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Aula 12

O conceito aristotélico de substância: o livro VIII

Vimos, no livro VII, uma breve passagem em que Aristóteles esboçava uma nova maneira de
definir substância: forma, matéria e composto de ambas (1029a1-3). É em torno dessas novas
formulações que vão girar os capítulos finais do livro VII e grande parte do livro VIII, elaborando-
se aí o que mais se aproxima de uma doutrina acabada da substância.

O termo “forma” retoma o vocabulário platônico do eîdos, para reformular seu significado.
Aristóteles emprega também o termo morphé.

O segredo dessa doutrina está em compreender adequadamente como se relacionam essas três
formulações. E é preciso evitar possíveis mal-entendidos. Embora em certo sentido se possa dizer,
no livro VII, que forma (eîdos) é “a essência (tò tí ên eînai) de cada coisa e sua substância (ousía)
primeira” (1032b1) e que “por substância imaterial (ousía áneu hýles; literalmente: “substância sem
matéria”) entendo a essência (tò tí ên eînai)” (1032b13), não se deve concluir que “forma” é
“substância sem matéria”, a não ser num sentido muito particular. Um dos objetivos das análises do
livro VIII sobre o tema da substância é esclarecer em que sentido isso pode ser dito, pois se trata de
algo fundamental para essa doutrina.

Observe-se então o primeiro capítulo do livro VIII: “E agora devemos reexaminar as substâncias
que são admitidas por todos. E essas são as substâncias sensíveis. Todas as substâncias sensíveis
têm matéria. E substância é o substrato (tò hypokeímenon), o qual, em certo sentido (állos mén),
significa a matéria (hýle) (chamo matéria o que não é algo determinado (tóde ti) em ato (enérgeia),
mas algo determinado só em potência (dýnamis)), num segundo sentido (állos dé) significa a
essência (lógos) e a forma (morphé) (a qual, sendo algo determinado (tóde ti), pode ser separada
(khoristón) pelo pensamento (lógos)), e, num terceiro sentido (tríton dé), significa o composto de
matéria e forma (tò ek toúton, literalmente: “o baseado neles”) (e só este está submetido à geração
(génesis) e à corrupção (phthorá) e é separado (khoristón) em sentido próprio (haplôs,
“absolutamente”, “propriamente”))” (1042a24-31).

Note-se que a substância, para ser substrato, subjacente, precisa ser ao mesmo tempo matéria e
forma, precisa ser um composto de ambos. Sabemos já que um hypokeímenon não pode ser dito de
nada, é sempre sujeito de predicação, ele é o suporte, o fundamento das determinações que nele se
encontram, permanente na mudança. Mas isso não pode ser obtido somente com matéria ou
somente com forma. É na composição de ambos que se pode explicar esse caráter de substrato de
uma substância. Se uma substância, portanto, é um indivíduo particular – “este Sócrates”, um tóde ti
-, dotado de determinações que lhe conferem características essenciais que podem ser
compreendidas em conceitos universais, isso se deve ao fato de que essa substância é um composto
de forma e matéria, e não apenas forma ou apenas matéria. Note-se que são três maneiras diferentes
de falar de substâncias e não três tipos de substâncias distintas. Há um sentido, digamos, completo,
que reúne os dois sentidos parciais. Somente o composto “é separado” e pode ser gerado e
corrompido. “Separar” a forma do composto em que se encontra é apenas executar uma operação do
lógos, trata-se de uma atividade discursiva e abstrata. Posso dizer separadamente, do composto de
forma e matéria, o que nele é matéria e o que nele é forma. Mas de fato, realmente, nunca se
apresentam separadamente.

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São numerosas as passagens dos livros VII e VIII da Metafísica a respeito desse tema, e nem
sempre se percebe com clareza como elas se conciliam. Em linhas gerais, contudo, pode-se perceber
que Aristóteles pensa uma espécie de relação de equilíbrio e dependência mútua entre matéria e
forma: somente em composição matéria e forma podem adquirir ser e realidade. Para formular de
forma sintética, a matéria é um ser determinado apenas em potência. É a indeterminação que pode
ser determinada, e essa determinação está a cargo da forma. Será a presença da forma na matéria o
que lhe conferirá diferenças e especificações. Portanto, a matéria determinada em ato só o será em
virtude da presença da forma. Esta, por sua vez, só poderá realmente ser, no sentido absoluto de ser,
haplôs, ao determinar a matéria. É uma doutrina, digamos, da colaboração entre elemento formal e
elemento material que permite compreender a substância como ser separado, individual e particular.

Para compreender como essa doutrina se desenvolve nos livros VII e VIII, é preciso compreender
por que razão Aristóteles se refere frequentemente, como exemplos, a casas, esferas de bronze e
outros objetos da técnica (tékhne) para poder se referir também a substâncias sensíveis da natureza
(phýsis). Para Aristóteles, sempre é necessário começar uma investigação com aquilo que é mais
conhecido para nós, para alcançar aquilo que é por natureza mais conhecido (ler 1029b3-12). Em
algumas passagens da Física, Aristóteles, para explicar o movimento dos seres naturais, se serve de
situações relativas à produção técnica, e julga que pode fazer isso porque a técnica imita a natureza.
A técnica é algo mais conhecido para nós e, ao imitar processos naturais de geração, se torna um
ponto de passagem para o conhecimento dos mecanismos da geração natural.

Com base nesse princípio metodológico, podemos compreender melhor uma passagem crucial do
livro VIII: “os que definem a casa dizendo que ela é pedra, tijolos e madeira, dizem o que é a casa é
em potência (dýnamis), porque todas essas coisas são matéria (hýle); ao contrário, os que a definem
dizendo que é um refúgio para proteger coisas e corpos ou alguma outra coisa desse tipo dizem o
que é a casa em ato (enérgeia); enfim, os que unem ambas as definições exprimem a substância no
terceiro significado, como composto de matéria e forma. É claro que a definição (lógos) dada pelas
diferenças (diaphorôn) refere-se à forma (eidos) e ao ato (enérgeia), enquanto a definição dada
pelos elementos refere-se prioritariamente à matéria” (1043a14-21).

Note-se que há uma associação entre forma e ato, e entre matéria e potência. Mas não se deve
concluir disso que a forma pode “ser em ato” sem a matéria. É na matéria que a forma se dá. Ler
também 1032b14-25, 1041b4-9.

A forma, como vimos, pode ser formulada em separado, mas apenas formulada, conhecida. Para
isso, deve apresentar-se na matéria, em se tratando de substâncias sensíveis. A matéria, por sua vez,
sem a forma, não possuiria determinações que pudessem ser conhecidas. Ao que parece, portanto,
forma e matéria fornecem distintas características necessárias para a noção de ousía. Uma
existência “separada” exige a presença de matéria. Mas é preciso também determina-la, e isso
compete à forma. O indivíduo é matéria, caso contrário, não poderia subsistir – como Sócrates seria
Sócrates sem ossos, carnes e nervos? E é forma, caso contrário, não teria determinações e, portanto,
individualidade determinada – para Sócrates ser Sócrates, ele precisa ser um certo homem. Ler
1035a7-9, 1037a1-2, 1037a29-30, 1035b28-31, 1074a33-35, 1071a23-29. Todas essas passagens
mostram como se deve compreender a doutrina da substância como forma, matéria e composto: as
duas primeiras, quando separadas, o são apenas como modos de falar do composto, o único a ser em
sentido pleno e absoluto, haplôs. E esse composto só detém essa capacidade porque reúne ambos os
aspectos, material e formal.
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Aristóteles emprega às vezes, para se referir ao composto de matéria e forma, o termo sýnolon, que
significa algo como “um todo conjunto”. Trata-se de uma forma de exprimir intensamente a
inseparabilidade de matéria e forma na realidade, com a possibilidade de separação apenas em
abstrato, em pensamento, em lógos.

Contudo, em certo sentido, pode-se ainda falar de um tipo de “eternidade” da forma, enquanto
expressão da essência de substâncias. Pensada isoladamente, pode-se trata-la em abstrato,
universalmente. Ler 1043b14-18 e, sobretudo, 1039b20-1040a7. Note-se nesta segunda passagem
que o tipo de eternidade da forma permite introduzir a ideia de demonstração científica, que nunca
dirá respeito a substâncias sensíveis individuais, apenas a formas universais abstratas. Sobre ser
uma definição sempre da forma como um universal abstrato, ler 1036a26-29. Particularmente
interessante e importante é 1035b31-1036a12.

Para o processo de conhecimento e obtenção do universal, ler I, 981a5-12. O conceito de universal


só pode ser bem compreendido se analisamos as noções de indução e abstração, que nos
conduziriam a outros tratados, sobretudo Segundos Analíticos, de Anima e Física. A indução torna
possível a obtenção de conceitos e, portanto, proposições universais que serão premissas em
silogismos demonstrativos, que vão então operar dedutivamente na obtenção de conclusões. A
abstração é o processo intelectual que permite “separar” no intelecto o que de fato não existe
separado.

Observe-se então que, embora a ontologia aristotélica recuse a “existência separada de universais”
que teria caracterizado o platonismo e suas Formas do Homem, do Justo, do Belo, da Coragem etc.,
essa mesma ontologia se constrói tendo em vista a aspiração de manter a ideia de um conhecimento
universal. Não há, a bem dizer, conhecimento de substâncias individuais, apenas de universais
abstratos, formas que o intelecto pensa e que detêm o que há de essencial nas diversas formas
particulares semelhantes. Porque diferentes compostos de forma e matéria como Sócrates possuem
formas com determinações essenciais semelhantes, posso conceber – mas apenas conceber – em
meu intelecto uma certa “forma do homem” que já não é mais a forma de Sócrates ou de qualquer
outro, é um universal abstrato que contém as determinações essenciais que concernem a todos os
indivíduos ditos homens. Sobre essa forma se faz o conhecimento.

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