar para mergulharmos.

Foi simples assim que antes de realizá-la descrevi a ação a Santiago e instantaneamente
percebi que o efeito do “não-especialista” era o que me faltava para concluir o círculo de
soerguimento da Fênix. Consternado e doce, ele me respondeu: -Maicyra, fui treinado
para retirar as pessoas do mar e de situações de perigo e não para colocá-las. A partir daí,
conversamos longamente sobre argumentos sólidos da ordem da representação e do
significado, mencionando os inúmeros corpos perdidos na imensidão do mar, incluindo
fatos recentes de náufragos ainda não encontrados, na região costeira próxima dali.
Acomodado o entendimento, ele surpreendeu com seu elaborado cuidado ao
cobrir/desenterrar/tirar/carregar, confirmando o seu posto de primeiro especialista da
situação.

Os primeiros golpes da areia apresentam nova textura. Não


se desespere porque a maior prejudicada será você. Aos
poucos os sons começam a ficar mais remotos. Pesa. Pesa.
Pesa mais. Preciso encontrar espaço.

Santiago permaneceu ao meu lado, atento ao horizonte e ao nosso sinal, enquanto me


arremedei de profundezas. Estar ali me exigia força e concentração já que não havia
como me mover e precisava garantir uma respiração compassada e fluente. Passados os
minutos combinados, eu sem noção de tempo, senti o peso extra de seu corpo retirando as
camadas de areia e comecei a renascer o movimento. Reabilitei o gesto que já havia
esquecido nesses minutos, até nos chocarmos contra as ondas geladas do mar.

Do lado de fora, o pequeno velório se comportou como se espera numa morte anunciada:
incrédulo e comovido. Mas entre esses estados, interessava mais o atravessamento do
fôlego coletivo que se conectava em arritmia, fazendo eclodir suas breves sensações
náufragas.

Depois de horas de readequação, renovei meu status de viuvez em relação à performance


no espaço público assumindo “solteira, à procura”. Bati o resto da areia que ainda estava
grudada, insistindo em ser cinza, e ergui vôo.

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