Você está na página 1de 1

2º SEMINÁRIO INTERNACIONAL

REPRESENTAR - BRASIL 2013:


AS REPRESENTAÇÕES NA ARQUITETURA,
URBANISMO E DESIGN

SOBRE O MEMORIAL DOS JUDEUS ASSASSINADOS DA EUROPA A dimensão e a maneira nada sutil com que se insere no tecido da cidade cen-
tenária, ao mesmo tempo em que contribui para a ideia de monumento tradi-
cional, traz uma reverberação dos projetos megalômanos do modernismo,

João Yamamoto
herança trazida e exposta, entretanto, como observou Esther da Costa Meyer13,
como uma terrível ironia. Pela falta de um ponto central, de um foco de aten-
ção através do qual uma narrativa poderia ser contada, pela dispersão a que
Arquiteto e Urbanista induz os seus visitantes, convidando-os a mergulhar no seu mar de corredores e
elementos indistinguíveis, a dimensão da obra carrega a experiência do espaço
Mestrando – Fauusp – Design e Arquitetura – Giorgio Giorgi Jr. (orientador) com uma forte ideia de seriação e de expansão indiscriminada e sem controle.
Se, como em algumas leituras feitas sobre essa obra, nos referíssemos aos ele-

joaoyamamoto@gmail.com mentos trabalhados e colocados em relação com uma alusão ou uma figuração,
poderíamos dizer que a dimensão da obra é em alguma instância representação
do modo produção típico da era mecânica da Revolução Industrial.

Eixo temático 03 – É preciso lembrar também que a dimensão da obra, ou ao menos da área onde
ela se insere, não foi definida no ambiente do projeto por seus autores, mas no
Palavras-chave: Peter Eisenman, representação, processo projetual. ambiente público das disputas políticas, decidida a partir do resultado das
negociações entre o governo e um grupo de cidadãos. Assim, a escala da obra
pode ainda ser pensada como uma qualidade que sofreu com a reverberação
da escala da cidade e das suas pesadas e sólidas construções. Pode ser aceitável
pensar que a dimensão da obra seja resultado de uma cultura acostumada a
produzir tantas realizações com uma dimensão monumental: das colunas de
pedra de Karl Friedrich Schinkel no Altes Museum, às de luz de Albert Speer no
Arquitetura, monumentos e túmulos. Com esses três elementos, captura- Zeppelinfeld, da comemoração do triunfo na Siegessäule ou no Brandenburger
dos de Adolf Loos no ensaio “Arquitetura”1 e resignificados em uma Ao mesmo tempo, a associação com o cemitério judeu de Praga, cuja origem Tor, à da tragédia no Memorial do Holocausto.
paráfrase, Peter Eisenman abre o texto de apresentação do seu projeto na cronologia dos textos críticos ainda não pude identificar, é, ao meu ver, Ao mesmo tempo, tanto a dimensão da obra como a amplitude espacial e
para o Memorial dos Judeus Assassinados da Europa2, introduzindo a relevante apenas no que se refere à inclinação das pedras. Excluindo-se o visual, que nos permite a observar como um todo, guardam uma relação
discussão de um problema central: a representação do massacre de 6 A exigência de alteração feita pelas autoridades gerou ainda uma asso- fato de ser reservado somente aos judeus, não sobram muitos elementos de com a história da cidade e da área onde foi desenhada a quadra reservada
milhões de judeus e de toda a complexidade da memória do Holocausto. ciação curiosa e completamente acidental entre uma característica muito conexão com a configuração formal e conceitual do Memorial dos Judeus ao Memorial. A ideia de vazio, claramente perceptível ao visitante que chega
Mesmo que com consequências e conclusões diferentes das que gui- específica da obra, o número de pedras, e o Talmud, o livro sagrado da Assassinados da Europa. Poderíamos evocar a lembrança do cemitério da a pé pelo lado leste depois de percorrer as quadras de construções na testa-
aram o projeto concretizado, a questão já havia sido amplamente debati- religião judaica. Mesmo tendo apenas o valor de anedota, trago aqui a qual falei a pouco, mas mesmo isso se tornaria uma ligação frágil se conside- da do lote e de térreos ocupados, parece ter também existido em outros mo-
da no período de gestação do memorial e permaneceu viva ao longo dos história, contada pelo próprio Eisenman em uma palestra, como exemplar rarmos a existência, não muito longe da obra de Eisenman, de outros tantos mentos da história. No final do século XVII, quando a área se situava no lado
anos que sucederam a escolha da proposta até a inauguração, um pro- da forma livre como as mais diversas associações são feitas, independen- cemitérios judeus tão antigos quanto o de Praga e até mais significativos do externo da muralha que definia os limites da cidade, e nos séculos XVIII e
cesso que ao todo durou aproximadamente dezesseis anos. temente do controle que se tem da obra, e de como os repertórios indi- que ele, tanto com relação à similaridade, pela organização dos túmulos e XIX, quando era o jardim entre um novo limite e as costas das imponentes
viduais guiam as interpretações feitas. pela forma das lápides, quanto pelo significado sentimental e histórico para construções. Na primeira metade do século XX, entretanto, recebeu colado
Túmulos os judeus, se lembrarmos do cemitério demolido durante o nazismo na
“O número de pilares no meu projeto original era de 4350, o suficiente ao seu limite norte a residência e o abrigo subterrâneo do Ministro da Propa-
Em oposição ao modo como foi concebida a exposição “Topografia do Grosse Hamburger Strasse. Mas retomando a nossa trilha, e olhando novamente para o modelo
para preencher o terreno. Mas o Chanceler Kohl notou que algum espaço ganda no regime nazista, Joseph Goebbels. A condição de vazio foi rapida-
terror”, instalada no terreno que havia abrigado a sede da Gestapo, um físico da primeira fase de projeto, é notável que ainda nessa etapa a
teria que ser deixado para as calçadas, além de vários outros problemas A inclinação das estelas (e aqui a dupla acepção da palavra cai como uma mente devolvida poucos anos depois com os bombardeios e mantida, na
grupo de cidadãos se organizou e gradualmente conquistou apoio à forte e clara ondulação – na superfície formada pelo topo das estelas
práticos, o que reduziu o número para 3000. Em seguida, a embaixada luva), por sua vez, além de ser traço comum a todos esses cemitérios antigos – maior parte do tempo como zona de segurança do Muro de Berlim, até a sua
proposta de construção de uma obra em memória dos judeus assassinados da obra construída – ainda não estava presente, ou seja, ainda não
americana [de frente para o Memorial] disse que a calçada teria que ser que ao longo dos séculos sofreram com a ação do tempo e com o movimento escolha como local a receber o Memorial dos Judeus Assassinados da Europa.
durante o regime nazista, proposta apresentada em agosto de 1988 em havia surgido como hipótese de realização. O que vemos no modelo é
deslocada por razões de segurança, o que reduziu o número ainda mais eterno (invisível ao olho do homem) em que todas as coisas estão –, pode ter Mas além de tudo isso, outra importante questão ainda deve ser observada
um debate público. A iniciativa, entretanto, enfrentou sérias resistências uma extrema variação na altura das peças formando uma superfície
para 2711: um número sem significado além do que o de preencher o a sua origem pensada além da simples alusão ou da figuração. Sua origem para pensarmos a forma descolada com a qual o conjunto se insere no
por parte de políticos, acadêmicos e artistas, que questionavam desde a irregular e sem a percepção clara de dobras em um único sentido. Da
espaço dado a nós. Mas um dia um jovem estudante rabínico veio até mim mais provável, juntamente com a da extrema variação de altura, talvez esteja tecido urbano, assim como com a percepção da obra como objeto, que a
ausência das outras vítimas – ciganos, homossexuais, etc. – na homena- mesma forma, a ondulação do piso – repleto de ondas pequenas no
e me perguntou se eu havia percebido que o Talmud moderno tem 2.711 na precariedade do modelo físico feito na primeira etapa do projeto, na escala carrega de traços em comum com a concepção tradicional de monumento.
gem, até os problemas conceituais envolvidos com a ideia de monumento. sentido norte-sul e com uma grande e suave concavidade no sentido
páginas. Então talvez, depois de tudo, isso tenha algum significado...”. 5 reduzida da representação e na limitada precisão da operação manual, que se Ao analisarmos o modelo físico da primeira etapa de projeto, notamos que leste-oeste – é consideravelmente diferente no modelo. Nele a irregu-
É curioso notar o contexto no qual a proposta e o debate se deram. A Ale- baseou na ação de inserir elementos prismáticos em uma malha regular per- somente em um dos lados, o lado sudeste, as pedras se elevariam a uma
A força de lei que uma simples associação pode ganhar no processo de laridade, como apontei anteriormente, parece ser muito mais o resulta-
manha passava por um período de profundas transformações sociais, furada. A imprecisão e extrema variabilidade de inclinações e alturas talvez altura suficiente para impedir um passeio livre do olhar, ou seja, somente a
interpretação da obra, somada à ideia de representação entendida como do de uma operação manual, da precariedade da escala e do material
como a iminente reunificação e reconstrução da cidade, e, ao mesmo seja também resultado de um processo de projeto manual, ou seja, de um partir do lado sudeste não seria possível olhar o Memorial como um todo.
figuração, parece ter sido o motivo de algumas confusões de leitura e – utilizado. Por outro lado, a capacidade de deformação em dois sentidos
tempo, de lembrança e reflexão sobre a sua própria história, como os pensamento sobre a arquitetura desenvolvido através da – e na – manipulação Esse dado coloca dúvidas com relação à responsabilidade das mudanças
em parte talvez devido a como muitas vezes, sobretudo no meio que a malha utilizada como base do modelo oferecia (pelo fato de ser
quarenta anos do final da guerra – em 1985, ano marcado por uma série do modelo, com formulações de hipóteses para problemas formais em diálogo exigidas pelo governo na perda do espírito da dita “concepção original”.
arquitetônico, esse tipo de artifício é visto com maus olhos – de questio- com problemas conceituais, palpite plenamente aceitável tendo em vista o perfurada), parece ter indicado uma possibilidade formal.
de eventos comemorativos e pelo discurso de Richard von Weizsäcker, namentos ou reprovações por parte da crítica. Além da associação com o percurso e as convicções dos autores do projeto nessa etapa de desenvolvi- Além disso, se hoje vemos os ladrilhos que revestem o piso da obra serem
presidente da Alemanha Ocidental, considerado por alguns como o pedido Foi somente com o uso de ferramentas tradicionais de desenho de topo-
sentido6 e com a figura7 do labirinto, vinda talvez de uma rápida citação cortados na diagonal no encontro com as calçadas (revelando a arbitrarie-
oficial de perdão – e os setecentos e cinquenta anos da cidade de Berlim, mento, o arquiteto Peter Eisenman e escultor Richard Serra. grafia, aliados aos estudos com o uso de diagramas gráficos que pareciam
no texto de apresentação8 e da ideia de desorientação atribuída a alguns dade do grid) e pensamos a respeito da falta de relação com o entorno, não
ocasião na qual foi promovida a exposição geradora da polêmica. A analisar a intensidade da perturbação da superfície (figura 4), trazendo
projetos de Eisenman e de seus contemporâneos, a associação com túmu- E aqui, sendo acidente ou não, mais uma convergência de elementos nas pos- podemos nos esquecer da natureza daquele modelo físico. Composto por assim um parentesco de primeiro grau com os gráficos desenhados por
análise do contexto, obviamente, não serve aqui como fonte de argumen- los e cemitérios – especialmente com um antigo cemitério judeu em síveis interpretações, ou seja, a percepção de uma ação, de um movimento: duas peças, o modelo já antecipava uma relação marcada pela conexão entre
tos em uma definição (que de forma alguma busco), mas pode oferecer sismógrafos, que a movimentação caótica ganhou ordem e harmonia,
Praga, evocado em diversos textos – recaiu sobre a obra com tal força que do arquiteto e do artista sobre o modelo, do prisma sobre a malha e do partes de naturezas distintas: uma primeira, feita de uma malha perfurada
indícios de elementos presentes no ambiente em que a sociedade berline- formando as ondas bem desenhadas da obra construída que aumentam
acabou por se tornar uma espécie de explicação para a configuração do tempo sobre as estelas. com elementos prismáticos cravados representando a obra como objeto iso-
nse optou por erguer um memorial dessa natureza. O que sublinho aqui é de forma gradual à medida que se aproximam do centro e de uma das
conjunto e para a volumetria do seu elemento primário, o monolito de lado, e uma segunda, representando o entorno com outro tipo de material.
a tensão entre a ideia de uma nova Alemanha, concretizada na reunifi- Monumentos extremidades do terreno.
concreto. A partir dessa associação, apontava-se uma relação de contigui- Arquitetura
cação do país e na reconstrução da cidade de Berlim, e a indigesta e mas- dade envolvendo a forma dos blocos, a ideia de morte e a exterminação de O movimento e a ideia de ação, presentes na inclinação irregular de cada O interessante de ser notado aqui é como cada um dos processos percorri-
sacrante presença da memória da guerra e do Holocausto, exposta diaria- judeus pelo nazismo, configurando assim o uso de uma representação bloco, também são fortemente perceptíveis no campo de monolitos para Apesar de todos os problemas levantados nas diversas críticas, tanto a dos ao longo de um projeto não apenas traduzem de uma maneira muito
mente nas ruínas espalhadas pela cidade, nos filmes e programas de TV, no figurativa ou de uma alusão direta a um entendimento determinado, o aquele que, das calçadas que contornam a quadra do Memorial, se coloca a dimensão da obra como a possibilidade de vê-la como um todo (possibili- específica o que é trazido das etapas anteriores, moldando o projeto de
conteúdo didático das escolas e no mal-estar que gerava nas diferentes que, segundo essas leituras, seria contraditório com a argumentação da observar a obra tentando capturá-la como conjunto. Sobretudo nas margens dade relacionada com a amplitude espacial), além de terem parentesco com acordo com as suas possibilidades, como também introduzem característi-
gerações: as mais antigas, que viveram a guerra e que carregavam a culpa proposta ou ao menos questionável tendo em vista o percurso do arquiteto. sul e leste – onde estacionam os ônibus carregados de turistas e onde se os elementos discutimos até agora, estão relacionadas também com a criação cas que são próprias da sua própria materialidade e modo de representar.
por uma relativa conivência com os horrores do nazismo, e as mais novas, localiza a entrada do Centro de Informações, respectivamente – é bastante de uma interessante continuidade do caminhar pela cidade no interior do
A associação ainda é reforçada pelo uso da palavra stela, que é alternada forte a percepção de ondulação na superfície imaginária formada pelo topo A imprecisão e extrema variabilidade do modelo do concurso, por exemplo,
que eram obrigadas a lidar com um passado que não lhes pertencia. Memorial: o olhar, que com a chegada à obra havia ganho a possibilidade
no texto com a palavra pillar em quase igual número e em igual contexto, dos blocos de concreto. Dessas margens, que, ao contrário da margens norte tida como uma qualidade a ser mantida nas etapas posteriores, se transfor-
A questão da memória foi discutida por Eisenman em seu texto e guiou a de flutuar livremente pelo espaço – mantendo assim a ideia de vazio carac-
sempre referindo-se aos monolitos de concreto armado. Embora o fato mou na necessidade de extrema precisão e ordem nos processos de projeto
argumentação a favor do projeto, manifestamente afastado de um modo e oeste, não receberam o plantio de árvores, é possível tomar a devida terística daquele lugar –, é no mergulho obrigado novamente a acompanhar
possa parecer de certa forma banal, é notório, ao menos como curiosi- e construção. Com o desenvolvimento da proposta e o aumento de
de representação simbólica presente em inúmeros monumentos e memo- distância de posicionamento que aumenta (também nos infinitos registros o alinhamento dos blocos, a seguir a perspectiva das ruas, a se reconectar
dade na reflexão sobre o tratamento dado à memória do Holocausto na definição dos seus elementos visando a construtibilidade, cada monolito,
riais do Holocausto construídos ao redor do mundo, como o de George fotográficos dos turistas) a apreensão da obra como um todo e do conjunto com o percurso do visitante e com o desenho do espaço.
sua representação arquitetural e na sua leitura, o modo como uma pala- que antes se perdia entre tantos outros cravados da mesma maneira impre-
Segal em San Francisco, de Kenneth Treister em Miami Beach, Rachel como um objeto apartado de relação com o seu entorno. Da mesma forma, a dimensão da obra é uma das características responsáveis
vra, cujo uso mais comum atualmente remete à ideia de placa ou coluna cisa na malha perfurada, passou a ter um nome, um endereço e uma
Whiteread na Judenplatz de Viena, o Jüdisches Museum Berlin de Daniel de pedra usada como lápide, seja encontrada em registros de todo o pro- Essa possibilidade de apreensão foi motivo de questionamentos por parte pelo estado de imersão e de isolamento da cidade no qual se encontram aque- descrição física. O uso tradicional de eixos nos dois sentidos, embora com um
Libeskind, ou ainda, o Muro dos Nomes no Memorial de la Soah em Paris. cesso de projeto, desde a primeira etapa até as pranchas finais do projeto da crítica que apontou uma relação com a ideia de monumento do século les que passeiam pelos longos corredores escuros, estado que difere muito intervalo muito menor do que o usual (resgatando assim o grid com um sen-
Da mesma forma, ao abrir mão do uso direto de elementos como a Estrela executivo. Por outro lado, também é notório que na sua origem grega XIX ou com a concepção tradicional de escultura com a qual o modernismo daquele em que estaria uma pessoa perdida em um labirinto. No labirinto a tido prático), e de instruções de instalação – que definiam o nome da peça
de Davi, o candelabro, ou a inscrição de frases e de nomes de vítimas, a (stēlē)9 a palavra tenha uma abertura muito maior e seja muito menos havia rompido , a de escultura pensada de forma isolada das reverberações
10
concepção do espaço está baseada na criação de um efeito de desorientação (J16, H42, etc.), o tipo (11 tipos em função da altura) a localização no terreno
proposta estabeleceu uma clara diferença de abordagem conceitual em definidora de um único entendimento, significando apenas “bloco em pé”. do espaço e da movimentação de quem a observa. Da mesma forma, apon- nos seus visitantes que, por sua vez, guiam o tempo da experiência à compre- e as inclinações nos sentidos x e y (variando de 0,5° a 2°) – aliados a um pro-
relação a outras entregues no mesmo concurso. O projeto de Peter Eisenman tou-se a “perda de substância” em relação à concepção original, configu- ensão do problema, à decifração do enigma. Tudo se resume a um jogo no qual cesso industrial de fabricação das peças principais, os monolitos, geraram
em colaboração com o artista americano Richard Serra – que abandonou a Entretanto, e apesar de todos os indícios que apontam para a figuração de rando um “fracasso artístico” , e a anulação do efeito de desorientação
11
o labirinto quer confundir e o visitante quem compreender. No Memorial, por uma obra extremamente precisa e bem acabada que aumenta em grande
empreitada ainda na primeira fase – propôs a ocupação do terreno com túmulos e de um gigantesco cemitério, a forma das pedras e a disposição que supostamente deveria causar, efeito relacionado com as questões outro lado, o estado de imersão não está necessariamente relacionado com o grau o contraste com a inclinação e ondulação dos blocos e do terreno.
um mar de elementos prismáticos de concreto com diferentes alturas e em linha talvez tenha origem no que pode ser visto como uma citação analisadas a pouco e com outras que serão analisadas mais à frente. Boa de desorientação e o visitante, por mais que se esforce em se perder, traçando
velada de um projeto anterior do mesmo arquiteto, o Monumento e Memo- parte desses problemas conceituais teriam surgido ou sido agravados com O uso de ferramentas eletrônicas certamente foi decisivo para a configu-
organizados em um rígido grid, sem qualquer referência ou instrução clara caminhos aleatórios em disparada, sempre encontrará na visão do final dos
rial Dedicado aos Judeus Vítimas do Regime Nazista na Áustria, na Judenplatz o atendimento das solicitações feitas pelo Governo alemão e pela Embaixada ração formal da obra. Caso fosse projetado somente com as ferramentas
de uso e interpretação, e sem dizer claramente em nome de que havia sido corredores uma referência espacial – dada pelas construções ao redor da obra e
de Vienna, projeto feito somente dois anos antes para um concurso em tradicionais na prancheta, haveria uma dificuldade muito grande de se
construído, reservando assim, àquele que viria a experimentar o espaço, as Americana, ou seja, a redução do número de pedras, a melhoria da relação pelas árvores do Tiergarten – que o dirá em que ponto aproximadamente ele
1995, disputa vencida pela artista Rachel Whiteread. Esse procedimento de com o entorno com a criação de calçadas, a amenização na altura dos manter um grau razoável de controle sobre as definições projetuais e sobre
associações possíveis feitas de acordo com cada repertório. está. Nessa obra, ao contrário do labirinto, não há entradas ou saídas14, mas
citação descontextualizada, de colagem arbitrária – muito aceitável à sensi- blocos mais próximos da margem sudeste, o plantio de árvores e a criação os processos de produção. Definir manualmente as características, inclina-
“[…] o monumento tenta apresentar uma nova ideia de memória, distinta uma centena de ruas indistinguíveis levando a tantas outras, sem qualquer
bilidade eletro-eletrônica, acostumada com o recurso da sobreposição e da ções e alturas de cada uma dessas pedras, localizá-las no terreno e siste-
da de nostalgia. Propomos que o tempo do monumento, a sua duração, do Centro de Informações. objetivo ou função que não a de simplesmente ser percorrida.
montagem cinematográfica –, já havia sido desenvolvido pelo arquiteto matizar a produção dessa obra seria uma tarefa não impossível de ser exe-
seja diferente do tempo da experiência e da compreensão humana. O mo- (embora de maneira declarada) em diversas outras ocasiões, como no A espantosa dimensão dessa obra – que ocupa uma área de 19.073m2, o É bastante significativo que a inteligibilidade do espaço – a clareza e simplici- cutada, mas certamente um tanto ingrata. E aqui, um ponto importante:
numento tradicional é entendido por seu imaginário simbólico, pelo que ele Cannaregio, projeto para Veneza em 1978, o IBA Social Housing, projeto na equivalente a aproximadamente dois campos de futebol – somada à dade das relações espaciais –, tão evidente na facilidade de navegação em um muito provavelmente esse tipo de distinção entre cada uma das pedras, de
representa. Não é entendido no tempo, mas num instante no espaço [...]. cidade de Berlim em 1981, ou o jardim no Parc de La Villette em Paris, proje- quantia de recursos públicos destinados à sua construção – quase vinte e campo daquela dimensão, assim como a inutilidade15 do conjunto e a indistin- particularização dos componentes e, sobretudo, de produção racionalizada
Neste monumento não há objetivo, não há fim [...]. A duração da experiên- to feito com a colaboração do filósofo Jacques Derrida em 1987. oito milhões de euros – e à sua localização central – bem ao lado do guibilidade dos elementos individualmente, seja resultado da organização em de uma obra com tantos componentes diferentes, não seria realizada dessa
cia de um indivíduo não garante uma maior compreensão, uma vez que o centro de poder alemão e dos principais museus da cidade –, entrou um rigorosíssimo e arbitrário grid, da ideia de ordem levada a graves conse- maneira. Muito provavelmente, caso fosse projetada inteiramente na pran-
No projeto de Viena, Eisenman efetuou a sobreposição de diversos mapas junto com outros elementos na polêmica que marcou todo o processo, quências na configuração formal. Assim como fiz em parágrafos atrás ao falar cheta, ganharia ao longo do desenvolvimento uma outra configuração.
entendimento é impossível. O tempo do monumento [...] é dissociado do e o cruzamento de camadas e níveis determinando a configuração espa-
tempo de experiência. Neste contexto, não há nostalgia, não há memória desde a decisão de se fazer uma obra em memória dos judeus assassina- da dimensão da obra, seria possível estabelecer uma relação entre a ideia de Muito provavelmente a obra se realizaria com outra materialidade.
cial da praça. Na primeira camada usou dois mapas de guetos judaicos em dos, passando pela escolha do terreno, dos materiais utilizados na cons- ordem presente no grid com o modo de produção e pensamento da fase
do passado, mas apenas a memória viva da experiência individual. Aqui, só Viena, um destruído em 1421 e o outro em 1678, escalados de forma a O conflito entre a extrema precisão do grid – e dos processos feitos com
podemos conhecer o passado através de sua manifestação no presente”. 3 trução 12
, até o seu uso efetivo e incorporação na rotina da cidade. mecânica da Revolução Industrial, trazendo mais um elemento para a rede de
ajustar-se à dimensão da área. Na segunda, o mapa da Áustria e da Ale- grande controle nas etapas finais de projeto e construção – com a impreci-
relações que estamos construindo na tentativa de análise de uma obra que se
Assim, a obra se concretizaria como um espaço onde a associação, mecanis- manha, indicando a anexação em 1938. E finalmente, a terceira, com a são e extrema variabilidade dos processos manuais utilizados no início do
colocou a difícil tarefa de representar a memória do Holocausto.
mo base no processo de pensamento e compreensão, ganharia maior liber- representação bidimensional da planta de Auschwitz, com seus enormes desenvolvimento da obra, um conflito envolvendo a ideia de ordem, teve
dade, ou seja, se realizaria como uma obra aberta às diversas interpretações, galpões retangulares organizados em uma típica instalação militar. Aparentemente o primeiro computador eletro-mecânico foi construído na ainda uma sequência que, ao mesmo tempo em que pode ser entendida
usos e apropriações, e onde a memória do Holocausto se realizasse na com- É curioso que da associação com túmulos e cemitérios e daquilo que parece Alemanha nazista, sendo usado para o recenseamento de judeus, ciganos, como paródica, ajuda a revelar importantes questões relativas à configuração
plexidade da mente e da memória de cada indivíduo. A obra não seria base- ser a origem da forma dos blocos e do conjunto, ou seja, a planta do campo comunistas e homossexuais que, transformados em dados traduzidos em formal do campo de estelas, aos significados a ele atribuídos e à forma
ada na representação de fragmentos da religião judaica ou da figura de furos em cartões de papelão, poderiam facilmente ser localizados. Um massa- como o Memorial dos Judeus Assassinados da Europa foi incorporado como
de extermínio de Auschwitz, reste como elemento em comum somente a cre da dimensão do chamado Holocausto não foi possível de ser feito através acontecimento na cidade de Berlim: a conversão da obra em um campo de
seres humanos em sofrimento, mas na representação de um conjunto de similaridade visual e a ideia de morte. Isso se torna fato de grande importân-
qualidades e elementos não tão claros ligados à memória do Holocausto da expressão colérica, da explosão de ódio do antisemitismo, mas sim através brincadeiras e jogos de perseguição.
cia pois pode indicar, senão um considerável domínio no que diz respeito à da frieza e ordem dos sistemas computacionais. A associação da ordem com o
que se incorporaram à cultura de Berlim, interferindo assim cotidianamente consciência do suporte de representação e da comunicação na arquitetura, E com mais essa associação imprevista, demonstrando “a ideia de que todos
nas ações e pensamentos de seus habitantes. assassinato de 6 milhões de judeus encontra ainda uma forte imagem na de
uma feliz coincidência de elementos formando algo um pouco mais próximo os sistemas fechados de uma ordem estão condenados ao fracasso”17, encerro
morte como estado entrópico nas relações que formam a vida.
Com a escolha da proposta de Eisenman e o desenrolar do processo, foram da desejada complexidade na representação da memória do Holocausto. a escritura desse texto.
demandas por parte do Governo alemão (o cliente da encomenda) algumas Para além do espaço deste artigo, cujo objetivo principal é o de oferecer uma
mudanças e adaptações no projeto original, algo que normalmente não ocorre- leitura do Memorial dos Judeus Assassinados da Europa considerando a obra em
ria em realizações de outras formas de arte. É usualmente creditado a esse evento algumas das suas diversas camadas, analisadas a partir do material levantado na
o fim da parceria com Richard Serra. Além da criação de uma faixa no períme- pesquisa que desenvolvi até agora, vejo com muito interesse uma reflexão a res-
tro do lote, reservada ao passeio de pedestres, a principal alteração e que gerou peito da ideia de ordem na linguagem da arquitetura e da arte. Por representar,
a mais significativa transformação conceitual da proposta foi a exigência de por traduzir o “universal nas suas categorias mais gerais” 16
, o texto artístico se
criação de um Centro de Informações que seria responsável por abrigar um opõe ao que poderia ser chamado de caos, ou seja, ele cria ordem a partir daqui-
conteúdo museológico e esclarecer aos visitantes a finalidade daquele memo- lo que é da desordem. Apesar disso, é por ele informado, ou seja, internaliza suas
rial. Dessa operação, como observou o filósofo Giorgio Agamben em um formas, as transforma, traduz e revela, trazendo para a sua existência (e para a
pequeno texto crítico publicado no Die Zeit4, resultou uma dualidade entre o nossa, portanto) uma possibilidade de contato. A obra de arte comunica e o faz
campo de blocos mudos e o pequeno museu que narra didaticamente uma cro- de uma maneira extremamente particular. Mas não apenas isso: o que a obra de
nologia de acontecimentos: uma dualidade entre dois tipos de memória. arte comunica também possui uma extrema particularidade.

9
Segundo o Oxford English Dictionary.
10
Segundo Richard Serra, em entrevista concedida a Peter Eisenman em 1983, essa concepção foi pela primeira vez
rompida por Constantin Brancusi no conjunto escultural de Targu Jiu, na década de 30 na Romênia. SERRA, Richard.
“Interview with Peter Eisenman”. In: Writings / Interviews. Chicago: University of Chicago Press, 1994. p. 348.
Notas
11
SAEHRENDT, Christian. “Holocaust Memorial”. The Burlington Magazine, v. 147, dez. 2005. p. 844.
1
LOOS, Adolf. “Architecture”. In: Ornement et crime. Paris, Payot & Rivages, 2003. p. 113. Uma das calorosas discussões, e que chegou a interromper temporariamente a obra, foi relacionada ao uso de
12

um produto impermeabilizante que protegeria os monolitos de eventuais pixações. A empresa escolhida foi a
2
EISENMAN, Peter. “Memorial to the Murdered Jews of Europe”. In: STIFTUNG DENKMAL FÜR DIE ERMORDETEN Degussa, a fabricante do pesticida Zyklon-B, que durante o nazismo foi usado nas câmaras de gás dos campos de
JUDEN EUROPAS. Materials on the Memorial to the Murdered Jews of Europe. Berlin, Nicolai Verlag, 2005. p. 10. extermínio. Peter Eisenman chegou ao ponto de escrever um artigo para discutir o assunto, publicado no Die Zeit,
3
Ibidem. p. 12. questionando a forma como os alemães lidam com a memória da guerra e com a existência na vida cotidiana
4
AGAMBEN, Giorgio. Die zwei Gedächtnisse. Die Zeit, Hamburg, n.19, 04 ago. 2005. alemã de tantas outras empresas que durante o nazismo também se valeram do trabalho escravo ou
contribuiram com o massacre. EISENMAN, Peter. “Geisel der Geschichte”. Die Zeit, Hamburg, n.45, 30 out 2003. Figuras
5
EISENMAN, Peter. “Memorial to the murdered Jews of Europe”. The Leo Baeck Memorial Lecture, n. 49, 2005. 13
MEYER, Esther da Costa. “Speak, Memory”. Art Forum, v.44, n.5, jan. 2006. p. 48. Figura 1: Vista do campo de pedras. Foto: João Yamamoto, 2012.
p. 10. Tradução livre do autor
14
Nas palavras de Régis Bonvicino ou na voz de Itamar Assumpção: “não há saídas: só ruas, viadutos e avenidas”. Figura 2: Modelo físico. Eisenman Architects e Richard Serra. Fonte: BINET, H.; RAUTERBERG, H.; WASSMANN,
6
SAEHRENDT, Christian. “Holocaust Memorial”. The Burlington Magazine, v. 147, dez. 2005. p. 844.
L.. Holocaust Memorial Berlin. Baden: Lars Müller Publishers, 2005. Foto: Dirk Frank Studio.
7
RUYTER, Thibaut de. “Peter Eisenman’s Memorial to the Murdered Jews of Europe”. Art Press, n. 317, nov 2005. p. 41.
15
EISENMAN, Peter. “The futility of objects: Decomposition and the processes of differentiation”. In: Eisenman
inside out: selected writings, 1963-1988. New Haven, Yale University Press, 2004. p. 187. Tradução livre do autor. Figura 3: Modelo físico. Eisenman Architects e Richard Serra. Fonte: BINET, H.; RAUTERBERG, H.; WASSMANN, L..
8
Apontado, entretanto, como uma arquitetura tradicional na qual há um “contínuo de espaço-tempo entre Holocaust Memorial Berlin. Baden: Lars Müller Publishers, 2005. Foto: Dirk Frank Studio.
experiência e conhecimento”. EISENMAN, Peter. “Memorial to the Murdered Jews of Europe”. In: STIFTUNG
16
LOTMAN, I. M. A estrutura do texto artístico. Lisboa, Editorial Estampa, 1978. p.50.
Figura 4: Diagrama de estudo de topografia. Eisenman Architects. Fonte: Acervo CCA. Foto: Georgia Lobo, 2012.
DENKMAL FÜR DIE ERMORDETEN JUDEN EUROPAS. Materials on the Memorial to the Murdered Jews of Europe. 17
EISENMAN, Peter. “Memorial to the Murdered Jews of Europe”. In: STIFTUNG DENKMAL FÜR DIE ERMORDETEN
Berlin, Nicolai Verlag, 2005. p. 12. Tradução livre do autor. JUDEN EUROPAS. Materials on the Memorial to the Murdered Jews of Europe. Berlin, Nicolai Verlag, 2005. p. 10. Figura 5: Perseguição. Foto: João Yamamoto, 2012.

Você também pode gostar