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TEATRO

ALZIRA
de Flávio Lofêgo Encarnação

Uma realização:

Núcleo de Dramaturgia
Cia. de Teatro Tanto de Lá Quanto de Cá
Rio Branco AC

Universidade Federal do Acre


Proj. de Extensão Laboratório Experimental de Artes Cênicas.

www.ciadeteatro.com.br
contato@ciadeteatro.com.br

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Personagens:

ALZIRA - Ex- seringueira, empregada doméstica,


cerca de 55 anos no início da peça. Magra, aparenta
ser mais velha do que é. Cabelo comprido, sempre
preso.

SARA - Cerca de 23 anos no início da peça.


Expansiva, um pouco acima do peso, com
dreadlocks ​e vestindo roupas étnicas de temática
africana ou indígena.

JEFSON - Cerca de 30 anos de idade, mulato, forte


mas não muito alto. Fala mansa. Muito tímido.

MARISA ​- Namorada de SARA. Cerca de 18 anos,


muito bonita e feminina.

PROFESSOR ​- Trinta e poucos anos, roupas


surradas e amarfanhadas, com barba por fazer e
rabo de cavalo. Carrega uma bolsa a tiracolo.

EX-MARIDO - ​voz em ​off

FILHA DE SARA​ - voz de criança em ​off

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2005. Uma casa de classe média baixa em Rio
Branco, Acre. A cena passa-se em um cômodo que
é ao mesmo tempo sala e cozinha, com sofá, mesa
de jantar, pia com louça no escorredor, moringa
de barro e apetrechos para coar café. Pode-se ver
também um pequeno armário de mantimentos e
um fogão de quatro bocas. À direita, ao fundo,
uma passagem coberta com uma cortina de fios,
sem porta, que é a entrada do quarto de SARA. À
esquerda, à frente, uma passagem semelhante leva
ao quarto de ALZIRA. No fundo do palco, uma
porta fechada é a saída da casa para a rua. Num
canto da sala, perto do sofá estão vários livros e
papéis soltos, desarrumados sobre o chão e o sofá.
Barulho de chuva forte do lado de fora.

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CENA 1
A cena é iluminada pela luz que é acesa no quarto
de ALZIRA, a partir da porta localizada na
esquerda baixa. As sombras das fitas penduradas,
que fazem uma cortina que separa o quarto da
sala, são projetadas na sala. Ainda sonolenta,
ALZIRA entra em cena e acende a luz da
sala\cozinha. Boceja e se espreguiça, antes de se
dirigir à pia, onde pega uma panela de alumínio,
que deposita ao lado da moringa. Vai até a
geladeira e procura alguma coisa, sem encontrar.

ALZIRA ​(irritada) - Já não tá aqui, ó… Mania que


essa menina tem. Cisma que não é para colocar o
coador de café na geladeira. Quer ver que está no
armário?… (​abre o armário​) Ó! Sempre aqui. Eu
digo que é na geladeira e ela me diz: “onde já se viu
coador de café na geladeira?” e eu digo “coador é na
geladeira, sempre foi. Coador de café : geladeira!”.

Enquanto fala, ainda bocejando algumas vezes,


enche com água da moringa, depois deposita três
colheres de café e três colheres de açúcar dentro da
panela. Acende o fogo e bota a panela para ferver
a água.

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ALZIRA (continuando, ​imitando a filha​) “Aonde?
Mania de velha. Só você NO MUNDO põe coador de
café na geladeira!?”. (​volta a fazer a sua própria
voz​) “Muita gente coloca”. (​imitando a filha​) “Não
coloca não”. Ela faz uma voz pequenininha, fininha,
assim ​(imita uma voz em falsete) “Só você que faz
essas coisas”. (​usando sua própria voz,
novamente​) “Olha, você me respeita, menina.”. Ela
fala fininho quando está brigando. Dá uma vontade
de rir… ​(ri)

(pausa)

ALZIRA (​após um instante de silêncio, ela decide


subitamente se dirigir ao quarto de SARA, acende
a luz e sai do quarto, indo em direção ao fogão,
enquanto fala, para si mesma​) - Deu de dormir
pelada agora.

SARA (​de dentro do quarto, louca da vida, mas


sonolenta​) - Apaga - essa - luz!

ALZIRA (​nada surpresa, falando para si​) - E o


quarto? Um fuá. E ela peladona, refestelada na
cama. No meu tempo não tinha essas coisas.

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ALZIRA (continua, falando para SARA)- Deus do
céu, menina! Não dá de viver assim, não. Tem que
se preparar para a vida. A vida não é assim. A vida
não é assim. O mundo lá fora tá uma loucura. Aqui
dentro tá tudo protegido, você tá protegida. Mas a
vida… a vida é ruim. Te passa a perna. Já viu o
preço que as coisas ´tão? Tudo os olhos da cara.
Você pega o salário, compra uma coisa ou outra,
paga as conta, e aí, acabou. Num sobra nada. Num
pode ficar aí… dormindo...

SARA bufa de raiva dentro do quarto, mas logo


parece se acalmar. Um instante de silêncio.

ALZIRA (​esperando a filtragem do café no coador


de pano) ​- Chegou muito tarde ontem?

SARA - Eu quero dormir, pôxa.

ALZIRA - Eu não te vi chegar. (​pequena pausa​) E


olha que eu não fui dormir cedo, não. Fiquei
assistindo até o fim da minha novela. Devia ser
umas dez e pouco.

SARA (​chega arrastando os pés, quase dormindo


em pé​) - A novela das nove aqui no Acre passa às
seis por causa das 3 horas de fuso horário. Então

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isso quer dizer que você deve ter dormido às oito,
no máximo. E você sabe que minha aula termina
dez e meia.

ALZIRA - É mesmo. Capaz de ser isso mesmo. Eu


durmo cedo sempre, não consigo. É porque eu
acordo muito cedo…

SARA - Mas não precisava me acordar, né... pôxa.

ALZIRA - Você sabe que eu não gosto dessa coisa de


gente acordando tarde em casa. Parece coisa de
gente desocupada. De vagabundo.

SARA - Que bobagem, mãe. Sai da caixinha, dona


ALZIRA. Trabalhador da noite tem que dormir de
dia, e não é vagabundo, não é mesmo?

ALZIRA - Mas você não é trabalhadora. Você


estuda.

SARA - Estudo de manhã e de noite, esqueceu?


Duas faculdades. Dá trabalho, sabia?

ALZIRA - Mas já tá na sua hora mesmo, quer o


que? Além disso, sua vida não é essa dureza toda,
não. Dureza é meu trabalho, de empregada

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doméstica. Dureza é esquentar a barriga no fogão e
esfriar no tanque, que nem eu faço no trabalho e em
casa tenho que fazer de novo. Enquanto isso, você
aproveita a vida com essa turma aí que você anda.
Tudo gente esquisita.

SARA - (​falando com voz de falsete​) Você não tem


nada a ver com minha vida. Além disso, o
despertador do celular vai tocar. Não precisa você
me acordar. Eu podia dormir bem mais uns quinze
minutos.

ALZIRA - É, e aí saía toda apressada, sem nem


tomar um banho, toda remelenta.

SARA - Isso é problema meu. Não se mete na


minha vida. Tô cansada de te falar. (​PAUSA​) Tu tá
de férias, é?

ALZIRA (​alegre, como uma criança aprontando


travessuras​) - Tô.

SARA (pegando na mão da mãe, num tom


carinhoso) - A senhora dentro de casa, sem ter o
que fazer… vai sobrar para mim…

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ALZIRA (​Larga a mão da filha, e volta a se ocupar
dos afazeres do café da manhã. Depois de uma
pausa, terminando a preparação do café, joga o pó
usado no lixo etc​) - Ah, esse negócio de acordar
cedo, isso não tem jeito não, é coisa que ficou do
seringal. Lá, se não acordar ainda escuro para
cortar seringa, não come. Todo mundo acorda
cedinho, enquanto ainda não tá muito quente, para
ir para a mata colher borracha.

SARA - (​após uma pausa​) Tem café?

ALZIRA - Tem sim. (​enche uma xícara para SARA,


e entrega a ela​) Tô desde ontem querendo te contar
uma coisa.

SARA - Lá vem ela... (​prova o café, e quase cospe


fora​) Uh, cheio de açúcar... A senhora continua
cozinhando ​o café com o açúcar, não é, dona
ALZIRA?

ALZIRA - Esqueço que tu não gosta de açúcar.

SARA - (voltando a beber) Hmpf. Tá doce mas tá


gostoso.

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ALZIRA - Deixa eu te falar: um homem lá no
trabalho. Amigo do patrão.

SARA - Paquerando os amigos do patrão, dona


ALZIRA?

ALZIRA (​divertida​) - Não, menina. Não é nada


disso. Se bem que se ele me olhasse eu não
recusava. Bonitão!...

SARA - Sei…

ALZIRA - Veio me perguntar um monte de coisa.

SARA - Ih, já sei: fiscal do trabalho.

ALZIRA - Me ouve, menina, para de gozação. Ele


veio me perguntar foi as coisa do seringal. É
professor de história, ele. Sei lá. Historiador, uma
coisa assim. Queria saber tudo, tudo que eu
lembrava. Que hora que acordava, o que comia.
Quem era guarda-livro, quem era capataz. Quem
era casado com quem, ele queria saber. Perguntou
até se tinha homem-dama.

SARA - Homem-dama?

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ALZIRA - É, homem com homem, mulher com
mulher, essas coisas. Já pensou?

SARA (​interessada​) - E tinha?

ALZIRA - Sei lá se tinha. Acho que não. Ninguém


nunca me falou.

SARA - Olha que tinha, hein…

ALZIRA - Mas escuta, Sara. O homem falou que


quer vir aqui. Aqui em casa. Por causa dos retrato.
Eu falei que era pouca coisa, aquelas foto que você
conhece, que um fulano lá tirou e deu para a gente.
Tudo coisa de antes de você nascer. Eu e teu pai na
casa de madeira roliça, de paxiúba, que a gente
vivia no seringal. Mil novecentos e coisa.
(​reparando em sua casa​) O homem quer vir aqui
em casa, o professor, e essa casa desse jeito. Essa
parede ali eu tô há quanto tempo pra pintar, e ela
ainda no tijolo. Já arrumei um pintor, vem aqui
amanhã ou depois. Agora, você vai ter que arrumar
seu quarto. Eu ia passar uma vergonha com esse
fuá...

SARA - Mas ele vem aqui fazer o que mesmo?

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ALZIRA - Diz que vem sacanear as minhas
fotografia.

SARA - Sacanear?!

ALZIRA - É, botar pra dentro dos computador.

SARA (divertida) - Ah, scannear.

ALZIRA - Isso!

SARA (enquanto sacode a cabeça, como dizendo


que a mãe não tem mais esperança) - ​Dona
ALZIRA… Só a senhora… ​(andando em direção ao
quarto) ​Eu vou voltar para a cama.

ALZIRA - Que, voltar para a cama o quê? Acorda,


menina, deixa de preguiça. Vai arrumar o seu
quarto. Vai dar uma caminhada, fazer um exercício.
Perder uns quilinhos. Tá precisando

SARA (​olhando para a mãe, incrédula​)- Começou.

ALZIRA - Minha filha… Vai tomar um banho pelo


menos. Seu pai daqui a pouco está aí para te buscar.

SARA - Fui. (​sai para o quarto​)

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ALZIRA - E sai me dando uma rabissaca. Ah, essa
menina…

CENA 2
Sequência da cena anterior. ALZIRA arruma a
casa.

ALZIRA - Sangue de Jesus, que bagunça! Meu


Deus, onde foi que você aprendeu a ser tão
bagunceira? Comigo não foi. Nem com seu pai. Ele
pode ser o estrupício que for, mas bagunceiro
nunca foi. (​para si​) Olha só que porcaria. Livro
jogado. Papel… papel… carta… Que que é isso aqui?
Carta de banco? (​fala para o quarto dos fundos​)
Tem uma carta aqui, Sara. É coisa de banco. Tá
fechada, você nem abriu. (​abre a carta​) (​para si​)
Meu Deus… (​para o quarto dos fundos​) Isso é para
pagar, menina. Tudo isso? Como é que você vai
fazer para pagar isso, minha filha?

SARA (​gritando de dentro, ao longe​) - Tô tomando


banho! Não tô ouvindo nada!

ALZIRA - Cuida, menina. Vai chegar atrasada na


escola. (​para si​) Não sei onde é que essa menina vai
parar. Bagunça, bagunça, bagunça… Gastança,

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gastança. Trocando noite pelo dia. Bebendo.
Fumando. Nem quero pensar no que essa menina
anda fazendo. Dia qualquer desse tá de barriga.
(​para o quarto​) Não vai pensando que eu vou criar,
hein! Já criei a minha, não vou criar filho dos
outros! (​para si​) Olha só quanto lixo. Não anda
nem até a lixeira para jogar fora essa papelada.
(​joga vários papéis no lixo​) Não foi para isso que
criei filha. Era para me ajudar. Não era para me
fazer trabalhar que nem uma escrava. Hm! Que
nada. Tô que nem um burro de cangalha. (​para o
quarto​) Que nem um burro de cangalha!

SARA (​entrando, enrolada numa toalha, ainda um


pouco molhada, de péssimo humor​) - Que que você
tá resmungando aí? Eu tava no banho! Não posso
nem tomar um banho sossegada! Tô lá querendo
relaxar um pouco e você aqui só reclamando. Só
reclamando, pelamordedeus. O que foi que eu fiz
para merecer isso? ​(volta para o quarto)

ALZIRA - Toda molhada! O chão do banheiro deve


estar ensopado. Vai secar. Não vou secar para você,
não. Olha, você não pode reclamar de nada. Quem
tem que reclamar sou eu. (​ainda limpando​) Olha só
isso! Potinho de ‘iorgute’! Atraindo barata, rato…
Isso é porcaria, minha filha. Queria saber onde foi

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que você aprendeu a ser tão bagunceira. (​joga o
potinho de iogurte no lixo​) Não fui eu nem foi seu
pai que te ensinou isso. Seus amigos são assim
desse jeito? Na casa deles fica essa bagunça? Eu
duvido que a mãe deles arruma as bagunça que eles
deixa.

SARA (​corrigindo, de dentro do quarto​) - “Eu


duvido que aS mãeS deleS arrumEM a bagunça que
eles deixaM”. Vamos aprender a falar direito?
Concordância básica?

ALZIRA - Eu falei desse jeito a vida inteira, não vai


ser agora que eu vou mudar.

SARA - Se não quiser não muda mesmo. Enquanto


você gastar sua energia para justificar, ao invés de
usar para mudar, não vai para a frente. Olha o meu
pai…

ALZIRA (​interrompendo​) - Ah, tava demorando. O


pai-herói, que faz tudo certo, enquanto a
‘mãe-drasta’ faz tudo errado.

SARA - Mas é isso mesmo, Dona ALZIRA. Meu pai


falava igualzinho à senhora quando chegou do
seringal. Mas ele batalhou, estudou, melhorou de

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vida e aprendeu a falar direito. Às vezes escorrega,
mas eu corrijo na hora. Você pensa que ele fica
chateado? Que nada. Ele sempre agradece a
correção, porque ele aprende o certo. E ele está
sempre aprendendo, sempre querendo progredir.

ALZIRA (​irônica​) - Seu pai é perfeito, minha filha.


Ô que homem bom! Que homem maravilhoso!

SARA - A senhora não pode falar dele. Se não fosse


ele a senhora estava na rua. Essa casa aqui foi ele
que comprou, se lembra? Comprou para mim, ele
sempre diz. E é ele que paga a minha pensão, que é
mais do que seu salário.

ALZIRA (​interrompendo, revoltada​) - Essa casa


aqui eu paguei mais do que ele. Eu que continuo
pagando as prestação da Cohab, até hoje. Até hoje,
todo mês ali. (​bate algumas vezes com uma das
mãos na outra, sublinhando a periodicidade dos
pagamentos e quase vizualizando o carnê em uma
das mãos​) Ele deu uma parte quando começou a
trabalhar no escritório, mas foi eu que paguei a
maior parte. Trabalhando como doméstica, seis dia
por semana. Botando comida na casa e dando
dinheiro até para as passagem de ônibus dele para
ele ir estudar. Pagando tudo, todas as conta da casa.

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E ainda juntando um trocadinho. Vendendo os
paninho que eu bordava de noite e nos domingo. A
analfabeta, a burra, foi eu que pagou. E enquanto
isso, ele tava lá curtindo com aquela loira azeda.
Você não se lembra porque era muito pequena. Não
se lembra do que eu passei, sozinha nessa casa,
esperando aquele homem chegar das noitada. Foi
só terminar os estudo e arrumar o bendito
emprego. Ele chegava de manhã cedo com o pão,
como se nada tava acontecendo. Meu Deus, como
eu fui burra! Eu dizia que ele tava com outra e ele
dizia que eu era doida, que tava era trabalhando.
Me chamava de doida! Mas tava lá com a novinha,
gastando o dinheiro que ganhava ao invés de trazer
para casa. Foi só ele arrumar trabalho de (​irônica,
falando empolado​) ‘auxiliar de contabilidade’. Blá
blá blá. Isso depois de eu sustentar esse homem
mais de cinco ano. Arrumou o emprego, a loura
burra foi lá querer morder o abestado.

SARA - Não fala assim dela.

ALZIRA - Meu Deus do céu, como eu sou revoltada


com isso, até hoje. Eu rezo para meu coração
apaziguar, mas não consigo. Fica esse nó no meu
peito, essa queimação. Num dá pra esquecer. Ele
desempregado, queria estudar. Dizia que era pra

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melhorar nossa vida. Mas quem pagou tudo foi eu.
Tô pagando até hoje. Falta pouquinhas prestação,
mas ainda falta. Foi eu quem trabalhei duro para
pagar. Porque eu sempre me virei. Não quis nada
daquele infeliz. Fazia faxina, vendia paninho,
vendia tacacá que você lembra… Foi só começar a
ganhar um dinheirinho que ele logo arrumou outra.
Na separação, podia ter pedido pensão. Não quis.
Não quis nada dele. Se essa casa fosse dele, também
não ia querer. Ia morar na rua, mas não queria. Só
fiquei com a casa porque tinha sido eu que tinha
pagado a maior parte. E quis a pensão dos seus
alimento. Porque isso é justo, é o correto… E tá na
lei.

SARA - Você é muito egoísta. Quer dizer que você ia


me levar, com cinco anos, para morar na rua? Só
por orgulho? Meu pai nunca ia me deixar na rua.
Você ia… (só agora ​reparando na arrumação que a
mãe está fazendo​) Meus papéis! Minhas poesias!?
Onde é que você pôs minhas poesias?

ALZIRA - Que poesia, menina? Eu sei lá de poesia?

SARA - Os papéis que estavam aqui no sofá. Onde é


que estão?

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ALZIRA - Não tinha papel nenhum aqui no sofá. Só
aqueles livro que eu empilhei ali.

SARA (​autoritária​) - Tinha um monte de papel.


Tinha sim. Eu deixei aqui. Não mente. O que você
fez com eles?

ALZIRA (​corrigindo SARA​)- Os papel que tinha


tava ​no chão​, ​jogado​. Uma bagunça só. Esses eu
joguei tudo fora. Tava no chão… Pensei que era lixo.

SARA vai até a lata de lixo, aparentando


desespero. Remexe o lixo e acha seus papéis, bem
amassados e molhados de iogurte.

ALZIRA - Não mandei deixar jogado. Bem-feito.

SARA - Passei a noite inteira fazendo essa poesia. A


noite inteira.

ALZIRA - Um bando de papel jogado no chão, como


é que eu ia saber?

SARA (​quase chorando​) - É o meu trabalho! É


poesia! Arte, mãe, você sabe o que é isso? Não sabe.
Você não tem ideia de quanto tempo eu demorei

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para fazer isso. Mas também, o que eu podia
esperar ... (​se interrompe​)

ALZIRA - O que? Esperar de que? Fala!

SARA - Deixa para lá.

ALZIRA - De uma analfabeta, é isso que você ia


falar? Fala!

SARA (​com raiva​)- É, de uma analfabeta. É duro


mas é isso mesmo. Enquanto a senhora for
analfabeta, não vai para a frente. Tem certas coisas
que eu não posso esperar que a senhora
compreenda.

ALZIRA (​magoada​) - Eu não sou analfabeta. Já


fui. Mas hoje eu sei ler. Fiz o EJA, Ensino de Jovem
e Adulto.

SARA - Sabe assinar seu nome, você quer dizer. E


olhe lá. Quando o carteiro chega, você sempre me
chama para assinar.

ALZIRA - Eu sei ler. E te chamo porque eu demoro


para assinar. Eu faço essas coisa devagar, porque eu
aprendi tarde. Mas eu sei ler. E sou boa de conta,

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boa com os número, ninguém me engana no troco.
E eu leio de tudo, só que demoro.

SARA - Lê mas não entende. Não entende nada. Só


junta as letrinhas, beeeem devagar. E ter aprendido
tarde não é desculpa. Vê o meu pai. Aprendeu tarde
mas lê de tudo. Tá sempre lendo, sempre com um
livro.

ALZIRA - Seu pai, sempre seu pai. Ele pode até ler
melhor do que eu. Estudou muito, mesmo.
Continua estudando até hoje. Formou de contador.
(​com despeito​) Contador, na faculdade e essas
coisas. Mas tem muita coisa que eu sei mais que ele.
Te educar é uma delas. Ele não te educa, só passa a
mão na cabeça. Quer se fazer de bonzinho, o pai
legal, que diz sim. Que deixa tudo... Te estragou...
Não ensinou. Por isso que você deixa essa bagunça
em todo lugar. Porque na casa dele tem empregada.
Pr´aquela piranha não estragar as unha pintada.

SARA - Não chama ela de piranha!

ALZIRA - Ah, vai defender ela também?

SARA - Eu gosto dela. Nunca me fez mal. E não


admito você falar assim dela.

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ALZIRA - É uma rampeira, sim. Mulher que dorme
com homem casado. Piranha da grossa. Só eu sei.
Você não lembra o que eu passei. “Não admito”, vê?

SARA (​fala, sem grandes afetações de


agressividade, um texto que parece ter repetido já
muitas vezes​) - A culpa não é dela. Nem dele. A
culpa é sua, que ficou com a cabeça lá no seringal
enquanto meu pai ia para a frente, estudava,
aprendia. E você continuava sendo o que ainda é:
uma analfabeta!

ALZIRA - Não sou analfabeta! Não gosto que me


chame assim. Não que analfabeto seja menos. Tem
muito analfabeto por aí que é mais inteligente que
muito doutor. Conheci um aí que dizia que o sujeito
ia para a faculdade para perder a vergonha na cara.
O Matias, que veio do seringal e era analfabeto que
nem eu e seu pai quando nóis chegou em Rio
Branco. E virou artista. Artista do teatro. Ele dizia
que pobre analfabeto, se vê alguém passando fome
na rua traz para casa e divide a pouca comida que
tem. Mas no hospital, onde tá cheio de doutor, os
cabra morre na porta, sem ninguém socorrer. Ele
dizia, o Matias, que analfabeto é melhor que doutor,
por causa disso. E olha que ele tinha razão. Seu pai

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quando era analfabeto tinha vergonha na cara. Ia
na igreja, era um homem decente. Foi por isso que
eu não quis estudar mais. Aprendi a ler e escrever,
muito bem. Quer ver? (​mostra a carta que abriu​)
Como é que eu ia saber que isso aqui é uma conta
do banco, de cartão de crédito, se não soubesse ler?
Minha filha, que conta é essa? Como é que você vai
pagar isso tudo?

SARA - Você abriu minha carta? Abriu a minha


carta? Você violou minha correspondência! Isso é
crime, sabia? Dá cadeia! Eu podia te mandar para a
cadeia por causa disso!

ALZIRA - Que cadeia que nada. Onde já se viu filha


ter segredo com mãe? Eu quero saber o que está
acontecendo com minha filha. Enquanto você
morar debaixo do meu teto não vai ter segredo
coisa nenhuma. E se eu não abro essa carta, como é
que ia ficar sabendo dessa ​gastança que você tá
fazendo?

SARA (​em falsete​) - Isso é problema meu. Você não


tinha o direito de abrir a carta. (​arranca a carta da
mão da mãe​) Olha aqui: Sara Gomes da Silva. Sou
eu! Carta para mim. Se você sabe ler, você viu que
era para mim.

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ALZIRA (​ignorando a reclamação da filha​) -
Minha filha, que conta é essa? Como é que eu vou
pagar isso? É quase o meu salário do mês. E olha
que eu hoje em dia ganho bem. Um salário e meio
que eu ganho. Dá para viver, mas não pode fazer
essas gastança! Eu não tenho dinheiro para bancar
uma vida de luxo para você.

SARA - A pensão que meu pai paga dá de sobra. É


meu dinheiro, não é para você gastar, não.

ALZIRA - Seu dinheiro, mas vai tudo nos seus


iorgute​, nos livro da faculdade, no plano de saúde,
nas roupa… e mais as saladinha, biscoitinho de
cinco real, ​queijinho que você não ​abre mão - está
não sei quantos reais o quilo, você sabia? Carne
você não come, tem pena das vaquinhas. Mas não
tem pena da escrava aqui. E não vê a geladeira
cheia, não vê que as coisa que você gosta não falta
nunca. É dinheiro que vai, tá pensando o que?
Tudo isso custa caro. Não sobra nada no final do
mês.

SARA - Não sobra porque você gasta. Compra


geladeira nova, dá dízimo para a igreja… Já uma
porta para meu quarto, não compra. Minha

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privacidade é ZERO. Passei a vida inteira num
quarto com uma cortininha na porta…

ALZIRA - A geladeira tinha que comprar. Parcelado


em não sei quantas veiz. A velha não tava gelando
mais, tava estragando as comida. E o dízimo é 10
por cento ​do meu salário​. Não tem nada a ver com a
pensão que seu pai paga. E tá na Bíblia, eu obedeço
a palavra. Não vou na Igreja quase nunca, mas o
dízimo eu dou. Tem que dar, eu dou.

SARA - Você tinha que dar o dinheiro que meu pai


manda na minha mão. É MEU dinheiro, MEU.

ALZIRA - Essa é boa. Dou o dinheiro na sua mão e


trabalho que nem uma escrava para botar comida
na sua mesa, ​iorgutinho na geladeira​, enquanto
você gasta dinheiro com bebedeira e festa. Porque
eu vi essa conta aí. Quase tudo é conta de bar…

SARA (​interrompendo​) - Não tinha nada que


futricar nas minhas coisas. Abrir minha
correspondência, onde se viu? Não faça isso nunca
mais, hein? Nunca mais. Eu não vou mais admitir
isso. (​Pausa. Um pouco mais calma​) Essas contas
do bar são de refeição. Quase tudo. Tem cachaça
também, que eu não sou de ferro. Mas a maioria é

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comida. Não aguento aquela fila do bandejão da
universidade. Duas horas para se servir, e depois
não tem lugar para sentar do lado das minhas
amigas. E a comida é uma droga. E eu não como
carne, você sabe. Então a gente come no boteco. Lá
pelo menos tem uma saladinha melhor.

ALZIRA - Eu te conheço, Sara. Você saiu daqui de


dentro, eu te amamentei nos peito. Conheço tudo
de você, menina. Se eu dou o dinheiro da pensão de
seu pai nas suas mão… Você ia gastar o dinheiro
todo com bobagem e depois ia fazer a conta grande
no cartão de crédito, de novo. Não ia botar um
centavo nas despesa da casa… Enquanto você
morar na minha casa…

SARA (interrompendo) - Na MINHA casa. Meu pai


sempre me disse que a casa era minha, que ele
comprou para mim. Deixou para mim, não para
você…

ALZIRA - De novo com essa história? Já falei que


quem pagou essa casa quase toda foi eu. As
prestação foi eu quem pagou sozinha, desde que
você tinha cinco ano de idade. Desde que aquele
outro foi embora morar com a quenga lôra. E ainda
tô pagando.

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SARA - Desde que você expulsou ele, você quer
dizer. E meu pai diz que essa história de que foi
você que pagou é tudo mentira. Diz que ele pagou
sozinho até a separação. E depois disso, você só
pagou porque tirou da pensão que ele mandava.
Onde já se viu empregada doméstica pagar casa
própria? Se não fosse meu pai a gente ia estar
morando num buraco desses aí.

ALZIRA - Eu é que paguei. Fui eu. Com meu salário


mínimo de empregada… e os paninho, e o tacacá,
tudo do meu suor. Foi meu trabalho que sustentou
aquele vagabundo, e pagou essa casa, sim. É minha
casa. Aqui mando eu!

SARA - Não chama meu pai de vagabundo!

ALZIRA - Chamo. Chamo sim. Vagabundo, é o que


ele é. Sempre com essas historinha, colocando você
contra mim. Eu é que expulsei ele sim. Expulsei
porque ele queria me fazer de doida. Passava a
noite toda com aquela bisca. De manhã vinha com o
pão e o leite. Chegava cedinho, antes de você
acordar. Queria que eu aceitasse esse absurdo.
Queria fazer que nem o pai dele fez com a mãe. Eu
não sou dessas. Sustentei aquele homem quanto

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tempo. E ele me agradeceu assim. Arrumou logo
uma novinha, e me chamava de doida. Ela só se
interessou por ele quando ele tava ganhando
dinheiro. Queria ver se ela ia encarar trabalhar para
sustentar ele quando era um pé-rapado… Sabe
como é que eu fiz para ele ir embora dessa casa?
Peguei uma panela de água quente e disse que ia
jogar no negócio dele. Ia estragar ele para sempre.
E ia mesmo. Eu tava com muito ódio. Sabe o que ele
me falou? (​muito emocionada​) Que nunca mais
nenhum homem ia me querer. Que eu não ia
arrumar mais nenhum homem em minha vida se
ele me deixasse. Era por isso que ele ainda estava
comigo. Por caridade.

SARA - E você tá sozinha até hoje…

ALZIRA - Tô sozinha porque quero. Tá assim de


homem de olho em mim. Eu é que não quero.

SARA - Mas devia querer. É essa religião idiota que


te impede de ser feliz. Como era o nome daquele
cara que te paquerava? Seu Assis? Devia ter dado
para ele…

ALZIRA - Não fala assim com sua mãe!...

28
SARA - O que é que tem? Tinha que ter dado
mesmo.

Um carro buzina duas vezes do lado de fora.

SARA - Meu pai chegou. Vou indo. Não mexe no


meu quarto. Depois eu arrumo. (​pega a mochila e
alguns livros)

ALZIRA - E essa conta? Vence hoje. Como é que vai


pagar isso tudo?

SARA - Você paga da minha pensão.

ALZIRA ​(apreensiva) - Já falei que não dá para


isso.

SARA - Então deixa sem pagar. Que se dane o


banqueiro. Não pago e pronto. E daí?

ALZIRA - Não pode. Daí você vai ficar com o nome


sujo. Não pode isso. O nome da gente é a coisa mais
importante que tem no mundo. Nunca ninguém da
minha família deixou de pagar o que devia.

SARA (​andando na direção da porta, ​se


preparando para sair​) - Orgulho bobo esse. Os

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banqueiros são os maiores bandidos. Orgulho de
pagar tudinho ao bandido? Que nem vocês
pagavam as dívidas do barracão do seringal, cada
centavinho... Como é que dizia o Euclides da
Cunha? O homem que paga para se escravizar?...

ALZIRA - Mas se não pagar vai ficar com o nome


sujo. Vai pagar juros. Não vai ter mais cartão de
crédito, e nem comprar nem um liquidificador a
prazo!...

(​carro buzina com mais insistência​)

SARA (​com um sorrisinho superior​) - Meu pai vai


pagar. Não esquenta.

ALZIRA - Tá errado. Não devia pagar. Para você


aprender. A lidar com dinheiro. Você fica
mal-acostumada, a vida não é assim. Não te deixa
pegar um ônibus. Como é que você vai aprender a
cuidar da própria vida? Na sua idade eu já tinha
tido filho. Seu irmão, que Deus levou.

SARA - Conheço a história, não precisa contar pela


milésima vez. (​saindo​) Tchau, gatona. Onça
selvagem de Tarauacá. Não me espera não, hein.

30
Hoje é quinta, é dia de ir tomar cerveja no boteco (
sai​)

ALZIRA (​para si​) - Cerveja no boteco… Hoje é dia…


E ontem não foi dia também? Se eu digo até que
horas eu fiquei esperando, ela ia falar fininho
daquele jeito, ia querer já brigar: (​com voz de
falsete​) “Eu te disse para não me esperar! Eu sou
adulta e dona do meu nariz”. (​pequena pausa​)
Como é que esse homem até hoje leva e traz essa
menina para cima e para baixo. Como é que vai
aprender a se virar? Não sabe nem pegar um
ônibus, meu Deus.

CENA 3
Passagem de tempo. Sala vazia, a luz do dia entra
na cena. Começa a tocar o telefone fixo. ALZIRA
entra em cena, vinda de seu quarto, e atende.
Panela fumegando no fogão.

ALZIRA - Até que enfim. Não faz isso comigo mais.


Fico preocupada. Tá aonde? Quem é a Marisa, eu
conheço? Quando for dormir na amiga me liga.
(​ouve​) Não tem problema se for tarde. Mãe não
dorme direito quando o filho está fora. Pode ligar.
(​ouve​) Mas avisa. Avisa sua mãe da próxima vez.
(​ouve​) Tá bom, tá bom. Olha, fiz aquela rabada que

31
você gosta. (​ouve​) Não gosta mais não? Você
gostava tanto… Ah, é mesmo. Você é vegetariana
agora. (​ouve​) Três anos, é? Tudo isso? Eu esqueço.

(batem à porta)

ALZIRA - Peraí que estão batendo na porta. Vou


desligar, peraí. Um beijo. (​desliga, e em seguida
abre a porta. JEFSON carrega uma mochila
média, abarrotada, e uma caixa de ferramentas.
ALZIRA fica paralisada por um momento, sem
fala.​)

JEFSON - Dona ALZIRA?

ALZIRA - Oi?

JEFSON - O pintor.

ALZIRA (​como se estivesse despertando​) - Ah, sim.


Tinha esquecido. Vamos entrar, vamos entrar. Não
repara na bagunça. (​levando JEFSON até a parede
que será pintada) É essa parede aqui. Só ela
mesmo. É para emassar e pintar. De azul, que eu
gosto muito de cor. Tudo colorido. Uma parede
vermelha, outra amarela. Você viu como é que é a
casa.

32
JEFSON - Eu também gosto. Minha casa também
eu pintei toda colorida. (​ri, meio envergonhado​)
Jeito acreano, não é mesmo? Um arquiteto... que eu
trabalhei com ele... veio de São Paulo.. falou que
isso era ‘vontade de felicidade’. Nunca esqueci
isso... ele reparou o colorido das casa, e eu falei que
o acreano era um povo alegre. Mas ele disse que
isso não era alegria, era ‘vontade de felicidade’.

ALZIRA (​ri​) - Você mora aonde?

JEFSON - Não, essa casa era em Acrelândia. Eu sou


de lá. Agora eu tô em Rio Branco, faz três mês só.
Ainda tô aqui e ali. Quando eu encontrar serviço eu
vô alugar um cantinho para mim. ​(olhando a
parede a ser pintada) Olha, eu vou cobrar
cinquenta real, só. É pouca coisa. Cinquenta mais o
material. Vou fazer a lista aqui, a senhora compra, e
na segunda eu venho. Vou fazer a listinha. (​pega
caneta e papel, e escreve enquanto fala​) Compra
massa acrílica, que fica menos sujeira na casa.
Massa corrida faz muita poeira na hora de lixar. E a
lixa boa é dessa marca aqui. (​mostra no papel​) É
um pouco mais caro, mas não rasga fácil.

ALZIRA - Você tá sem casa? Tá dormindo aonde?

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JEFSON - Tô num barracão de uma obra que tá
parada. O vigia me deixa ficar por lá. Se o patrão
pega ele dá ruim. Mas ele disse que o homem não
aparece por lá nunca. Enquanto a obra tá parada, tá
podendo dormir lá. Não pode ficar de dia, mas de
noite pode. Segunda ele disse que a obra vai voltar,
então eu não vou poder mais, que os outro peão vai
tudo dormir por lá.

ALZIRA - Você deixa suas coisas por lá durante o


dia?

JEFSON - Deixo uma parte. O resto eu trago aqui. É


que eu não conheço o vigia do dia, então fico com
medo dele roubar alguma coisa que eu tenho. E
além disso, como eu fico o dia todo fora, e não
posso voltar lá, então se eu precisar de alguma coisa
não tenho como apanhar.

ALZIRA - Eu sei como é isso. Quando eu e meu


marido, quer dizer, meu ex-marido, veio do
seringal, a gente passou bem um mês sem uma casa
para morar. Morava na rua, mesmo. Levava tudo
numas bolsa, que tudo começou a rasgar. Muito
difícil, foi.

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JEFSON - A senhora dormiu na rua? Tava com
vergonha de dizer. Muitas vez eu durmo na rua
também. É que lá no barracão que eu posso
dormir… o meu amigo vigia é muito bacana, arrisca
até o emprego dele para me dar pouso. Mas lá tem
pulga e carapanã demais. Demais! Carapanã eu até
dou conta, porque eu venho da roça. Mas pulga,
ninguém merece. Eu nem sabia o que que era pulga.
No mato eu acho que não tem. Tem piúm, tem
carrapato, tem carapanã, até mucuim. Aquilo é
hor-rível. Mas pulga não tem. E lá na obra tem uns
cachorro que trouxe pulga demais pro barracão.
Nunca tinha visto pulga antes. Às vez eu não
aguento as mordida, aí vou para a rua. Só que a rua
deixa a gente muito sujo. Eu sou pobre, mas sempre
fui limpo. Tento proteger, uso caixa de papelão,
mas não adianta. A gente vai ficando sujo, sujo
mesmo. Aí eu tenho que escolher, ou as pulga ou a
sujeira. Na obra tem água, dá para tomar banho e
lavar as roupa.

ALZIRA - Eu esqueci seu nome, me desculpa. Como


é mesmo que você falou?

JEFSON - Não falei meu nome, dona ALZIRA. Me


desculpa. Esqueci. É Jefson.

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ALZIRA - Jefson. Isso. Olha, Jefson, eu sei bem
como é isso. Nesse mês que nós passou jogado pelas
rua, eu vi bem a dureza. Eu ficava olhando os outro,
que tava na rua fazia mais tempo que nós. Vai
ficando tudo igual, encardido. Eu não queria ficar
daquele jeito… Por isso que eu trabalhei muito com
meu marido…

JEFSON - (​interrompendo, falando baixo​) - …


ex-marido…

ALZIRA - Desculpa, não ouvi o que você falou.

JEFSON (​falando um pouco mais alto, de cabeça


baixa​) - Ex-marido. Não é isso?

ALZIRA (​um pouco tensa​) - É, ex-marido. Isso. A


gente trabalhou muito, e conseguiu sair da rua.
Você é jovem, vai trabalhar duro e vai melhorar na
vida, que nem nóis melhorou. Quer dizer, eu sou
empregada… em casa de família… gente muito boa,
que paga tudo direitinho… eu não melhorei tanto
assim, né? Mas não tô na rua.

JEFSON - Quequéisso, melhorou sim. Eu é que sei.


(Muda de assunto, interessado) Mas a senhora
trabalha de diarista, ou emprego em carteira?

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ALZIRA - Não, é de carteira e tudo. Um emprego
bom, com todo os direito.

JEFSON - Ô, bom demais. Mas a senhora não


trabalha segunda a sexta, não?

ALZIRA - Ô, segunda a sábado. Dia de sábado eu


saio mais cedo, meio dia, uma hora…

JEFSON (​justificando a pergunta​) - É que hoje é


quarta-feira…

ALZIRA (​satisfeita​) - Eu tô de férias. Aí como vai


vir coisa aí de professor da universidade para
visitar, eu decidi mandar pintar essa parede aí.

JEFSON - Professor, é? Olha aí. Morava na rua que


nem eu e hoje tá aí, na casa própria… É própria ou
alugada?

ALZIRA - É própria.

JEFSON - Então? Na casa própria recebendo


professor em casa… Olhaí onde é que a senhora
chegou.

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ALZIRA - É, é mesmo. Eu ficava na rua, ajeitando
os papelão que nem você diz. E olha que era mês de
julho, teve friagem, foi muito ruim, a gente
passamo frio. E eu via os outro que morava na rua
há tanto tempo, uns que tava há anos na rua. Você
reparou o que acontece com eles? Primeiro perde os
sapato. Os sapato é a primeira coisa que rouba.
Depois vai ficando avermelhado. Essa sujeira das
rua é poeira vermelha, e vai deixando as roupa
vermelha. Depois de um tempo nem o vermelho se
salva. Fica é cinza. Tudo fica cinza. Sujo, sujo.

JEFSON - Eu sei bem. Mas graças a Deus eu tenho


conseguido um dinheirinho sempre, e eu paguei
uma senhora que eu conheci para tirar o encardido.
Eu sou limpo, vê (​abre a mochila e dá algumas
roupas para ela cheirar​). Tudo com cheirinho.
Cheirinho de limpo. Como eu faço de tudo em obra,
sou pintor, pedreiro, encanador, de tudo um pouco
eu entendo, então o dinheiro vai pingando. É uma
paredinha para pintar aqui, uma caixa d´água para
lavar ali, um cano furado…

ALZIRA - Ah, você faz essas coisa também?

JEFSON - De tudo, dona ALZIRA. Faço de um


tudo.

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ALZIRA - Olha! Eu vou ser sua cliente de um
montão de coisa. Aqui em casa tem um monte de
serviço pra tu. Torneira pingando, goteira, azulejo
para botar… E como é que você aprendeu tudo isso?
Fez curso?

JEFSON - Eu aprendi com meu irmão. Estudo eu


tenho pouco, Sei ler e escrever bem. Meus
garranchinho, mas dá para entender, vê a listinha
que eu fiz.

ALZIRA (​olhando para o papel que Jefson estende,


apertando os olhos​) - Ah, dá para entender bem.

JEFSON - Foi na firma de construção do meu


irmão. Ele começou ajudante de pedreiro, virou
pedreiro, mestre de obra, até que abriu a empresa
dele. Melhor empreiteiro em Acrelândia nunca teve.
Me ensinou tudo que eu sei.

ALZIRA - E porque que você parou de trabalhar


com ele? Brigaram?

JEFSON - Ele morreu. Mataram ele. Coisa da


política. Ele inventou de se meter com esse negócio
de licitação fora de Acrelândia. Ganhou num outro

39
município que ele não conhecia. Mataram. Assim,
de uma hora para outra acabou tudo.

ALZIRA - É mesmo? Que triste isso.

JEFSON - Eu quase fiquei maluco, dona. Saia pro


meio dos mato, ficava berrando. Nem lembro disso
direito. Só lembro um pouco. Os outro é que me diz.

ALZIRA - Meu Deus! Que coisa.

JEFSON - Não tinha mais ninguém nessa vida, só


meu irmão. Já perdi pai, mãe, minha única irmã…
Quando perdi meu irmão, quase pirei da cabeça.

ALZIRA - Se eu tivesse te conhecido nessa época, te


levava para a igreja que o pastor te curava na
mesma hora.

JEFSON - Me levaram, mas não adiantou. Era


tristeza. Era tristeza demais. E desespero. Tudo me
lembrava meu irmão. Melhor irmão do mundo. Por
isso que eu fui me embora de lá. Tinha casa, um
barraquinho que era do meu pai e da minha mãe.
Como sou só eu agora, era meu o barraquinho. O tal
que eu tinha pintado todo colorido. Abandonei.
Essa hora alguém já invadiu. Larguei tudo e vim-me

40
embora para Rio Branco. Não aguentei. Tive que ir
embora de lá correndo. Não consigo voltar, não.
Ainda não consigo. Acho que não consigo.

ALZIRA - Que triste. Que coisa triste. Tão novo, e já


passou por tanta coisa...

JEFSON - Não é nada não, dona ALZIRA. Vamos


em frente, não é isso? Sigamos. Não vou ficar
chorando, me fazendo de coitado. Tem que
trabalhar para ganhar o pão. Quem sabe um dia eu
faço que nem meu irmão, e melhoro um pouco de
vida. Ter uma família… que meu irmão não teve, só
trabalhou, trabalhou… Sempre dizia que ia casar e
ter filho quando tivesse dinheiro. Queria melhorar
na vida… dar um conforto para a família… não teve
nem tempo… não sobrou nada, não deixou filho…
nada. É a vida, não é? Meu irmão dizia: “se o
estrupo é inevitável, relaxe e goze”. É o que tem que
fazer. Fico pensando no meu irmão, o tanto que
trabalhou e o nada que deixou…

ALZIRA - Deixou sim, homem. Deixou tudo que te


ensinou. Eu sei disso por causa da minha filha. O
melhor presente que eu queria dar para minha filha
era ensinar ela...

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JEFSON - A senhora tem uma filha, é?

ALZIRA - Vinte e três ano. Faz duas faculdade.


Minha filha única.

JEFSON - Mora aqui com a senhora?

ALZIRA - Mora, sim. Ali naquele quarto.

JEFSON - Vinte três ano, é? A senhora então teve


filha muito jovem.

ALZIRA (​ri​) - Que nada. Tive meu primeiro filho


nova. Mas morreu no seringal. Essa aí eu não era
novinha, não, quando nasceu.

JEFSON - Se ela tem vinte e três, mais de vinte a


senhora não tinha.

ALZIRA - Ih, bem mais. (​ri um pouco,


envergonhada. Depois, para e continua a falar​)
Rapaz, eu vou fazer uma coisa. Gostei de você, é um
rapaz direito. Só quer trabalhar. Eu sei como é isso.
Quando eu precisei tanto, ninguém me ajudou. Mas
eu vou te ajudar. Tem um quartinho ali no quintal…

JEFSON - Não, dona ALZIRA, não precisa…

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ALZIRA - Escuta, rapaz. É um quartinho que eu
guardo uns material de construção que eu vou
comprando, faz tempo. Só coisa que não estraga.
Lajota, tijolo. Tem até cimento por lá. Tá meio sujo,
mas nóis limpa. Bota material de construção do
lado, cobre com uma lona. Você bota para um lado
e fica morando no outro. É um quartinho direito.
Eu e meu ex-marido tava construindo para alugar, e
quando eu botei aquele sem-vergonha para correr a
gente deixou pelo meio. Mas tem porta, janela, teto,
tudo direitinho. Não tá pintado, e o chão é de terra
batida, mas dá para viver muito direitinho. O
banheiro da casa é do lado de fora, mesmo. E o
banho é de cuia, não tem chuveiro. Aqui nessa casa
só quem tem banheiro dentro é a SARA (​aponta
para o quarto da filha​). Tem suíte. O pai mandou
construir, que ela não podia usar o banheiro lá fora,
que nem nóis sempre ​usemo​. Tem chuveiro na
suíte. Lá fora, sabe como é que é: pega a água na
caixa d´água com a cuia e joga. É o mesmo jeito que
era no seringal. Lá em Acrelândia devia ser igual,
não era? (​JEFSON concorda com a cabeça​) Você
pode usar, é só deixar tudo limpinho depois. Eu
também só tomo banho lá. Só quando tá MUITO
frio é que eu peço para tomar banho na SARA...

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JEFSON - Mas eu não tenho dinheiro para pagar,
ainda.

ALZIRA - Quem falou em dinheiro? Estou te


deixando morar por lá, não precisa me pagar nada.
Fica enquanto você não arranja um emprego de
carteira assinada.

JEFSON - Eu não sei nem o quê dizer.

ALZIRA - Fala assim: eu aceito.

JEFSON - Como é que eu podia não aceitar? Lógico


que eu aceito. Com muita gratidão. Eu vou pagar,
com meu trabalho. A senhora falou que tem lajota,
que tem coisa para fazer? Eu vou fazendo tudo que
puder nas horas que eu não tiver serviço.

ALZIRA - Então tá feito. Vai buscar suas coisas que


eu vou dar um jeito no quartinho.

(​vai na direção da porta, seguida por JEFSON.


Abre a porta​)

JEFSON - Pode deixar que eu arrumo tudo, não vou


deixar a senhora fazer nada. (​saindo​) Era só o que
faltava, abre o quarto para eu morar e ainda vai

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arrumar? Não senhora. Não deixo, não. Até já,
daqui a pouco eu tô de volta. Obrigado! Obrigado!

CENA 4
SARA chega em casa à noite. A casa parece vazia.
Em seguida ALZIRA entra em cena, vinda do
quarto de SARA. Está enrolada numa toalha, e
com uma outra toalha fazendo uma touca, em sua
cabeça.

SARA - Tomando banho no meu banheiro, dona


ALZIRA?

ALZIRA - Tava frio…

SARA - Frio? Tá doente?

ALZIRA - Foi só um pouquinho de frio que eu senti.


Bateu uns vento, choveu... Aproveitei e limpei seu
banheiro. Minha filha… Cheio de limo… Como é
que você deixa chegar a esse ponto…

SARA - Ai ai ai. Começou. (​ALZIRA passa perto de


SARA, indo para seu quarto​) Eita. Tomou banho
de perfume, foi?

ALZIRA - É que caiu muito. Tá fedendo perfume?

45
SARA - Não, não se preocupa. Vai diminuir, é
lavanda. A senhora vai aonde?

ALZIRA (​está dentro do quarto, de onde estende a


cabeça pela porta, com um sorriso envergonhado​)-
Lugar nenhum. Vou dormir daqui a pouco.

SARA - Obrigada por arrumar o banheiro. Eu ia


lavar hoje.

ALZIRA (​de dentro do quarto​)- Olha. Tenho que te


falar uma coisa.

SARA (​desconfiada​)- Fala.

ALZIRA (​desconversa, ainda de dentro do quarto​)


- Pagou a conta?

SARA (​irritada, mexendo em algum objeto da sala​)


- Meu pai pagou. Esquece isso.

ALZIRA - Tá bom. (​pausa curta. Sai de dentro do


quarto vestida de maneira simples, que entretanto
demonstra preocupação com a aparência, mas
ainda com a cabeça enrolada em uma toalha​)
Sabe aquele quartinho dos fundos?

46
SARA - O puxadinho?

ALZIRA - Isso. Tava ali sem ser usado, há tanto


tempo…

SARA - Sei.

ALZIRA - (ajeitando alguns objetos e tentando dar


a impressão de estar falando de um assunto
corriqueiro) Eu sempre ficava pensando, isso é um
desperdício de dinheiro. Tanto trabalho e dinheiro
e o quartinho tá lá às moscas.

SARA - E?...

ALZIRA - Aí eu pensei: vou dar um uso pro


quartinho.

SARA - Ahn? (​batem à porta​) Peraí. Vou atender.

ALZIRA - SARA, espera, tenho que falar…

SARA - Só um instante, vou atender e a gente


continua…

ALZIRA - Péra!...

47
SARA abre a porta e dá de cara com JEFSON,
carregando mochila e sacos de supermercado
cheios de roupas. JEFSON se surpreende, pois
esperava que ALZIRA tivesse atendido. Os dois
ficam se olhando por um tempinho.

JEFSON - Você deve ser a filha. Prazer! (​se


desvencilha de algumas sacolas para oferecer a
mão a SARA​) Eu sou o JEFSON, como é seu nome
mesmo?

SARA - SARA. (​olha para a mãe, desconfiada. Esta


se escondeu atrás da porta.​)

JEFSON - Só vim avisar sua mãe que eu tô de volta.


Vou lá para o quartinho. Acho que a porta deve
estar aberta, né? Ah… teria uma vassoura para
emprestar?

(SARA pega e entrega a vassoura a JEFSON)

JEFSON - Obrigado. Daqui a pouco eu trago. Dá


licença.

(​Sai, fechando a porta atrás de si​)

48
(PAUSA)

SARA (​com ar de reprovação​)- Dona ALZIRA!?...

ALZIRA - Eu tava pra te contar.

SARA - A senhora botou um homem para morar


aqui com a gente? Um desconhecido?!

ALZIRA - Não é desconhecido…

SARA - Quando é que a senhora conheceu esse…


esse… homem?

ALZIRA - Ixi! Eu conheço ele.

SARA - Conhece desde quando? E mesmo se


conhecer bem… EU não conheço. A senhora botou
um homem que eu não conheço para morar aqui
em casa.

ALZIRA - Qual é o problema?

SARA - O problema é que eu já não tenho


privacidade nenhuma nesse quarto que não tem
porta, e agora vai ter um homem na minha casa,
tirando de vez minha liberdade…

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ALZIRA - Ele vai morar lá fora. Não vai tirar a
privacidade de ninguém.

SARA - Ah, é? Não tira a privacidade? Então a


senhora foi tomar banho no meu banheiro porque
estava frio? Com um calor desses? A senhora foi
tomar banho na minha suíte porque ficou com
vergonha de tomar banho lá fora. Não tem
pri-va-ci-da-de, não é mesmo? Eu devia ter
entendido quando vi a senhora saindo do meu
quarto. Vê? Nunca toma banho no meu banheiro,
só quando a friagem tá doendo os ossos. Adora
tomar banho de cuia. De repente está tomando
banho no meu banheiro… E depois diz que não vai
tirar a privacidade. Já tirou. (​Pequena pausa.
Reflexiva, falando devagar e baixinho) ​E me sai
toda cheirosa…

ALZIRA - Ele é boa gente. Eu conheço as pessoa.


Você acha que eu sou boba mas eu não vou fazendo
as coisas assim, não. Eu sei o que estou fazendo. É
um menino trabalhador. Faz de tudo numa obra.
Vai fazer as coisas aqui em casa, ele falou. É
bombeiro, eletricista. Vai pintar a parede
descascada, e depois vai fazer o que falta…

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SARA (​interrompendo​) - O pintor! Ele é o pintor…
Veio pintar a parede e a senhora convidou para
ficar! Não acredito!... O que é que falta mais na
minha vida, meu Deus? Que cruz é essa que eu
carrego!? Daqui a pouco vai ter o gari morando na
sala, o pedinte debaixo da soleira...

ALZIRA - Eu ALUGUEI o quartinho, SARA.


Aluguei, pronto. Aluguei. Inquilino a gente não
precisa conhecer antes, não é? Arruma inquilino até
pelo jornal, no anúncio. Não precisa conhecer. Eu
aluguei o quartinho que tava parado. Agora vai
ajudar a pagar os iorgute. Vou poder tomar iorgute
também. Porque não? E o rapaz é boa gente. Eu sei.

SARA - Sabe nada. Como é que você sabe?

ALZIRA - Eu sei, eu sei dessas coisa. Conheço


gente.

SARA - Como é que conhece. Nunca saiu do Acre.


Não conhece nada da vida.

ALZIRA - Sou analfabeta mas não sou burra.


Conheço a vida muito bem. Eu sou inteligente.

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SARA - É, dona ALZIRA. Inteligente a senhora é. O
que falta é o conhecimento. Para entender o
mundo. Quem não lê não entende o mundo. Não
consegue ter pensamento abstrato.

ALZIRA - Não me falta conhecimento nenhum. Eu


aprendi na universidade da vida. Não sei o que é
esse tal de pensamento abstrato, mesmo. Mas sei
um monte de outras coisa. O estudo não faz falta
para a gente ter vergonha na cara, e saber fazer o
que é certo. E saber o que é errado.

SARA - Pensamento abstrato, mãe, é a capacidade


de ter ideias profundas. Capacidade de refletir
sobre o mundo em que vive. Não pensar só na
barriga, no momento. Pegar as situações que vive e
entender, e poder comunicar. Comunicar um
pensamento, não só as coisas que acontecem,
entendeu?

ALZIRA - Mas eu sei fazer isso. Sei muito bem. Não


precisei da escola para aprender…

SARA - Ah, sabe? Então fala para mim. Um


pensamento. Que a senhora refletiu e deduziu. Me
diz…

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ALZIRA - Eu falo… eu falo…

SARA - Fala!

ALZIRA - “Se o estrupo é inevitável, relaxe e goze!”

SARA - Ah, não. Não acredito.

ALZIRA - Viu, eu também tenho meus pensamento.

SARA - Logo esse, mãe? Logo esse?

ALZIRA - Que que tem?

SARA - Me explica o teu ‘​pensamento​’, então. Me


explica isso aí que você falou.

ALZIRA - Eu explico. Explico. É que a gente não


pode ficar chorando as coisas ruim que acontece.
Tem que tocar a bola pra frente. Se o estrupo não
dá para evitar, a gente relaxa e goza, não é assim
que fala?

SARA - Mãe, quando eu acho que não pode ficar


pior, aí é que vem a porrada. Você pensou nisso que
você falou? Se o ESTUPRO for inevitável… Como é
que relaxa e goza? Gozar é um ato de ternura, de

53
compartilhamento do prazer. Estupro não tem
prazer, mãe.

ALZIRA - É, mas às vezes não adianta chorar o leite


derramado.

SARA - Mais um ditado sem reflexão nenhuma.


Reforça a dominação masculina, você entende? Ah,
tô jogando meu tempo fora. Não vai entender…

ALZIRA - Minha filha, não adianta. O JEFSON vai


ficar aí. Já decidi. Ele vai ficar lá fora, não vai ficar
misturado com a gente. Inquilino é assim. Paga o
aluguel, fica lá fora. É isso que vai ser na minha
casa.

SARA - ‘Minha casa’? Essa casa é no mínimo nossa.


É minha, na verdade. É seu usufruto, até morrer.
Mas é minha. E a gente vive junto. Tinha que ter
falado comigo. Ele já pagou o mês?

ALZIRA ​(entrando no quarto)​- Pagou, pagou.

SARA - Cadê o dinheiro? Me dá a metade aqui.

ALZIRA ​(saindo sem as toalhas)​- Que dá a metade,


que nada! Esse dinheiro é meu. Para comprar suas

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coisa, mas para mim também. Aqui que eu vou dar
dinheiro do aluguel na sua mão.

SARA - Devolve o dinheiro para ele e manda ele ir


embora,

ALZIRA - Não vou fazer isso. Tenho palavra. Disse


que podia ficar. Peguei o dinheiro do homem. Não
devolvo. Não devolvo mesmo. Ele vai ficar.

SARA - Já entendi. Ok, fica esse mês que já pagou.


Mas mês que vem vai sair. Não vou aguentar isso
mais que um mês. Se a senhora não falar com ele eu
mesma falo.

ALZIRA - Não vai falar nada. Eu te proíbo, menina.


Não vai falar.

SARA (​saindo​) Um mês, hein. Só aguento um mês.


Eu já avisei. Tá avisado. Não me espera. Vou dormir
fora. (​sai​)

ALZIRA (​para fora, com a porta aberta​) - Vai


dormir onde, menina? Fala para sua mãe! Eu não
sossego quando você está fora!

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SARA (​de fora​) - Na casa da Marisa! Onde o quarto
tem porta!

ALZIRA (​para si​) - Essa menina… Que que eu faço


com essa menina?...

JEFSON aparece na porta, que ficou aberta.


Parece constrangido.

JEFSON (​entrando​) - A senhora me desculpa. Não


deu pra não ouvir.

ALZIRA - Me desculpa você. Isso não era para


acontecer assim.

JEFSON - Mas ela tem razão, dona ALZIRA. Vocês


não me conhece. Vou tirar a liberdade das duas. E
eu nem tô pagando nada. Eu vou embora.

ALZIRA - O que é isso? Não vai embora não.

JEFSON - Eu não quero criar problema. Vou pegar


minhas coisa e vou.

ALZIRA - Nem pense nisso. Se você for embora eu


vou ficar magoada. Fico zangada, mesmo. Você não
vai. Só por cima do meu cadáver…

56
JEFSON - Pensa bem, dona ALZIRA. Vou trazer
problema para a senhora e sua filha.

ALZIRA - Problema eu já tenho, meu filho. Não é


você que está trazendo. Tudo que eu faço essa
menina é do contra. Não sei mais o que fazer…
(​esconde o rosto​)

JEFSON (​constrangido​) - Ô, dona ALZIRA. Não


fica assim. Não quero deixar a senhora triste.

ALZIRA (​chorosa​) - Não é você… É essa situação


que eu vivo… Você só vai me deixar triste se for
embora. Se cair na coisa dessa menina mimada pelo
pai, mimada!... Aí você ia me deixar muito triste. Se
eu deixo ela fazer tudo o que quer… Me toma a
casa… Você vai ficar, não vai? Diz que vai ficar. A
casa é minha. Ela não manda. Vê se pode uma
mulher adulta ter que pedir permissão para a filha.
A casa é minha, todo mundo tem direito a pelo
menos mandar na sua casa. Quando ela trabalhar,
tiver a família dela, o dinheiro dela, A CASA DELA,
ela faz o que ela quiser. Mas aqui mando eu.
Então?... Você fica?

57
JEFSON - Falando assim… Fico, fico. Eu fico. Não
vou fazer essa desfeita com a senhora. Sou muito
grato. E a senhora pode dizer para ela que eu não
vou tirar a liberdade dela. Sou de respeitar os
outros. Vou respeitar, sempre.

ALZIRA - Eu sei, meu filho. Eu sei disso.

JEFSON (​vai caminhando em direção à saída, mas


se interrompe e volta​) - Uma coisa que eu podia
fazer era botar uma porta para sua filha. Ela ia se
sentir melhor, ter mais privacidade… Tem uma
porta meio velha lá na obra que eu tava fazendo. Na
verdade tem é duas. O patrão falou que ia jogar
fora. Tão meio velha, mas não tem bicho nem nada.
Se eu lixar e pintar… E como a senhora já vai
comprar lixa e tinta… É só comprar umas cinco lixa
de madeira. A tinta eu uso o mesmo azul. O cimento
a senhora já tem. Vou colocar a porta. A dela e a da
senhora.

ALZIRA - Isso, meu filho. Ela vai ficar feliz.

JEFSON (indo em direção à porta) - ​Posso pedir


um favor para a senhora?

ALZIRA - Pode.

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JEFSON - É que… a senhora podia para de me
chamar de filho?

ALZIRA - Ôxi. Chamo de que?

JEFSON - Chame de JEFSON.

ALZIRA - Jefson. E pode parar de me chamar de


senhora. Chame de você.

JEFSON (​saboreando a palavra​)- Você.

BO

Cena 5
De noite. JEFSON instala uma porta no quarto de
SARA. ALZIRA está com um conjunto de moleton,
escolhendo o feijão, sentada à mesa. SARA chega.

ALZIRA - Olha, SARA, o que o JEFSON está


fazendo para você. A porta que você tanto queria…

JEFSON - Boa noite.

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ALZIRA - Ele trouxe duas porta. Ia jogar fora. Tão
novinha. Lixou, pintou, tá vendo? Novinha em
folha.

SARA - Apanhou no lixão? Ganhei uma porta do


lixão, foi?

ALZIRA ​(revoltada)​- Que lixão o que? Não seja


ingrata.

JEFSON - Não tava no lixo, tava na obra que eu


trabalhei. Boa de tudo, não tem cupim nem nada. E
agora tá novinha, que nem sua mãe disse.
(​Acabando de instalar uma madeira escorando a
moldura da porta​) Pronto, já tá colocada. Só falta a
outra agora.

SARA - Então me dá licença que eu vou me trancar


no meu quarto, que finalmente eu vou poder…

JEFSON (​interrompendo​) - Ah, não vai poder


fechar ainda. Tem que secar o cimento. Amanhã ou
depois já vai poder fechar.

SARA - Ah, ainda não pode fechar, é? Eu tava


sonhando acordada…

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ALZIRA - São dois dias só, o que que tem? Passou
tantos anos querendo uma porta, e agora que tem,
graças ao JEFSON, é essa ingratidão.

SARA - Ah, eu sou muito agradecida. Agora eu vou


poder me fechar e ter privacidade. A privacidade
que ele mesmo me tira por estar aqui. Um homem
que eu nem conheço.

ALZIRA - Não é nada disso. Deixa de coisa. De ser


malcriada.

JEFSON - Ela tem razão, dona ALZIRA. Eu tô de


saída. Pode deixar que eu não vou ficar por aqui
dentro não. Só vim botar a porta. Meu lugar é o
quartinho lá de fora. Aqui vocês pode ficar à
vontade. Só pensei na porta porque sua mãe disse
que você queria. Quis ajudar. Para mim não custava
nada. Eu já tô saindo...

SARA - Não precisa. Eu só vou pegar umas coisas.


(​entra no quarto​)

JEFSON deixa algumas ferramentas e pega outras


em sua caixa de ferramentas. Em seguida. vai
trabalhar na outra porta, dessa vez do quarto de
ALZIRA. Durante todo o diálogo que se segue ele

61
estará mexendo na porta enquanto acompanha
com os olhos a discussão de mãe e filha,
timidamente e sem esboçar reações a não ser a
diminuição eventual da atenção dedicada ao seu
trabalho, ou a retomada do ritmo de trabalho em
seguida.

ALZIRA - Vai sair? Nem bem chegou?

SARA (​de dentro do quarto​) - Vou dormir na


Marisa.

ALZIRA - De novo? Você tem casa. Não é largada


por aí, de ficar dormindo cada hora em um lugar.

SARA (​ainda de dentro, falando com voz de


falsete​) - Qual é o problema? E o que você tem a ver
com isso? É a minha vida. Você não tem nada a ver
com isso!

ALZIRA - Sou sua mãe e tudo de você eu tenho a


ver. Sou sua mãe! Ninguém no mundo te quer
melhor do que eu. Nem seu pai. Tudo eu tenho a
ver!

SARA ​(saindo do quarto com uma mochila cheia


de roupas, ainda colocando as últimas peças de

62
roupa e fechando a mochila) - Eu volto quando a
porta puder fechar. Até lá vou ficar na casa da
Marisa.

ALZIRA - Para que ficar incomodando os outros?


Você tem casa.

SARA - Não incomodo ninguém. A Marisa não se


importa. Sempre me diz para me mudar para lá.

ALZIRA - Se mudar para lá? Que maluquice é essa?


Eu nem conheço essa menina. Você vai sempre na
casa dela, mas nunca traz aqui em casa. Tem
vergonha? Seu pai já conhece essa menina? Como é
que você anda com uma menina que ninguém
conhece, dorme na casa…

SARA (​interrompe​) - Ah, agora vai dizer isso?


Quem diria… Não sou eu quem traz desconhecido
para morar em casa.

ALZIRA - Meu Deus do céu, vai começar com isso


de novo. Eu conheço a vida, menina. Sei quem são
as pessoas só de ver.

SARA - E eu não posso saber também? Eu sei muito


bem quem é a Marisa.

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ALZIRA - Não sabe nada, não viveu para saber. E
nem conhece essa menina direito. Conhece daonde?
O que você sabe dela?

SARA - Sei tudo dela. Sabe de onde conheço? Da


cama. Isso mesmo. Da cama. Cama, mesa e banho.
(​ri da reação horrorizada da mãe​) Isso mesmo,
dona ALZIRA, sua filha é lésbica. Lésbica!

ALZIRA - Como assim, lésbica?

SARA - A senhora sabe muito bem o que é. Lésbica,


o que é que tem? Mulher que gosta de mulher.
Sempre fui. Nunca gostei dos meninos, gostava é de
brincar de casinha… e de médico… com as
meninas!

ALZIRA - Não acredito que estou ouvindo isso.

SARA - O que é que tem? Ficou chocada?

ALZIRA - Não esperava…

SARA - Agora você sabe. A Marisa é minha


namorada. A senhora quer conhecer? Conhecer
com quem eu ando? Vou trazer a Marisa aqui. Para

64
apresentar como minha namorada. E aí, quando a
porta puder fechar, ela vai poder vir dormir aqui
também. Na minha casa.

(​PAUSA​)

ALZIRA (​triste​) - Pode trazer. Eu prefiro conhecer


ela. Saber quem ela é. Quero conhecer essa aí que
virou a sua cabeça…

SARA - Virou minha cabeça? Então a senhora vai


culpar ela de eu ser lésbica?

ALZIRA - Não vou culpar ninguém… você que sabe


sua vida… eu falei virou a cabeça porque você está
gostando dela… não é isso?

(​SARA está indo na direção da porta, mas ao ouvir


isso ela para, surpresa com a reação da mãe​)

SARA - Não vai me condenar, não? Não vai


derramar as críticas de sempre…

ALZIRA - Gosta dela ou não gosta? Ou é só…

SARA - Mãe, eu gosto. Gosto dela, sim. Amo. Nunca


tinha gostado de ninguém desse jeito. Estamos

65
juntas há quase cinco meses. (​pausa​) Bom, eu vou
sair. Me liga quando der de fechar a porta, que eu
venho.

ALZIRA - Nunca pensei que ia passar por isso.

SARA (​indo em direção à porta​) - Não fica assim,


mãe. Desculpa ter te dito desse jeito. Eu ia ter que
te dizer, mais cedo ou mais tarde. (​olha para
JEFSON​) Foi na hora ruim, só isso. Olha, não tem
nada de errado. Eu não tô fazendo nada de errado.
Qualquer maneira de amor vale a pena, lembra da
música? O importante é o amor. (​sai​)

ALZIRA e JEFSON ficam sós, em silêncio. ALZIRA


está em estado de choque. JEFSON se aproxima,
lentamente. Abraça ALZIRA.

JEFSON - Dona ALZIRA, eu…

ALZIRA (​interrompe​) - ALZIRA.

JEFSON - ALZIRA…

ALZIRA - JEFSON.

66
A cena termina com um blackout, com ALZIRA e
JEFSON abraçados e olhando-se nos olhos com
ternura.

Cena 6
Palco vazio. A cena acontece bem cedo, de manhã.
JEFSON entra em cena, vindo do quarto de
ALZIRA. Ele traz um rádio portátil, e bota para
tocar uma música. Um brega dos anos 80. Vai
lavar a louça - apenas dois copos sujos de vinho e
um pratinho de sobremesa. ALZIRA entra quando
JEFSON acaba de lavar a louça. Está vestida com
uma roupa de ficar em casa: uma camiseta de
algodão que é quase uma saia, folgadona e
surrada, e uma bermuda com cara de masculina.

JEFSON olha para ALZIRA. Ficam um momento


se encarando, ela com um meio sorriso na cara, e
ele sério.

ALZIRA - Tô sentindo culpada.

(PAUSA)

JEFSON - A senhora…

ALZIRA faz uma cara feia

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JEFSON - ​Você​… Você acha que a gente fez mal?

ALZIRA - Não é isso não, bobo. Tô culpada é de


querer que a SARA fique um bom tempo lá pela
casa da amiga.

JEFSON ri

ALZIRA - Foi um choque essa coisa que ela me


falou. Nunca tinha pensado nisso! Pensava que
minha filha fosse normal…

JEFSON - Mas, normal? Quem é que é normal?

ALZIRA - Não foi isso… eu sei que não é anormal.


Nunca tive problema com isso. Não jogo pedra.
Apesar que diz que a palavra de Deus… Mas eu não
julgo, não acho certo julgar os otro.

JEFSON (​suave​) - Relaxa. Isso não tem nada a ver.

ALZIRA - Eu não esperava, entende? Foi só o susto.

JEFSON - Teve uma vizinha minha. A gente foi


criado junto, a vida toda morando na mesma rua.
Ela era a mais bonita da rua. Todo mundo arrastava

68
a asa. Mas a gente era só amigo mesmo. E ela era
namoradora. Namorou com uns menino lá do
ramal. Mas aí um dia apareceu com a Cláudia, uma
machuda que o povo chamava de sapa-boi. É que
ela parecia com um sapo-boi, mesmo. Aí o povo não
perdoava. Chamava ela de SAPA-boi, vê isso?

ALZIRA (bem-humorada, choraminga de


brincadeira) - Minha filha é sapatão. Tá dormindo
na casa da outra Sapa-boi.

JEFSON - Que é isso? Não se liga nisso não. Vê,


essa minha amiga que casou com a machuda.
Casou. Tão juntas até hoje. Ela trabalha no
supermercado de lá. De gerente! Tem carro, e coisa
e tal. Vida normal. Se liga nessa não.

ALZIRA - Sabe, você fala esquisito.

JEFSON - Esquisito, como?

ALZIRA - Sei lá… Você é de Acrelândia, não é isso?


E como é que fala desse jeito? Chegou há uns
pouquinhos mês, e já fala que nem os jovem aqui da
cidade. Cheio de gíria, de malandragem.

JEFSON - É que eu não vim direto de Acrelândia…

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ALZIRA - Teve em uns outro município?

JEFSON - Quem me dera. Foi prisão, ALZIRA.

(​silêncio​)

JEFSON - Ficou assustada?

ALZIRA - Não fico, não. Eu conheço as pessoa. E


você eu cheguei perto. Num é má pessoa. Sei disso.

JEFSON - Foi uma bobeira. Fiquei meio maluco


quando mataram meu irmão. Dois dia sem falar.
Estado de choque. Aí quando eu fiquei melhor, né,
vieram com uma proposta, que era para mim ir pro
Ceará, levar umas coisa. Dizia que ia dar tudo
certo… mas não deu. E eu peguei um ano e oito
mês, primeiro no xadrez, e depois na penal.

(​silêncio​)

ALZIRA - Olha, muito bom você me dizer isso. Fico


mais confiante ainda. Não gosto de mentira. Se eu
um dia descobrisse por outra pessoa, aí não
confiava mais. Sempre digo: confiança é difícil de
conquistar e fácil de perder.

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JEFSON - Não quero isso. Sou agradecido. Não vou
perder sua confiança. Para mim vale muito. Tudo.
Tudo isso vale muito para mim.

ALZIRA - Uma coisa. A SARA não pode saber.


Ninguém. Não conta para ninguém.

JEFSON - Não sou dessas coisas, de ficar


esplanando por aí. Não ia expor uma dama, nunca.
Mas a SARA não ia se importar. É uma pessoa de
cabeça aberta. Qualquer maneira de amor…

ALZIRA -É, você deve estar certo.

JEFSON - ​(procurando alguma coisa) ​Você viu as


chaves do meu quartinho?

ALZIRA - Não deixou lá no quarto?

JEFSON - Deve ter sido.

ALZIRA - Pode ir lá.

JEFSON - Imagina, não vou entrar no seu quarto


sozinho.

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ALZIRA (​rindo, meio envergonhada​) - Pode ir,
pode ir.

JEFSON - Vamo lá comigo.

ALZIRA (​levantando e indo na direção do quarto​) -


Que coisa, pode ir lá.

JEFSON E ALZIRA entram no quarto.

ALZIRA (de dentro do quarto) - JEFSON!? Menino!

Cena 7
Hora do almoço. ALZIRA está colocando pratos,
copos e talheres na mesa, para duas pessoas.
Flores artificiais no centro. A porta abre, e entram
SARA e MARISA.

ALZIRA - SARA, que bom! Não me avisou que


vinha…

SARA - Mãe, essa aqui é a MARISA.

MARISA - Prazer em conhecer. A SARA sempre fala


na senhora.

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ALZIRA ​(surpresa) - MARISA? Nossa, eu pensava
que…

SARA ​(preocupada, em tom de reprimenda) -


Mãe…

ALZIRA (​continuando​) - Não, é que… eu pensei


que… sua ​(procurando as palavras) namorada… ia
ser...

MARISA (​divertida, buscando cumplicidade​) -


Pensou que ia conhecer uma mulher
masculinizada…

ALZIRA - Isso!

MARISA (​imitando um homem musculoso,


bem-humorada​) - Uma machona…

ALZIRA - Uma sapa-boi… Gordona e coçando as


partes que nem homem…

(​ALZIRA e MARISA riem juntas. SARA está


surpresa e desconfiada com a cumplicidade das
duas​)

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MARISA - Isso é um estereótipo, dona ALZIRA. A
senhora sabe o que é um estereótipo?

ALZIRA - Ixi. Num sei não.

MARISA - É uma imagem preconcebida, um


chavão… Como por exemplo quando alguém acha
que uma lésbica é sempre masculinizada, ou que o
gay masculino é afeminado. Se a gente for ver, nem
toda pessoa que tem características do outro sexo é
homossexual, e nem todo homossexual… entende?
Mas o estereótipo faz a gente achar que é sempre
daquele jeito… Todo mundo passa por isso, com
uma coisa ou com outra.

ALZIRA - Ah, entendi. Estereó-ti-po. É assim que


fala?

MARISA - Isso mesmo, dona ALZIRA.

ALZIRA - Viu, SARA, a burra véia aqui ainda


aprende uma coisinha ou outra. Estereó-ti-pi.

SARA - Estereótip​O​!

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ALZIRA - Isso, eu sei. ​(mudando de assunto) E a
senhora, hein, dona SARA? Seis dia sem vir em
casa! Isso não se faz.

SARA - Eu vim em casa. Peguei roupa, peguei meus


livros. A senhora não notou?

ALZIRA - Eu notei. Só não te vi.

SARA - Eu vim à noite, a senhora estava dormindo


já. É que meu pai estava ocupado de dia, só pôde vir
me trazer à noite.

ALZIRA - Só carregada pelo pai, para cima e para


baixo. Não aceito isso.

MARISA - Eu também acho um absurdo, dona


ALZIRA. Eu falo isso para ela. Ela tem que
aprender a andar de ônibus, não pode ficar
dependendo do pai.

ALZIRA ​(para SARA) - Tá vendo? ​(para MARISA)


Dá uns conselhos para essa menina, MARISA. E me
desculpa minha filha pendurada lá pela sua casa,
incomodando. Fico envergonhada com isso. Ela não
é largada, tem casa e família.

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MARISA - Que isso, ela não incomoda. Eu é que
convido. É que a gente está muito grudada. Mas eu
prometo que vou tirar menos a sua filha de casa. Se
a senhora não se importa que eu durma aqui… ​(dá
a mão a SARA)

(breve silêncio)

ALZIRA - Meu Deus, você vai entrar naquele


quarto? Vai ver o furdunço em que essa menina
vive. Eu tenho até medo de entrar lá. Você é
bagunceira que nem a SARA?

SARA - Mudando de assunto: como é que está a


bóia? Eu chamei a Marisa para almoçar.

ALZIRA ​(um pouco ansiosa) - Mas você nem me


avisou… Só tem arroz, feijão, farinha e bife. Não
tem comida que vocês come…

SARA - A MARISA não é vegana. Até carne de


porco ​(faz uma careta)​ ela come.

MARISA - Não tenho frescura, sogrinha. A SARA


falou que a senhora é uma cozinheira de mão cheia.

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ALZIRA ​(com um riso amarelo no rosto)​- Ah,
então vamos sentando. SARA, peraí que eu vou
cortar um tomatinho para você. E tem também
macaxeira.

(Enquanto as três sentam à mesa, JEFSON


destranca a porta de entrada e entra com um
refrigerante na mão. Ele não percebe
imediatamente que SARA e MARISA estão à mesa)

JEFSON - ALZIRA, desculpe a demora. É que não


tinha guaraná no posto, tive que ir até o mercado…
Mas tá aqui o Tuxaua que a gente gosta.

( Ele guarda as chaves no bolso, e só então percebe


que não estão sós.)

JEFSON ​(constrangido) ​- Ô, me desculpa. Tudo


bem, SARA? A porta já fecha, direitinho.

SARA - Ah, ok.

JEFSON - Então tá aqui seu guaraná, dona


ALZIRA. E seu troco. Vou lá para o meu quartinho.

ALZIRA - Vem almoçar com a gente.

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JEFSON - Obrigado, mas a senhora está com visita,
eu não quero incomodar.

ALZIRA - Não incomoda, não. Fica.

JEFSON - Não, a senhora estava com saudades de


sua filha. Tem que colocar o papo em dia. Dá
licença… (​sai​)

(Todos silenciam. ALZIRA começa a servir o


almoço)

SARA - Não estou acreditando nisso.

ALZIRA - Nisso o que?

SARA - A senhora deve estar ficando doida.

ALZIRA - Doida porque?

SARA - Primeiro coloca um homem desconhecido


dentro de casa. Agora, pelo que eu pude ver, ele está
com a chave da casa, e comendo de graça na Pensão
ALZIRA? ​(para MARISA) Reparou nos dois pratos
na mesa? Não era para mim, não, que eu não venho
nunca em casa para almoçar. ​(para ALZIRA) Com

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direito ao guaranazinho, é? Tá dando moleza para
vagabundo agora? Pirou de vez?

ALZIRA - Ele é um bom rapaz. Não é vagabundo. É


trabalhador. E eu fiz o almoço para ele, sim. Porque
ele pintou a parede que estava descascando, e
ajeitou a goteira que tinha. Péra, vou chamar ele
para almoçar. Não é justo. ​(sai atrás de JEFSON)

MARISA - SARA, você pegou pesado. Que é que


tem ela ter um parceiro?

SARA - Não, ela não tem nada com ele, não. Ela
deve ser mais de vinte anos mais velha que ele.

MARISA - E daí, SARA? Sua mãe é uma mulher


interessante.

SARA - Imagina, ele é jovem, deve ter um monte de


mulher atrás dele, não ia olhar para uma…

MARISA - Uma velha, é isso que você quer dizer?

SARA - ​(sem ouvir, aterrorizada pela perspectiva


de ALZIRA estar tendo um caso) ​Ah, não estou
acreditando.

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MARISA - Sua mãe está longe de ser velha…

(ALZIRA volta, decepcionada)

ALZIRA - Não quis vir, de jeito nenhum.

SARA - Mãe, olha só que engraçado. A MARISA


pensou que você e o sujeito aí tinham alguma coisa.

MARISA - Eu só pensei…

SARA ​(atropelando a fala de MARISA) ​- Vê se


tinha cabimento…

(ALZIRA está séria)

SARA ​(continuando) ​- Só se ele estivesse atrás de


outra coisa… Casa de graça, comidinha na mesa,
guaranazinho…

MARISA ​(chocada)​ - SARA!

SARA - Mas tinha que ser muito otária para


acreditar que…

ALZIRA ​(grita, numa explosão)​ - Cala a sua boca!

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(SARA se assusta com a reação da mãe)

SARA - O que é…?

ALZIRA - Cala essa boca. Não vai fazer assim


comigo. Eu não sou um lixo, sou gente. Que nem
qualquer um… ​(pausa)​ A gente se gosta.

SARA - Não acredito…

ALZIRA - Isso mesmo, a gente se gosta.

SARA - Mãe?!

ALZIRA - Esses seis dia que você passou fora foi


uma lua de mel, quase uma lua de mel. Seis dia,
mas parece que foi um tempão. Não é que eu gostei
de você tá fora, não é isso...

SARA - ​Você tá de férias. Mas e ele? Ficou seis dias


na vagabundagem, só comendo do bom e do
melhor, sendo bancado pela coroa…

ALZIRA - O que é que você tem a ver com isso? Se


eu tô bancando, se não tô. Isso é coisa minha. Mas
eu tô te dizendo que a gente se gosta.

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SARA - Tá bancando com o meu dinheiro. Com o
dinheiro que meu pai manda para minha pensão.
Na minha casa. Não me perguntou nada, Tirou
minha liberdade e botou essa ‘coisa’ na minha casa,

ALZIRA ​(revoltada) - ​Seu dinheiro o que, menina?


SUA casa? Essa casa é MINHA! MINHA! Nem sua
nem de seu pai. Eu paguei ela toda, tô pagando.
Trabalhei, dei duro a vida inteira. Chamo quem eu
quiser para morar aqui. Alugo quarto se quiser,
chamo namorado para morar, o que eu quiser.

SARA - Namorado?

ALZIRA - Isso, namorado. Qual é o problema?


“Qualquer maneira de amor” não vale a pena?...

SARA - Mas você nem conhece o sujeito! Não sabe


de onde vem, se é bandido, maluco, estuprador,
assassino em série… Tem que fazer os antecedentes
criminais para saber, se foi preso ou qualquer coisa.

ALZIRA - Não precisa de antecedente, ele ficou na


cadeia sim. Me falou, não fui eu que perguntei. Um
ano e meio, uma coisa assim. Pegou de traficante.
Mas não foi nada, foi só um passo em falso. Quem

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não pode cair numa dessa, de fazer o errado uma
vez na vida? Pagou, tá livre, vida nova.

SARA - Mãe, você deve estar maluca. Botou um


bandido para morar na minha casa… O que é isso?
Você está colocando a minha vida em perigo.
Porque você se colocar em risco, é ruim mas vai.
Mas eu não tenho nada a ver com isso. Você é muito
egoísta. Só pensa em você mesma. Você não é mais
uma garotinha. É mãe de família. Tem sua casa e
sua filha para cuidar... Eu vou embora daqui.
Vamos, amor. ​(sai, pisando forte)

MARISA - Desculpa, dona ALZIRA. Não sei o que


deu nela.

ALZIRA - Não se preocupa comigo, MARISA. Você


é uma boa menina. Gostei mesmo de ti.

SARA (​de fora​) - MARISA!

MARISA sai atrás de SARA.

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Cena 8
ALZIRA e JEFSON chegam com compras. Ela está
toda agasalhada.

ALZIRA - Ufa, que frio! Não aguento essa friagem.


Ainda bem que é só uma ou duas vez por ano.

JEFSON - Que frio o que? Vinte e poucos graus.


Nem friagem isso é. Friagem aqui no Acre dá abaixo
de quinze graus. E eu adoro.

ALZIRA - Para mim é frio demais. Não gosto


mesmo. Odeio. Quando dá essa friagem eu tenho
vontade é de ficar o tempo todo debaixo do
cobertor. E para tomar banho, então?... Só se for no
banheiro da SARA. Lá fora, tomando banho de cuia,
não dá mesmo. ​(mudando de assunto enquanto
tira as compras das sacolas) ​Essa parede azul aí
ficou bonita, não foi?

JEFSON - Eu gosto.

ALZIRA - Só serviu para nós se conhecer, não foi?


O tal professor das universidade, que eu pintei a
parede por causa dele, para não ver aquela coisa
descascada que tinha… esse não deu as caras.
Nunca mais. Falou, falou, falou, e nada.

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JEFSON - Pois é.

Barulho de portão abrindo e fechando do lado de


fora.

ALZIRA - Ó, é a SARA chegando. Melhor você ir lá


para trás.

JEFSON - Vou sim. (​dá um selinho em ALZIRA, e


caminha na direção da porta de saída​) Ela ainda tá
te culpando?

ALZIRA - Tá o mesmo jeito. (​segurando a porta e


acompanhando a saída de JEFSON. SARA chega
pelo outro lado, e entra)

ALZIRA ​(para SARA, que entra e senta-se,


espalhando mochila para um lado e chaves da
casa para o outro) ​- Ó, comprei as coisinhas que
você gosta. Brotinho de feijão, hoje tinha no Araújo.
Quando tem eu compro, viu? Esse negócio branco,
como é que chama mesmo? ​(segura um nabo)

SARA ​(sem ânimo)​ - Nabo japonês.

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ALZIRA - Isso, sabia que era alguma coisa japonês.
Os olhos da cara… Olha, couve. (​mostra a couve​)

SARA - Ih, toda amarela.

ALZIRA - Também arroz ‘intregal’, feijão, fruta,


esses verde aqui… Tu não pode reclamar, hein? Vê
se para de reclamar. Vou fazer um almocinho do
jeito que você gosta.

SARA - Tô sem fome.

ALZIRA - Mas menina, não pode ficar assim, tem


que voltar para a vida normal.

SARA - Que vida normal?

ALZIRA - Vida normal… Só fica aí, paradona. Não


come direito, só sai para ir para a faculdade. Tem
que sair com as amigas, namorar…

SARA (​revoltada​) - Namorar? Levei um pé na


bunda da Marisa. Não quero namorar mais
ninguém. Nunca mais vou querer. A mulher que eu
amo me dispensou.

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ALZIRA - Mas isso vai passar. Quando a gente é
jovem é assim mesmo. Pensa que vai desabar o teto
na nossa cabeça, que é o fim do mundo. Mas não é,
não. A vida segue. E a Marisa pode mudar de idéia
amanhã ou depois…

SARA (​interrompendo, incrédula​) - Mudar de


idéia…

ALZIRA - Isso, as coisa muda. Amanhã ela sente


saudades e te procura. E você também pode
conhecer outra pessoa. A gente não sabe o dia de
amanhã. Vai que aparece um rapaz… (​fazendo uma
careta​) ou mesmo uma moça… Mas você tem que
sair de casa, ir para as baladas, como vocês fala.

SARA - Eu vou ficar aqui mesmo. Para tomar conta


da minha casa. Não confio nesse sujeito que você
botou aqui em casa.

ALZIRA - Já vem você de novo. Não fala do


JEFSON. Ele só tem vindo aqui dormir. Arrumou
emprego, trabalha de sol a sol. E olha, tá botando
dinheiro em casa. Consertou o pinga-pinga da
torneira lá de fora, botou cadeado novo no portão.
Tudo com o dinheiro dele. Foi só ganhar o primeiro
salário que ele começou a trazer dinheiro. Nem

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precisava, eu disse para ele. É só você olhar e ver
que ele é um bom homem. Não precisa cuidar da
casa. Eu cuido bem dessa casa. E ele me ajuda.
Pode ter certeza.

SARA - Eu tô cuidando é da senhora também.

ALZIRA - De mim? Porque eu tenho que ser


cuidada?

SARA - Eu é que sei…

ALZIRA - SARA, porque é que você tem tanta


ruindade com o JEFSON? (​preocupada​) Ele
alguma vez olhou para ti? Mexeu contigo?

SARA - Não, não é isso. Mas ele é homem. Tira


minha privacidade. Não quero esse homem que
você botou aqui.

ALZIRA - Então, ele não fez nada para você ter


tanta raiva… E comigo, também. Porque sempre me
responde torto, não faz mais um carinho… Eu sou
sua mãe. Sou sua melhor amiga. Passei a vida
inteira me matando para te sustentar, para te fazer
as vontades, para te deixar a cabeça boa para
estudar. Na sua idade eu tava trabalhando duro,

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começava de noite ainda. Você tem tudo na vida, o
que quer mais? Não pode ser assim. A vida não é
assim. Você tem dois braço, duas perna, saúde, é
jovem. Dia desse eu bato as botas, como se diz, e
você vai sentir falta…

SARA - Quer saber porque eu tenho raiva? Eu te


digo. É porque você inferniza minha vida.

ALZIRA - Infernizo? Eu?

SARA - Não aguento mais ouvir esse mesmo


discurso. Você é a mãe perfeita, que fez tudo por
mim. Já eu sou a toda errada. Que não faz nada
certo.

ALZIRA - Não é assim. Você não faz tudo errado. E


eu não sou perfeita.

SARA - Isso eu sei bem.

ALZIRA - O que eu fiz de tão errado assim? Me diz


porque você me trata desse jeito.

SARA - Você sabe muito bem.

ALZIRA - Não sei, não.

89
SARA - Sabe sim!

ALZIRA - Não sei! Minha consciência tá limpa,


limpinha.

SARA (explodindo) - Ah, não sabe? Então a senhora


não sabe que acabou com meu namoro? Que botou
a mulher que eu amo contra mim? Ela agora não
quer mais ver minha cara. E a culpa é sua. Sua e do
bandidinho que se entrujou por aqui.

ALZIRA - Não chama ele de bandido.

SARA - Chamo sim. Bandido! Presidiário! Por


causa dessa coisa que você botou aqui em casa que
eu não saio mais.

ALZIRA - Menina, que coisa! Eu não ia botar um


bandido aqui. Você acha o que? Que tem que ficar
vigiando senão ele ia roubar os tesouros que a gente
tem aqui em casa? Nem tem nada para roubar… Só
se for o seu computador…

SARA - Eu estou vigiando é a senhora. Para a


senhora não transformar minha casa num motel!

90
ALZIRA (​chocada, e sem palavras​) - SARA!?

SARA - Isso mesmo, dona ALZIRA. Se eu deixasse


a senhora ia ficar de safadeza com o garotão pela
casa. Minha casa!

ALZIRA (​muito magoada​) - Não acredito que estou


ouvindo isso...

SARA (cada vez mais agressiva) - É isso mesmo. E


mais uma coisa: ele sabe que você ganha salário
mínimo?

ALZIRA - Que pergunta!? Sabe tudo. E gosta de


mim do jeito que eu sou.

SARA - Não acredito. Você fede a água sanitária.


Alguma hora ele vai encontrar uma loura com água
oxigenada nos cabelos, não água sanitária nas
mãos, assim que tiver um dinheirinho. Que nem
meu pai. Não foi culpa dele. Como é que ia ficar
com…

ALZIRA não aguenta mais e dá um tapa no braço


de SARA. Atônita, após uma pausa, SARA revida
com um tapa na cara da mãe. ALZIRA fica
catatônica.

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SARA (​ainda revoltada, mas um pouco assustada
com o que acabou de fazer​) - Se me bater vai levar.
Em dobro. Já sou adulta. Não pode me bater. Não
pode.

ALZIRA (​devastada​)- Sai da minha casa! Sai! Você


não é minha filha! Não é minha filha!

SARA - Saio sim! Com muito gosto.

(Vai ao quarto)

SARA (​falando de dentro do quarto​)- Já devia ter


feito isso há muito tempo. Não sou sua filha. Não
posso mesmo ser. Vou para a casa do meu pai. (​sai
do quarto carregando a mochila cheia de roupas,
algumas delas saindo para fora​) Mas essa casa é
minha. Vou falar com meu pai. Ele vai me pagar um
advogado. O melhor advogado. E você vai sair
daqui. Vai viver de salário mínimo. Num barraco,
desses que enche de água na alagação. (​sai batendo
a porta​)

BO

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Cena 9
A cena está escura. Os diálogos seguintes
acontecem em off. Telefone toca.

ALZIRA - (​atendendo​) Ahn?

EX-MARIDO - Nasceu.

ALZIRA - Ah! Tá tudo bem?

EX-MARIDO - Tudo. Nasceu gordinha. Que nem a


mãe, quando nasceu. Quase quatro quilos.

ALZIRA - Ela tá bem também? Tá amamentando?

EX-MARIDO - Tá sim. O pai tá todo bobo.

ALZIRA - Sei. Me disseram que ele é um homem


bom.

EX-MARIDO - É sim. Meio limitado, sem ambição.


Mas é trabalhador e gosta da SARA.

ALZIRA - Isso é que importa. Quem diria, hein?


Como as coisas muda nesse mundo, não é mesmo?
Ela dizia que não gostava de homem.

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EX-MARIDO - É, as coisas mudam. E vocês, não
vão se reconciliar mesmo? Cinco anos… Não se
falaram esse tempo todo.

ALZIRA - É a coisa que mais quero no mundo. Mas


não vou sair da MINHA casa, nem vou pedir
desculpa. Ela é quem tem que me pedir desculpa.

EX-MARIDO - Sempre cabeça dura. Não custava


nada. Alugava essa casa e dava para pagar duas
casas, uma para cada. Fazia a vontade da outra
cabeça dura, e pronto. Ia poder abraçar sua filha,
ver sua neta…

ALZIRA - A gente já conversou sobre isso. Não vou


mais falar. Já te disse que eu podia alugar a casa e
morar num lugar menor, sem problema. Mas não é
isso. É que eu tenho obrigação. De ensinar certo e
errado. Não posso dar prêmio pelo errado.
Respeitar a mãe e o pai é lei de Deus. Mesmo se a
mãe tá errada, tem que respeitar. E eu não tava
errada. Se não aprende isso em casa, a respeitar, vai
aprender com a vida. E a vida ensina sem amor.
Ensina com a morte, com a cadeia, com
desemprego. A gente não faz só o que quer nessa
vida. Tem que fazer o que é certo. Se ela vier aqui.
Me pedir desculpa. Ela é que tem que pedir...

94
EX-MARIDO - Tá bom, tá bom. Eu já sei. Isso não
vai acontecer. Tem muita mágoa... Liguei só para
falar que estava tudo bem.

ALZIRA - Tá bom. Qualquer coisa liga.

EX-MARIDO - Tá bom. (​desliga​)

Cena 10
JEFSON está sozinho em casa. Está bem vestido e
penteado, e parece nervoso. A campainha toca.
JEFSON abre a porta. É SARA. Está com um
visual bem mais convencional, burguês.

JEFSON - Oi.

SARA - Oi. Você está só, mesmo?

JEFSON - Tô sim. Eu te disse no telefone. Você está


diferente.

SARA - Você também.

(​silêncio​)

SARA - Não esperava sua ligação.

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JEFSON - E eu pensava que você não vinha.

SARA - Pois é. Estou aqui, não estou?

JEFSON - Entra.

(​SARA entra, olhando tudo na casa​)

SARA - Pensei que nunca mais ia entrar aqui.


(​silêncio​) Tudo diferente. Melhor

JEFSON - Seu quarto está do jeito que você deixou.

(​silêncio​)
SARA - Está tudo melhor. A casa pintadinha. O
portão novo lá fora.

JEFSON - Eu dei sorte. Abri uma empresa de


construção. Sua mãe é minha sócia. Não trabalha
mais de empregada. Cuida de tudo. Sem ela eu não
tinha feito nada…

SARA - Eu soube. Me disseram que vocês ganharam


licitação, que estão crescendo muito.

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JEFSON - Foi só coisa pequena. Reforma, para a
prefeitura. Não dá para fazer construção ainda. A
empresa é pequena. Mas se Deus quiser…

SARA (​interrompendo​) - Mas para que foi que você


me chamou aqui? Eu não ia vir. Mas você disse que
era questão de vida ou morte… Que era do meu
interesse… Estou curiosa, ainda. Quero saber o que
era tão… (​procurando a palavra, sem encontrar​) …
que não dava para falar no telefone.

JEFSON - É que… (​se interrompe e muda de


assunto​) A menininha tá bem? Seu pai, o marido -
todos bem?

SARA - Tudo bem. Fala logo.

JEFSON - SARA… sua mãe tá doente.

(​silêncio​)

SARA - Doente?

JEFSON - Os médico diz que não tem jeito.


Demorou muito para descobrir. (​pega uns papéis
de exames e estende para SARA​) Ela ainda não tá

97
sentindo nada. Tá levando a vida normal. Mas ela já
sabe o que vem pela frente.

SARA (​lendo os exames, chocada​) - Isso aqui pode


ter dado errado. Tem que fazer tudo de novo para
saber.

JEFSON - Esse aí é o terceiro. Do primeiro exame


até esse a coisa piorou muito. Tá sendo bem rápido.

SARA - Mas hoje a medicina… Tem remédio de


última geração… Eu li que tem cura…

JEFSON - Não tem mais jeito, SARA. Descobriu


muito tarde. Já falamos com um monte de médico.
Todo mundo disse…

(Pausa. SARA vira-se, ficando de costas para


JEFSON)

SARA - E o que você quer que eu faça. Se não dá


para ajudar…

JEFSON - Vocês tinha que conversar.

SARA - Conversar?

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JEFSON - É, fazer as pazes. Ficar de boa.

SARA - De boa?!

JEFSON - Ia ser um conforto para ela. Você não


imagina como ela sofre, até hoje. Chora. Acho que
essa doença…

SARA - Ah, a culpa é minha, então?

JEFSON - Não ia dizer isso. Ninguém tem culpa.


Mas tanto sofrimento… não é bom para ninguém.
Sua filha também… está sem poder ter a avó. Não é
justo…

SARA - Tem muita coisa nesse mundo que não é


justa, JEFSON. E não vou ser eu que vai consertar
tudo, baixando a cabeça e fazendo as vontades dela.

JEFSON - SARA, sua mãe vai morrer.

(​silêncio​)

SARA - Eu sei. Eu li. Sei o que quer dizer. Mas… eu


acho que não consigo. Não foi só ela quem sofreu.
Eu sei o que eu passei. Ela foi muito egoísta comigo.

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Só pensou nela. Queria ficar sozinha na casa. Para
curtir... com você. Me jogou na rua…

JEFSON - SARA, como é que você pode falar isso?


Eu e sua mãe não queria curtir nada. A gente se
ama. Olha há quanto tempo estamos juntos.

SARA - É, eu sei. Mas isso não muda o que ela fez.

JEFSON - Fez o que? Você deu na cara da sua mãe!

SARA (​em falsete​)- Ela me bateu primeiro. Não


tinha direito. E eu tive que sair de minha casa. Fui
para a casa do meu pai, mas não dava para ficar lá.
Ele tem a vida dele, tem uma nova família…

JEFSON ri.

SARA - Você está rindo de que?

JEFSON - Você está falando fininho. Sua mãe


sempre lembra disso. Que você fala em fininho
quando fica braba.

SARA - Ah…

100
JEFSON - Você disse que seu pai tinha a família
nova dele… E sua mãe não podia ter a dela?

SARA (​tomando cuidado para não falar em


falsete) - Não vou discutir nada disso contigo. Nem
contigo nem com ninguém. É problema meu. Eu
decidi. Não tenho mãe. Sinto muito por tudo isso
(​aponta para os exames​). Mas eu seria hipócrita de
voltar atrás só por pena.

JEFSON - A última coisa que sua mãe ia aceitar era


ter pena dela. Você conhece ela.

SARA - Então. Se era só isso eu vou embora.

JEFSON - Traz pelo menos sua filha para ela ver.


Não precisa encontrar com ela. Eu pego no portão.
Só um pouco.

SARA - Não vai acontecer, JEFSON. Minha filha


não tem avó. Eu não tenho mãe. É duro mas é
assim que as coisas são.

JEFSON ​(revoltado) - Não pode perdoar? Vocês


têm que se perdoar. Não pode viver assim. Sua filha
não tem nada a ver com as briga de vocês…

101
SARA - Não tem jeito. Já pensei muito nisso. Não
tem jeito. Já tomei minha decisão.

JEFSON - Que pena. Para vocês duas. Para as três.

SARA - Pois é. Então é isso. Eu vou.

JEFSON - Vai. Ah… você tem uma foto da


menininha no celular? Eu queria ver como ela
está…

SARA - Tenho sim. (​procura a foto e mostra o


celular​) Essa aqui eu tirei ontem.

JEFSON - Tá linda. Parece… com sua mãe.

SARA - Parece comigo. É o que todo mundo diz.

JEFSON - Pode me mandar no meu telefone?

SARA - Mando sim. Naquele número que você me


ligou?

JEFSON - Isso.

SARA - Mando jajá.

102
(​se olham em silêncio, por um instante. Ele abre a
porta.)

JEFSON - Vou lá abrir o portão. (​sai​)

(Ela dá uma última olhada na casa antes de sair.


Barulho de portão abrindo. SARA sai, fechando a
porta lentamente atrás de si, como se quisesse
prolongar aquele momento ao máximo.​)

Cena 11
A cena está vazia, numa semi-penumbra. Barulho
de portão abrindo. Porta é destrancada e aberta,
lentamente. Entra JEFSON, vestido com um terno
escuro. Parece desnorteado. Olha em volta.
Senta-se à mesa. Fica sentado por um instante. Em
seguida se debruça sobre a mesa, apoiando os
cotovelos e segurando a cabeça com as mãos. Fica
assim por alguns instantes. Batem à porta.
JEFSON abre. É SARA. Está extremamente
abalada.

SARA - Não consegui ir…

JEFSON - Eu vi.

(​pausa​)

103
SARA - Eu tava do outro lado da rua. Esperando
você chegar.

(​pausa​)

SARA - Queria te agradecer. Por você ter cuidado


dela. Você foi muito bacana.

(​silêncio​)

​ ARA - Você deve achar que eu sou um monstro…


S
(​pausa​)

JEFSON - Não acho nada, não. E sua mãe também


não achava isso.

SARA - O que ela te falava?

JEFSON - Que você era cabeça-dura e mimada. Que


seu pai tinha te estragado, fazia todas as suas
vontades. (​pausa​) Ela sempre rezava para você ficar
bem. E para sua filha… a neta dela… que ela não
conheceu...

(​silêncio​)

104
JEFSON - Eu vou tirar as minhas coisas da casa…
Amanhã você já pode entrar.

SARA - Não… não precisa. É sua casa, você não tem


que sair. Eu nunca pensei… nunca pensei em entrar
nessa casa desse jeito.

JEFSON - A casa é sua. Era da sua mãe, você é a


herdeira. Ela quitou ano passado. Eu me viro. Só
preciso de umas horas para arrumar minhas coisas.
Não vou levar nada da casa, só minha roupa e
ferramenta.

SARA - Eu não vou conseguir morar aqui. Pode


ficar. O tempo que você quiser.

JEFSON - Eu também não vou conseguir ficar aqui.


Muita lembrança.

SARA (​abaixando a cabeça​)- Eu fui tão injusta


contigo…

JEFSON (​abraçando SARA​) - Não tem problema.


Nunca teve problema. Você não me conhecia.

105
SARA - Fui injusta com minha mãe. Agora… eu me
sinto tão vazia… tanta dor… não pensei que ia sentir
isso.

JEFSON - O que é que eu vou fazer agora? Ela era


minha vida. O amor da minha vida.

SARA - Minha mãe teve muita sorte de te


encontrar.

JEFSON - Que nada. Eu só trouxe coisa ruim para a


vida dela. Sempre me culpei. Foi só eu chegar na
vida dela e ela perdeu o que mais amava nessa vida.

SARA - Não foi sua culpa…

JEFSON - O que importa de quem foi a culpa? O


que aconteceu, aconteceu. Passou.

SARA - Passou? Parece que para mim está só


começando. O que foi que eu fiz? O que foi que eu
fiz?

JEFSON (​também emocionado​) - Calma. Vai ficar


tudo bem.

106
SARA - Eu perdi minha mãe, JEFSON. Eu perdi.
Minha vida foi aqui nessa casa. Do lado dela. O que
que eu fiz?! Agora não tem volta.

JEFSON - Sua mãe me mandou te dizer uma coisa.


Foi a última coisa que ela falou. Me mandou te
dizer… que ela te perdoava. Que entendia. Ela
contou a história da mãe dela. Ela disse que nunca
te contou…

SARA - A mãe dela? É verdade. Ela nunca me falou


de minha avó. Eu perguntava, mas ela sempre
desconversava. Dizia que não tinha conhecido bem
a mãe. Que tinha sido criada pela tia.

JEFSON - Ela me contou… pediu para te contar…


não foi assim que aconteceu. O pai dela foi embora
quando ela era pequena ainda. Ela ficou com a mãe,
sozinhas as duas.

SARA - Não foi com a tia?

JEFSON - Ela foi morar com a tia muito depois. Já


tinha quase quinze anos.

SARA - Ela nunca me disse…

107
JEFSON - Sua mãe engravidou aos treze anos. Foi
abusada no seringal. Não podia falar disso na
época. Ninguém falava. Era… proibido, sabe? Ela
ficava mal-falada se os outro sabia.

SARA - Treze? Abusada? Como é que nunca me


contaram isso?

JEFSON - Na época dela… não podia falar.

SARA - O filho que ela perdeu, então… não era do


meu pai?...

JEFSON - O seu pai conheceu ela de barriga, já.


Aceitou ela carregando o filho de outro. Disse que ia
assumir. Mas a mãe dela não aceitou. Não acreditou
que o coronel tinha abusado dela. Expulsou de casa.

SARA - Expulsou?

JEFSON - Seu pai cuidou dela, mas não tinha


dinheiro. Sua mãe tinha que trabalhar. Na lida da
borracha. Era muito nova, franzina. Não deu conta.
Perdeu o filho.

SARA - Como é que meu pai nunca me disse isso?


Ninguém me disse...

108
JEFSON - Ela me disse antes de fechar os olho. Que
a mãe dela morreu sem elas se falar. Ela não
perdoou a mãe. E depois que a mãe morreu ela
sofreu muito. Nunca te apresentou a sua avó. Antes
de morrer me disse. Que te perdoava. Que não
queria que você sentisse o que ela sentiu. Disse que
te entendia. Que você era jovem.

SARA - Ela falou isso antes de morrer?

JEFSON - Falou sim. Eu juro.

SARA - Eu tava errada, JEFSON. O tempo todo.


Minha mãe sabia o que estava fazendo. Te
reconheceu. Sabia quem você era. Ela conhecia as
pessoas. Sempre falou isso. E eu não aceitava que
ela era sábia, porque era analfabeta. Como eu fui
idiota. Minha mãe morreu pensando em mim. Em
cuidar de mim. E eu nem deixei ela conhecer a neta.

JEFSON - Que nem ela com a mãe dela. Muito


parecido.

SARA - E agora? Perdi minha mãe. Não tem volta.

109
JEFSON - Ela queria que você se perdoasse. E
vivesse sua vida. E não repetisse com sua filha os
erros que vocês tiveram. Olha, sua mãe vai estar
com a gente para sempre…

SARA - Eu não acredito em nada disso de vida após


a morte, JEFSON.

JEFSON - Não estou falando de espírito, SARA. Tô


falando que o que a gente viveu com sua mãe vai
estar sempre com a gente. O que nós aprendeu com
ela.

A campainha toca, para surpresa dos dois.


JEFSON vai atender.

PROFESSOR - Boa tarde.

JEFSON - Boa tarde.

PROFESSOR - A dona ALZIRA, por favor.

JEFSON (​surpreso​) - Quem gostaria?...

PROFESSOR - Eu conheci ela há alguns anos. Ela


me autorizou a vir fazer uma entrevista com ela
sobre os tempos dela de seringal. Você é filho dela?

110
JEFSON (​sem demonstrar qualquer
constrangimento​) - Marido. Ah, o senhor é o
professor. Só agora que o senhor apareceu? Ela
falava no senhor vez em quando.

PROFESSOR - Se ela não estiver eu posso voltar


outra hora…

JEFSON - Não vai adiantar, não, doutor. Ela


morreu.

PROFESSOR - Morreu? Eu sinto muito. Não


sabia…

JEFSON - Demorou muito, doutor. Ela teve doença.


Morreu.

PROFESSOR - É, demorei muito. Perdi a chance.


Cada vez tem menos fonte testemunhal daquela
época. Mas a universidade… Tem que fazer
formulário, conselho de ética, termo disso, relatório
daquilo… Demora demais. Fiquei um ano só
esperando para ter um bolsista, não tinha
financiamento...

JEFSON - Sei.

111
PROFESSOR - Quando foi que ela morreu?

JEFSON - Ontem. Estamos voltando do enterro.

PROFESSOR - Putz! Eu não sabia, mesmo. Me


desculpe. (​coçando a cabeça​) Bom, meus
sentimentos. Vou embora. (​aperta a mão de
JEFSON e sai​)

JEFSON fecha a porta. Ele e SARA ficam em


silêncio por um tempo.

SARA - Atrasado demais.

JEFSON - É.

(Silêncio. O telefone de SARA toca. )

SARA - É minha filha. Eu não falei nada para ela.


Nunca falei da avó. Vou falar hoje. Vou contar que a
avó dela era sábia, e que me deu tudo, todo o
amor…

(​telefone ainda tocando​)

112
SARA - Vou atender… (​respira fundo, controlando
as emoções​)

JEFSON segura no braço de SARA, antes que ela


atenda.

JEFSON - Bota no viva-voz. Para eu ouvir a voz


dela.

SARA diz que sim com a cabeça

FILHA (​voz em off​) - Mãe!

SARA - Oi, filhinha, tudo bem por aí?

FILHA - Você vai demorar?

SARA - Um pouquinho só, minha filha. Já estou


chegando.

FILHA - A gente vai ao cinema, não vai?

SARA - Hoje não, querida. A mamãe não pode hoje.


Semana que vem a gente vai.

FILHA - Mas você me prometeu.

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SARA - É que a mamãe teve um problema. Hoje
não vai dar.

FILHA (em falsete, autoritária) - Vai dar sim. Tem


que dar. Você prometeu! Vem logo para casa! A
gente vai ao cinema!

SARA (firme) - Hoje não vamos. Eu já estou indo


para casa. Chegando aí eu te explico.

FILHA - Mas mãe!...

SARA - Eu já chego aí! (​desliga, indo na direção da


porta​) Bom, eu tenho que ir…

JEFSON - SARA.

(​SARA se vira, da porta​)

JEFSON - Ela também fala fininho...

(BO)

FIM

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