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DIREITOS HUMANOS E A

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
INTERNACIONAL
HUMAN RIGHTS AND INTERNATIONAL CONSTITUTIONAL
JURISDICTION

FLÁVIA CRISTINA PIOVESAN


Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direitos Humanos e Direito
Constitucional, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós-Graduação da
PUC/SP e da PUC/PR, Professora da Escola Superior de Direito Constitucional, Visiting
fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995, 2000 e 2002) e
Procuradora do Estado de São Paulo.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Sistema internacional de proteção dos direitos humanos


– 3. Jurisdicionalização dos direitos humanos na ordem internacional: desafios e
perspectivas – 4. Direitos humanos e a jurisdição constitucional internacional.

RESUMO: A autora esclarece pontualmente, neste artigo, como a gênese e o


processo de internacionalização dos direitos humanos fizeram surgir um novo
paradigma, que, pautado na “justicialização”, oferece suporte às necessidades
históricas e demandas por justiça dos novos atores sociais. Esta transformação, ao
lado de outras, vem ensejando uma profunda reformulação dos princípios e
fundamentos dos Direitos Constitucionais locais, quando inscritos na esfera do “Direito
Internacional dos Direitos Humanos”.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos, princípio da complementariedade, sistema


europeu de proteção, sistema interamericano de proteção, Tribunal Internacional
Penal, internacionalização do Direito Constitucional, constitucionalização do Direito
Internacional.

ABSTRACT: The author specifically explains in this article how the formation and
internationalization process of human rights has given way to a new paradigm, which
– based on “justiciabilization” – offers support for the historical necessities and
demands for justice of the new social actors. This transformation, along with others,
has brought about a profound reformulation of the principles and foundations of local
constitutional law systems, when inscribed in the sphere of “International Law of
Human Rights.”

KEY WORDS: Human rights, principle of complementariness, European system of


protection, Inter-American system of protection, International Penal Tribunal, interna-
tionalization of Constitutional Law, constitutionalization of International Law.
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1. Introdução que em seu livro Era dos direitos, sustenta


que “os direitos humanos nascem como
A proposta deste artigo é enfocar o pro- direitos naturais universais, desenvolvem-
cesso de “jurisdicionalização dos direitos se como direitos positivos particulares
humanos”, sob o marco do Direito Interna- (quando cada Constituição incorpora De-
cional dos Direitos Humanos, bem como clarações de Direito), para finalmente en-
seus reflexos e impacto no âmbito do Direi- contrarem sua plena realização como direi-
to interno, sob o prisma constitucional. tos positivos universais”.3
Em um primeiro momento, será enfo- O movimento de internacionalização
cado o movimento internacional de pro- dos direitos humanos constitui um movi-
teção dos direitos humanos, avaliando-se o mento extremamente recente na história,
seu perfil, os seus objetivos, a sua lógica surgindo, a partir do Pós-Guerra, como
e principiologia. Será examinado o modo resposta às atrocidades e aos horrores
pelo qual os direitos humanos têm se cometidos durante o nazismo. Se a Segun-
projetado, cada vez mais, como tema de da Guerra significou a ruptura com os
legítimo interesse da comunidade interna- direitos humanos, o Pós-Guerra deveria
cional. Especial ênfase será dada ao siste- significar a sua reconstrução. É neste ce-
ma internacional de proteção dos direitos nário que se desenha o esforço de recons-
humanos, enquanto legado maior da cha- trução dos direitos humanos, como para-
mada “Era dos Direitos”, que tem permi- digma e referencial ético a orientar a ordem
tido a internacionalização dos direitos internacional contemporânea.
humanos e a humanização do Direito In-
ternacional contemporâneo, como atenta Fortalece-se a idéia de que a proteção
Thomas Buergenthal.1 dos direitos humanos não deve se reduzir
ao domínio reservado do Estado, isto é, não
Em um segundo momento, serão lança-
deve se restringir à competência nacional
das considerações sobre os desafios e as
exclusiva ou à jurisdição doméstica exclu-
perspectivas do processo de jurisdicionali-
siva, porque revela tema de legítimo inte-
zação dos direitos humanos na ordem
resse internacional. Por sua vez, esta con-
internacional.
cepção inovadora aponta duas importantes
Por fim, serão avaliados o reflexo e o conseqüências:
impacto deste processo no plano do Direito
interno, sob o prisma do Direito Constitu- 1.a) a revisão da noção tradicional de
cional contemporâneo. soberania absoluta do Estado, que passa a
sofrer um processo de relativização, na
medida em que são admitidas intervenções
2. Sistema internacional de proteção dos no plano nacional em prol da proteção dos
direitos humanos direitos humanos, isto é, permitem-se for-
mas de monitoramento e responsabilização
No dizer de Hannah Arendt, os direitos internacional, quando os direitos humanos
humanos não são um dado, mas um cons- forem violados (transita-se de uma conce-
truído, uma invenção humana, em constan- pção “hobbesiana”, de soberania centrada
te processo de construção e reconstrução.2 no Estado, para uma concepção “kantiana”,
Tendo em vista este olhar histórico, de soberania centrada na cidadania univer-
adotam-se as lições de Norberto Bobbio, sal);4

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2.a) a cristalização da idéia de que o refletem, sobretudo, a consciência ética


indivíduo deve ter direitos protegidos na contemporânea compartilhada pelos Esta-
esfera internacional, na condição de sujeito dos, na medida em que invocam o consenso
de Direito. internacional acerca de temas centrais aos
Prenuncia-se, deste modo, o fim da era direitos humanos. Neste sentido, cabe des-
em que a forma pela qual o Estado tratava tacar que, até junho de 2001, o Pacto
seus nacionais era concebida como um Internacional dos Direitos Civis e Políticos
problema de jurisdição doméstica, decor- contava com 147 Estados-partes; o Pacto
rência de sua soberania. Internacional dos Direitos Econômicos,
Inspirada por estas concepções, em 1948, Sociais e Culturais contava com 145 Esta-
é aprovada a Declaração Universal dos dos-partes; a Convenção contra a Tortura
Direitos Humanos, como um código de contava com 124 Estados-partes; a Con-
princípios e valores universais a serem venção sobre a Eliminação da Discrimi-
respeitados pelos Estados. nação Racial contava com 157 Estados-
A Declaração de 1948 inova a gramá- partes; a Convenção sobre a Eliminação da
tica dos direitos humanos, ao introduzir a Discriminação contra a Mulher contava
chamada concepção contemporânea de com 168 Estados-partes e a Convenção
direitos humanos, marcada pela universa- sobre os Direitos da Criança apresentava a
lidade e indivisibilidade destes direitos. mais ampla adesão, com 191 Estados-
Universalidade porque a condição de pes- partes.5
soa é o requisito único e exclusivo para a A concepção contemporânea de direitos
titularidade de direitos, sendo a dignidade humanos caracteriza-se pelos processos de
humana o fundamento dos direitos huma- universalização e internacionalização des-
nos. Indivisibilidade porque, ineditamente, tes direitos, compreendidos sob o prisma
o catálogo dos direitos civis e políticos é de sua indivisibilidade.6 Ressalte-se que a
conjugado ao catálogo dos direitos econômi- Declaração de Direitos Humanos de Viena,
cos, sociais e culturais. A Declaração de de 1993, reitera a concepção da Declaração
1948 combina o discurso liberal e o dis- de 1948, quando, em seu parágrafo 5.o,
curso social da cidadania, conjugando o afirma: “Todos os direitos humanos são
valor da liberdade ao valor da igualdade. universais, interdependentes e inter-rela-
A partir da Declaração de 1948, começa cionados. A comunidade internacional deve
a se desenvolver o Direito Internacional tratar os direitos humanos globalmente de
dos Direitos Humanos, mediante a adoção forma justa e eqüitativa, em pé de igual-
de inúmeros instrumentos internacionais de dade e com a mesma ênfase”.
proteção. A Declaração de 1948 confere Logo, a Declaração de Viena de 1993,
lastro axiológico e unidade valorativa a este subscrita por 171 Estados, endossa a uni-
campo do Direito, com ênfase na univer- versalidade e a indivisibilidade dos direitos
salidade, indivisibilidade e interdependên- humanos, revigorando o lastro de legitimi-
cia dos direitos humanos. dade da chamada concepção contemporâ-
O processo de universalização dos nea de direitos humanos, introduzida pela
direitos humanos permitiu a formação de Declaração de 1948. Note-se que, enquanto
um sistema internacional de proteção des- consenso do “Pós-Guerra”, a Declaração
tes direitos. Este sistema é integrado por de 1948 foi adotada por 48 Estados, com
tratados internacionais de proteção que 8 abstenções. Assim, a Declaração de Viena

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de 1993 estende, renova e amplia o con- 3. Jurisdicionalização dos direitos huma-


senso sobre a universalidade e indivisibi- nos na ordem internacional: desafios
lidade dos direitos humanos. e perspectivas
Ao lado do sistema normativo global,
surgem os sistemas regionais de proteção, Para enfrentar esta questão, importa
que buscam internacionalizar os direitos enfatizar que os tratados internacionais de
humanos nos planos regionais, particular- proteção dos direitos humanos envolvem
mente na Europa, América e África. Adicio- quatro dimensões:
nalmente, há um incipiente sistema árabe e
a proposta de criação de um sistema regio- 1) fixam um consenso internacional sobre
nal asiático. Consolida-se, assim, a convi- a necessidade de adotar parâmetros
vência do sistema global da ONU com ins- mínimos de proteção dos direitos huma-
trumentos do sistema regional, por sua vez, nos (os tratados não são o “teto máxi-
integrado pelo sistema americano, europeu mo” de proteção, mas o “piso mínimo”
e africano de proteção aos direitos humanos. para garantir a dignidade humana);
Os sistemas global e regional não são 2) celebram a relação entre a gramática de
dicotômicos, mas complementares. Inspi- direitos e a gramática de deveres; ou
rados pelos valores e princípios da Decla- seja, os direitos internacionais impõem
ração Universal, compõem o universo ins- deveres jurídicos aos Estados (pres-
trumental de proteção dos direitos huma- tações positivas e/ou negativas);
nos, no plano internacional. Nesta ótica, os 3) instituem órgãos de proteção, como
diversos sistemas de proteção de direitos meios de proteção dos direitos assegu-
humanos interagem em benefício dos indi- rados (ex.: os Comitês, as Comissões e
víduos protegidos. O propósito da coexis- as Cortes); e
tência de distintos instrumentos jurídicos –
garantindo os mesmos direitos – é, pois, no 4) estabelecem mecanismos de monitora-
sentido de ampliar e fortalecer a proteção mento voltados à implementação dos
dos direitos humanos. O que importa é o direitos internacionalmente assegurados
grau de eficácia da proteção, e, por isso, (ex.: os relatórios, as comunicações
deve ser aplicada a norma que, no caso interestatais e as petições individuais).
concreto, melhor proteja a vítima. Ao
adotar o valor da primazia da pessoa É a partir da feição estrutural dos
humana, estes sistemas se complementam, tratados internacionais de proteção dos
interagindo com o sistema nacional de direitos humanos que se faz possível com-
proteção, a fim de proporcionar a maior preender a chamada “justicialização dos
efetividade possível na tutela e promoção direitos humanos”.
de direitos fundamentais. Esta é inclusive O grande desafio do Direito Internacio-
a lógica e principiologia próprias do Direi- nal sempre foi o de adquirir “garras e
to Internacional dos Direitos Humanos. dentes”, ou seja, poder e capacidade san-
Feitas essas breves considerações a res- cionatórios. Retomem-se aqui as lições de
peito do sistema internacional de proteção Ihering, para quem “a espada sem a balança
dos direitos humanos, transita-se ao exame é a força bruta; a balança sem a espada é
do processo de jurisdicionalização do Di- a impotência do direito. Uma não pode
reito Internacional dos Direitos Humanos. avançar sem a outra, nem haverá ordem

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jurídica perfeita sem que a energia com que simples: a gravidade do crime de genocídio
a justiça aplica a espada seja igual à poderia implicar o colapso das próprias
habilidade com que maneja a balança”. instituições nacionais, que, assim, não te-
Vale dizer, no âmbito internacional o riam condições para julgar seus perpetra-
foco se concentra no binômio: direito da dores, restando assegurada a impunidade.
força x força do direito. O processo de Por isso, há mais de cinqüenta anos já se
justicialização do Direito Internacional, em antevia a necessidade de criação de um
especial dos direitos humanos, celebra, por Tribunal Penal Internacional, cabendo
assim dizer, a passagem do reino do “di- menção ao legado das experiências dos
reito da força” para a “força do direito”. Tribunais ad hoc de Nuremberg, Tóquio,
Retomando Norberto Bobbio, as ativi- Bósnia e Ruanda.
dades internacionais na área dos direitos Em 17 julho de 1998, em Roma, foi
humanos podem ser classificadas em três aprovado o Estatuto do Tribunal Penal
categorias: promoção, controle e garantia. Internacional, por 120 votos favoráveis, 21
As atividades de promoção correspondem abstenções e 7 votos contrários (EUA,
ao conjunto de ações destinadas à intro- China, Israel, Filipinas, Índia, Sri Lanka e
dução e ao aperfeiçoamento do regime de Turquia). A competência do Tribunal atém-
direitos humanos pelos Estados. Já as se ao julgamento dos mais graves crimes
atividades de controle envolvem as ativida- internacionais, compreendendo o crime de
des que cobram dos Estados a observância genocídio, os crimes contra a humanidade,
de obrigações de direitos humanos por eles os crimes de guerra e os crimes de agres-
contraídas internacionalmente. Por fim, são. A jurisdição do Tribunal é adicional e
segundo Bobbio, a garantia dos direitos complementar à do Estado, ficando condi-
humanos no plano internacional só será cionada à incapacidade ou à omissão do
implementada quando uma “jurisdição in- sistema judicial interno. O Estado tem o
ternacional se impuser concretamente so- dever de exercer sua jurisdição penal contra
bre as jurisdições nacionais, deixando de os responsáveis por crimes internacionais,
operar dentro dos Estados, mas contra os tendo a comunidade internacional a res-
Estados e em defesa dos cidadãos”.7 ponsabilidade subsidiária. O Estatuto con-
Testemunha-se, hoje, o crescente pro- sagra ainda o princípio da cooperação, pelo
cesso de justicialização dos direitos huma- qual os Estados-partes devem cooperar
nos. totalmente com o Tribunal na investigação
e no processamento de crimes que estejam
Pela primeira vez na história da huma-
sob a jurisdição deste. Desta forma, o
nidade, será instalado um Tribunal Penal
Estatuto busca equacionar a garantia do
Internacional, para julgar os mais graves
direito à justiça, o fim da impunidade e a
crimes atentatórios à ordem internacional.
soberania do Estado, à luz do princípio da
Note-se que, desde 1948, a Convenção
complementaridade. A jurisdição do Tribu-
sobre a Prevenção e Repressão ao Crime
nal Penal Internacional não substitui a
de Genocídio, ao afirmar que o genocídio
jurisdição local, mas é a ela complementar
era um crime contra a ordem internacional,
e subsidiária.
estabelecia que o mesmo deveria ser julga-
do pelos Tribunais do Estado em cujo O reconhecimento da jurisdição do
território foi o ato cometido ou por uma Tribunal Penal Internacional, em si mesmo,
Corte Penal Internacional. O raciocínio era é ato de soberania do Estado brasileiro, não

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cabendo ao Estado, a posteriori, valer-se fortes, com elevado poder discricionário,


desta mesma soberania para afastar a juris- atuam como bem querem em face de
dição internacional. Ressalte-se que o con- Estados fracos – basta mencionar a opo-
ceito tradicional de soberania nacional pas- sição dos EUA à criação do Tribunal,
sa por um processo de redefinição na ordem temendo que americanos sejam processa-
contemporânea. Com efeito, se o conceito dos por crimes de guerra, quando do uso
clássico de soberania absoluta do Estado foi arbitrário da força em território de Estado-
criado à luz do processo de formação dos parte do Estatuto.
Estados nacionais (no século XVI), na or- O Estatuto de Roma aplica-se igualmen-
dem contemporânea há de se transitar da te a todas as pessoas, sem distinção alguma
lente fundada na noção de deveres dos baseada em cargo oficial. Isto é, o cargo
súditos para a lente ex parte populi (fundada oficial de uma pessoa, seja ela chefe de
na noção de direitos dos cidadãos), como Estado ou de Governo, não eximirá sua
observa Celso Lafer.8 Isto é, a releitura do responsabilidade penal, nem tampouco
conceito tradicional de soberania prima mais importará em redução de pena. Isto simbo-
pelo eixo democrático “cidadania”, que liza um grande avanço do Estatuto com
propriamente pelo eixo “Estado”, o que vem relação ao regime das imunidades, que não
a ser celebrado com a conquista do Tribunal mais poderá ser escudo para a atribuição
Penal Internacional. de responsabilização penal.
O Tribunal Penal Internacional permite
Observe-se, contudo, que, no sistema da
limitar a seletividade política hoje existen-
ONU, não há ainda um Tribunal Interna-
te. Se os Tribunais ad hoc criados na
cional de Direitos Humanos. Há a Corte
década de 90 para julgar os crimes ocorri-
Internacional de Justiça (principal órgão
dos na Bósnia e em Ruanda, basearam-se
jurisdicional da ONU, cuja jurisdição só
em resoluções do Conselho de Segurança
pode ser acionada por Estados); os Tribu-
da ONU (para as quais requer-se o consen-
nais ad hoc para a Bósnia e Ruanda
so dos cinco membros permanentes, com
(criados por resolução do Conselho de
o poder de veto), ao contrário, o Tribunal
Segurança da ONU) e o Tribunal Penal
Penal Internacional assenta-se no primado
Internacional (para o julgamento dos mais
da legalidade, mediante uma Justiça prees-
graves crimes contra a ordem internacional,
tabelecida, permanente e independente,
como o genocídio, o crime de guerra, os
aplicável igualmente a todos os Estados
crimes contra a humanidade e os crimes de
que a reconhecem, capaz de assegurar
agressão). Seria fundamental a criação de
direitos e combater a impunidade, especial-
um Tribunal de Direitos Humanos no âmbito
mente a dos mais graves crimes internacio-
da ONU.
nais. Consagra-se o princípio da universa-
lidade, na medida em que o Estatuto de Diversamente, nos sistemas regionais,
Roma aplica-se universalmente a todos os seja o europeu, seja o interamericano, as
Estados-partes, que são iguais perante o Cortes de Direitos Humanos (Cortes Euro-
Tribunal Penal, afastando-se a relação entre péia e Interamericana) têm assumido ex-
“vencedores” e “vencidos”. Com isto, o traordinária relevância, como especial lo-
Tribunal Penal Internacional é capaz de cus para a proteção de direitos humanos.
reduzir o “darwinismo” no campo das Note-se, inclusive, os avanços dos sis-
relações internacionais, em que Estados temas regionais europeu e interamericano,

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no sentido do fortalecimento de sua justi- de “juridicidade”, reduzindo a seletividade


cialização. política, que, até então, era realizada pela
No sistema regional europeu, com o Comissão Interamericana.
Protocolo 11, que entrou em vigor em 1.o Isto é, a regra passa a ser o envio do
de novembro de 1998, qualquer pessoa caso à jurisdição da Corte, salvo se houver
física, organização não-governamental ou decisão fundada da maioria absoluta dos
grupo de indivíduos pode submeter direta- membros da Comissão. Com isto, estima-
mente à Corte Européia demanda veiculan- se que, via de regra, todo caso não solu-
do denúncia de violação por Estado-parte cionado pela Comissão Interamericana, ou
de direitos reconhecidos na Convenção melhor, todo caso em que o Estado não
(conforme o artigo 34 do Protocolo). Houve, tenha cumprido as recomendações por ela
assim, a democratização do sistema euro- feitas, será apreciado pela Corte Interame-
peu, com a previsão de acesso direto de ricana.
indivíduos e organizações à Corte Européia Diante deste cenário, é necessário que
de Direitos Humanos. se avance no processo de justicialização
Já no sistema interamericano, de acordo dos direitos humanos internacionalmente
com o artigo 44 do novo Regulamento da enunciados. Frise-se, no entanto, que a
Comissão Interamericana, de maio de 2001, avaliação do legado dos últimos cinco anos
se a Comissão considerar que o Estado não (1998-2002) permite vislumbrar a marca
cumpriu as recomendações de seu informe, do crescente processo de justicialização do
aprovado nos termos do artigo 50 da Direito Internacional dos Direitos Huma-
Convenção Americana, submeterá o caso à nos. Basta apontar quatro fatores: a) a
Corte Interamericana, salvo decisão funda- criação do Tribunal Penal Internacional,
da da maioria absoluta dos membros da mediante a entrada em vigor do Estatuto de
Comissão. Cabe observar, contudo, que o Roma em 1.o de julho de 2002; b) a intensa
caso só poderá ser submetido à Corte se o justicialização do sistema interamericano,
Estado-parte reconhecer, mediante decla- por meio da adoção do novo Regulamento
ração expressa e específica, a competência da Comissão Interamericana em 1.o de
da Corte no tocante à interpretação e maio de 2001; c) a democratização do
aplicação da Convenção — embora qual- acesso à jurisdição da Corte Européia de
quer Estado-parte possa aceitar a jurisdição Direitos, nos termos do Protocolo 11, de 1.o
da Corte para um determinado caso, nos de novembro de 1998; e d) a adoção da
termos do artigo 62 da Convenção Ame- sistemática de petição individual relativa-
ricana. mente a tratados que não incorporavam tal
O novo Regulamento introduz, assim, a sistemática, cabendo menção, a título de
justicialização do sistema interamericano. exemplo, ao Protocolo Facultativo à Con-
Se, anteriormente, cabia à Comissão Inte- venção sobre a Eliminação de todas as
ramericana, a partir de uma avaliação dis- formas de Discriminação contra a Mulher,
cricionária, sem parâmetros objetivos, sub- cuja entrada em vigor ocorreu em 22 de
meter à apreciação da Corte Interamericana dezembro de 2000.
caso em que não se obteve solução amis- Ao tratar da importância da “justiciali-
tosa, com o novo Regulamento, o encamin- zação” dos direitos humanos, afirma Ri-
hamento à Corte se faz de forma direta e chard Bilder: “(…) as Cortes simbolizam
automática. O sistema ganha maior tônica e fortalecem a idéia de que o sistema

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internacional de direitos humanos é, de dade processual do indivíduo no plano


fato, um sistema de direitos legais, que internacional, como leciona Antônio Au-
envolve direitos e obrigações juridicamente gusto Cançado Trindade.11
vinculantes. Associa-se a idéia de Estado Com efeito, ainda é grande a resistência
de Direito com a existência de Cortes de muitos Estados em aceitar as cláusulas
independentes, capazes de proferir decisões facultativas referentes às petições indivi-
obrigatórias e vinculantes”.9 duais e comunicações interestatais. Basta
As Cortes detêm especial legitimidade destacar que: a) dos 147 Estados-partes do
e constituem um dos instrumentos mais Pacto Internacional dos Direitos Civis e
poderosos no sentido de persuadir os Es- Políticos apenas 97 Estados aceitam o
tados a cumprirem obrigações concernen- mecanismo das petições individuais (tendo
tes aos direitos humanos. Daí a importância ratificado o Protocolo Facultativo para este
em avançar no processo de criação de um fim); b) dos 124 Estados-partes na Con-
Tribunal Internacional de Direitos Huma- venção contra a Tortura apenas 43 Estados
nos.10 aceitam o mecanismo das comunicações
Se, de um lado, faz-se necessária a interestatais e das petições individuais (nos
justicialização dos direitos humanos, por termos dos artigos 21 e 22 da Convenção);
outro lado, faz-se emergencial ampliar a c) dos 157 Estados-partes na Convenção
capacidade processual do indivíduo no sobre a Eliminação de todas as formas de
sistema internacional, mediante sua demo- Discriminação Racial apenas 34 Estados
cratização. Isto é, a afirmação de instâncias aceitam o mecanismo das petições indivi-
jurisdicionais de proteção internacional dos duais (nos termos do artigo 14 da Con-
direitos humanos deve ser conjugada com venção); e, finalmente, d) dos 168 Estados-
a consolidação do indivíduo como verda- partes na Convenção sobre a Eliminação de
deiro sujeito de direito no campo interna- todas as formas de Discriminação contra a
cional. Mulher apenas 21 Estados aceitam o me-
Se os Estados foram ao longo de muito canismo das petições individuais, tendo
tempo os protagonistas centrais da ordem ratificado o Protocolo Facultativo à Con-
internacional, vive-se hoje a emergência de venção sobre a Eliminação da Discrimi-
novos atores internacionais, como as orga- nação contra a Mulher.
nizações internacionais, os blocos regio- Faz-se ainda fundamental que todos os
nais econômicos, os indivíduos e a socie- tratados possam contar com uma eficaz
dade civil internacional (ex.: organizações sistemática de monitoramento, prevendo os
não governamentais internacionais). O relatórios, as petições individuais e as
surgimento de novos atores internacionais comunicações interestatais. Insiste-se na
demanda a democratização do sistema adoção do mecanismo de petição indivi-
internacional de proteção dos direitos hu- dual por todos os tratados internacionais de
manos. proteção de direitos humanos, já que ele
Todavia, vale frisar a resistência de permite o acesso direto de indivíduos aos
muitos Estados em admitir a democrati- órgãos internacionais de monitoramento.
zação do sistema internacional de proteção Seria importante acrescentar ainda a siste-
dos direitos humanos, especialmente no mática das investigações in loco, apenas
que tange à aceitação da sistemática de prevista na Convenção contra a Tortura e
petição individual, que cristaliza a capaci- no Protocolo Facultativo à Convenção sobre

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a Eliminação de todas as formas de Dis- Em síntese, resta enfatizar que o apri-


criminação contra a Mulher. moramento do sistema internacional de
Além disso, o desejável seria que tais proteção dos direitos humanos requer: a) o
mecanismos fossem veiculados sob a for- reforço do sistema sancionatório interna-
ma de cláusulas obrigatórias e não facul- cional, mediante a imposição não apenas
tativas – ainda que isto pudesse oferecer de sanções políticas ou morais, mas de
como risco a redução do número de Esta- sanções de natureza jurídica (doando ao
dos-partes. Direito Internacional “garras e dentes”,
Neste cenário, é fundamental encorajar mediante sua justicialização); b) o fortale-
os Estados a aceitarem estes mecanismos. cimento dos mecanismos internacionais
Não é mais admissível que Estados aceitem existentes, utilizando-se destes de forma
direitos e neguem as garantias de sua plena; e c) a democratização dos instru-
proteção. mentos internacionais, a fim de que se
assegurem a indivíduos e a entidades não-
Para os Estados violadores de direitos
governamentais possibilidades ampliadas
humanos estes mecanismos podem gerar
de atuação e um espaço participativo mais
situações politicamente delicadas e cons-
eficaz na ordem internacional.
trangedoras no âmbito internacional. Estu-
dos e pesquisas demonstram que o risco do Transita-se, deste modo, à reflexão fi-
constrangimento político e moral do Esta- nal: Qual é o impacto e o reflexo do
do violador (the power of embarrassment) processo de jurisdicionalização da proteção
no fórum da opinião pública internacional internacional dos direitos humanos sob o
pode servir como significativo fator para a prisma do Direito Constitucional contem-
proteção dos direitos humanos. Ao enfren- porâneo?
tar a publicidade das violações de direitos
humanos, bem como as pressões interna- 4. Direitos humanos e a jurisdição cons-
cionais, os Estados vêem-se compelidos a titucional internacional
apresentar justificativas a respeito de sua
prática. A ação internacional e as pressões A análise dos direitos humanos sob a
internacionais podem, assim, contribuir para perspectiva da jurisdição constitucional
transformar uma prática governamental internacional demanda, preliminarmente,
específica, referente aos direitos humanos, seja desvendado o perfil do Direito Cons-
conferindo suporte ou estímulo para refor- titucional contemporâneo.12
mas internas. Com o intenso envolvimento Como já abordado por este estudo, ao
das organizações não-governamentais, os cristalizar a lógica da barbárie, da des-
instrumentos internacionais constituem truição e da descartabilidade da pessoa
poderosos mecanismos para a promoção do humana, a Segunda Guerra Mundial sim-
efetivo fortalecimento do sistema de pro- bolizou a ruptura com relação aos direitos
teção dos direitos humanos no âmbito humanos, significando o Pós-Guerra a
nacional. esperança de reconstrução destes mesmos
Ressalte-se que, cada vez mais, o res- direitos.
peito aos direitos humanos tem se tornado É justamente sob o prisma da recons-
um aspecto crucial de legitimidade gover- trução dos direitos humanos que é possível
namental, tanto no âmbito doméstico como compreender, no Pós-Guerra, de um lado,
no internacional. a nova feição do Direito Constitucional

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ocidental e, por outro, a emergência do humano, em suas mais vastas dimensões,


chamado “Direito Internacional dos Direi- em tom nitidamente principiológico, a partir
tos Humanos”, tamanho o impacto gerado do reconhecimento de sua dignidade intrín-
pelas atrocidades então cometidas. seca. Ressalte-se, ainda, a influência no
Vale dizer, no âmbito do Direito Inter- constitucionalismo brasileiro das Consti-
nacional, começa a ser delineado o sistema tuições alemã (Lei Fundamental – Grund-
normativo internacional de proteção dos Gesetz, 23 de maio de 1949), portuguesa
direitos humanos, como enfocado neste (2 de abril de 1976) e espanhola (29 de
artigo. É como se se projetasse a vertente dezembro de 1978), na qualidade de Cons-
de um constitucionalismo global, vocacio- tituições que primam pela gramática dos
nado a proteger direitos fundamentais e direitos humanos e da proteção à dignidade
limitar o poder do Estado, mediante a humana.
criação de um aparato internacional de A partir dessa nova racionalidade, pas-
proteção de direitos. Note-se que estes sou-se a tomar o Direito Constitucional não
eram exatamente os lemas do movimento só como o tradicional ramo político do
do constitucionalismo instaurado no final sistema jurídico de cada nação, mas, sim,
do século XVIII, que fizeram nascer as notadamente, como o seu principal referen-
primeiras Constituições escritas: limitar o cial de justiça. Cabe também anotar o
poder do Estado e preservar direitos.13 verdadeiro sentido antropológico14 constan-
Por sua vez, no âmbito do Direito te de todos esses documentos, por conta do
Constitucional ocidental, percebe-se a ela- explícito compromisso de proteção ao ser
boração de textos constitucionais abertos a humano e de seus valores coletivos, em suas
princípios, dotados de elevada carga axio- várias possibilidades. E tal parâmetro tor-
lógica, com destaque ao valor da dignidade nou o Direito Constitucional mais abran-
humana. Esta será a marca das Consti- gente, pois por meio dessa renovada dimen-
tuições européias do Pós-Guerra. Observa- são é que se consolidou seu ápice sobre
se, desde logo, que, na experiência brasi- todas as demais searas jurídicas em cada
leira e mesmo na latino-americana, a aber- Estado organizado15 . Com isso, o Direito
tura das Constituições a princípios e a Constitucional converteu-se em lastro não
incorporação do valor da dignidade huma- só das ações e institutos tipicamente polí-
na demarcarão a feição das Constituições tico-estatais, mas também no principal ga-
promulgadas ao longo do processo de rantidor de direitos fundamentais, em seu
democratização política – até porque tal sentido holístico, de todos os cidadãos.16
feição seria incompatível com a vigência Tão densas transformações ensejaram,
de regimes militares ditatoriais. A respeito, como conseqüência, uma profunda refor-
basta acenar à Constituição brasileira de mulação na própria base e nos fundamen-
1988, em particular à previsão inédita de tos do Direito Constitucional. Basta atentar,
princípios fundamentais, dentre eles o prin- a título de exemplo, ao rol dos princípios
cípio da dignidade da pessoa humana. que cada Constituição passou a elencar
Isto é, conquanto essa radical transfor- como fundamentais, com preponderância
mação date já da década de 40, no caso para o princípio da dignidade da pessoa
brasileiro somente em 1988 é que se erigiu humana.17
um sistema constitucional consentâneo com Compartilha-se das lições de José Joa-
a pauta valorativa afeta à proteção ao ser quim Gomes Canotilho no sentido de que,

Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 1, jan./jun. – 2003 (Artigos)


DIREITOS HUMANOS E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 157

se “o direito do Estado de Direito do século a ser parâmetro e referência ética a inspirar


XIX e da primeira metade do século XX o constitucionalismo ocidental.
é o direito das regras dos códigos, o direito Uma vez mais, destacam-se as lições de
do Estado Constitucional Democrático e de Canotilho: “Se ontem a conquista territo-
Direito leva a sério os princípios, é um rial, a colonização e o interesse nacional
direito de princípios”.18 surgiam como categorias referenciais, hoje
Isto significa que as Constituições do os fins dos Estados podem e devem ser os
Pós-Guerra passam a ser dotadas de um da construção de “Estados de Direito
perfil renovado, marcado pela abertura aos Democráticos, Sociais e Ambientais”, no
princípios, pela incorporação dos direitos plano interno e Estados abertos e interna-
humanos e pela prevalência do valor da cionalmente amigos e cooperantes no pla-
dignidade humana. Tais Constituições en- no externo. Estes parâmetros fortalecem as
contram-se em absoluta harmonia com a imbricações do direito constitucional com
concepção contemporânea de direitos hu- o direito internacional. (…) Os direitos
manos, fundada na universalidade e indi- humanos articulados com o relevante papel
visibilidade destes direitos. das organizações internacionais fornecem
Esta é a vertente contemporânea do um enquadramento razoável para o cons-
Direito do Pós-Guerra, tanto no âmbito titucionalismo global. O constitucionalis-
internacional como no âmbito local. Vale mo global compreende não apenas o clás-
dizer, o Pós-Guerra demandou o resgate do sico paradigma das relações horizontais
fundamento ético da experiência jurídica, entre Estados, mas no novo paradigma
pautado no valor da dignidade humana, eis centrado: nas relações Estado/povo, na
que o nazismo operou a barbárie no marco emergência de um Direito Internacional
da legalidade. Ao final da Segunda Guerra dos Direitos Humanos e na tendencial
Mundial, emerge, assim, o latente repúdio elevação da dignidade humana a pressu-
à idéia de um ordenamento jurídico indi- posto ineliminável de todos os constitucio-
ferente a valores éticos. Intenta-se a re- nalismos. Por isso, o Poder Constituinte
aproximação da ética e do Direito e, neste dos Estados e, conseqüentemente, das res-
esforço, surge a força normativa dos prin- pectivas Constituições nacionais, está hoje
cípios, especialmente do princípio da dig- cada vez mais vinculado a princípios e
nidade humana. regras de direito internacional. É como se
Se, no plano internacional, o impacto o Direito Internacional fosse transformado
desta vertente se concretizou com a emer- em parâmetro de validade das próprias
gência do “Direito Internacional dos Direi- Constituições nacionais (cujas normas pas-
tos Humanos” (todo ele fundamentado no sam a ser consideradas nulas se violadoras
valor da dignidade humana, como valor das nomas do jus cogens internacional). O
inerente à pessoa), no plano dos constitu- Poder Constituinte soberano criador de
cionalismos locais, esta vertente se concre- Constituições está hoje longe de ser um
tizou com a abertura das Constituições à sistema autônomo que gravita em torno da
força normativa dos princípios, com ênfase soberania do Estado. A abertura ao Direito
ao princípio da dignidade humana. Pontue- Internacional exige a observância de prin-
se, ainda, a interação entre o Direito Inter- cípios materiais de política e direito inter-
nacional dos Direitos Humanos e os Direi- nacional tendencialmente informador do
tos locais, na medida em que aquele passa Direito interno”.19

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 1, jan./jun. – 2003


158 FLÁVIA CRISTINA PIOVESAN

Reitere-se: os direitos humanos passam sagra os princípios a orientarem o Brasil


a compor um enquadramento razoável para nas relações internacionais, com ênfase na
o chamado constitucionalismo global. prevalência dos direitos humanos e na
Delineia-se um novo paradigma centrado cooperação internacional. Já o artigo 5.o,
na “tendencial elevação da dignidade hu- parágrafo 2.o, inclui os direitos internacio-
mana a pressuposto ineliminável de todos nais no elenco dos direitos constitucional-
os constitucionalismos”. Deste modo, as mente garantidos.
Constituições contemporâneas estão hoje É necessário ainda adicionar que o
cada vez mais vinculadas a princípios e aprimoramento do sistema internacional de
regras de Direito Internacional, que se proteção dos direitos humanos, mediante
convertem em parâmetro de validade das sua justicialização, requer dos Estados que
próprias Constituições nacionais. criem mecanismos internos capazes de
Neste sentido, as Constituições contem- implementarem as decisões internacionais
porâneas passam a contemplar não apenas no âmbito interno. De nada adiantará a
forte densidade principiológica, mas cláu- justicialização do Direito Internacional, sem
sulas abertas, capazes de propiciar o diá- que o Estado implemente, devidamente, as
logo e a interação entre o Direito Consti- decisões internacionais no seu âmbito in-
tucional e o Direito Internacional. Tais terno. Os Estados devem garantir o cum-
cláusulas são fundamentais, na medida em primento das decisões internacionais, sen-
que se testemunha, por exemplo, o crescen- do inadmissível sua indiferença e silêncio,
te fortalecimento da proteção internacional sob pena, inclusive, de afronta ao princípio
dos direitos humanos, com destaque ao da boa-fé a orientar a ordem internacional.
processo de sua jurisdicionalização no Importa frisar que os parâmetros consagra-
campo internacional. dos na ordem internacional, no campo dos
Vale dizer, a maior consolidação e direitos humanos, são parâmetros proteti-
jurisdicionalização do Direito Internacio- vos mínimos, livremente acolhidos pelo
nal requer sejam intensificadas as relações Estado, quando da incorporação de instru-
entre o Direito Internacional e o Direito mentos internacionais, no exercício de sua
interno. Faz-se essencial o enfoque das própria soberania.
ordens local, regional e global, a partir da Há que se romper com a distância e
dinâmica de sua interação e impacto. o divórcio entre o Direito Internacional e
Ao processo de constitucionalização do o Direito interno, notadamente quando se
Direito Internacional conjuga-se o proces- trata de direitos fundamentais. Intensifica-
so de internacionalização do Direito Cons- se a interação e conjugação do Direito
titucional, mediante a adoção de cláusulas Internacional e do Direito interno contem-
constitucionais abertas, que permitem a porâneos, que fortalecem a sistemática de
integração entre a ordem constitucional e proteção dos direitos fundamentais, com
a ordem internacional, especialmente no uma principiologia e lógica próprias, fun-
campo dos direitos humanos. Cabe, a título dadas no princípio da primazia dos direitos
ilustrativo, a alusão aos artigos 4.o e 5.o, humanos.
parágrafo 2.o, da Constituição Federal de Em um contexto cada vez mais caracte-
1988, bem como a alusão a dispositivos rizado pela constitucionalização do Direito
similares constantes das Constituições la- Internacional e pela internacionalização do
tino-americanas recentes. O artigo 4.o con- Direito Constitucional, bem como pela

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DIREITOS HUMANOS E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 159

necessária interação entre as esferas local, vicissitudes, por meio do qual as necessidades
regional e global, vislumbra-se a progres- e as aspirações se articulam em reivindicações
siva elevação do valor da dignidade humana e em estandartes de luta antes de serem recon-
hecidos como direitos” (Desenvolvimento, di-
a parâmetro legitimador das ordens jurídi- reitos humanos e cidadania, Direitos humanos
cas contemporâneas, tanto no plano cons- no século XXI, 1998, p. 156). A título ilustra-
titucional como no internacional. tivo, basta mencionar a iniciativa do Brasil, na
Aos operadores do Direito resta, assim, sessão da Comissão de Direitos Humanos de
o desafio de recuperar no Direito seu 2000, de propor resolução que considerasse o
acesso a medicamentos, no caso da Aids, como
potencial ético e transformador, doando um direito humano. A Resolução foi aprovada
máxima efetividade aos princípios funda- por 52 países, com uma abstenção (EUA). Em
mentais que regem o Direito Internacional 2002, o Brasil apresentou proposta de reso-
e interno, com realce ao princípio da lução, aprovada por consenso, objetivando que
dignidade humana. Que a cultura jurídica o acesso a medicamentos no caso da tuberculose
seja, portanto, capaz de construir o diálogo e malária também fosse considerado como um
entre o Direito Internacional e o Direito direito humano. Ainda propôs a criação de uma
relatoria temática sobre a saúde, também apro-
Constitucional contemporâneo, sob o pri- vada por consenso. Estes exemplos refletem a
mado da centralidade do valor da absoluta expansão contínua do alcance conceitual de
prevalência da dignidade humana, porque direitos humanos.
fonte e sentido de toda experiência jurídica. 3. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos.
Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1988. p. 30.
NOTAS 4. Para Celso Lafer, de uma visão ex parte
principe, fundada nos deveres dos súditos com
1. BUERGENTHAL, Thomas. Prólogo do relação ao Estado, passa-se a uma visão ex parte
livro de Antônio Augusto Cançado Trindade. A populi, fundada na promoção da noção de
proteção internacional dos direitos humanos: direitos do cidadão (Comércio, desarmamento,
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. direitos humanos: reflexões sobre uma expe-
São Paulo: Saraiva, 1991. p. XXXI. No mesmo riência diplomática. São Paulo: Paz e Terra,
sentido, afirma Louis Henkin: “O Direito Inter- 1999. p.145).
nacional pode ser classificado como o Direito 5. A respeito, consultar Human Develop-
anterior à Segunda Guerra Mundial e o Direito ment Report 2001, UNDP, New York/Oxford,
posterior a ela. Em 1945, a vitória dos aliados Oxford University Press, 2001.
introduziu uma nova ordem com importantes 6. Note-se que a Convenção sobre a Elimi-
transformações no Direito Internacional” (HEN- nação de todas as formas de Discriminação
KIN, Louis et al. International law: cases and Racial, a Convenção sobre a Eliminação da
materials. 3. ed., Minnesota: West Publishing, Discriminação contra a Mulher e a Convenção
1993. p. 3). sobre os Direitos da Criança contemplam não
2. ARENDT, Hannah. As origens do tota- apenas direitos civis e políticos, mas também
litarismo. Tradução de Roberto Raposo. Rio de direitos sociais, econômicos e culturais, o que
Janeiro, 1979. A respeito, ver também: LAFER, vem a endossar a idéia da indivisibilidade dos
Celso. A reconstrução dos direitos humanos: direitos humanos.
um diálogo com o pensamento de Hannah 7. Norberto Bobbio, A era dos direitos, p.
Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 25-47.
134. No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: 8. Celso Lafer, Comércio, desarmamento,
“Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato direitos humanos: reflexões sobre uma expe-
de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, riência diplomática, p.145.
que os direitos são conquistados, às vezes, com 9. BILDER, Richard. Possibilities for deve-
barricadas, em um processo histórico cheio de lopment of new international judicial mechanis-

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 1, jan./jun. – 2003


160 FLÁVIA CRISTINA PIOVESAN

ms. In: HENKIN, Louis; HARGROVE, John sagrados, deduz-se que a raiz antropológica se
Lawrence (Ed.). Human rights: an agenda for reconduz ao homem como pessoa, como cida-
the next century. Washington, 1994; Studies in dão, como trabalhador e como administrado”
Transnational Legal Policy, n. 26, p. 326-327 (Direito constitucional e teoria da constituição.
e 334. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 244).
10. Reitere-se que, no sistema da ONU, não Acerca, ainda, do sentido antropológico aqui
há ainda uma Corte Internacional de Direitos mencionado, ressalte-se a contribuição da re-
Humanos. Há a Corte Internacional de Justiça cente obra de Ana Paula de Barcellos (A eficácia
(principal órgão jurisdicional da ONU, cuja jurídica dos princípios constitucionais – O
jurisdição só pode ser acionada por Estados); princípio da dignidade da pessoa humana. Rio
os Tribunais ad hoc para a Bósnia e Ruanda de Janeiro: Renovar, 2002) que, dentre outras
(criados por resolução do Conselho de Segu- passagens, asserta: “O Estado e todo o seu
rança da ONU) e o Tribunal Penal Internacional aparato, portanto, são meios para o bem-estar
(para o julgamento dos mais graves crimes do homem e não fins em si mesmos ou meios
contra a ordem internacional, como o genocídio, para outros fins. Este é, bem entendido, o valor
o crime de guerra, os crimes contra a humani- fundamental escolhido pelo constituinte origi-
dade e os crimes de agressão). Por sua vez, no nário, o centro do sistema, a decisão política
sistema regional africano, nos termos do Pro- básica do Estado brasileiro” (p. 26).
tocolo de 1997 à Carta Africana dos Direitos do 15. Sobre tal abrangência, confira-se a dis-
Homem e dos Povos de 1986, é previsto o ciplina, dada diretamente pela Constituição,
estabelecimento de uma Corte Africana dos acerca de institutos, tais como o direito de
Direitos do Homem e dos Povos, a fim de família; o direito de propriedade de imóveis
complementar e fortalecer a atuação da Comis- urbanos e rurais; o chamado direito de antena;
são Africana de Direitos do Homem e dos o direito ambiental, dentre outros. Reconhecen-
Povos. do esse novo e salutar influxo, veja-se, dentre
11. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. os civilistas: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
A proteção internacional dos direitos humanos: direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. 2001.
São Paulo: Saraiva, p. 8. 16. Assim, não parece ser despicienda a
12. A respeito do tema e das reflexões lembrança, feita por Ulysses Guimarães, de que
desenvolvidas pelo este tópico ver: PIOVESAN, a Carta de 1988 é a “Constituição cidadã”.
Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Força nor- Aliás, para que se confira o confessado intento
mativa dos princípios constitucionais funda- antropocentrista da Constituição brasileira, veja-
mentais: a dignidade da pessoa humana. 2. ed. se o “prefácio” pouco conhecido da Carta,
São Paulo: Max Limonad, 2002. (Temas de transcrito na obra de Bonavides e Paes de
direitos humanos.) Andrade, História constitucional do Brasil, 3.
13. A respeito, ver o artigo 16 da Declaração ed., São Paulo, Paz e Terra, 1991, p. 496-497:
francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão “O homem é o problema da sociedade brasilei-
de 1789, semente do movimento do constitucio- ra: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa,
nalismo: “Toda sociedade, em que a garantia portanto sem cidadania. A Constituição luta
dos direitos não é assegurada, nem a separação contra os bolsões de miséria que envergonham
dos poderes determinada, não tem Consti- o País. Diferentemente das sete Constituições
tuição”. anteriores, começa com o homem. Geografica-
14. Aponta, a respeito, Canotilho, sobre a mente testemunha a primazia do homem, que
Constituição portuguesa, em lição perfeitamente foi escrita para o homem, que o homem é seu
pertinente também à Carta brasileira: “A Cons- fim e sua esperança, é a Constituição cidadã.
tituição da República não deixa quaisquer dúvi- Cidadão é o que ganha, come, mora, sabe, pode
das sobre a indispensabilidade de uma base se curar. A Constituição nasce do fundo de
antropológica constitucionalmente estruturante profunda crise que abala as instituições e
do Estado de Direito. (...) pela análise dos convulsiona a sociedade. (...) É a Constituição
direitos fundamentais, constitucionalmente con- coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, viu,

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DIREITOS HUMANOS E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL 161

destroçou tabus, tomou o partido dos que só se de dezembro de 1978: “Título Primeiro – De
salvam pela lei. A Constituição durará com a los derechos y deberes fundamentales: 10.1. La
democracia e só com a democracia sobrevivem dignidad de la persona, los derechos inviolables
para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça”. que le son inherentes, el libre desarrollo de la
17. Na Carta brasileira, além de sua previsão personalidad, el respeto a la ley y a los derechos
expressa no artigo 1.o, inciso III, veja-se a de los demás son fundamento del orden político
afirmação de Ana Paula de Barcellos, acerca de y de la paz social. 10.2. Las normas relativas
seu próprio espraiamento pelo próprio Texto, a los derechos fundamentales y a las libertades
com diversos níveis de especificação (A eficácia que la Constitución reconoce, se interpretarán
jurídica dos princípios constitucionais..., p. de conformidad con la Declaración Universal de
155-190). Na Lei Fundamental alemã, vem o Derechos Humanos y los tratados y acuerdos
princípio já no pórtico: “Art. 1.º (Proteção da internacionales sobre las mismas materias rati-
dignidade da pessoa humana) (1) A dignidade ficados por España” (Constitución española. 2.
da pessoa humana é inviolável. Todas as auto- ed. Madri: Civitas, 1997).
ridades públicas têm o dever de a respeitar e a 18. A “principialização” da jurisprudência
proteger. (2) O povo alemão reconhece, por isso, através da Constituição. Revista de Processo, n.
os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa 98, p. 84. Note-se que o professor da Univer-
humana como fundamentos de qualquer comu- sidade de Lisboa refere-se a “Estado Constitu-
nidade humana, da paz e da justiça no mundo. cional Democrático e de Direito”, pois os
(3) Os direitos fundamentais a seguir enuncia- artigos 2.o e 9.o, b, da Constituição da República
dos vinculam, como direito directamente apli- Portuguesa, com a Revisão Constitucional de
cável, os poderes legislativo, executivo e judi- 1982, tomam aquele país como Estado de
cial” (A Lei Fundamental da República Federal Direito Democrático. A colocação chama a
da Alemanha, com um ensaio e anotações de atenção, pois, se em Portugal previu-se um
Nuno Rogeiro. Coimbra: Coimbra Editora, 1996). “Estado de Direito Democrático”, no Brasil, no
Também assim, na Constituição portuguesa, de Preâmbulo de nossa Constituição, veio a idéia
12 de abril de 1976: “Art. 1.º (República de “Estado Democrático”, ao passo que, no
Portuguesa) Portugal é uma República sobera- artigo 1.o, há: “art. 1.o: A República Federativa
na, baseada na dignidade da pessoa humana e do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
na vontade popular e empenhada na construção Estados e Municípios e dos Distrito Federal,
de uma sociedade livre, justa e solidária” constitui-se em Estado Democrático de Direito
(Constituição da República Portuguesa. 2.a e tem como fundamentos: (...)”. A respeito,
revisão. Coimbra: Almedina, 1989). Deve-se endossa-se a lição de Canotilho: “Estado de
notar inclusive que a Constituição portuguesa direito é democrático e só sendo-o é que é
teve a precaução de vedar expressamente emen- Estado de direito; o Estado democrático é
das constitucionais que maculem os seus prin- Estado de direito e só sendo-o é que é demo-
cípios fundamentais (art. 288), no que não foi crático” (...). Além disso: “O Estado Constitu-
seguida pela brasileira; aqui, sabe-se lá por qual cional só é constitucional se for democrático”
razão, o fenômeno que em Portugal conseguiu (Canotilho, op. cit., p. 226).
se evitar tem repetidamente rompido com a 19. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
ordem principiológica estabelecida. Por fim, Direito constitucional e teoria da Constituição.
para o cotejo que importa neste trabalho, eis a Coimbra: Almedina, 1998. p. 1217.
disposição expressa da Carta espanhola de 29

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