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Caminhos e Descaminhos Da Revolução Passiva À Brasileira
Caminhos e Descaminhos Da Revolução Passiva À Brasileira
http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581996000300004
Tal Estado está posto, diante da sua sociedade civil, em posição de radical
autonomia, embora inexista a intenção de fazer da política um recurso de alavancagem
ou de favorecimento da modernização econômica, como atesta a má sorte dos
empreendimentos de notáveis homens de negócios, como Mauá, e dos intelectuais de
adesão americana que buscaram fazer da empresa econômica um lugar de
transformação do mundo, como Tavares Bastos e os irmãos Rebouças (Rezende de
Carvalho, 1993, pp. 193 e ss.).2 Daí que, como bem notou José Murilo de Carvalho, não
se possa compreender o Estado imperial como um caso de modernização conservadora
(Carvalho, 1980, p. 39).
No futuro e pelo decurso natural dos fatos, em sua progressão molecular, sob o
escrutínio de suas elites políticas, o Estado vai se encontrar com a sua sociedade. A
antítese deve ceder diante da tese, a dialética se resolve em" tranqüila teoria",4 o
protagonismo deve caber aos fatos, e não ao ator,5 e ninguém melhor que Joaquim
Nabuco fixou os traços dessa cultura política:" Há duas espécies de movimento em
política: um, de que fazemos parte supondo estar parados, como o movimento da Terra
que não sentimos; outro, o movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos
os que têm consciência do primeiro, no entanto, esse é, talvez, o único que não é uma
pura agitação" (Nabuco, 1957, p. 133).
Contudo, se o Estado é moderno no seu liberalismo, essa sua condição deve ser
reprimida, apenas vivenciada no plano da consciência das suas elites, constrangido,
inclusive por sua índole constitutivamente territorialista, a consagrar o patrimonialismo
e a estrutura anacrônica do sistema produtivo que herdou da Colônia. No Estado e na
sociedade nacionais, como escreveu F. Fernandes em páginas clássicas sobre a
Independência, o liberalismo era "um destino a ser conquistado no futuro" (Fernandes,
1975, p. 35). Autocontido, sem mobilizar a política como instrumento de mudança
econômica, esse Estado, que aparenta cultuar o quietismo, quer ser o administrador
metafísico do tempo, fator que estaria dotado, em si, da inteligência de produzir, por
movimentos quase imperceptíveis, a mudança que viesse a reparar a irremediável
incompletude e rusticidade da sociedade e do homem brasileiros. Um e outro, como
vieram ao mundo, não lhe poderiam servir como ponto de partida para sua obra
civilizatória.
Nessa Ibéria renovada, o ator procura afirmar o seu protagonismo sobre os fatos,
deixando de confiar na cumplicidade do tempo, a essa altura já tendo por que temer a
possibilidade de se ver ultrapassar pelo movimento da sua sociedade. Não há mais lugar
para o quietismo que apostava no futuro o "destino" se tornou uma tarefa a ser
cumprida no tempo presente. Por meio da industrialização, projeto da política, a sua
vocação territorialista vai propiciar a formação de uma economia homóloga a ela, posta
a serviço da grandeza nacional, como na ideologia do Estado Novo uma economia
politicamente orientada, economia programática de um capitalismo de Estado, as elites
políticas à testa de uma nação concebida como uma comunidade orgânica. Subsumir a
antítese, nesse novo contexto dinamizado pelas expectativas de mudança social, importa
admitir a subsunção, ainda que parcial, da sua energia.
Nos anos 50, sob o governo de Juscelino Kubitschek lembrar que Juscelino
foi prefeito "biônico" de Belo Horizonte à época do Estado Novo, e eleito presidente
pela coalizão PSD-PTB, partidos criados por Vargas na transição daquele regime para o
da democracia de 1946 , o transformismo se traduz em uma "fuga para a frente", o
ator em luta contra o tempo os "cinqüenta anos em cinco" , queimando etapas
como na construção de Brasília e na abertura da fronteira oeste para o capitalismo
brasileiro. A vitalidade do processo de transformismo empresta, por suas realizações,
principalmente econômicas, legitimidade às elites políticas territorialistas objetivos
de território e de população faziam parte das orientações dominantes do governo
Juscelino , isolando social e politicamente as elites do liberalismo econômico e a
esquerda, como a que marcou a sua posição no Manifesto de Agosto, de 1950, do PCB,
que desejavam, por motivações de sentido oposto, interromper o seu curso.
A atividade desse ator aparece, porém, como prisioneira dos fatos, cabendo a
eles "ao desenvolvimento capitalista nacional" o papel de "elemento progressista
por excelência da economia brasileira", "desenvolvimento inelutável" que induziria o
avanço do moderno sobre o atraso (idem, p. 4). A esquerda descobria o tema do
transformismo como uma nova alternativa para a mudança social, mas esta descoberta,
porém, se fazia em um terreno estranho ao seu o do Estado, da burguesia nacional e
das elites políticas de tradição territorialista. O ator que devia" ativar" o transformismo
dependia de movimentos sobre os quais não possuía controle, na confiança de que eles
respondiam a necessidades objetivas, "inelutáveis", o que, a rigor, significava abdicar
do seu protagonismo em favor dos fatos. Nesse sentido, a Declaração de Março vinha a
confirmar, "por baixo", a cultura política das elites territorialistas, com que, ademais, se
identificava na centralidade concedida ao papel do Estado como organizador social.
A esta ruptura no campo das elites se acrescenta aquela que vai ocorrer no
sistema de orientação da esquerda, quando uma parte significativa dela faz a opção em
favor do caminho da ruptura revolucionária, denunciando a política do gradualismo
reformista, como no enunciado da Declaração de Março, como a responsável pela
vitória do golpe militar. Segundo o seu argumento, as coalizões pluriclassistas deveriam
dar lugar a uma política definida a partir dos setores subalternos, em particular do
movimento operário. A democracia populista do pré-64 "não procedia de qualquer
pluralismo real", constituindo-se em uma aberta manipulação consentida das massas
populares, implicando, na verdade, "uma autocracia burguesa dissimulada" (Fernandes,
1975, pp. 339-40). A antítese não poderia nascer do nacional-popular, e sim do terreno
da luta aberta de classes, e, se o capitalismo não poderia prescindir do autoritarismo,
marca intrínseca ao seu modo de manifestação no país, as lutas pela democracia
incorporavam uma carga de sentido anticapitalista (Fernandes, 1975, pp. 364 e ss.;
Velho, 1976, p. 241).
Não por acaso, é da intelligentzia de São Paulo que virão os fundamentos mais
persuasivos em favor da ruptura revolucionária. Estado de economia vigorosa, com uma
estrutura de classes assemelhada à européia, com suas clivagens definidas em termos de
interesse, a via do transformismo em São Paulo, como em Florestan Fernandes, relevava
sobretudo a sua dimensão societária a lenta e gradual transição da ordem patrimonial
para a ordem social competitiva, cujos efeitos, entre nós, se revestiriam de um alcance
comparável às revoluções burguesas na Europa (Fernandes, 1977, p. 36).8 Para
a intelligentzia paulista, ainda antes de 1964, a aliança da esquerda com as elites
territorialistas em torno do Estado e de um projeto nacional-desenvolvimentista
implicava convalidar a reciclagem do domínio das elites tradicionais, "como se o
Brasil arcaico devesse sempre preponderar sobre o Brasil moderno " (idem,
1976, p. 329). O nacional-desenvolvimentismo, simulando representar os" interesses da
comunidade como um todo" (idem, p. 221), traduziria, no fundamental, os interesses
privilegiados das elites. Daí que o programa intelectual paulista, já na passagem dos
anos 50 para os 60, não ponha ênfase na questão do Estado, centrando-se nos
personagens de mercado, do mundo dos interesses e da realidade fabril (Rezende de
Carvalho, 1994, p. 46).
A revolução passiva fora uma obra da cultura política dos territorialistas, e seus
momentos de reformismo, sob o regime populista, teriam produzido o efeito negativo da
cooptação dos seres subalternos, o cancelamento da sua identidade e o aprofundamento
das condições do estatuto da sua dominação. Acresce que, com o novo ciclo iniciado
pelo segundo presidente do regime militar o general Costa e Silva , territorialista
era também a ditadura com sua doutrina expansionista de Brasil-grande potência.
Romper, no plano da política, com o contexto intelectual da revolução passiva, se fazia,
assim, associar a uma idéia igualmente de ruptura com o próprio legado histórico
formador da sociedade brasileira: a cultura política da Ibéria considerada como um peso
opressivo pelo seu autoritarismo-burocrático, parasitismo e natureza cartorial, tal como
na tradição liberal de um Tavares Bastos, à qual se concedeu uma nova animação com o
clássico Os Donos do Poder de Raimundo Faoro, cujo êxito tardio o livro é de 1958,
mas só foi incorporado como presença obrigatória nos estudos sociais brasileiros em
fins da década seguinte veio a coincidir, e não à toa, com a nova valorização
concedida à matriz do interesse como estratégia de organização social.
Notas:
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. (1994), Guerra e Paz, Casa Grande e Senzala
e a Obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro, Ed. 34. [ Links ]
HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1977), Raízes do Brasil (11ª. ed.). Rio de
Janeiro, José Olympio. [ Links ]
PCB: Vinte Anos de Política, 1958-1979. (1980), São Paulo, Livraria Editora
Ciências Humanas. [ Links ]
____. (1994), Quatro Vezes Cidade. Rio de Janeiro, Sette Letras. [ Links ]
____. (1996), "O Inferno Ainda não é o Outro: Notas sobre o Primeiro Ano de
Governo do Quarto Presidente de Transição". Cadernos de Conjuntura, nº. 53, IUPERJ.
[ Links ]