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ALZIRA
de Flávio Lofêgo Encarnação
Uma realização:
Núcleo de Dramaturgia
Cia. de Teatro Tanto de Lá Quanto de Cá
Rio Branco AC
www.ciadeteatro.com.br
contato@ciadeteatro.com.br
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Personagens:
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2005. Uma casa de classe média baixa em Rio
Branco, Acre. A cena passa-se em um cômodo que
é ao mesmo tempo sala e cozinha, com sofá, mesa
de jantar, pia com louça no escorredor, moringa
de barro e apetrechos para coar café. Pode-se ver
também um pequeno armário de mantimentos e
um fogão de quatro bocas. À direita, ao fundo,
uma passagem coberta com uma cortina de fios,
sem porta, que é a entrada do quarto de SARA. À
esquerda, à frente, uma passagem semelhante leva
ao quarto de ALZIRA. No fundo do palco, uma
porta fechada é a saída da casa para a rua. Num
canto da sala, perto do sofá estão vários livros e
papéis soltos, desarrumados sobre o chão e o sofá.
Barulho de chuva forte do lado de fora.
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CENA 1
A cena é iluminada pela luz que é acesa no quarto
de ALZIRA, a partir da porta localizada na
esquerda baixa. As sombras das fitas penduradas,
que fazem uma cortina que separa o quarto da
sala, são projetadas na sala. Ainda sonolenta,
ALZIRA entra em cena e acende a luz da
sala\cozinha. Boceja e se espreguiça, antes de se
dirigir à pia, onde pega uma panela de alumínio,
que deposita ao lado da moringa. Vai até a
geladeira e procura alguma coisa, sem encontrar.
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ALZIRA (continuando, imitando a filha) “Aonde?
Mania de velha. Só você NO MUNDO põe coador de
café na geladeira!?”. (volta a fazer a sua própria
voz) “Muita gente coloca”. (imitando a filha) “Não
coloca não”. Ela faz uma voz pequenininha, fininha,
assim (imita uma voz em falsete) “Só você que faz
essas coisas”. (usando sua própria voz,
novamente) “Olha, você me respeita, menina.”. Ela
fala fininho quando está brigando. Dá uma vontade
de rir… (ri)
(pausa)
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ALZIRA (continua, falando para SARA)- Deus do
céu, menina! Não dá de viver assim, não. Tem que
se preparar para a vida. A vida não é assim. A vida
não é assim. O mundo lá fora tá uma loucura. Aqui
dentro tá tudo protegido, você tá protegida. Mas a
vida… a vida é ruim. Te passa a perna. Já viu o
preço que as coisas ´tão? Tudo os olhos da cara.
Você pega o salário, compra uma coisa ou outra,
paga as conta, e aí, acabou. Num sobra nada. Num
pode ficar aí… dormindo...
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isso quer dizer que você deve ter dormido às oito,
no máximo. E você sabe que minha aula termina
dez e meia.
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doméstica. Dureza é esquentar a barriga no fogão e
esfriar no tanque, que nem eu faço no trabalho e em
casa tenho que fazer de novo. Enquanto isso, você
aproveita a vida com essa turma aí que você anda.
Tudo gente esquisita.
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ALZIRA (Larga a mão da filha, e volta a se ocupar
dos afazeres do café da manhã. Depois de uma
pausa, terminando a preparação do café, joga o pó
usado no lixo etc) - Ah, esse negócio de acordar
cedo, isso não tem jeito não, é coisa que ficou do
seringal. Lá, se não acordar ainda escuro para
cortar seringa, não come. Todo mundo acorda
cedinho, enquanto ainda não tá muito quente, para
ir para a mata colher borracha.
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ALZIRA - Deixa eu te falar: um homem lá no
trabalho. Amigo do patrão.
SARA - Sei…
SARA - Homem-dama?
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ALZIRA - É, homem com homem, mulher com
mulher, essas coisas. Já pensou?
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ALZIRA - Diz que vem sacanear as minhas
fotografia.
SARA - Sacanear?!
ALZIRA - Isso!
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ALZIRA - E sai me dando uma rabissaca. Ah, essa
menina…
CENA 2
Sequência da cena anterior. ALZIRA arruma a
casa.
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gastança. Trocando noite pelo dia. Bebendo.
Fumando. Nem quero pensar no que essa menina
anda fazendo. Dia qualquer desse tá de barriga.
(para o quarto) Não vai pensando que eu vou criar,
hein! Já criei a minha, não vou criar filho dos
outros! (para si) Olha só quanto lixo. Não anda
nem até a lixeira para jogar fora essa papelada.
(joga vários papéis no lixo) Não foi para isso que
criei filha. Era para me ajudar. Não era para me
fazer trabalhar que nem uma escrava. Hm! Que
nada. Tô que nem um burro de cangalha. (para o
quarto) Que nem um burro de cangalha!
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que você aprendeu a ser tão bagunceira. (joga o
potinho de iogurte no lixo) Não fui eu nem foi seu
pai que te ensinou isso. Seus amigos são assim
desse jeito? Na casa deles fica essa bagunça? Eu
duvido que a mãe deles arruma as bagunça que eles
deixa.
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vida e aprendeu a falar direito. Às vezes escorrega,
mas eu corrijo na hora. Você pensa que ele fica
chateado? Que nada. Ele sempre agradece a
correção, porque ele aprende o certo. E ele está
sempre aprendendo, sempre querendo progredir.
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E ainda juntando um trocadinho. Vendendo os
paninho que eu bordava de noite e nos domingo. A
analfabeta, a burra, foi eu que pagou. E enquanto
isso, ele tava lá curtindo com aquela loira azeda.
Você não se lembra porque era muito pequena. Não
se lembra do que eu passei, sozinha nessa casa,
esperando aquele homem chegar das noitada. Foi
só terminar os estudo e arrumar o bendito
emprego. Ele chegava de manhã cedo com o pão,
como se nada tava acontecendo. Meu Deus, como
eu fui burra! Eu dizia que ele tava com outra e ele
dizia que eu era doida, que tava era trabalhando.
Me chamava de doida! Mas tava lá com a novinha,
gastando o dinheiro que ganhava ao invés de trazer
para casa. Foi só ele arrumar trabalho de (irônica,
falando empolado) ‘auxiliar de contabilidade’. Blá
blá blá. Isso depois de eu sustentar esse homem
mais de cinco ano. Arrumou o emprego, a loura
burra foi lá querer morder o abestado.
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melhorar nossa vida. Mas quem pagou tudo foi eu.
Tô pagando até hoje. Falta pouquinhas prestação,
mas ainda falta. Foi eu quem trabalhei duro para
pagar. Porque eu sempre me virei. Não quis nada
daquele infeliz. Fazia faxina, vendia paninho,
vendia tacacá que você lembra… Foi só começar a
ganhar um dinheirinho que ele logo arrumou outra.
Na separação, podia ter pedido pensão. Não quis.
Não quis nada dele. Se essa casa fosse dele, também
não ia querer. Ia morar na rua, mas não queria. Só
fiquei com a casa porque tinha sido eu que tinha
pagado a maior parte. E quis a pensão dos seus
alimento. Porque isso é justo, é o correto… E tá na
lei.
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ALZIRA - Não tinha papel nenhum aqui no sofá. Só
aqueles livro que eu empilhei ali.
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para fazer isso. Mas também, o que eu podia
esperar ... (se interrompe)
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boa com os número, ninguém me engana no troco.
E eu leio de tudo, só que demoro.
ALZIRA - Seu pai, sempre seu pai. Ele pode até ler
melhor do que eu. Estudou muito, mesmo.
Continua estudando até hoje. Formou de contador.
(com despeito) Contador, na faculdade e essas
coisas. Mas tem muita coisa que eu sei mais que ele.
Te educar é uma delas. Ele não te educa, só passa a
mão na cabeça. Quer se fazer de bonzinho, o pai
legal, que diz sim. Que deixa tudo... Te estragou...
Não ensinou. Por isso que você deixa essa bagunça
em todo lugar. Porque na casa dele tem empregada.
Pr´aquela piranha não estragar as unha pintada.
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ALZIRA - É uma rampeira, sim. Mulher que dorme
com homem casado. Piranha da grossa. Só eu sei.
Você não lembra o que eu passei. “Não admito”, vê?
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quando era analfabeto tinha vergonha na cara. Ia
na igreja, era um homem decente. Foi por isso que
eu não quis estudar mais. Aprendi a ler e escrever,
muito bem. Quer ver? (mostra a carta que abriu)
Como é que eu ia saber que isso aqui é uma conta
do banco, de cartão de crédito, se não soubesse ler?
Minha filha, que conta é essa? Como é que você vai
pagar isso tudo?
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ALZIRA (ignorando a reclamação da filha) -
Minha filha, que conta é essa? Como é que eu vou
pagar isso? É quase o meu salário do mês. E olha
que eu hoje em dia ganho bem. Um salário e meio
que eu ganho. Dá para viver, mas não pode fazer
essas gastança! Eu não tenho dinheiro para bancar
uma vida de luxo para você.
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privacidade é ZERO. Passei a vida inteira num
quarto com uma cortininha na porta…
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comida. Não aguento aquela fila do bandejão da
universidade. Duas horas para se servir, e depois
não tem lugar para sentar do lado das minhas
amigas. E a comida é uma droga. E eu não como
carne, você sabe. Então a gente come no boteco. Lá
pelo menos tem uma saladinha melhor.
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SARA - Desde que você expulsou ele, você quer
dizer. E meu pai diz que essa história de que foi
você que pagou é tudo mentira. Diz que ele pagou
sozinho até a separação. E depois disso, você só
pagou porque tirou da pensão que ele mandava.
Onde já se viu empregada doméstica pagar casa
própria? Se não fosse meu pai a gente ia estar
morando num buraco desses aí.
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tempo. E ele me agradeceu assim. Arrumou logo
uma novinha, e me chamava de doida. Ela só se
interessou por ele quando ele tava ganhando
dinheiro. Queria ver se ela ia encarar trabalhar para
sustentar ele quando era um pé-rapado… Sabe
como é que eu fiz para ele ir embora dessa casa?
Peguei uma panela de água quente e disse que ia
jogar no negócio dele. Ia estragar ele para sempre.
E ia mesmo. Eu tava com muito ódio. Sabe o que ele
me falou? (muito emocionada) Que nunca mais
nenhum homem ia me querer. Que eu não ia
arrumar mais nenhum homem em minha vida se
ele me deixasse. Era por isso que ele ainda estava
comigo. Por caridade.
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SARA - O que é que tem? Tinha que ter dado
mesmo.
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banqueiros são os maiores bandidos. Orgulho de
pagar tudinho ao bandido? Que nem vocês
pagavam as dívidas do barracão do seringal, cada
centavinho... Como é que dizia o Euclides da
Cunha? O homem que paga para se escravizar?...
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Hoje é quinta, é dia de ir tomar cerveja no boteco (
sai)
CENA 3
Passagem de tempo. Sala vazia, a luz do dia entra
na cena. Começa a tocar o telefone fixo. ALZIRA
entra em cena, vinda de seu quarto, e atende.
Panela fumegando no fogão.
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você gosta. (ouve) Não gosta mais não? Você
gostava tanto… Ah, é mesmo. Você é vegetariana
agora. (ouve) Três anos, é? Tudo isso? Eu esqueço.
(batem à porta)
ALZIRA - Oi?
JEFSON - O pintor.
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JEFSON - Eu também gosto. Minha casa também
eu pintei toda colorida. (ri, meio envergonhado)
Jeito acreano, não é mesmo? Um arquiteto... que eu
trabalhei com ele... veio de São Paulo.. falou que
isso era ‘vontade de felicidade’. Nunca esqueci
isso... ele reparou o colorido das casa, e eu falei que
o acreano era um povo alegre. Mas ele disse que
isso não era alegria, era ‘vontade de felicidade’.
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JEFSON - Tô num barracão de uma obra que tá
parada. O vigia me deixa ficar por lá. Se o patrão
pega ele dá ruim. Mas ele disse que o homem não
aparece por lá nunca. Enquanto a obra tá parada, tá
podendo dormir lá. Não pode ficar de dia, mas de
noite pode. Segunda ele disse que a obra vai voltar,
então eu não vou poder mais, que os outro peão vai
tudo dormir por lá.
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JEFSON - A senhora dormiu na rua? Tava com
vergonha de dizer. Muitas vez eu durmo na rua
também. É que lá no barracão que eu posso
dormir… o meu amigo vigia é muito bacana, arrisca
até o emprego dele para me dar pouso. Mas lá tem
pulga e carapanã demais. Demais! Carapanã eu até
dou conta, porque eu venho da roça. Mas pulga,
ninguém merece. Eu nem sabia o que que era pulga.
No mato eu acho que não tem. Tem piúm, tem
carrapato, tem carapanã, até mucuim. Aquilo é
hor-rível. Mas pulga não tem. E lá na obra tem uns
cachorro que trouxe pulga demais pro barracão.
Nunca tinha visto pulga antes. Às vez eu não
aguento as mordida, aí vou para a rua. Só que a rua
deixa a gente muito sujo. Eu sou pobre, mas sempre
fui limpo. Tento proteger, uso caixa de papelão,
mas não adianta. A gente vai ficando sujo, sujo
mesmo. Aí eu tenho que escolher, ou as pulga ou a
sujeira. Na obra tem água, dá para tomar banho e
lavar as roupa.
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ALZIRA - Jefson. Isso. Olha, Jefson, eu sei bem
como é isso. Nesse mês que nós passou jogado pelas
rua, eu vi bem a dureza. Eu ficava olhando os outro,
que tava na rua fazia mais tempo que nós. Vai
ficando tudo igual, encardido. Eu não queria ficar
daquele jeito… Por isso que eu trabalhei muito com
meu marido…
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ALZIRA - Não, é de carteira e tudo. Um emprego
bom, com todo os direito.
ALZIRA - É própria.
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ALZIRA - É, é mesmo. Eu ficava na rua, ajeitando
os papelão que nem você diz. E olha que era mês de
julho, teve friagem, foi muito ruim, a gente
passamo frio. E eu via os outro que morava na rua
há tanto tempo, uns que tava há anos na rua. Você
reparou o que acontece com eles? Primeiro perde os
sapato. Os sapato é a primeira coisa que rouba.
Depois vai ficando avermelhado. Essa sujeira das
rua é poeira vermelha, e vai deixando as roupa
vermelha. Depois de um tempo nem o vermelho se
salva. Fica é cinza. Tudo fica cinza. Sujo, sujo.
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ALZIRA - Olha! Eu vou ser sua cliente de um
montão de coisa. Aqui em casa tem um monte de
serviço pra tu. Torneira pingando, goteira, azulejo
para botar… E como é que você aprendeu tudo isso?
Fez curso?
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município que ele não conhecia. Mataram. Assim,
de uma hora para outra acabou tudo.
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embora para Rio Branco. Não aguentei. Tive que ir
embora de lá correndo. Não consigo voltar, não.
Ainda não consigo. Acho que não consigo.
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JEFSON - A senhora tem uma filha, é?
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ALZIRA - Escuta, rapaz. É um quartinho que eu
guardo uns material de construção que eu vou
comprando, faz tempo. Só coisa que não estraga.
Lajota, tijolo. Tem até cimento por lá. Tá meio sujo,
mas nóis limpa. Bota material de construção do
lado, cobre com uma lona. Você bota para um lado
e fica morando no outro. É um quartinho direito.
Eu e meu ex-marido tava construindo para alugar, e
quando eu botei aquele sem-vergonha para correr a
gente deixou pelo meio. Mas tem porta, janela, teto,
tudo direitinho. Não tá pintado, e o chão é de terra
batida, mas dá para viver muito direitinho. O
banheiro da casa é do lado de fora, mesmo. E o
banho é de cuia, não tem chuveiro. Aqui nessa casa
só quem tem banheiro dentro é a SARA (aponta
para o quarto da filha). Tem suíte. O pai mandou
construir, que ela não podia usar o banheiro lá fora,
que nem nóis sempre usemo. Tem chuveiro na
suíte. Lá fora, sabe como é que é: pega a água na
caixa d´água com a cuia e joga. É o mesmo jeito que
era no seringal. Lá em Acrelândia devia ser igual,
não era? (JEFSON concorda com a cabeça) Você
pode usar, é só deixar tudo limpinho depois. Eu
também só tomo banho lá. Só quando tá MUITO
frio é que eu peço para tomar banho na SARA...
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JEFSON - Mas eu não tenho dinheiro para pagar,
ainda.
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arrumar? Não senhora. Não deixo, não. Até já,
daqui a pouco eu tô de volta. Obrigado! Obrigado!
CENA 4
SARA chega em casa à noite. A casa parece vazia.
Em seguida ALZIRA entra em cena, vinda do
quarto de SARA. Está enrolada numa toalha, e
com uma outra toalha fazendo uma touca, em sua
cabeça.
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SARA - Não, não se preocupa. Vai diminuir, é
lavanda. A senhora vai aonde?
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SARA - O puxadinho?
SARA - Sei.
SARA - E?...
ALZIRA - Péra!...
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SARA abre a porta e dá de cara com JEFSON,
carregando mochila e sacos de supermercado
cheios de roupas. JEFSON se surpreende, pois
esperava que ALZIRA tivesse atendido. Os dois
ficam se olhando por um tempinho.
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(PAUSA)
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ALZIRA - Ele vai morar lá fora. Não vai tirar a
privacidade de ninguém.
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SARA (interrompendo) - O pintor! Ele é o pintor…
Veio pintar a parede e a senhora convidou para
ficar! Não acredito!... O que é que falta mais na
minha vida, meu Deus? Que cruz é essa que eu
carrego!? Daqui a pouco vai ter o gari morando na
sala, o pedinte debaixo da soleira...
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SARA - É, dona ALZIRA. Inteligente a senhora é. O
que falta é o conhecimento. Para entender o
mundo. Quem não lê não entende o mundo. Não
consegue ter pensamento abstrato.
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ALZIRA - Eu falo… eu falo…
SARA - Fala!
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compartilhamento do prazer. Estupro não tem
prazer, mãe.
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coisa, mas para mim também. Aqui que eu vou dar
dinheiro do aluguel na sua mão.
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SARA (de fora) - Na casa da Marisa! Onde o quarto
tem porta!
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JEFSON - Pensa bem, dona ALZIRA. Vou trazer
problema para a senhora e sua filha.
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JEFSON - Falando assim… Fico, fico. Eu fico. Não
vou fazer essa desfeita com a senhora. Sou muito
grato. E a senhora pode dizer para ela que eu não
vou tirar a liberdade dela. Sou de respeitar os
outros. Vou respeitar, sempre.
ALZIRA - Pode.
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JEFSON - É que… a senhora podia para de me
chamar de filho?
BO
Cena 5
De noite. JEFSON instala uma porta no quarto de
SARA. ALZIRA está com um conjunto de moleton,
escolhendo o feijão, sentada à mesa. SARA chega.
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ALZIRA - Ele trouxe duas porta. Ia jogar fora. Tão
novinha. Lixou, pintou, tá vendo? Novinha em
folha.
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ALZIRA - São dois dias só, o que que tem? Passou
tantos anos querendo uma porta, e agora que tem,
graças ao JEFSON, é essa ingratidão.
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estará mexendo na porta enquanto acompanha
com os olhos a discussão de mãe e filha,
timidamente e sem esboçar reações a não ser a
diminuição eventual da atenção dedicada ao seu
trabalho, ou a retomada do ritmo de trabalho em
seguida.
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roupa e fechando a mochila) - Eu volto quando a
porta puder fechar. Até lá vou ficar na casa da
Marisa.
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ALZIRA - Não sabe nada, não viveu para saber. E
nem conhece essa menina direito. Conhece daonde?
O que você sabe dela?
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apresentar como minha namorada. E aí, quando a
porta puder fechar, ela vai poder vir dormir aqui
também. Na minha casa.
(PAUSA)
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juntas há quase cinco meses. (pausa) Bom, eu vou
sair. Me liga quando der de fechar a porta, que eu
venho.
JEFSON - ALZIRA…
ALZIRA - JEFSON.
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A cena termina com um blackout, com ALZIRA e
JEFSON abraçados e olhando-se nos olhos com
ternura.
Cena 6
Palco vazio. A cena acontece bem cedo, de manhã.
JEFSON entra em cena, vindo do quarto de
ALZIRA. Ele traz um rádio portátil, e bota para
tocar uma música. Um brega dos anos 80. Vai
lavar a louça - apenas dois copos sujos de vinho e
um pratinho de sobremesa. ALZIRA entra quando
JEFSON acaba de lavar a louça. Está vestida com
uma roupa de ficar em casa: uma camiseta de
algodão que é quase uma saia, folgadona e
surrada, e uma bermuda com cara de masculina.
(PAUSA)
JEFSON - A senhora…
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JEFSON - Você… Você acha que a gente fez mal?
JEFSON ri
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a asa. Mas a gente era só amigo mesmo. E ela era
namoradora. Namorou com uns menino lá do
ramal. Mas aí um dia apareceu com a Cláudia, uma
machuda que o povo chamava de sapa-boi. É que
ela parecia com um sapo-boi, mesmo. Aí o povo não
perdoava. Chamava ela de SAPA-boi, vê isso?
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ALZIRA - Teve em uns outro município?
(silêncio)
(silêncio)
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JEFSON - Não quero isso. Sou agradecido. Não vou
perder sua confiança. Para mim vale muito. Tudo.
Tudo isso vale muito para mim.
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ALZIRA (rindo, meio envergonhada) - Pode ir,
pode ir.
Cena 7
Hora do almoço. ALZIRA está colocando pratos,
copos e talheres na mesa, para duas pessoas.
Flores artificiais no centro. A porta abre, e entram
SARA e MARISA.
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ALZIRA (surpresa) - MARISA? Nossa, eu pensava
que…
ALZIRA - Isso!
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MARISA - Isso é um estereótipo, dona ALZIRA. A
senhora sabe o que é um estereótipo?
SARA - EstereótipO!
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ALZIRA - Isso, eu sei. (mudando de assunto) E a
senhora, hein, dona SARA? Seis dia sem vir em
casa! Isso não se faz.
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MARISA - Que isso, ela não incomoda. Eu é que
convido. É que a gente está muito grudada. Mas eu
prometo que vou tirar menos a sua filha de casa. Se
a senhora não se importa que eu durma aqui… (dá
a mão a SARA)
(breve silêncio)
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ALZIRA (com um riso amarelo no rosto)- Ah,
então vamos sentando. SARA, peraí que eu vou
cortar um tomatinho para você. E tem também
macaxeira.
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JEFSON - Obrigado, mas a senhora está com visita,
eu não quero incomodar.
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direito ao guaranazinho, é? Tá dando moleza para
vagabundo agora? Pirou de vez?
SARA - Não, ela não tem nada com ele, não. Ela
deve ser mais de vinte anos mais velha que ele.
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MARISA - Sua mãe está longe de ser velha…
MARISA - Eu só pensei…
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(SARA se assusta com a reação da mãe)
SARA - Mãe?!
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SARA - Tá bancando com o meu dinheiro. Com o
dinheiro que meu pai manda para minha pensão.
Na minha casa. Não me perguntou nada, Tirou
minha liberdade e botou essa ‘coisa’ na minha casa,
SARA - Namorado?
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não pode cair numa dessa, de fazer o errado uma
vez na vida? Pagou, tá livre, vida nova.
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Cena 8
ALZIRA e JEFSON chegam com compras. Ela está
toda agasalhada.
JEFSON - Eu gosto.
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JEFSON - Pois é.
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ALZIRA - Isso, sabia que era alguma coisa japonês.
Os olhos da cara… Olha, couve. (mostra a couve)
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ALZIRA - Mas isso vai passar. Quando a gente é
jovem é assim mesmo. Pensa que vai desabar o teto
na nossa cabeça, que é o fim do mundo. Mas não é,
não. A vida segue. E a Marisa pode mudar de idéia
amanhã ou depois…
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precisava, eu disse para ele. É só você olhar e ver
que ele é um bom homem. Não precisa cuidar da
casa. Eu cuido bem dessa casa. E ele me ajuda.
Pode ter certeza.
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começava de noite ainda. Você tem tudo na vida, o
que quer mais? Não pode ser assim. A vida não é
assim. Você tem dois braço, duas perna, saúde, é
jovem. Dia desse eu bato as botas, como se diz, e
você vai sentir falta…
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SARA - Sabe sim!
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ALZIRA (chocada, e sem palavras) - SARA!?
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SARA (ainda revoltada, mas um pouco assustada
com o que acabou de fazer) - Se me bater vai levar.
Em dobro. Já sou adulta. Não pode me bater. Não
pode.
(Vai ao quarto)
BO
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Cena 9
A cena está escura. Os diálogos seguintes
acontecem em off. Telefone toca.
EX-MARIDO - Nasceu.
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EX-MARIDO - É, as coisas mudam. E vocês, não
vão se reconciliar mesmo? Cinco anos… Não se
falaram esse tempo todo.
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EX-MARIDO - Tá bom, tá bom. Eu já sei. Isso não
vai acontecer. Tem muita mágoa... Liguei só para
falar que estava tudo bem.
Cena 10
JEFSON está sozinho em casa. Está bem vestido e
penteado, e parece nervoso. A campainha toca.
JEFSON abre a porta. É SARA. Está com um
visual bem mais convencional, burguês.
JEFSON - Oi.
(silêncio)
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JEFSON - E eu pensava que você não vinha.
JEFSON - Entra.
(silêncio)
SARA - Está tudo melhor. A casa pintadinha. O
portão novo lá fora.
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JEFSON - Foi só coisa pequena. Reforma, para a
prefeitura. Não dá para fazer construção ainda. A
empresa é pequena. Mas se Deus quiser…
(silêncio)
SARA - Doente?
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sentindo nada. Tá levando a vida normal. Mas ela já
sabe o que vem pela frente.
SARA - Conversar?
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JEFSON - É, fazer as pazes. Ficar de boa.
SARA - De boa?!
(silêncio)
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Só pensou nela. Queria ficar sozinha na casa. Para
curtir... com você. Me jogou na rua…
JEFSON ri.
SARA - Ah…
100
JEFSON - Você disse que seu pai tinha a família
nova dele… E sua mãe não podia ter a dela?
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SARA - Não tem jeito. Já pensei muito nisso. Não
tem jeito. Já tomei minha decisão.
JEFSON - Isso.
102
(se olham em silêncio, por um instante. Ele abre a
porta.)
Cena 11
A cena está vazia, numa semi-penumbra. Barulho
de portão abrindo. Porta é destrancada e aberta,
lentamente. Entra JEFSON, vestido com um terno
escuro. Parece desnorteado. Olha em volta.
Senta-se à mesa. Fica sentado por um instante. Em
seguida se debruça sobre a mesa, apoiando os
cotovelos e segurando a cabeça com as mãos. Fica
assim por alguns instantes. Batem à porta.
JEFSON abre. É SARA. Está extremamente
abalada.
JEFSON - Eu vi.
(pausa)
103
SARA - Eu tava do outro lado da rua. Esperando
você chegar.
(pausa)
(silêncio)
(silêncio)
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JEFSON - Eu vou tirar as minhas coisas da casa…
Amanhã você já pode entrar.
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SARA - Fui injusta com minha mãe. Agora… eu me
sinto tão vazia… tanta dor… não pensei que ia sentir
isso.
106
SARA - Eu perdi minha mãe, JEFSON. Eu perdi.
Minha vida foi aqui nessa casa. Do lado dela. O que
que eu fiz?! Agora não tem volta.
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JEFSON - Sua mãe engravidou aos treze anos. Foi
abusada no seringal. Não podia falar disso na
época. Ninguém falava. Era… proibido, sabe? Ela
ficava mal-falada se os outro sabia.
SARA - Expulsou?
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JEFSON - Ela me disse antes de fechar os olho. Que
a mãe dela morreu sem elas se falar. Ela não
perdoou a mãe. E depois que a mãe morreu ela
sofreu muito. Nunca te apresentou a sua avó. Antes
de morrer me disse. Que te perdoava. Que não
queria que você sentisse o que ela sentiu. Disse que
te entendia. Que você era jovem.
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JEFSON - Ela queria que você se perdoasse. E
vivesse sua vida. E não repetisse com sua filha os
erros que vocês tiveram. Olha, sua mãe vai estar
com a gente para sempre…
110
JEFSON (sem demonstrar qualquer
constrangimento) - Marido. Ah, o senhor é o
professor. Só agora que o senhor apareceu? Ela
falava no senhor vez em quando.
JEFSON - Sei.
111
PROFESSOR - Quando foi que ela morreu?
JEFSON - É.
112
SARA - Vou atender… (respira fundo, controlando
as emoções)
113
SARA - É que a mamãe teve um problema. Hoje
não vai dar.
JEFSON - SARA.
(BO)
FIM
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