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JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
INTERNACIONAL
HUMAN RIGHTS AND INTERNATIONAL CONSTITUTIONAL
JURISDICTION
ABSTRACT: The author specifically explains in this article how the formation and
internationalization process of human rights has given way to a new paradigm, which
– based on “justiciabilization” – offers support for the historical necessities and
demands for justice of the new social actors. This transformation, along with others,
has brought about a profound reformulation of the principles and foundations of local
constitutional law systems, when inscribed in the sphere of “International Law of
Human Rights.”
jurídica perfeita sem que a energia com que simples: a gravidade do crime de genocídio
a justiça aplica a espada seja igual à poderia implicar o colapso das próprias
habilidade com que maneja a balança”. instituições nacionais, que, assim, não te-
Vale dizer, no âmbito internacional o riam condições para julgar seus perpetra-
foco se concentra no binômio: direito da dores, restando assegurada a impunidade.
força x força do direito. O processo de Por isso, há mais de cinqüenta anos já se
justicialização do Direito Internacional, em antevia a necessidade de criação de um
especial dos direitos humanos, celebra, por Tribunal Penal Internacional, cabendo
assim dizer, a passagem do reino do “di- menção ao legado das experiências dos
reito da força” para a “força do direito”. Tribunais ad hoc de Nuremberg, Tóquio,
Retomando Norberto Bobbio, as ativi- Bósnia e Ruanda.
dades internacionais na área dos direitos Em 17 julho de 1998, em Roma, foi
humanos podem ser classificadas em três aprovado o Estatuto do Tribunal Penal
categorias: promoção, controle e garantia. Internacional, por 120 votos favoráveis, 21
As atividades de promoção correspondem abstenções e 7 votos contrários (EUA,
ao conjunto de ações destinadas à intro- China, Israel, Filipinas, Índia, Sri Lanka e
dução e ao aperfeiçoamento do regime de Turquia). A competência do Tribunal atém-
direitos humanos pelos Estados. Já as se ao julgamento dos mais graves crimes
atividades de controle envolvem as ativida- internacionais, compreendendo o crime de
des que cobram dos Estados a observância genocídio, os crimes contra a humanidade,
de obrigações de direitos humanos por eles os crimes de guerra e os crimes de agres-
contraídas internacionalmente. Por fim, são. A jurisdição do Tribunal é adicional e
segundo Bobbio, a garantia dos direitos complementar à do Estado, ficando condi-
humanos no plano internacional só será cionada à incapacidade ou à omissão do
implementada quando uma “jurisdição in- sistema judicial interno. O Estado tem o
ternacional se impuser concretamente so- dever de exercer sua jurisdição penal contra
bre as jurisdições nacionais, deixando de os responsáveis por crimes internacionais,
operar dentro dos Estados, mas contra os tendo a comunidade internacional a res-
Estados e em defesa dos cidadãos”.7 ponsabilidade subsidiária. O Estatuto con-
Testemunha-se, hoje, o crescente pro- sagra ainda o princípio da cooperação, pelo
cesso de justicialização dos direitos huma- qual os Estados-partes devem cooperar
nos. totalmente com o Tribunal na investigação
e no processamento de crimes que estejam
Pela primeira vez na história da huma-
sob a jurisdição deste. Desta forma, o
nidade, será instalado um Tribunal Penal
Estatuto busca equacionar a garantia do
Internacional, para julgar os mais graves
direito à justiça, o fim da impunidade e a
crimes atentatórios à ordem internacional.
soberania do Estado, à luz do princípio da
Note-se que, desde 1948, a Convenção
complementaridade. A jurisdição do Tribu-
sobre a Prevenção e Repressão ao Crime
nal Penal Internacional não substitui a
de Genocídio, ao afirmar que o genocídio
jurisdição local, mas é a ela complementar
era um crime contra a ordem internacional,
e subsidiária.
estabelecia que o mesmo deveria ser julga-
do pelos Tribunais do Estado em cujo O reconhecimento da jurisdição do
território foi o ato cometido ou por uma Tribunal Penal Internacional, em si mesmo,
Corte Penal Internacional. O raciocínio era é ato de soberania do Estado brasileiro, não
necessária interação entre as esferas local, vicissitudes, por meio do qual as necessidades
regional e global, vislumbra-se a progres- e as aspirações se articulam em reivindicações
siva elevação do valor da dignidade humana e em estandartes de luta antes de serem recon-
hecidos como direitos” (Desenvolvimento, di-
a parâmetro legitimador das ordens jurídi- reitos humanos e cidadania, Direitos humanos
cas contemporâneas, tanto no plano cons- no século XXI, 1998, p. 156). A título ilustra-
titucional como no internacional. tivo, basta mencionar a iniciativa do Brasil, na
Aos operadores do Direito resta, assim, sessão da Comissão de Direitos Humanos de
o desafio de recuperar no Direito seu 2000, de propor resolução que considerasse o
acesso a medicamentos, no caso da Aids, como
potencial ético e transformador, doando um direito humano. A Resolução foi aprovada
máxima efetividade aos princípios funda- por 52 países, com uma abstenção (EUA). Em
mentais que regem o Direito Internacional 2002, o Brasil apresentou proposta de reso-
e interno, com realce ao princípio da lução, aprovada por consenso, objetivando que
dignidade humana. Que a cultura jurídica o acesso a medicamentos no caso da tuberculose
seja, portanto, capaz de construir o diálogo e malária também fosse considerado como um
entre o Direito Internacional e o Direito direito humano. Ainda propôs a criação de uma
relatoria temática sobre a saúde, também apro-
Constitucional contemporâneo, sob o pri- vada por consenso. Estes exemplos refletem a
mado da centralidade do valor da absoluta expansão contínua do alcance conceitual de
prevalência da dignidade humana, porque direitos humanos.
fonte e sentido de toda experiência jurídica. 3. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos.
Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1988. p. 30.
NOTAS 4. Para Celso Lafer, de uma visão ex parte
principe, fundada nos deveres dos súditos com
1. BUERGENTHAL, Thomas. Prólogo do relação ao Estado, passa-se a uma visão ex parte
livro de Antônio Augusto Cançado Trindade. A populi, fundada na promoção da noção de
proteção internacional dos direitos humanos: direitos do cidadão (Comércio, desarmamento,
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. direitos humanos: reflexões sobre uma expe-
São Paulo: Saraiva, 1991. p. XXXI. No mesmo riência diplomática. São Paulo: Paz e Terra,
sentido, afirma Louis Henkin: “O Direito Inter- 1999. p.145).
nacional pode ser classificado como o Direito 5. A respeito, consultar Human Develop-
anterior à Segunda Guerra Mundial e o Direito ment Report 2001, UNDP, New York/Oxford,
posterior a ela. Em 1945, a vitória dos aliados Oxford University Press, 2001.
introduziu uma nova ordem com importantes 6. Note-se que a Convenção sobre a Elimi-
transformações no Direito Internacional” (HEN- nação de todas as formas de Discriminação
KIN, Louis et al. International law: cases and Racial, a Convenção sobre a Eliminação da
materials. 3. ed., Minnesota: West Publishing, Discriminação contra a Mulher e a Convenção
1993. p. 3). sobre os Direitos da Criança contemplam não
2. ARENDT, Hannah. As origens do tota- apenas direitos civis e políticos, mas também
litarismo. Tradução de Roberto Raposo. Rio de direitos sociais, econômicos e culturais, o que
Janeiro, 1979. A respeito, ver também: LAFER, vem a endossar a idéia da indivisibilidade dos
Celso. A reconstrução dos direitos humanos: direitos humanos.
um diálogo com o pensamento de Hannah 7. Norberto Bobbio, A era dos direitos, p.
Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 25-47.
134. No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: 8. Celso Lafer, Comércio, desarmamento,
“Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato direitos humanos: reflexões sobre uma expe-
de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, riência diplomática, p.145.
que os direitos são conquistados, às vezes, com 9. BILDER, Richard. Possibilities for deve-
barricadas, em um processo histórico cheio de lopment of new international judicial mechanis-
ms. In: HENKIN, Louis; HARGROVE, John sagrados, deduz-se que a raiz antropológica se
Lawrence (Ed.). Human rights: an agenda for reconduz ao homem como pessoa, como cida-
the next century. Washington, 1994; Studies in dão, como trabalhador e como administrado”
Transnational Legal Policy, n. 26, p. 326-327 (Direito constitucional e teoria da constituição.
e 334. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1995. p. 244).
10. Reitere-se que, no sistema da ONU, não Acerca, ainda, do sentido antropológico aqui
há ainda uma Corte Internacional de Direitos mencionado, ressalte-se a contribuição da re-
Humanos. Há a Corte Internacional de Justiça cente obra de Ana Paula de Barcellos (A eficácia
(principal órgão jurisdicional da ONU, cuja jurídica dos princípios constitucionais – O
jurisdição só pode ser acionada por Estados); princípio da dignidade da pessoa humana. Rio
os Tribunais ad hoc para a Bósnia e Ruanda de Janeiro: Renovar, 2002) que, dentre outras
(criados por resolução do Conselho de Segu- passagens, asserta: “O Estado e todo o seu
rança da ONU) e o Tribunal Penal Internacional aparato, portanto, são meios para o bem-estar
(para o julgamento dos mais graves crimes do homem e não fins em si mesmos ou meios
contra a ordem internacional, como o genocídio, para outros fins. Este é, bem entendido, o valor
o crime de guerra, os crimes contra a humani- fundamental escolhido pelo constituinte origi-
dade e os crimes de agressão). Por sua vez, no nário, o centro do sistema, a decisão política
sistema regional africano, nos termos do Pro- básica do Estado brasileiro” (p. 26).
tocolo de 1997 à Carta Africana dos Direitos do 15. Sobre tal abrangência, confira-se a dis-
Homem e dos Povos de 1986, é previsto o ciplina, dada diretamente pela Constituição,
estabelecimento de uma Corte Africana dos acerca de institutos, tais como o direito de
Direitos do Homem e dos Povos, a fim de família; o direito de propriedade de imóveis
complementar e fortalecer a atuação da Comis- urbanos e rurais; o chamado direito de antena;
são Africana de Direitos do Homem e dos o direito ambiental, dentre outros. Reconhecen-
Povos. do esse novo e salutar influxo, veja-se, dentre
11. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. os civilistas: TEPEDINO, Gustavo. Temas de
A proteção internacional dos direitos humanos: direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. 2001.
São Paulo: Saraiva, p. 8. 16. Assim, não parece ser despicienda a
12. A respeito do tema e das reflexões lembrança, feita por Ulysses Guimarães, de que
desenvolvidas pelo este tópico ver: PIOVESAN, a Carta de 1988 é a “Constituição cidadã”.
Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Força nor- Aliás, para que se confira o confessado intento
mativa dos princípios constitucionais funda- antropocentrista da Constituição brasileira, veja-
mentais: a dignidade da pessoa humana. 2. ed. se o “prefácio” pouco conhecido da Carta,
São Paulo: Max Limonad, 2002. (Temas de transcrito na obra de Bonavides e Paes de
direitos humanos.) Andrade, História constitucional do Brasil, 3.
13. A respeito, ver o artigo 16 da Declaração ed., São Paulo, Paz e Terra, 1991, p. 496-497:
francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão “O homem é o problema da sociedade brasilei-
de 1789, semente do movimento do constitucio- ra: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa,
nalismo: “Toda sociedade, em que a garantia portanto sem cidadania. A Constituição luta
dos direitos não é assegurada, nem a separação contra os bolsões de miséria que envergonham
dos poderes determinada, não tem Consti- o País. Diferentemente das sete Constituições
tuição”. anteriores, começa com o homem. Geografica-
14. Aponta, a respeito, Canotilho, sobre a mente testemunha a primazia do homem, que
Constituição portuguesa, em lição perfeitamente foi escrita para o homem, que o homem é seu
pertinente também à Carta brasileira: “A Cons- fim e sua esperança, é a Constituição cidadã.
tituição da República não deixa quaisquer dúvi- Cidadão é o que ganha, come, mora, sabe, pode
das sobre a indispensabilidade de uma base se curar. A Constituição nasce do fundo de
antropológica constitucionalmente estruturante profunda crise que abala as instituições e
do Estado de Direito. (...) pela análise dos convulsiona a sociedade. (...) É a Constituição
direitos fundamentais, constitucionalmente con- coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, viu,
destroçou tabus, tomou o partido dos que só se de dezembro de 1978: “Título Primeiro – De
salvam pela lei. A Constituição durará com a los derechos y deberes fundamentales: 10.1. La
democracia e só com a democracia sobrevivem dignidad de la persona, los derechos inviolables
para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça”. que le son inherentes, el libre desarrollo de la
17. Na Carta brasileira, além de sua previsão personalidad, el respeto a la ley y a los derechos
expressa no artigo 1.o, inciso III, veja-se a de los demás son fundamento del orden político
afirmação de Ana Paula de Barcellos, acerca de y de la paz social. 10.2. Las normas relativas
seu próprio espraiamento pelo próprio Texto, a los derechos fundamentales y a las libertades
com diversos níveis de especificação (A eficácia que la Constitución reconoce, se interpretarán
jurídica dos princípios constitucionais..., p. de conformidad con la Declaración Universal de
155-190). Na Lei Fundamental alemã, vem o Derechos Humanos y los tratados y acuerdos
princípio já no pórtico: “Art. 1.º (Proteção da internacionales sobre las mismas materias rati-
dignidade da pessoa humana) (1) A dignidade ficados por España” (Constitución española. 2.
da pessoa humana é inviolável. Todas as auto- ed. Madri: Civitas, 1997).
ridades públicas têm o dever de a respeitar e a 18. A “principialização” da jurisprudência
proteger. (2) O povo alemão reconhece, por isso, através da Constituição. Revista de Processo, n.
os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa 98, p. 84. Note-se que o professor da Univer-
humana como fundamentos de qualquer comu- sidade de Lisboa refere-se a “Estado Constitu-
nidade humana, da paz e da justiça no mundo. cional Democrático e de Direito”, pois os
(3) Os direitos fundamentais a seguir enuncia- artigos 2.o e 9.o, b, da Constituição da República
dos vinculam, como direito directamente apli- Portuguesa, com a Revisão Constitucional de
cável, os poderes legislativo, executivo e judi- 1982, tomam aquele país como Estado de
cial” (A Lei Fundamental da República Federal Direito Democrático. A colocação chama a
da Alemanha, com um ensaio e anotações de atenção, pois, se em Portugal previu-se um
Nuno Rogeiro. Coimbra: Coimbra Editora, 1996). “Estado de Direito Democrático”, no Brasil, no
Também assim, na Constituição portuguesa, de Preâmbulo de nossa Constituição, veio a idéia
12 de abril de 1976: “Art. 1.º (República de “Estado Democrático”, ao passo que, no
Portuguesa) Portugal é uma República sobera- artigo 1.o, há: “art. 1.o: A República Federativa
na, baseada na dignidade da pessoa humana e do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
na vontade popular e empenhada na construção Estados e Municípios e dos Distrito Federal,
de uma sociedade livre, justa e solidária” constitui-se em Estado Democrático de Direito
(Constituição da República Portuguesa. 2.a e tem como fundamentos: (...)”. A respeito,
revisão. Coimbra: Almedina, 1989). Deve-se endossa-se a lição de Canotilho: “Estado de
notar inclusive que a Constituição portuguesa direito é democrático e só sendo-o é que é
teve a precaução de vedar expressamente emen- Estado de direito; o Estado democrático é
das constitucionais que maculem os seus prin- Estado de direito e só sendo-o é que é demo-
cípios fundamentais (art. 288), no que não foi crático” (...). Além disso: “O Estado Constitu-
seguida pela brasileira; aqui, sabe-se lá por qual cional só é constitucional se for democrático”
razão, o fenômeno que em Portugal conseguiu (Canotilho, op. cit., p. 226).
se evitar tem repetidamente rompido com a 19. CANOTILHO, José Joaquim Gomes.
ordem principiológica estabelecida. Por fim, Direito constitucional e teoria da Constituição.
para o cotejo que importa neste trabalho, eis a Coimbra: Almedina, 1998. p. 1217.
disposição expressa da Carta espanhola de 29