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FORMAÇÃO DE IDENTIDADES
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Aluna mestranda do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Mato Grosso. Agência
Financiadora: CAPES.
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participação limitada aos objetivos bélicos do país e seus aliados, e por sua constituição
majoritária de civis, a FEB construiu, ao longo de sua existência, certas especificidades.
O ataque à base militar estadunidense Pearl Harbor, no fim do ano de 1941, despertara
em todo continente americano o sinal de alerta de expansão do conflito Mundial. A entrada
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Sob este contexto, muitos países se posicionavam com neutralidade, como foi o caso
do Brasil. Todavia esta postura não pôde perdurar, quando as proporções bélicas foram se
tornando mais catastróficas. Podemos compreender os acontecimentos do ano de 1942, do
envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a partir de uma cadeia de ações e
reações, as quais se iniciariam, no Hemisfério ocidental, quando dos frios ataques à Marinha
mercante na costa brasileira:
Por meio da Portaria Ministerial nº 47-44 (LINS, 1985, p. 55), de Agosto de 1943,
expedida pelo Ministro de Estado de Guerra Eurico Gaspar Dutra, seguiam as instruções para
os Comandos das Regiões Militares do país, no intuito de organizarem a formação da 1º
Divisão de Infantaria Expedicionária brasileira. Podemos afirmar, a partir do peculiar
contexto do período de formação da FEB, que a Força Expedicionária Brasileira apresentou-
se como um corpo fora do padrão do que se compreendia enquanto exército no Brasil, nos
anos correntes de sua existência.
Venho do morro, do Engenho, das selvas, dos cafezais, da boa terra do coco, da
choupana onde um é pouco dois é bom, três é demais. Venho das praias sedosas das
montanhas alterosas, dos pampas, do seringal das margens crespas dos rios, dos
verdes mares bravios da minha terra natal [...] Você sabe de onde eu venho? É de
uma Pátria que eu tenho no bojo do meu violão; Que de viver em meu peito foi até
tomando jeito de um enorme coração.2
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Canção do expedicionário, autor: Guilherme de Almeida; música: Spartaco Rossi.
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“Pela expressão cidadão-soldado entende-se o indivíduo que, ao prestar o serviço militar – na paz ou na guerra
– por um determinado período à sua pátria, adquire a qualificação de sua cidadania por meio do “tributo de
sangue”. (FERRAZ, 2012, p. 45).
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Contando com o apoio das Forças Armadas estadunidenses para o treinamento e apoio
logístico, foram enviados para a Itália em cinco escalões, entre 1944 e 1945, os combatentes
brasileiros. Deveriam lutar nos terrenos instáveis do norte da Itália contra as forças alemãs e
italianas que dominavam aquele território. Apesar de muitos desacreditarem na vitória
brasileira4, realizaram diversas missões com êxito.
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Sobre os problemas enfrentados durante a formação da Força Expedicionária Brasileira vide “A guerra que não
acabou: a reintegração de veteranos da Força Expedicionária Brasileira”, Francisco César Ferraz.
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Entrevista realizada no dia 28 de Setembro de 2013, em Várzea Grande-MT, na residência do senhor Gabriel
Ferreira de Jesus.
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Francisco César A. Ferraz reflete, em sua Tese a respeito da reintegração social dos
veteranos de Guerra da FEB, sobre as condições do Exército regular brasileiro e o impacto da
criação da FEB sob o olhar das oficialidades das Forças Armadas. Segundo Ferraz, o Exército
refletiria os problemas socioeconômicos do Brasil no período. Foi mais longe ainda quando
pondera a respeito das precárias condições de formação da FEB: “Pertencer à FEB e ir para a
Guerra era considerado, para muitos dentro da própria instituição militar, uma punição. Era a
oportunidade de comandantes “limparem” suas unidades, enviando para os regimentos
expedicionários os indesejáveis dos quartéis” (FERRAZ, 2012, p. 61).
Além da má fama acumulada dentro do corpo militar, a FEB não era bem vista por
uma parcela da população brasileira, descrente no poder bélico do país, assim como na sua
suposta “insignificância” no desenrolar da Guerra. Sobre a preparação dos expedicionários,
ainda em solo brasileiro, a historiadora Maria de Lourdes F. Lins, argumenta que:
Quando da realização dos grandes desfiles da FEB pelas principais ruas do Rio de
janeiro, era comum ouvir frases como estas: – “Qual! Vocês não vão. A guerra vai
acabar por esses dias. A coisa lá na Europa está de ‘colher’ para os aliados. Tudo
isso é ‘lero-lero”. Tais e tantos eram os boatos e notícias contraditórias e
tendenciosas (LINS, 1975, p. 74)
Verges6 discorre que “O retorno foi mais tranquilo, mais calmo, quando chegamos no Rio de
Janeiro foi a coisa mais inesquecível, que já vi, muito bem recebidos. A população nos
agarrava, uma festa muito bacana”.
Ao recordar das comemorações do Rio de Janeiro, o ex-combatente da FEB,
Agostinho da Motta7, relatou: “olha, eu vou te dizer, foi a maior apoteose que eu já vi na
minha vida. Que coisa espetacular, maravilhoso”. Mas logo em seguida faz uma ressalva
muito importante:
Mas foi só os três dias, depois que acabou não queriam nem ver a gente [...] Você vê
o que eu estou dizendo, eu passei cinco anos sem entrar nos quartéis. Eu quando vim
da Guerra, você sabe que é o... porque nós ficamos no abandono, quando saímos da
Itália. Chegaram, puseram nós no abandono, sem direito a nada. Quando você ia
pedir emprego a maioria “não, não quero você”, que era louco. Foi um desajuste
social fora de...o que morreu de companheiro na miséria, na...foi...foi coisa de doido.
Assim, nos deparamos com uma contradição diante do reconhecimento – ou falta deste
– dos Expedicionários enquanto indivíduos que lutaram e puseram suas vidas em risco, em
defesa de propósitos que muitas vezes nem ao menos compreendiam direito. Desta forma,
segue um questionamento: quem foram (ou ainda o são) os pracinhas da FEB? Loucos e
lunáticos que supostamente lutaram na Segunda Guerra Mundial, ou homens de histórias
singulares, protagonistas de momento significativo da história brasileira?
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Entrevista realizada por Alessandro Rosa, em 12 de novembro de 2009, em Curitiba – PR, com o ex-
combatente da FEB Aristides Saldanha Verges.
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Entrevista realizada no dia 09 de agosto de 2014, na Associação Nacional dos Veteranos da FEB – Seção
Campo Grande – MS, presidida pelo senhor Agostinho da Motta.
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que está guardado na memória, o que recordamos de uma experiência já vivida, é uma
representação de pretensões fidedignas ao passado.
Contudo, não é porque uma memória foi compartilhada que ela vai representar o
mesmo significado para diferentes indivíduos. O que pode auxiliar na maneira como os
sujeitos se identificam são os acontecimentos, as experiências (a origem), acarretando no
processo de identificação dos sujeitos.
que o periódico fizera parte de um rol de meios capazes de reproduzir dadas representações
sobre o passado, como fora no caso da participação da FEB na Segunda Grande Guerra.
Não foram muitos os meses que aqui passamos; muitos foram, entretanto, os triunfos
que incorporamos ao rico patrimônio e às nossas belas tradições militares: Camaiore
– Monte Prano – Barga no Vale do rio Sercchio; Monte Castelo [...] Esses nomes se
inscreverão, por certo, dentro daqueles que receberam o culto das gerações patrícias,
porque na Itália, como nos campos de batalha sul-americanos, o Exército brasileiro
mostrou-se digno do seu passado e á altura do conceito que os deus chefes e soldados
de outrora firmaram com a espada e selaram com o sangue dos seus legítimos e
sempre venerados heróis. (MORAES, 2005, p. 222)
combatentes, e sem qualquer ônus para eles ou para o Estado, o máximo possível da
presença da Pátria, através dos acontecimentos mais palpitantes na sociedade [...]
sobretudo nos próprios lares ou círculos de relações afetivas dos que se encontram no
“front” [...] O GLOBO EXPEDICIONÁRIO há-de construir no teatro de guerra e até
que de lá retornem os nosso valorosos patrícios – um verdadeiro mapa dos mais
ternos e dos mais nobres sentimentos brasileiros. 8
Raro é o dia em que os jornais do Rio, como os dos Estados, não publicam manchetes
sobre a brilhante progressão efetuada pela F.E.B. na Itália. O povo recebe essas
notícias com indescritível entusiasmo e acompanha, através dos mapas divulgados
pela imprensa, a marcha das operações em que estão envolvidas nossas tropas 10.
Quando nos deparamos com diversas reportagens sobre a forma como a população, de
acordo com o jornal, se portava diante da participação brasileira na Guerra, temos a tendência
a crer que o exaltado heroísmo que se impunha à FEB fora sentido de forma homogênea pela
população brasileira nos anos de ocorrência da Guerra. Todavia, não devemos simplificar
nossa visão a respeito do papel dos jornais naquele período. O Globo Expedicionário
representa apenas um olhar sobre o desempenho brasileiro na Guerra. Levando em
consideração ainda as censuras e deveres diante da imprensa oficial do Estado Novo e o papel
8
O GLOBO EXPEDICIONÁRIO, Ano I N. I, Rio de Janeiro - 7 de setembro de 1944. In: O globo expedicionário.
Agência Globo, 1985.
9
O GLOBO EXPEDICIONÁRIO, Ano II N. 2I, Rio de Janeiro – 25 de janeiro 1945. In: O globo expedicionário.
Agência Globo, 1985.1945
10
O GLOBO EXPEDICIONÁRIO, Ano I N. 9, Rio de Janeiro – 2 de novembro de 1944. In: O globo
expedicionário. Agência Globo, 1985.
11
O GLOBO EXPEDICIONÁRIO, Ano I N. I, Rio de Janeiro - 7 de setembro de 1944. In: O globo
expedicionário. Agência Globo, 1985.
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Vejamos o que Joaquim Xavier da Silveira, nos relata, em sua obra “A FEB por um
soldado”, a respeito da relação da população brasileira e os recém ex-combatentes de guerra,
na reintegração social dos febianos:
Toda tropa que se desmobiliza após uma guerra tem dois problemas fundamentais: a
readaptação e o amparo psicossocial e material. Nada disso foi feito a tempo
quando da desmobilização da FEB. O povo brasileiro não foi preparado
adequadamente; o soldado não foi esclarecido de como deveria proceder para se
readaptar ao dia-a-dia e o povo não foi informado como deveria recebe-lo. Recepção
triunfal, como ocorreu na chegada da tropa, não significa que exista um preparo
psicológico da coletividade para receber em seu meio homens possivelmente
portadores de neuroses ou de síndromes que evoluíram para uma inadaptação à vida
civil. (SILVEIRA, 1982, p. 235)
Interligados por uma história conturbada e marcante, reconhecemos nos testemunhos orais
certos traços de histórias que não querem se deixar apagar e esquecer. O companheirismo fora um
dos aspectos mais homogêneo dentro das entrevistas que analisamos:
Porque lá era o seguinte, lá era muito difícil, lá nós éramos um todo, entendeu? Cada
um fazia sua parte, a infantaria fazia a parte dela, a engenharia fazia a parte dela, a
artilharia fazia a parte dela. A infantaria não fazia coisa da engenharia, não sabe. A
engenharia não fazia coisa da infantaria, não sabe. Tudo pra dar um só. O nosso
coisa era a vitoria, era a única coisa que nós queríamos, só a vitoria, só a vitoria.
Nada interessava pra nós. Sem uma parte a outra não consegue andar, então
trabalhou em conjunto, todo mundo12.
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Entrevista realizada no dia 28 de junho de 2013, em Cuiabá-MT, na residência do senhor Zeferino Santana
Ribeiro.
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Alemanha falou ‘Aquele brasileiro nós não tem medo, não tem medo do brasileiro,
brasileiros são tudo miudinho, igual macaco’ ‘Aquele com a macaca, aquele nós
acaba com ele só com o pé, nós acaba com eles, com o Brasil, os brasileiros são tudo
miudinho’. Aí quando topavam com o Brasil ‘mas não é que os macacos são valentes,
eles avançam mesmo, um ta caído, mas já alcança aquele’ [...] pois é, pois é. É a
macacada do Brasil é danada, eles avançam mesmo, avança e avança, era o que
avançava mais! Era o que avançava mais e sempre caia menos13.
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Entrevista realizada no dia 28 de Setembro de 2013, em Várzea Grande-MT, na residência do senhor Gabriel
Ferreira de Jesus.
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Entrevista realizada por Alessandro Rosa, em 12 de novembro de 2009, em Curitiba – PR, com o ex-
combatente da FEB Italo Conti.
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Conclusão
Consideramos a importância dos estudos que estão sendo realizados sobre a reinserção social
dos veteranos de Guerra da FEB, para o reconhecimento e manutenção de uma memória que estaria
fadada ao falecimento, tendo em vista a idade avançada dos febianos ainda vivos. Estes trabalhos têm
a função ainda de tornar público os problemas, gerados pelo desinteresse do Estado, em cumprir sua
função quanto à proteção social de sua população e o desrespeito pela cidadania.
Referências bibliográfica
MORAES, João Baptista Mascarenhas de. A FEB pelo seu comandante. Rio de Janeiro:
Biblioteca do Exército, 2005.