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INTERVENÇÃO UERJ

CRÍTICA, CRISE E BARBÁRIE

1. Introdução:
a) Relevância das noções de crise e barbárie para se pensar o presente;
b) Algumas características do pensamento crítico da chamada Escola de Frankfurt;
c) Apresentação da estrutura da fala;

2. Crise como marca de nosso tempo histórico


a) Apresentação introdutória à noção de crise;
b) O que significa pensar em tempos de crise?

3. Modelos da tradição crítica (foco na tradição crítica brasileira)


a) Tradição crítica frankfurtiana: primeira geração, segunda geração e terceira geração, uma história
descontínua;
b) Tradição crítica brasileira: o modelo da formação (Caio Prado Jr./A. Candido), o da deformação
constitutiva (Chico de Oliveira/Roberto Schwarz) e o do colapso da forma (Paulo Arantes/Marildo
Menegat);
c) Uma teoria crítica periférica é possível? (Jorge Coelho Soares/Stefan Gandler).

4. Alguns efeitos de barbárie da crise atual


a) A necropolítica;
b) O mal-estar na civilização periférica;
c) O regresso do político e a desdemocratização;
d) A persistência da utopia;
Introdução

Talvez há dez anos atrás fosse mais trabalhoso justificar o tema da crise e da barbárie como chaves de
leitura de nosso mundo. Mas hoje, diante do quadro mundial e nacional, a tarefa não é tão difícil.
Alguns fenômenos contemporâneos, dos quais tratarei mais ao final da fala, dão o tom: primeiro, a
existência de uma sociedade que se caracteriza não mais pela produção de corpos dóceis e úteis, mas pelo
massacre dos corpos; processos de formação e produção subjetiva cujo objetivo é denegar o conteúdo objetivo
da crise; o processo de desdemocratização, no interior do qual a democracia vai ruindo pouco a pouco não por
forças externas somente, mas sobretudo por forças internas.
São três tendências históricas regressivas que marcam o nosso tempo. São três tendências que
demonstram que a história nem sempre anda para frente. E isso tem um peso geracional que me parece muito
marcante para nós mais jovens. Por exemplo, no terreno da educação. Antes, a educação era pensada e
funcionalizada como espécie de grande porta de acesso dos indivíduos ao mercado de trabalho. Hoje (há um
documentário sobre isso chamado “Torre de Marfim”), parece que vivemos uma era de “educação para o
desemprego”.
Podemos ver essa regressão social atual por meio dessa desintegração da promessa
socializadora/civilizatória da educação, como engate entre a vida individual privada e a autorrealização
pública. Eventos mais amplos como a crise americana de 2008, o junho de 2013 e as jornadas de revolta que
sacudiram o mundo entre esses dois eventos mostram um mundo em turbulência.
Divido essa fala nos seguintes momentos:

Primeiro vou falar um pouco sobre algumas teorias da crise, afim de definir de maneira clara o que é
isso que estou chamando de crise e porque a considero como a marca de nosso tempo.
Segundo vou refletir acerca da tradição crítica, ou seja, de um campo amplo de debates, reflexão e
pesquisa em cujo centro estava a noção de crise.
Terceiro, por fim, vou dimensionar alguns efeitos de barbárie na contemporaneidade.

Por que a teoria crítica? Podemos definir a teoria crítica como uma experiência intelectual e
prática em tempos de regressão social. De certo modo, quanto mais complicada a coisa fica, mais
vitalidade tem a teoria crítica. Não é por acaso que nas últimas semanas, quando se voltou a falar em
combater o fascismo, nomes como Reich, Fromm e Adorno reapareceram em artigos de jornais, vídeos no
YouTube etc.
1. A crise como marca de nosso tempo histórico

É muito comum fragmentar a crise: falamos com muita desenvoltura em crise ambiental, crise moral,
crise institucional, crise política etc. Também falamos em crise econômica, mas pouco se esclarece o que é
crise.
Aliás, as crises aparecem como os terremotos, nós não conseguimos prever, nem controlar, e, de
repente, somos todos arrastados. Afinal de contas, quem imaginaria, por exemplo, a irrupção social do Junho
de 2013 depois de anos de crescimento econômico e legitimidade política?

Isso significa que, em primeiro lugar, as crises são sintomas de nossa formação social, no sentido de
que demonstram as contradições presentes em nossa sociedade. Existem processos de alienação em nossa
sociedade, de tal modo que mesmo que sejamos nós que a construímos, nem sempre ela está a nosso favor.
A crise demarca o nosso tempo atual porque, nele, parece que não podemos fazer nada para
frear determinado movimento de regressão. A exemplo da crise ambiental e do aquecimento global,
onde, diferente de gerações passadas, temos a certeza de que nossos filhos viverão tempos piores do que
o nossos.

Em segundo lugar, as crises devem ser pensadas a partir da categoria de totalidade e historicidade
(Wallerstein, Arrighi, Hobsbawm). As crises são fenômenos totais, atinge um campo amplo. Estes autores
partem do pressuposto de que o capitalismo é histórico, de tal modo que ele não é eterno. Ele teria sua época
de ascensão, de consolidação e de colapso.
Portanto, digo que a crise é a marca de nosso tempo histórico porque já não estamos na fase de
ascensão e consolidação do capitalismo. A crise demarca, então, uma nova etapa histórica.

Por exemplo, o historiador Eric Hobsbawm, que escreveu sobre a modernidade, é conhecido por sua
trilogia: A Era das Revoluções, A Era do Capital e a Era dos Extremos. Essa Era dos Extremos ele divide
entre: primeiro a Era da Catástrofe (1914-1945), a Era de Ouro (1945-1973) e a última, que é a nossa, ele não
tem um nome definido, chama de “Desmoronamento” ou “Décadas de Crise”.

Em terceiro lugar, a crise é marca de nosso tempo porque estamos diante de fenômenos de difícil
compreensão, que parecem estar para além de nossa capacidade cognitiva de entendimento.
Por exemplo, diante do fenômeno do fascismo, a redução dele a um acontecimento da ordem da política
institucional não era suficiente para um cara como Reich ou Adorno. Para entender o fascismo era necessário
ir além da teoria política por meio da psicanálise. Essa aposta na interdisciplinaridade me parece ser um bom
antídoto para a crise.
2. Modelos da tradição crítica

Tendo em vista o atual momento, eu gostaria de me concentrar aqui na tradição crítica brasileira.
Porque, de certo modo, o espanto do mundo na década de 1990 com determinados fenômenos nós
conhecíamos há muito tempo. Paulo Arantes costuma falar que, contrariando as apostas otimistas diante da
globalização, não foi o Brasil que tendeu ao centro, mas o centro que se brasilianizou (uma brasilianização do
mundo). Agora, não é somente nas cidades brasileiras que é possível ver gente despejada, desempregada sem
perspectiva de emprego, pelas ruas, mortas pelas polícias etc., mas em todo o mundo.

Modelo da formação (1930-1964): preocupação central com a formação brasileira, a ideia de que
temos uma tarefa futura a realizar, ou seja, que estamos em processo de desenvolvimento. Pode ser identificada
com o que se chamou de “nacional-desenvolvimentismo”

- Objetiva: Caio Prado Jr. em seu livro “Formação do Brasil Contemporâneo” lança as cartas dessa
tradição. Para ele, o impulso civilizatório do Brasil teria sido desde fora. Ao contrário de um país onde ocorre
o desenvolvimento das forças produtivas e das formas de consciência, que vão levar a revoluções, nós tivemos
um processo postiço.
Grande exemplo disso é que o nosso Iluminismo se deu porque o nosso colonizador fugiu de Napoleão
e veio parar por aqui.
-Subjetiva: Antonio Cândido tem um ensaio chamado “Dialética da Malandragem” onde ele tenta
pensar qual seria a contribuição do Brasil para a história do mundo. Qual é a especificidade do ser brasileiro?
Ele vai tomar o exemplo o protagonista do livro “Memória de um sargento de milícias” (1854), o Leonardo
Filho, como tipo do ser brasileiro. O Leonardo é “filho de uma piscadela e de um beliscão” dentro de um navio
que vinha de Portugal ao Brasil. Um filho de um flerte e não de um amor consolidado etc. Depois de tantas
peripécias, ele se torna sargento de polícia.
Uma das conclusões que Antônio Candido vai tirar daí é que a norma, no Brasil, não é tão rígida quanto
foi, p. ex., nos Estados Unidos. O que permitiria a produção, entre nós, de uma sociedade mais maleável,
menos opressora.

Modelo da deformação constitutiva (1964-1989): já não se trata mais de uma tarefa de formação
nacional a ser cumprida, mas de uma forma social necessariamente truncada, deformada.

- Objetiva: Francisco de Oliveira. Ele faz uma comparação do Brasil com um Ornitorrinco. Porque o
Ornitorrinco tem rabo de réptil, mamas sem peito, esporão venenoso, bico de pato e põe ovos. Portanto, ele é
a contestação da evolução. A partir daí, Chico de Oliveira menciona como o Brasil é subdesenvolvido, mas
esse não seria um estágio a ser superado, mas a forma periférica pela qual o Brasil se inscreve no sistema
mundial. Ele precisa funcionalizar o atraso (espaços sociais semi-urbanizados).
- Subjetiva: Num texto chamado “As ideias fora do lugar”, Schwarz comenta também como no terreno
mais subjetivo e cultural, o Brasil também não deixa o passado para trás. No exemplo da escravidão, as ideias
iluministas chegavam ao Brasil ao mesmo tempo que a escravidão continuava. Além disso, depois da
escravidão, as profissões liberais necessitavam de favores para poderem se constituir.
Além disso, Schwarz faz uma discussão direta com a questão da malandragem. Em dois tempos:
primeiro que a ditadura militar teria sido uma malandragem (a suspensão da norma em nome da efetivação da
norma). Em segundo lugar, para ele, ela já não se constitui mais como espiral positivo de sociabilização, mas
como competição bárbara entre os de baixo (Cidade de Deus).

Modelo do colapso da forma (1989-hoje): já não existe mais nenhum processo de desenvolvimento
a acontecer, tampouco alguma forma deformada estável. O que ocorre é um processo de desfazimento da
forma social brasileira.

Paulo Arantes e Marildo Menegat: ambos estão interessados em pensar esse mundo em ruínas. O
Marildo, em especial, chama os últimos anos de “gestão da barbárie” (onde reconhecemos que a transformação
social é impossível e passamos a gerir a destruição). Onde os governos precisam saber controlar a crise, tirar
proveito dela etc.
4. Alguns efeitos de barbárie

a) Necropolítica (Achille Mbembe): da biopolítica (produção dos corpos dóceis politicamente e


úteis produtivamente) à necropolítica (massacre dos corpos vivos). A necropolítica seria a gestão
de populações supérfluas no quadro do capitalismo em crise estrutural.

b) Mal-estar na civilização periférica: eu gostaria de partir de dois textos do professor Jorge – um


chamado “Mal-estar na modernidade tardia globalizada” (1998) e “A crise da sociedade
contemporânea e o sofrimento psíquico” (2000) – onde ele se questiona qual a relação entre crises
e mal-estar, isto é, de que maneira contextos sociais amplos podem afetar os modos de sofrimento
individuais.
Exemplo: ao que me consta, somente Sérgio Bianchi e Jorge estavam bastante atentos às ligações
entre crise e subjetividade.

O que me incomodava à época era porque o discurso conservador se apresentava comumente de


maneira violenta. De onde viria essa violência? E também, mais profundamente, como se dava o
processo de “adesão psíquica à barbárie”. Pequeno resumo:

a) a realidade histórica e impessoal da crise é substituída pela vontade de sujeitos coletivos que
deliberadamente a produzem;
b) com isso, é produzido uma espécie de fetiche cujo objetivo é o de manter incólume o capitalismo,
neste caso em questão é a natureza da crise que é denegada. Seu produto é a fantasia social
(ZIZEK, 1992), isto é, a construção de uma sociedade que exista, que não seja antagonicamente
dividida, em que a relação entre suas diferentes partes seja orgânica e complementar.
c) sua manobra é, em suma, retirar a falha sistêmica do interior de sua dinâmica autocontraditória
para deslocá-la para determinado grupo social, isto é, a negatividade constitutiva do social assume
existência positiva empírica por meio do fetiche. Em outras palavras, a crise interna do capitalismo
(de seu próprio dinamismo) se converte numa crise externa (fruto de ações alheias ao seu
dinamismo).
d) a consequência inevitável disso me parece ser a ação violenta contra os grupos responsáveis. Ou
seja, ocorre uma mobilização do mal-estar em direção à sua supressão na forma de execução do outro
como elemento dissolvente da comunidade e da ordem social.

c) Desdemocratização e regresso do político

Na história do século XX, a democracia se colocou contra o totalitarismo. Uma luta travada de maneira
externa, pois ambos eram antagônicos. No entanto, tudo se passa como se, hoje em dia, a democracia
estivesse ruindo por dentro.
Para pensar esse problema, existe uma certa tradição que pode ser chamada de pensamento político
pós-fundacional. Eu gostaria de me basear aqui somente na Chantal Mouffe e no Ernesto Laclau.
Ambos tem uma concepção dissociativa do político, ou seja, por um lado, o político tem a ver com a
dimensão de hostilidade e de antagonismo, de conflito. A política, por outro lado, seria uma reflexão
sobre como se organiza a vida coletiva. A grande aposta liberal, segundo ambos, é de submeter o
político (conflito) à política (consenso).
Os últimos acontecimentos parece nos ter colocado a seguinte questão: como é possível pensar a
política quando o horizonte do consenso se desfez?
Considerações finais: a utopia
.A consciência utópica do fracasso.

No Jornal “O Globo”, na edição do dia 25 de Outubro, há uma matéria cujo título é “México tem
rede de solidariedade a imigrantes”. Trata-se da caravana de imigrantes que já percorreu 800
quilômetros – de San Pedro Sula, em Honduras, passando pela Guatemala, encaminhando-se por
dentro do México. Heloísa Traiano, autora do texto, comenta que eles contam com uma rede de
organizações que se mobilizam para dar lhes dar auxílio: “um deles é San Cristóbal de las Casas,
também no Sul”.

Embora a autora do artigo não mencione, sabemos que San Cristóbal de Las Casas é a cidade onde,
em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional fez sua primeira aparição pública e que, desde
então, procura contatos e diálogos com outros movimentos e com o mundo inteiro. Não para que
todos se tornem zapatistas, mas para que transformem o mundo. Não é difícil notar que uma parte
dessa ajuda aos imigrantes veio deles.

Mas a coragem e a persistência da utopia é assim: silenciosa. Barulhento é o latido opressor de


Trump. As chances de que os imigrantes tenham um destino feliz são baixíssimas (a esse respeito,
vejam um filme chamado “La Jaula de Oro” [2013], pois ele mostra bem como, mesmo quando
conseguem, os imigrantes vivem uma vida miserável). Embora essa chance do fracasso seja grande,
nada impede a solidariedade zapatista. Nem a solidariedade que várias cidades mexicanas têm dado.
Porque o México não é uma polícia migratória dos Estados Unidos. E porque eles já perceberam,
como bem o sabiam Kafka, Benjamin e Adorno, que só há esperança em nome dos desesperançados.

A nossa luta, no Brasil, pode se inspirar nessa consciência utópica do fracasso. Tudo indica que a luz
que vem no fim do túnel é um trem em nossa direção. Mas sabemos que não dá para voltar atrás.
Sabemos que devemos caminhar em frente, juntos: “Marx achava que as revoluções são as
locomotivas da história, mas talvez a coisa seja um pouco diferente. Talvez a revolução seja a
humanidade puxando os freios para parar o trem”. (Walter Benjamin).

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