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revisão

Regulação do metabolismo de
glicose e ácido graxo no músculo
esquelético durante exercício físico
Regulation of glucose and fatty acid metabolism
in skeletal muscle during contraction

Leonardo R. Silveira1,2, Carlos Hermano da Justa Pinheiro3,


Claudio C. Zoppi4, Sandro M. Hirabara5, Kaio F. Vitzel3, Reinaldo A. Bassit3,
Carol G. Leandro6, Marina R. Barbosa1, Igor H. Sampaio2, Iracema H. P. Melo6,
Jarlei Fiamoncini3, Everardo M. Carneiro4, Rui Curi3

SUMÁRIO 1
Departamento de Bioquímica e
Imunologia, Faculdade de Medicina
O ciclo glicose-ácido graxo explica a preferência do tecido muscular pelos ácidos graxos duran- de Ribeirão Preto (FMRP-USP),
te atividade moderada de longa duração. Em contraste, durante o exercício de alta intensidade, Ribeirão Preto, SP, Brasil
há aumento na disponibilidade e na taxa de oxidação de glicose. A produção de espécies rea-
2
Escola de Educação Física e
Esporte de Ribeirão Preto, USP,
tivas de oxigênio (EROs) durante a atividade muscular sugere que o balanço redox intracelu- Ribeirão Preto, SP, Brasil
lar é importante na regulação do metabolismo de lipídios/carboidratos. As EROs diminuem a 3
Departamento de Fisiologia e
atividade do ciclo de Krebs e aumentam a atividade da proteína desacopladora mitocondrial. Biofísica, Instituto de Ciências
Biomédicas, Universidade
O efeito oposto é esperado durante a atividade moderada. Assim, as questões levantadas nes- de São Paulo (ICB-USP),
ta revisão são: Por que o músculo esquelético utiliza preferencialmente os lipídios no estado São Paulo, SP, Brasil
basal e de atividade moderada? Por que o ciclo glicose-ácido graxo falha em exercer seus
4
Departamento de Anatomia,
Biologia Celular, Fisiologia e
efeitos durante o exercício intenso? Como o músculo esquelético regula o metabolismo de Biofísica, Instituto de Biologia,
lipídios e carboidratos em regime envolvendo o ciclo contração-relaxamento. Arq Bras Endocrinol Universidade Estadual de Campinas
Metab. 2011;55(5):303-13 (Unicamp), Campinas, SP, Brasil
5
Faculdade de Educação Física,
Descritores Universidade Cruzeiro do Sul
Metabolismo mitocondrial; exercício prolongado; ciclo glicose-ácido graxo (Unicsul), São Paulo, SP, Brasil
6
Núcleo de Educação Física
e Ciências do Esporte,
SUMMARY Centro Acadêmico de
Vitória (CAV), Universidade
The glucose-fatty acid cycle explains the preference for fatty acid during moderate and long Federal de Pernambuco
duration physical exercise. In contrast, there is a high glucose availability and oxidation rate (UFPE), Recife, PE, Brasil
in response to intense physical exercise. The reactive oxygen species (ROS) production during
physical exercise suggests that the redox balance is important to regulate of lipids/carbohydrate Correspondence to:
Leonardo R. Silveira
metabolism. ROS reduces the activity of the Krebs cycle, and increases the activity of mitochon-
Escola de Educação Física e
drial uncoupling proteins. The opposite effects happen during moderate physical activity. Thus, Esporte de Ribeirão Preto,
some issues is highlighted in the present review: Why does skeletal muscle prefer lipids in the Universidade de São Paulo
Av. Bandeirantes, 3900, – 14040-901,
basal and during moderate physical activity? Why does glucose-fatty acid fail to carry out their Ribeirão Preto, RS, Brasil
effects during intense physical exercise? How skeletal muscles regulate the lipids and carbo- lrs@icb.usp.br
hydrate metabolism during the contraction-relaxation cycle? Arq Bras Endocrinol Metab. 2011;55(5):303-13 Recebido em 17/Jan/2011
Keywords Aceito em 12/Maio/2011

Mitochondrial metabolism; muscle contraction; glucose-fatty acid cycle


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INTRODUÇÃO de lipídios, os músculos esqueléticos utilizam predomi-

H á 40 anos, Randle e cols. (1) propuseram a exis-


tência de uma competição entre glicose e ácidos
graxos (AG) como substratos para a síntese de ATP no
nantemente AG para a síntese e obtenção de ATP. Em
contraste, sob elevada disponibilidade de carboidratos,
utilizam predominantemente glicose. A questão que sur-
músculo esquelético, cardíaco e adipócitos. Nesse pro- ge é qual a importância fisiológica dessa regulação entre
cesso, foi demonstrado que, sob elevada disponibilidade glicose e ácidos graxos? Podemos encontrar uma respos-

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

ta para essa pergunta entendendo a utilização de glicose muscular. Evidência de produção elevada de espécies
e ácidos graxos como um processo evolutivo do homem rea­tivas de oxigênio (EROs) durante a atividade muscu-
para sobreviver e se adaptar em condições de escassez de lar intensa (8) sugere que o balanço redox intracelular
alimento. Os carboidratos constituem uma valiosa fonte pode exercer papel importante na regulação do metabo-
de energia ao nosso organismo. Porém, a capacidade de lismo de lipídios/carboidratos durante o exercício. Em
estoque desse valioso substrato é limitada, fazendo-se concentração intracelular elevada, as EROs diminuem a
necessária a busca por estratégias de economia e arma- atividade do ciclo de Krebs, favorecendo o metabolis-
zenamento de energia na forma de carboidrato. O re- mo de carboidratos (9,10). Nessa condição, há aumen-
querimento diário de glicose por esses tecidos é da or- to da atividade da proteína desacopladora mitocondrial
dem de 300 g/dia, ao passo que a capacidade do fígado, (UCP3) (6). O efeito oposto é esperado durante a ati-
principal reservatório de carboidratos, em armazenar vidade moderada, quando a oxidação de ácidos graxos
glicogênio é de cerca de 100 g/dia em adultos (2). Por é predominante. Portanto, as principais questões levan-
outro lado, as reservas de lipídios em nosso organismo tadas nessa revisão são: a) Por que o músculo esque-
são inúmeras vezes superiores àquelas de carboidratos, lético utiliza preferencialmente os lipídios em relação
o que explicaria a preferência do nosso organismo pelos aos carboidratos no estado basal e de atividade leve a
lipídios em condições basais e principalmente de jejum, moderada? b) Por que o ciclo glicose-ácido graxo falha
aumentando a disponibilidade de glicose para outros te- em exercer seus efeitos durante o exercício intenso? c)
cidos (sistema nervoso, sanguíneo e imunológico), os Como o músculo esquelético regula o metabolismo de
quais são essencialmente mantidos à custa desse subs- lipídios e carboidratos durante contrações?
trato (3). A importância fisiológica desse mecanismo
conhecido como ciclo glicose-ácido graxo, portanto,
consiste não somente no aumento do fornecimento de
O ciclo glicose-ácido graxo durante a
energia aos tecidos, mas principalmente na economia da atividade muscular moderada
utilização dos estoques limitados de glicose. Está bem estabelecido que os ácidos graxos e os car-
Esse conceito ajuda a esclarecer a preferência do teci- boidratos são os principais substratos para a produção
do muscular pelos ácidos graxos durante atividade mo- de energia muscular (4-6). As principais vias metabó-
derada mantida por longo período. Nessas condições, a licas envolvidas nesse processo, glicólise, ciclo do áci-
lipólise do tecido adiposo periférico é favorecida aumen- do tricarboxílico (CAT) e b-oxidação oxidam glicose e
tando a disponibilidade de ácidos graxos para a captação ácidos graxos, gerando NADH e FADH2. Embora os
e utilização pelo músculo esquelético. Caso essa regula- aminoácidos também sejam oxidados nesse processo,
ção não ocorra, os estoques de glicogênio podem ser de- sua contribuição é baixa comparada a dos carboidratos
pletados precocemente, comprometendo a performance e ácidos graxos (11). Em acordo com a teoria quimios­
muscular (4,5). Em contraste, durante o exercício de mótica de Mitchell, os elétrons dessas moléculas são
alta intensidade mantido por curto intervalo de tempo, transportados através da cadeia respiratória, reduzindo
há aumento na disponibilidade e na taxa de oxidação de a molécula de O2 a H2O. A produção oxidativa de ATP
glicose, seguido de redução na disponibilidade e na taxa está acoplada ao transporte de prótons da matriz mito-
de oxidação de lipídios (6). As observações acima suge- condrial para o espaço intermembrana, proporcionan-
rem que, durante contrações de intensidade leve para do a energia (DmH+) necessária para a síntese oxidativa
moderada, os ácidos graxos são mobilizados do tecido de ATP (12). Por outro lado, durante a produção de
adiposo (periférico e intramuscular) através da lipólise e energia anaeróbia, a glicólise é a principal via de síntese
utilizados pelo músculo esquelético. Durante o exercí- de ATP, seguida do aumento da produção de lactato/
cio de alta intensidade, a liberação dos AG do tecido adi- H+ (11) (Figura 1). O processo de contração muscu-
poso é marcadamente diminuída, seguida por elevação lar é regulado de forma que a produção de energia é
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na disponibilidade e na oxidação de glicose (7). Embora proporcional à demanda metabólica imposta pela ativi-
esteja bem estabelecida, pelo ciclo glicose-ácido graxo, dade muscular. Porém, o sinal que regula a preferência
a predominância dos lipídios durante o exercício leve/ do músculo esquelético por glicose ou ácidos graxos é
moderado e dos carboidratos durante o exercício inten- complexo e pode ser determinado por diferentes fato-
so, ainda é pouco conhecido o mecanismo que regula a res, incluindo dieta, nível de treinamento, intensidade
preferência desses dois substratos durante a contração e duração do exercício. Por exemplo, agudamente uma

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

elevada disponibilidade de AG (dieta hiperlipídica) em aproximadamente 120 h. Em contraste, para a mesma


sujeitos normais, durante o repouso, aumenta a oxida- condição, os carboidratos são estimados para propor-
ção de lipídios diminuindo a oxidação de carboidratos. cionarem energia para contração muscular por somente
O efeito oposto é observado quando a disponibilidade ~ 90 min de exercício (3), podendo alcançar valores um
de carboidratos é aumentada (13). pouco mais elevados em atletas de resistência.
Ao contrário das reservas de carboidratos, as reser- Os ácidos graxos oxidados no músculo esquelético
vas de lipídios em humanos são ilimitadas proporcio- durante o exercício são derivados principalmente dos
nando maior eficiência na produção final de energia em triacilglicerídeos do tecido adiposo e dos depósitos intra-
comparação aos carboidratos. A densidade energética celulares do tecido muscular (14). A lipólise nesses teci-
dos lipídios é aproximadamente 10 vezes maior a que dos é regulada pela lipase sensível a hormônios, ativada
dos carboidratos (i.e., 38 kJ.g-1 vs 4.2 kJ.g-1), enquan- pela estimulação beta-adrenérgica durante o exercício,
to o peso relativo como estoque de energia é menor particularmente pelas catecolaminas (15). Romijn e cols.
(3). Isso significa que, para estocarmos uma quantida- (16) examinaram a contribuição dos lipídios na produ-
de equivalente de energia fornecida pela gordura como ção de energia durante 30 min de exercício a 25%, 65% e
glicogênio, o estoque de energia teria de ser cerca de 10 85% do consumo máximo de O2 (VO2máx) em indivíduos
vezes mais pesado, o que seria crítico para a performan- treinados e em jejum. Foi demonstrado que a oxidação
ce durante a contração muscular. de lipídios aumenta em resposta à intensidade de exercí-
A eficiência dos ácidos graxos como substrato ener- cio, alcançando o pico em aproximadamente 65% VO2máx
gético foi bem ilustrada em pássaros migratórios, os (Figura 2). Nessas condições, a quantidade absoluta de
quais foram capazes de voar aproximadamente 1.500 ácidos graxos oxidados aumenta na mesma proporção
milhas durante 60 h a 40,2 km/h. Análises de biópsia em que o tempo de exercício é elevado (2,4,5). Esse au-
mostraram que os índices de massa adiposa nessas es- mento na oxidação dos ácidos graxos induz uma regu-
pécies diminuíram em aproximadamente sete vezes (de lação no metabolismo de carboidrato, reduzindo a oxi-
4,0 para 0,6 U após o esforço) (11). Em humanos, es- dação de glicose. Costill e cols. (17) foram os primeiros
tima-se que os estoques de triacilgliceróis são suficien- a demonstrar que, em comparação a indivíduos contro-
tes para sustentar a contração muscular moderada por les, a ingestão de lipídios combinada à administração de
heparina (para liberação das lípases de lipoproteínas do
endotélio), antes do exercício, elevou os níveis de ácidos
graxos circulantes diminuindo a glicogenólise em apro-
ximadamente 40% durante 30 min de corrida moderada.
A oxidação elevada de ácidos graxos, portanto, pode
substancialmente reduzir a utilização de carboidrato.
Esse conceito foi proposto originalmente por Rand-
le e cols. em 1963 e definido como ciclo glicose-ácido
graxo (1). O mecanismo que suporta esse conceito está
associado a uma razão elevada das concentrações de

25% 65% 85%

13% 9% 10%

13% 38% 23% 18%


74% 60%
12% 30%
30%
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Glicogênio muscular Ácidos graxos plasmáticos


Figura 1. Metabolismo de glicose, de ácidos graxos e produção de energia Triglicerídio muscular Glicose plasmática
no músculo esquelético. As abreviaturas são: AG: ácido graxo; TrAG:
transportador de ácido graxo; Glut: transportador de glicose; CPT-I: Figura 2. Efeito da intensidade (VO2máx,%) de exercício no consumo de
carnitina palmitoiltransferase I; CPT-II: carnitina palmitoiltransferase II; CT: glicose e ácidos graxos plasmáticos, glicogênio e triglicerídio muscular.
transportador de carnitina; β-oxid: β-oxidação; CAT: ciclo do ácido Os valores (%) são relativos ao consumo máximo de energia (J/kg/min).
tricarboxílico. Modificado Romijn e cols. (16).

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

acetil-CoA/CoA-SH como consequência de uma oxi- xo no músculo esquelético em atividade. Embora não
dação elevada de lipídios seguida por um aumento no seja novidade, maratonistas possuem um excepcional
conteúdo intracelular de citrato e glicose-6-P (G6-P). VO2máx variando entre 70 e 85 mL.kg-1.min-1. Curio-
O acúmulo de acetil-CoA inibe a enzima piruvato desi- samente, esses atletas percorrem uma maratona em
drogenase (PDH), via ativação da PDH quinase, a enzi- intensidades abaixo do VO2máx, como observado em
ma responsável pela fosforilação e inativação do comple- eventos de duração superior a 10-15 min. A estimativa
xo PDH, reduzindo a oferta de piruvato (glicose) como é de que muitos dos 42 km de uma maratona sejam
substrato oxidativo. De modo sinérgico, o conteúdo ele- percorridos em aproximadamente 75%-85% do VO2máx.
vado de citrato inibe a enzima reguladora da via glicolíti- Desse total, 10 km são percorridos entre 90%-100% do
ca fosfofrutoquinase (PFK). Esse efeito aumenta a razão VO2máx e aproximadamente 5 km, muito próximos do
G6-P/F1,6-bifosfato inibindo a hexoquinase, a enzima VO2máx (21). Embora 15 km sejam percorridos de for-
responsável pela captação e fosforilação de glicose, con- ma intensa, a maioria do percurso é realizada em inten-
sequentemente reduzindo a disponibilidade intracelular sidades abaixo do VO2máx, sugerindo a participação do
de glicose como substrato (Figura 3). Apesar do papel ciclo glicose-ácido graxo. Durante esse tipo de evento,
central do citrato nesse processo, atualmente um grande a oxidação de glicose e ácidos graxos é estimada para
número de estudos tem falhado em demonstrar esse efei- ocorrer numa razão de 7:3; para cada sete moléculas
to no músculo esquelético durante o exercício (18-20). de glicose três moléculas de ácido graxo são oxidadas
Igualmente, o acúmulo de G6-P proposto originalmen- (2). Nessas condições, a oxidação de lipídios favorece a
te pelo ciclo glicose-ácido graxo tem sido questionado. continuidade da atividade muscular por longo período.
Roden e cols. (20) examinaram o efeito da disponibili- Caso isso não ocorra, os estoques de glicogênio são ra-
dade elevada de ácidos graxos na resistência à insulina pidamente depletados comprometendo a continuidade
em músculo esquelético. Os autores demonstraram que da atividade. Em 1925, Hill (22) observou, pela pri-
a redução da captação de glicose foi acompanhada de meira vez, a relação inversa entre distância percorrida
um conteúdo de G6-P reduzido. Esses achados são con- e velocidade, o que mais tarde foi descrito por Costill
sistentes com as observações em pacientes diabéticos tipo 2 (23) como relação inversa entre distância percorrida e
(19). Apesar das discrepâncias entre os estudos mais re- concentração de lactato sanguíneo. Embora aparente-
centes e os achados de Randle e cols. (1), há consenso mente simples, esses achados refletem a importância do
do efeito inibitório da disponibilidade elevada de ácidos ciclo glicose-ácido graxo durante atividades de longa
graxos no metabolismo de glicose. duração. Porém, é importante observar que a taxa rela-
A prova de maratona é um modelo clássico de re- tiva de oxidação de glicose é 2,3 vezes maior (7:3) que
presentação da importância do ciclo glicose-ácido gra- a de lipídio, demonstrando a importância da entrada de
carbonos no ciclo do ácido tricarboxílico (anaplerose) à
custa de carboidrato. Geralmente, esse aumento ocorre
Glicose
na forma de oxalacetato, a-cetoglutarato e malato, con-
AGL
AGT TG
lactato
sequentemente aumentando a síntese de energia oxida-
citosol AG Glicose-6P
-6P
fosforilase
Glicogênio tiva (24), o que explica os 15 km realizados de forma
(-)
acil-
acil-CoA
Frutose-6P
PFK
(-)
(-)
intensa. Atletas de elite (nível olímpico) podem alcan-
(- )
çar uma razão ainda maior entre carboidrato/lipídio,
Frutose-1,6-P2
(-)
CP ATP

isto é, usam predominantemente carboidratos durante


LDH
(+) Piruvato Lactato/H+
CPTI
translocase

CPTII Piruvato desidrogenase o exercício de longa duração, como demonstrado pelo


ATP

acil-CoA
β-oxidação PC
Acetil-CoA (-) quociente respiratório (QR) (25). Esses atletas conse-
oxaloacetato citrato guem manter-se em intensidades próximas de 90% do
malato isocitrato
(-) VO2máx, confirmando a predominância da utilização de
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C. Krebs
Matriz fumarato ISTD
mitocondrial succinato
Succinil-CoA
2-oxoglutarato
carboidratos (25). Nesse caso, terão maior sucesso em
provas de maratona aqueles atletas que conseguirem
manter uma elevada taxa de oxidação de glicose por
Figura 3. Efeito do ciclo glicose-ácido graxo na redução do metabolismo
unidade de tempo (potência aeróbia). Um quadro se-
de glicose. AGL: ácido graxo livre; TAG: transportador de ácidos graxos;
TG: transportador de glicose; HK: hexoquinase; PFK: fosfofrutoquinase; melhante ao que é esperado em provas de menor dura-
CPT: carnitina palmitoiltransferase; PDH: piruvato desidrogenase (1). ção (meia-maratona e corridas de 10.000 a 15.000 m).

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

Quando comparados os recordes mundiais em provas para suprir a demanda metabólica é preferencialmente
masculinas de maratona (42,2 km em 02:04:55s) e mantida pela oxidação de carboidratos. Nessas condi-
meia-maratona (21,1 km em 00:58:55s), observamos ções, as concentrações de ácidos graxos plasmáticos são
uma velocidade de 5,63 e 5,96 m/s, respectivamente. baixas sugerindo que o turnover (liberação/oxidação)
Uma diferença de apenas 6% sugerindo que um VO2máx deve ser alto nos adipócitos. Porém, parte dos ácidos
elevado pode ser determinante na manutenção da taxa graxos liberados pela lipólise não é direcionada para
elevada de oxidação de carboidrato durante uma mara- oxidação no músculo esquelético, provavelmente em
tona. No entanto, uma alta capacidade de estocar gli- decorrência da reesterificação ou limitação em algu-
cogênio associada a uma elevada eficiência mecânica é ma etapa do transporte de ácidos graxos em direção à
decisiva para a performance desses atletas (21,25). oxidação, incluindo alteração do equilíbrio ácido-base
A capacidade do músculo esquelético em sustentar a intracelular (pH), modulação alostérica e aumento da
produção de energia oxidativa é altamente dependente produção de espécies reativas de oxigênio (4-6).
da atividade mitocondrial. Fink e cols. (26) demons- Romijn e cols. (16), comparando o efeito de dife-
traram que a atividade máxima da enzima succinato rentes intensidades de esforço na lipólise, curiosamente
desidrogenase (SDH) determinada em músculo gas- observaram que, apesar de uma menor concentração de
trocnêmio de maratonistas de elite foi substancialmente AGL durante a atividade muscular intensa, após o tér-
maior quando comparada a de atletas de meia-distância mino do exercício a 85% do VO2máx, a lipólise aumenta
e destreinados (21,6; 17,7 e 6,4 μmol/μg, respectiva- abruptamente e, em menor proporção, nas intensidades
mente). As consequências fisiológicas dessas alterações de 65% e 25% do VO2máx. Esse aumento não foi associado
podem estar associadas a maior VO2, maior oxidação de ao aumento da lipólise após o exercício, mas sim a uma
lipídios, redução da glicogenólise, aumento na capaci- maior liberação dos AGL do tecido adiposo. Durante o
dade de manter a produção de lactato em estado estável exercício intenso, há forte vasoconstrição periférica im-
e aumento na capacidade de sustentar a produção de posta pela maior ativação do sistema nervoso simpático,
energia oxidativa (resistência aeróbia) (27). consequentemente aumentando a vasoconstrição peri-
Uma possível explicação para esse fenômeno seria o férica e dificultando a liberação dos ácidos graxos para
maior volume de treinamento realizado por esses atletas a circulação sistêmica. Isso sugere que a disponibilidade
de fundo, 161 comparado a 121 km/semana em atle- limitada de ácidos graxos, durante a atividade muscu-
tas de meia-distância (26). Esse mecanismo é facilmente lar intensa, previne o aumento e a oxidação dos ácidos
percebido quando comparamos a oxidação de lipídios graxos plasmáticos, reduzindo sua taxa de oxidação (7).
e carboidratos em indivíduos sedentários e atletas. In- Interessantemente, quando a disponibilidade de ácidos
divíduos sedentários dependem predominantemente de graxos foi mantida artificialmente pela infusão de ácidos
carboidratos durante a realização de atividade física mo- graxos de cadeia longa durante o exercício intenso, sua
derada. Há também uma capacidade reduzida de realizar oxidação foi menor quando comparada com a oxida-
exercício de longa duração, ao passo que, em atletas, a ção de ácidos graxos durante o exercício moderado e
predominância é dos lipídios, favorecendo a produção de baixa intensidade (16). O ciclo glicose-ácido graxo,
de energia oxidativa e a economia na utilização dos car- portanto, pode explicar a interação entre lipídio e car-
boidratos. Nesses atletas, entre outras adaptações, ocorre boidrato durante contrações musculares de intensidade
aumento de biogênese mitocondrial, da densidade vas- leve e moderada, mas não durante contrações intensas.
cular e da atividade de enzimas oxidativas (11). Portan- Portanto, é improvável que um aumento nas concen-
to, o favorecimento da oxidação de lipídios e redução na trações plasmáticas de AGL durante contrações intensas
oxidação de carboidratos imposta pelo ciclo glicose-áci- possa induzir uma maior preferência na oxidação de li-
do graxo explica o aumento da capacidade do músculo pídios. Embora o mecanismo permaneça desconhecido,
esquelético em sustentar atividade muscular prolongada. esse aparente efeito dominante da intensidade sobre a
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disponibilidade de substrato parece exercer papel cen-


tral na escolha de carboidrato como substrato prefe-
O ciclo glicose-ácido graxo durante rencial para o músculo esquelético durante contrações
atividade muscular intensa intensas. Então, mesmo que virtualmente exposto a am-
Ao contrário do exercício moderado, durante o exer- bos os substratos, durante contrações intensas, o mús-
cício intenso (> 65%-75% VO2máx), a energia requerida culo esquelético oxida preferencialmente carboidrato,

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

aumentando a eficiência da contração (6). Em acordo mia basal, induzindo menor oxidação dos ácidos graxos
com essa afirmação, Willis e Jackman (28) examinaram e favorecendo o aumento na taxa de oxidação da glicose.
a taxa de produção de ATP em mitocôndrias isoladas Coyle (7) testou a hipótese de que a oxidação de lipídio
de músculo esquelético humano sob estado respiratório 3. é regulada pelo metabolismo de carboidrato em seis ci-
Os autores demonstraram que a taxa de produção de clistas, os quais ingeriram carboidrato antes do exercício
ATP mitocondrial na presença de ácidos graxos foi es- para induzir hiperglicemia e hiperinsulinemia, requiridos
timada para ser da ordem de três vezes menor que nas para aumentar o fluxo glicolítico. A taxa de oxidação de
mesmas condições na presença de carboidratos. Esses lipídio foi medida pela constante infusão de ácido gra-
achados explicam a existência de uma taxa relativa ele- xo de cadeia longa (AGCL) marcado (1-13C-palmitato)
vada de oxidação de carboidratos durante o exercício de versus ácido graxo de cadeia média (AGCM) marcado
longa duração em atletas (2). (1-13C-octanoato). Os achados mostraram que o aumen-
O mecanismo que regula a preferência do músculo to da concentração de glicose reduziu a oxidação de pal-
esquelético pelos carboidratos durante o exercício in- mitato, sem efeito na oxidação do octanoato. A oxidação
tenso ainda é desconhecido. A hipótese mais aceita é reduzida dos ácidos graxos de cadeia longa parece estar
de que o efeito inibitório dos ácidos graxos na oxidação relacionada com a ativação da acetil-CoA carboxilase
de carboidrato é removido quando a demanda energé- (ACC) seguida pela formação de malonil-CoA, o qual
tica no músculo em atividade excede aquela que pode tem sido descrito como um inibidor do sistema carni-
ser sustentada pela oxidação dos ácidos graxos (4,5). tina palmitoiltransferase (CPT-I), com pouco efeito no
O efeito inibitório dos ácidos graxos na oxidação dos transporte dos ácidos graxos de cadeia média. Assim, é
carboidratos descrito pelo ciclo glicose-ácido graxo é improvável que um aumento da concentração plasmáti-
mediado diretamente pelo acúmulo de citrato, o qual ca de AGL, durante contrações intensas, possa induzir
reduz o fluxo pela via glicolítica pela inibição alostérica uma maior preferência na oxidação de lipídios. Em adi-
da enzima PFK. O citrato exerce esse efeito em combi- ção, um maior recrutamento de fibras glicolíticas (tipo
nação com ATP, um potente inibidor da PFK. Porém, II) observado durante o exercício intenso favorece o
durante contrações musculares intensas, um aumento acúmulo de lactato, um inibidor da oxidação de lipídios
no conteúdo de AMP, ADP, NH4+ e Pi é sempre ob- (4,5). Essas observações sugerem que, durante contra-
servado (1,2). Ao contrário do ATP, esses metabólitos ções de intensidade leve para moderada, os ácidos graxos
são potentes ativadores da PFK. Sob essas condições, a são mobilizados do tecido adiposo pela lipólise e utili-
razão ATP/ADP é baixa, removendo o efeito inibitó- zados pelo músculo esquelético. Em contraste, durante
rio do citrato na PFK e favorecendo o fluxo glicolítico o exercício de alta intensidade, a liberação dos AGL do
(2). Nosso grupo recentemente mostrou em cultura de tecido adiposo é marcadamente diminuída, seguida por
células-tronco de músculo esquelético de ratos durante uma elevação na taxa de oxidação de glicose (Figura 4).
contrações basais (repouso) e intensas que o desaco-
plamento mitocondrial, uma condição conhecida de
redução no conteúdo de ATP mitocondrial, significati-
vamente aumentou a glicólise anaeróbia como demons-
Oxidação de ácidos graxos

trado pelo conteúdo elevado de lactato no meio de cul-


Oxidação de glicose

tura. Isso sugere que a razão ATP/ADP é também um Glicose

regulador importante da predominância na utilização


entre carboidratos e ácidos graxos no músculo esquelé- Ácidos graxos
tico durante contrações intensas (6).
A taxa de oxidação de carboidrato é outro regulador
da oxidação de lipídio no músculo esquelético. Em con-
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dições basais de disponibilidade elevada de carboidrato Leve (< 40%) Moderada (60%/80%) Intensa (> 80%)
(pós-prandial), os níveis plasmáticos de ácidos graxos
Intensidade (VO2máx)
circulantes diminuem devido a uma redução na lipólise
imposta pela elevada produção de insulina circulante e Figura 4. Efeito da intensidade de exercício no consumo de glicose e
ácidos graxos. Os valores são relativos da cinética de consumo de glicose
aumento na captação hepática de ácidos graxos. Essas e ácidos graxos pelo músculo esquelético durante contrações. Modificado
alterações são de grande relevância na regulação da glice- de Brooks e Mercier (29).

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

Portanto, um aumento artificial na disponibilidade de li-


piruvato
pídios plasmáticos durante a atividade muscular intensa
pode conduzir a um acúmulo substancial de ácidos gra- Acetil-CoA
xos no músculo esquelético (30). EROs
oxalacetato glutamato citrato

NADH MDH aconitase
AAT
As EROs como reguladoras do malato isocitrato

metabolismo de glicose durante atividade aspartato NADH
fumarato α-cetoglutarato
física intensa
α-CGDH

Su

Su
Nosso grupo tem mostrado que, durante a contração

cc

cc
ini

ina
muscular intensa, a produção de EROs é substancial- NADH

l-C

to
oA
mente elevada no músculo esquelético (8), um efeito
mediado pelo consumo elevado de oxigênio mitocon-
drial (31,15). A mitocôndria, um importante sítio gera- Figura 5. Efeito inibitório das espécies reativas de oxigênio na atividade da
aconitase e α-cetoglutarato desidrogenase durante a atividade muscular.
dor de EROs durante a atividade muscular, pode tam- AAT, aspartato aminotransferase; NADH+, nicotinamida adenina
bém ser vulnerável às ações dessas espécies (32,33). Em dinucleotídio reduzida; EROs, espécies reativas de oxigênio. Modificado de
situações nas quais a produção de EROs é aumentada, Silveira e cols. (24).
o superóxido tem sido descrito, ao longo dos últimos
anos, como um inibidor potente da aconitase, por um investigando o efeito da produção endógena de EROs
mecanismo envolvendo a oxidação do ferro, importan- na captação de glicose durante a contração muscular
te cofator dessa enzima (34). Embora a aconitase não intensa em camundongos, demonstraram que o trata-
seja uma enzima reguladora do ciclo de Krebs (DG+), mento agudo com N-acetilcisteína (NAC), um antio-
a redução na atividade dessa enzima pode resultar em xidante inespecífico e doador de GSH, reduziu a cap-
menor fluxo de substratos (11). Conforme descrito tação de glicose em aproximadamente 50% (P < 0,05)
anteriormente, a diminuição da atividade do ciclo de em comparação ao controle. Em adição, músculos de
Krebs reduz a disponibilidade de agentes redutores, camundongos superexpressando superóxido dismutase
NADH e FADH2, para a cadeia de transporte de elé- dependente de Mn2+ (SOD-Mn2+), uma enzima que ca-
trons mitocondrial, comprometendo a síntese de ATP. talisa a conversão do ânion superóxido em H2O2, exi-
Esse mecanismo pode favorecer a atividade glicolítica biram taxa maior de captação de glicose (~25%, P <
aumentando a produção de lactato/H+ e consequente- 0,05), durante a contração muscular, em comparação
mente reduzindo a oxidação de ácidos graxos (34,35). ao grupo de animais controles (wild-type). Esses resul-
Igualmente importantes ao efeito do superóxido, ou- tados reforçam a proposição de que as EROs exercem
tras espécies, incluindo o H2O2, óxido nítrico e peroxi- efeito importante na regulação do metabolismo de gli-
nitrito, podem também inibir a atividade da aconitase cose durante atividade muscular intensa.
(34). Um aumento nas concentrações de H2O2 tam-
bém reduz a atividade de uma das principais enzimas
reguladoras do ciclo de Krebs, a a-cetoglutarato de- A proteína DESACOPLADORA mitocondrial
sidrogenase (DG-), seguido de um menor potencial de (UCP-3) como moduladora do metabolismo
membrana (Dy), como resultado da menor disponibi- de glicose e ácidos graxos durante a
lidade de NADH gerado pela baixa atividade do ciclo contração muscular
de Krebs (11,35). A UCP-1 exerce papel importante no metabolismo
Embora ainda haja poucas evidências desse meca- energético no tecido adiposo marrom, pelo desaco-
nismo e da atividade dessas vias durante a atividade plamento da respiração mitocondrial com a produção
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prolongada, a menor razão capacidade oxidativa/capa- de energia, resultando em síntese reduzida de ATP
cidade antioxidante nos músculos do tipo II (glicolí- (37,38). Os ácidos graxos podem também induzir de-
ticos) sugere que a baixa capacidade antioxidante nos sacoplamento mitocondrial por um mecanismo inde-
músculos tipo II é muito importante para o aumento pendente de UCP (6,39,40). Assim, o desacoplamen-
da captação e oxidação de glicose durante a contração to mitocondrial, como previamente reportado por um
muscular intensa (Figura 5). Sandström e cols. (36), grande número de estudos, aumenta o requerimento

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

de substrato energético (6,37,41). Em função da ho- Em contraste à UCP-2, expressa na maioria dos teci-
mologia com a proteína desacopladora UCP-1 do te- dos, a UCP-3 é restrita ao músculo esquelético. Desde
cido adiposo marrom, UCP-2 e -3 foram inicialmente sua descoberta em 1997 (40), uma enorme quantidade
descritas para exercer função importante na regulação de estudos foi publicada na tentativa de caracterizar a
do metabolismo, aumentando a termogênese no tecido função da proteína UCP no tecido muscular esquelé-
muscular esquelético (40). Quando superexpressas em tico. Apesar das evidências em leveduras, experimentos
leveduras, a UCP reduz substancialmente o gradiente utilizando camundongos knockout para o gene UCP-3
de H+ mitocondrial (DmH+), confirmando o efeito ter- falharam em demonstrar o efeito desacoplador dessa
mogênico (42). Porém, o mecanismo ainda permanece proteína in vivo (42). Esses animais não demonstraram
desconhecido. Há evidências de que as UCPs transpor- qualquer alteração termogênica comparados aos con-
tam H+ diretamente do espaço intermembrana para a troles. Em adição, não apresentaram características de
matriz mitocondrial ou ainda que o gradiente de pró- animais obesos, mesmo quando expostos a uma dieta
ton (DmH+) é reduzido pelo movimento flip-flop dos rica em lipídios (42). Isso sugere que a principal função
ácidos graxos, tendo como intermediária a proteína da UCP-3 em condições fisiológicas não é de proteger
UCP, aumentando o transporte do ânion ácido gra- contra obesidade aumentando a oxidação de lipídios.
xo da matriz para o espaço intermembrana (Figura 6). Mais surpreendente é a falta de efeito da UCP-3 na per-
Dessa forma, a UCP-3 protege as mitocôndrias contra formance do músculo esquelético durante a contração.
o acúmulo de AG na matriz. Essa hipótese é suporta- Seria lógico esperar redução na disponibilidade de ATP
da pelas observações de que a UCP-3 é up-regulada mitocondrial em situação de elevado desacoplamento
em situações em que a disponibilidade de AG excede mitocondrial, uma vez que a produção de energia oxida-
sua capacidade de oxidação, incluindo jejum, dieta hi- tiva é proporcionada pelo gradiente de prótons (DmH+).
perlipídica, tratamento com hormônios tireoidianos e Essa energia é definida como força próton motriz (DP)
exercício físico agudo, ao passo que a UCP-3 é down- consistindo de um gradiente elétrico (DY) e químico
-regulada em situações nas quais a capacidade de oxidar (DpH): DP = DY - 59DpH (38,40). Com base nessa
AG é aumentada incluindo treinamento aeróbio e re- teoria, a capacidade de produção final de energia será
dução da massa corporal (43). Em adição, a expressão sempre maior quando o DP for aumentado. No múscu-
elevada de UCP-3 em músculos do tipo II, comparado lo esquelético, a eficiência máxima de utilização de ATP
a músculo do tipo I, é consistente com essa hipótese, é somente obtida quando todos os processos de síntese
uma vez que esse tipo de músculo apresenta baixa capa- estão acoplados (40). Portanto, o desacoplamento mi-
cidade de oxidar lipídios (44). tocondrial deve reduzir a produção oxidativa de ATP
resultando em uma performance menor. Recentemen-
te, examinando o efeito da infusão de uma solução rica
em ácidos graxos de cadeia longa (lipovenos) por 1h
em animais experimentais, verificamos que a força de
contração durante atividade muscular intensa induzida
por estímulo elétrico não foi alterada em comparação à
força de contração em animais controles após infusão
com solução fisiológica de Krebs Ringer (6). Hesselink e
cols. (45) também foram incapazes de mostrar qualquer
efeito significante no torque do músculo quadríceps em
humanos durante contrações máximas após tratamento
com dieta hiperlipídica. A falta de efeito na performance
é intrigante, uma vez que a disponibilidade elevada de
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ácidos graxos induz desacoplamento mitocondrial por


um mecanismo intrínseco e independente de UCP-3
consequentemente reduzindo o DP (6,39,40). Evidên-
Figura 6. Mecanismo de desacoplamento mitocondrial dependente de
cia desse mecanismo intrínseco foi recentemente de-
UCP3 em músculo esquelético. CPT: carnitina palmitoiltransferase; CAT:
carnitina; AG: ácido graxo; CoA: coenzima A; AG-: ânion ácido graxo; UCP3: monstrada pelo nosso grupo em mitocôndrias isoladas
proteína desacopladora mitocondrial. Modificado de Schrauwen e cols. (30). de músculo esquelético de ratos na presença dos inibi-

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Metabolismo de glicose e ácido graxo

dores oligomicina (ATP-sintase) e carboxiatractilosídio Portanto, durante atividade muscular intensa em que
(CAT, transportador de ATP/ADP) e ciclosporina A a produção de EROs é muitas vezes aumentada (8), a
(poros de transição mitocondrial). A adição de lipove- ativação de UCP-3 em músculos do tipo II (abundante
nos à suspensão mitocondrial aumentou significativa- em UCP-3) pode ser de grande importância na regula-
mente o consumo de O2. Porém, GDP, um inibidor ção do metabolismo de carboidrato durante contrações
potente de UCP, não reduziu o consumo de O2 induzi- intensas. Embora ainda faltem evidências concretas do
do por lipovenos, sugerindo que o desacoplamento foi real papel fisiológico da UCP-3 no tecido muscular
realizado por um mecanismo independente de UCP-3. esquelético, os resultados disponíveis na literatura, in-
Em adição, a concentração elevada de lactato intrace- cluindo achados do nosso grupo de pesquisa, sugerem
lular no músculo gastrocnêmio vermelho (GV) após a que UCP-3 pode desempenhar função importante na
infusão de lipovenos sugere que muito provavelmente a regulação do metabolismo de lipídios/carboidratos e
glicólise anaeróbia foi muito ativada, compensando uma na produção de EROs no tecido muscular esquelético.
possível redução na síntese de energia mitocondrial. Em conclusão, a oxidação preferencial de ácidos gra-
Outro aspecto importante de destacar é que a disponi- xos no estado basal e de atividade moderada muito pro-
bilidade elevada de AG e a baixa capacidade do músculo vavelmente originou do processo de evolução biológica
gastrocnêmio em oxidar lipídio podem ter favorecido o do homem em sobreviver e se adaptar em condições
acúmulo de lipídio e o desacoplamento mitocondrial, de escassez de alimento. Os estoques de carboidratos
ao passo que, no músculo sóleo, a quantidade baixa de são limitados, enquanto os de lipídios são abundantes,
UCP-3 combinada com sua alta capacidade de oxidar explicando a preferência do nosso organismo pelos lipí-
FA pode ter contribuído com uma menor produção de dios. A importância desse mecanismo (ciclo glicose-áci-
lactato intramuscular (6). Em um experimento contro- do graxo) consiste não somente no aumento de energia
le, demonstramos ainda que o tratamento de culturas aos tecidos, mas ainda na economia dos estoques de
de células musculares com o desacoplador mitocon- glicose. Em contraste, durante o exercício de alta inten-
drial DNP (2,4-dinitrophenol) aumentou a produção sidade há predominância do metabolismo de glicose.
de lactato. Em outras palavras, o desacoplamento mi- Embora o mecanismo ainda seja desconhecido, a hipó-
tocondrial induzido pelo DNP diminuiu a fosforilação tese mais aceita é de que o efeito inibitório dos ácidos
oxidativa aumentando a contribuição da glicólise para graxos na oxidação de carboidrato é removido quando
formação de ATP (6). Portanto, é muito provável que a demanda energética no músculo em atividade excede
a atividade desacopladora mitocondrial pode levar a um aquela que pode ser sustentada pela oxidação dos áci-
aumento na oxidação de glicose seguido da inibição da dos graxos. Isso pode estar diretamente associado ao
oxidação de ácidos graxos. conteúdo elevado de AMP, ADP, NH4+ e Pi, os quais
Talbot e Brand (46) atribuíram o papel fisiológico são estimuladores da via glicolítica. A produção eleva-
da UCP-3 à regulação da produção de espécies reativas da EROs durante a atividade muscular intensa sugere
de oxigênio (EROs). Uma vez ativada, a UCP-3 pode que o balanço redox intracelular pode também exer-
aumentar o estado de oxidação da cadeia de transporte cer papel importante nessa regulação do metabolismo
elétrons contribuindo para o aumento no estado res- de glicose durante o exercício intenso. Esse aparente
piratório 3 (40). Porém, evidências desse mecanismo efeito dominante da intensidade sobre a disponibilida-
ainda são escassas, uma vez que a ativação de UCP-3 de de substrato parece exercer papel central na escolha
tem falhado para induzir desacoplamento mitocondrial. de carboidrato como substrato preferencial para o mús-
Demonstramos, em cultura de células tratadas com o culo esquelético durante contrações intensas. O ciclo
sistema xantina/xantina oxidase, uma fonte conhecida glicose-ácido graxo, portanto, pode explicar a interação
de geração de EROs, um aumento substancial na ex- entre lipídio e carboidrato durante contrações muscu-
pressão gênica de UCP-3, sugerindo que essa proteína
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lares de intensidade leve e moderada, mas não durante


pode ter mesmo um papel importante na regulação da
contrações intensas.
produção de EROs no tecido muscular (47). Isso seria
importante para a performance muscular durante ativi- Agradecimentos: este estudo teve suporte financeiro da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Coorde-
dade intensa, uma vez que, sob elevada concentração, as
nação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
EROs são importantes sinalizadores do desacoplamen- e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnoló-
to mitocondrial, favorecendo a glicólise anaeróbia (6). gico (CNPq).

Arq Bras Endocrinol Metab. 2011;55/5 311


Metabolismo de glicose e ácido graxo

Declaração: os autores declaram não haver conflitos de interesse 19. Savage DB, Petersen KF, Shulman GI. Disordered lipid metabo-
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