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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

A FARRA DOS INIMIGOS DO POVO

Inspirado na obra de domínio público “O Inimigo do Povo”, de Henrik Ibsen


Autores: Cinthia Davanzo e F. L. Encarnação

PRÓLOGO
Chegança dos palhaços
Panela de pressão

Primeiro Ato

Cena 1

Noite. Casa do doutor. Uma recepção acontece, MULHER serve aos convidados drinks
e aperitivos.

(Entra o prefeito com o boné do uniforme)

PREFEITO - Boa noite, minha cara cunhada.

MULHER - Ah, é você? Boa noite. Bondade vir visitar.

PREFEITO - Eu estava passando por aqui... Mas vejo que vocês têm visitas.

TODOS - Boa noite, senhor prefeito!

(PREFEITO faz um aceno de político para o grupo)

MULHER (Com ligeiro embaraço) - Pois é... (Um pouco alvoroçada) Quer tomar alguma
coisa?

PREFEITO - Não, não. Muito obrigado: eu fico só no chá com torradas. Mais saudável e
mais econômico.

MULHER (Sorrindo) – Falando assim, até parece que somos esbanjadores, hein?

PREFEITO - Você não, cunhada. Longe de mim! Meu irmão está em casa?

MULHER - Saiu. Foi dar uma volta.

PREFEITO (Ouvindo) - É ele chegando?

MULHER - Não, não é ele... (Entra EDITOR) Ah! É o senhor EDITOR.

CENA 1 A

EDITOR - Sim. Desculpe o atraso... Ah, boa noite, Sr. Prefeito. Vim buscar um artigo
para o jornal com o doutor.

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

PREFEITO - Ah, sim. Aliás, ouvi dizer que meu irmão está se dando muito bem como
colaborador da Voz do Povo.

EDITOR - Sem dúvida. Cada vez que ele precisa dizer umas verdades, escreve em nosso
jornal.

PREFEITO - É claro! E de modo algum eu o censuro. Aliás, Sr. EDITOR, não tenho nada
contra seu jornal.

EDITOR - Tenho certeza...

PREFEITO - Imagino que o assunto do meu irmão seja o principal interesse de todos os
cidadãos honrados e preocupados com nossa cidade…

EDITOR - O senhor está falando da nossa Estação Balneária? O Parque das Águas
Medicinais?

PREFEITO - Exatamente! O Parque das Águas é uma coisa magnífica! Uma fonte de
riqueza vital para nossa cidade!

MULHER - De fato! Veja que desenvolvimento incrível tem tido nossa cidade nestes
últimos dois anos! Tá fervilhando de gente, vida, movimento.

EDITOR - E o desemprego diminuiu.

PREFEITO - É verdade. E vai diminuir ainda mais... muitos veranistas... esses vão
espalhar a fama da cidade. O turismo é um mercado em crescimento!

EDITOR - Ah, então o artigo do doutor vai ser muito oportuno! Ele recomenda nossas
águas e destaca as ótimas condições higiênicas do Parque.

MULHER - Quando se trata do Parque das Águas Medicinais, Thomas é incansável.

PREFEITO - Para isso está lá, a serviço do Parque.

EDITOR – Vale lembrar que devemos a ele a criação da Estação Balneária.

PREFEITO (com certa indignação) - A ele? É claro! Já ouvi várias pessoas dizerem isso.
Entretanto, eu acho que, modestamente, também dei a minha contribuição para a criação
desse empreendimento.

MULHER - Com certeza! Thomas sempre reconheceu isso!

EDITOR - Todos sabem que foi o senhor quem pôs o negócio pra cima, quem deu vida!
Eu só quis dizer que a ideia foi do doutor.

PREFEITO - Sim, sim! Jamais faltaram ideias ao meu irmão. Mas quando se trata de
colocá-las em prática...

Cena 2

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR (Rindo e falando ruidosamente para os bastidores chega em casa com amigos)

MULHER - Thomas, visita...

DOUTOR (Na porta, voltando-se) - Ah! É você, Peter! (Aproxima-se dele e estende-lhe
a mão) Que bom te ver! Venha, vamos tomar uma.

PREFEITO - Obrigado. Nunca tomo parte em festinhas com álcool.

DOUTOR - Mas isto não é uma festinha.

PREFEITO - Parece muito! (Olha, de novo, ao redor, com ar de indignação e enjoo no


estômago) Não sei como vocês conseguem digerir tudo isso!

DOUTOR (Esfregando as mãos) – Se me deixasse te examinar, curava esse seu estômago


e acabava com esse seu mau humor! Veja Peter, eu e você somos dois velhotes! Mas
ainda não estamos no caixão...

PREFEITO - Pelo amor de Deus! Você tem umas expressões!

DOUTOR - Olhe em volta, não se anima com essa juventude? Aqui tem vida, tem um
futuro pelo qual vale a pena trabalhar e lutar. E isso é o que importa. (Chamando)
MULHER! Veio o carteiro?

MULHER - Não. Ainda não, querido.

DOUTOR – Venha Peter! Vamos beber alguma coisa e colocar esse seu estômago pra
arder!! Hoje podemos nos dar certos luxos não é mesmo? Catarina coordena bem os
gastos e podemos comer e beber só do que há de melhor!

PREFEITO - Quando a gente se permite esses luxos…

DOUTOR - Então! Eu agora posso me permitir isso. Catarina diz que eu ganho quase
tanto quanto o que gastamos.

PREFEITO - (indignado) - Quase tanto! Sei…

DOUTOR - Afinal de contas, é preciso que um homem da ciência como eu, viva com
certa dignidade; tenho certeza de que um prefeito gasta muito mais…

PREFEITO - Claro que sim. Um prefeito! (revira os olhos)

DOUTOR - As pessoas que fazem parte do seu círculo social… gastam muito mais do
que eu.

PREFEITO - Ora! Evidentemente! (balança a cabeça negativamente)

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR - Por outro lado, Peter, nós não fazemos despesas inúteis. Mas não posso
recusar o prazer de receber os amigos. Eu preciso disso, de ver gente, ter pessoas ao meu
redor, pessoas como o Sr. Editor, venha quero lhes apresentar.

PREFEITO - Ah! Sim... Conheço bem o EDITOR. Ele até me falou de um artigo seu que
vai publicar.

DOUTOR - Um artigo meu?

PREFEITO - Sim, sobre o Parque das Águas Medicinais. Um artigo que você escreveu
no inverno.

DOUTOR - É verdade, não me lembrava mais. Mas eu não quero que seja publicado por
enquanto.

PREFEITO (com desconfiança) - Mas... porque não? Segundo me disse o editor, o artigo
fala muito bem do nosso balneário!

DOUTOR - Peter, prefiro não comentar.

PREFEITO - Muito misterioso. O que se passa? Alguma coisa que não posso saber? Acho
que como presidente da Estação tenho o direito a...

DOUTOR (interrompendo) - Me parece que... (contendo-se) Mas que diabos, Peter! Não
vamos começar com discussões, não é mesmo?

PREFEITO - Você me irrita! Você tem essa coisa de fazer tudo por conta própria. Você
tem que fazer as coisas conforme os manuais, meu irmão. Conforme os regulamentos. Já
é hora de você acertar o passo.

DOUTOR – Pára de ser louco. Está vendo problema onde não existe nada! Você e essa
sua mania de perseguição!

PREFEITO - Tomara que seja só isso! Adeus, minha cunhada. (Dirige uma saudação à
sala de jantar) Adeus, senhores. (Sai)

Cena 3

Com a saída do prefeito todos os convidados tomam a sala

SUBEDITOR - O prefeito não estava com cara de muitos amigos, hoje.

DOUTOR - É o estômago. Ele tem problemas de digestão.

EDITOR - Acho que é a nós, do Jornal, que ele não consegue digerir.

DOUTOR - Lembrem-se de que Peter é um pobre solitário. Não tem uma família onde
possa se abrigar; tudo o que ele tem são negócios, negócios. E além disso, o que se pode
dizer de um homem que só bebe chá!? (Chamando) Catarina!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

MULHER - Aqui estão as bebidas. Cada um se sirva à vontade.

SUBEDITOR - (Tomando um copo) - É o que faremos.

(Todos bebem)

EDITOR - E as eleições nacionais, hein?

SUB-EDITOR – Sabe-se lá o que vai acontecer! É que nem um navio sem capitão!

DOUTOR – Eu queria era não precisar votar!

SUB-EDITOR - O senhor não se interessa por política?

DOUTOR - Para falar a verdade, não me dou bem com essas coisas.

SUB-EDITOR - Mesmo assim, tem que pelo menos votar.

DOUTOR - Mesmo os que não entendem nada?

EDITOR - Como não entende nada? Que o senhor quer dizer? A democracia é como um
navio. Todos devem estar atentos à sua rota.

DOUTOR – O problema é que só um pode segurar o leme.

Cena 4

(Entra FILHA)

FILHA - Boa noite.

DOUTOR - Minha querida FILHA! Que bom que chegou.

FILHA - Como!? Estão de festa por aqui enquanto eu dou duro lá fora?

DOUTOR - E por que não? Aproveite você também, agora.

SUB-EDITOR (Para FILHA) - Quer que lhe prepare um ponche?

FILHA - Obrigada, deixa que eu mesmo preparo. Você prepara um ponche muito forte.
Ah! (para o pai) Já ia me esquecendo, pai! Trago uma carta para você. O carteiro me
entregou quando eu estava saindo.

DOUTOR (Pegando a carta) - Me dá esta carta, minha filha, vamos.

MULHER - A carta que você estava esperando, Thomas?

DOUTOR - Essa mesma. Preciso ler imediatamente. (lê a carta)

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

Cena 4 A

EDITOR (Para FILHA) - Você estava dando aula até agora?

FILHA (Provando o ponche) - O dia todo.

SUB-EDITOR - E, pelo jeito, você ainda tem os deveres dos alunos para corrigir.

FILHA - Uma pilha inteira.

EDITOR - Você também trabalha demais, que nem seu pai.

Cena 5

DOUTOR (Mostrando a carta) - Podem ficar certos, meus amigos, de que vamos ter
notícias sensacionais aqui na cidade!

SUB-EDITOR - Novidades?

MULHER - De que se trata?

DOUTOR - De uma grande descoberta, Catarina!

MULHER - Tenho até medo de perguntar: O que você fez?

DOUTOR - Exatamente. O que eu fiz! (Caminhando a passos largos) Quero ver dizerem
agora, como costumam dizer, que sou louco!! Quero ver quem!!!

FILHA - Fala, pai. Diga do que se trata.

DOUTOR (Detendo-se; toma fôlego) - Toda a economia de nossa cidade está baseada no
fato de que as águas daqui são medicinais. Eu é que dei a ideia de construir o Parque das
Águas, dizendo que a gente ia curar os doentes que bebessem ou se banhassem nas nossas
águas. Mas vocês se lembram, na época da construção, eu disse para fazer a tubulação
mais em cima do rio, onde as águas são limpas... só que o orgulho e a muquiranice de
alguns, deu nisso: nossa cidade é hoje um grande foco de infecções!

MULHER - Nossos banhos medicinais!

EDITOR - Mas Doutor!...

SUB-EDITOR – Tá de sacanagem?

DOUTOR - Perigosíssimo para a saúde pública! Todas as imundícies dos matadouros


infectam a água toda.

FILHA - Dos matadouros? Até os locais de banhos? Até a água que os doentes bebem?

DOUTOR - Exatamente.

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

EDITOR - E como o senhor pode estar tão convencido de tudo isso, doutor?

DOUTOR - Mandei analisar a água. O resultado está aqui: um montão de caquinha, de


bactérias, uma coisa horrorosa. Essa água é um veneno!

SUB-EDITOR - Lascou-se!

EDITOR - E o que o senhor pretende fazer?

DOUTOR - Remediar isso. (Dá uma volta pela sala esfregando as mãos) Vais ver,
Catarina, o rebuliço que esse caso vai provocar! Você nunca viu nada igual. Vai ser
preciso refazer as tubulações mais pra cima, onde a água é boa.

EDITOR - Toda a canalização?!!

FILHA - Então, afinal de contas, você é que tinha razão?

DOUTOR - Na época, ninguém me deu ouvidos. Agora eles vão ter que me ouvir,
queiram ou não. Catarina, peça que a... a... (Bate com o pé) Como diabos se chama ela?
Essa menina que trabalha aqui em casa... Mande que ela leve esse relatório imediatamente
ao prefeito. (MULHER pega os papéis e sai pela sala de jantar)

EDITOR - Precisamos divulgar imediatamente essa sua descoberta.

DOUTOR - Sim, tem razão. Vou re-escrever meu artigo e o senhor publicará em seu
jornal..

EDITOR - É muito importante que o público seja informado o quanto antes.

SUB-EDITOR - Com toda a certeza o senhor vai se tornar um dos personagens mais
importantes da cidade.

DOUTOR (Caminhando, com ar satisfeito) - Que nada! Fiz apenas o meu dever. Não
importa… E se o Parque das Águas quiser aumentar o meu salário, vou recusar.
Recusarei! Você ouviu Catarina?

FILHA (Brindando) - À sua saúde, pai!

TODOS - À sua saúde, doutor, à sua saúde!

EDITOR - Felicidade e longa vida, doutor!

Segundo Ato

Cena 1

(Manhã seguinte)

MULHER - Seu irmão mandou avisar que vem aqui em casa daqui a pouco. Estou curiosa
para saber o que ele está pensando a respeito disso.

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR - Morrendo de inveja de ter sido eu e não ele o autor da descoberta.

MULHER - Nesse caso, Thomas, você deveria dividir com ele a honra da descoberta. E
se você fizesse Peter acreditar que foi ele quem lhe colocou na pista... Ou algo assim?

DOUTOR - Por mim não tem nenhum problema, desde que se façam todas as reformas
necessárias.

Cena 2

LEITÃO (Põe a cabeça pela abertura da porta e, com um ar malicioso, pergunta) -


Digam-me, é verdade?

MULHER (Dirigindo-se a ele) - É você, papai?

DOUTOR - Bom dia, sogro. Que surpresa!

LEITÃO - E esse assunto das águas? É verdade, essa loucura?

DOUTOR - É claro que é verdade.

LEITÃO - Petra veio me contar essa manhã.

DOUTOR - Não acha que isso é uma verdadeira sorte pra a cidade?

LEITÃO (Abafando o riso) - Uma sorte para a cidade?

DOUTOR - Sim, uma sorte eu ter descoberto a coisa a tempo.

LEITÃO - Sim, sim, sim. Mas, francamente, eu não achava você capaz de pregar uma
peça dessas no seu próprio irmão.

DOUTOR - Uma peça?

MULHER - Mas meu pai...

LEITÃO (maliciosamente) - Vamos ver. Como é esse negócio? Entrou um bicho no


encanamento da água, não é?

DOUTOR - Sim, um micróbio.

LEITÃO - Petra me disse que entraram alguns desses bichos. Uma porção.

DOUTOR - Exatamente. Centenas de milhares...

LEITÃO - Que ninguém pode ver. Não é verdade?

DOUTOR - Não, não dá para ver .

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

LEITÃO (Com um risinho) - Diabos! Essa é muito boa!

DOUTOR - Oi?

LEITÃO - Você não acha que o prefeito vai engolir essa história, né?

DOUTOR - Como assim? Todos vão concordar que...

LEITÃO (se preparando para sair) - Todos? Sei não...Acho que vai ser é bem feito! Me
expulsaram do Conselho como a um cão. Mas vão pagar caro. É isso, meu genro, pregue-
lhes boas peças.

DOUTOR - Mas, meu sogro...

LEITÃO - Boas peças, já disse. (saindo) Se você conseguir fazê-los embarcar nessa, farei
uma boa doação aos pobres! Cem coroas! Para o Natal… Pelo menos umas cinquenta
coroas! (sai)

DOUTOR - (desconfiado) É muita bondade sua.

Cena 3

(EDITOR, SUB-EDITOR e DONO DA GRÁFICA entram pela porta da frente)

DOUTOR - Bom dia, senhor Editor. Senhor Sub-Editor, como vai?

EDITOR - Esse aqui é o DONO DA GRÁFICA onde eu imprimo meu jornal.

(DOUTOR cumprimenta DONO DA GRÁFICA)

EDITOR - Então? Já teve notícias do prefeito?

DOUTOR - Ainda não. Ele deve vir aqui mais tarde.

EDITOR - Nós conversamos muito sobre o assunto desde que saímos daqui.

DOUTOR - É mesmo?

EDITOR - Bem... O senhor, enxerga essa questão como médico e cientista, mas não vê
as consequências políticas.

DONO DA GRÁFICA - Como presidente da Associação dos Pequenos Proprietários e


líder do Partido Moderado, e como homem de Deus, fiquei mesmo assombrado com as
implicações do que me contaram.

SUB-EDITOR - Vai voar bosta pra todo lado.

EDITOR - Na verdade, Doutor, no pântano de bosta já estamos há tempos. A cidade tá


dominada por um bando de sanguessugas.

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DONO DA GRÁFICA - O problema é a gestão. O estado não devia se meter na


economia…

EDITOR - Os gestores é que não deviam meter a mão.

SUB-EDITOR - Vamo tacá tudo na cadeia e jogá a chave fora!

DONO DA GRÁFICA - Acho que vocês estão sendo muito radicais.

EDITOR - Radicais?

DONO DA GRÁFICA - Existem pessoas de boa índole….

SUB-EDITOR - O povo só não vota neles

DONO DA GRÁFICA - … que tem poder para nos apoiar e dar maior visibilidade ao
artigo do Dr.

EDITOR - Todos temos condições de ganhar com isso, pense bem, Doutor. Nosso jornal
vai dar a cobertura necessária, e o DONO DA GRÁFICA traz o apoio da Associação dos
Proprietários e do Partido Moderado.

DONO DA GRÁFICA - E dos irmãos da Igreja…

DOUTOR - Mas a coisa é tão simples, não precisa disso tudo…

DONO DA GRÁFICA - As autoridades se movem com uma certa lentidão. É preciso dar
um empurrãozinho.

EDITOR - Vai abalar a política do município inteiro!

SUB-EDITOR - O Prefeito vai quicar nas tamancas.

EDITOR - Então, doutor? Vamos estremecer os alicerces? O senhor já escreveu aquele


artigo?

DOUTOR - Sim, já está pronto.

EDITOR - Então me dê para eu publicar ainda hoje.

DOUTOR - Primeiro deixe eu falar com meu irmão.

EDITOR - E se o prefeito se recusar a apoiar o assunto?

DOUTOR - (Entregando o artigo) - Nesse caso pode publicar o que escrevi. De ponta a
ponta.

(Saem os 3, felizes com a resposta)

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

CENA 4

(MULHER e FILHA entram)

DOUTOR - MULHER! FILHA!

MULHER - Ele ainda não veio?

DOUTOR - Peter? Não, mas tive uma conversa com o EDITOR. Ele está entusiasmado
com a minha descoberta. Colocou o jornal à minha disposição.

MULHER - Acha que vai ser preciso?

DOUTOR - Acho que não. Em todo caso é bom saber que tenho ao meu lado a imprensa.
E além disso, recebi a visita do DONO DA GRÁFICA. Todos querem me apoiar, caso eu
precise. Sabe, Catarina, o que eu tenho por trás de mim?

MULHER - Por trás de ti?

DOUTOR - Tenho por trás de mim a maioria dos cidadãos, a opinião pública!

MULHER - Ah! Sim? E isso te serve para alguma coisa, Thomas?

DOUTOR - Se serve! (Caminha de um lado para outro, esfregando as mãos) é a


comunhão do povo!! A opinião da maioria!

Cena 5

DOUTOR (ouvindo baterem à porta) - Deve ser ele...Bom dia, Peter, seja bem-vindo.

(Prefeito entra)

MULHER - Bom dia, cunhado. Como vai?

PREFEITO - Bom dia.

MULHER - Como vai?

PREFEITO - Mais ou menos... (Ao doutor) Recebi seu relatório, referente às condições
das águas do Parque.

DOUTOR - Leu?

PREFEITO - Li.

DOUTOR - E então? O que você diz?

PREFEITO (Olhando em torno) - Hum...

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

MULHER - Não se preocupem, vamos deixar vocês à vontade. (saem MULHER e


FILHA)

PREFEITO (Depois de uma pausa) - Tinha que fazer todas essas investigações nas
minhas costas?

DOUTOR - Eu precisava ter certeza...

PREFEITO - Você tem a intenção de mandar esse relatório para a direção do Parque das
Águas, oficialmente?

DOUTOR - Claro! É preciso fazer alguma coisa, e depressa.

PREFEITO - Um relatório exagerado, quase violento. Parece que estamos envenenando


os nossos hóspedes!

DOUTOR - Mas é a pura verdade, Peter! Pense um pouco - água envenenada! Imprópria
para beber e imprópria para o banho! É isso que estamos oferecendo a pobres doentes e
veranistas que vêm aqui! Essas pessoas que confiam em nós e nos pagam um bom
dinheiro para recuperar a saúde!

PREFEITO - E você chega à brilhante conclusão de que devemos mudar de lugar todo o
sistema de canalização!

DOUTOR - Você conhece outro meio? Eu não.

PREFEITO - Ia custar 200 mil coroas!

DOUTOR - Tão caro assim?

PREFEITO - E o pior é que o trabalho levaria, pelo menos, dois anos.

DOUTOR - Dois anos? Tanto tempo?

PREFEITO - No mínimo. E o que seria da cidade? Você pensa que alguém viria até aqui
sabendo que nossas águas estão contaminadas?

DOUTOR - Mas elas estão, Peter!

PREFEITO - Se essa história vaza, vamos ter que fechar este Parque que nos custou tão
caro. E você terá arruinado a sua cidade natal.

DOUTOR - Eu... Eu terei arruinado...

PREFEITO - O futuro desta cidade é o Parque das Águas Medicinais. Você sabe disso
tão bem quanto eu.

DOUTOR - Mas o que você acha que devemos fazer?

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

PREFEITO - Vamos estudar com calma o assunto. Precisamos ser discretos e contratar
uma consultoria… Vamos precisar de uma emenda parlamentar e depois realizar uma
concorrência ou licitação. No final vai ganhar uma dessas grandes empresas que vai fazer
o trabalho sem alarde.

DOUTOR - Mas, Peter, quanto tempo isso ia demorar? E até lá o que a gente faz?
Continua servindo veneno e dizendo que é remédio? Você julga que eu me associaria a
uma farsa dessa natureza?

PREFEITO - Uma farsa?

DOUTOR - Sim, isso seria uma farsa, uma fraude, uma mentira, um verdadeiro crime
contra o povo, contra a sociedade! Você está preocupado é que saibam do seu erro na
construção!

PREFEITO - E se fosse isso? Eu me preocupo com a minha reputação. Olha, esse relatório
tem que desaparecer. É o interesse público que está em jogo! Mais tarde, faremos o que
pudermos. Mas em silêncio! Nada, absolutamente nada deve ser divulgado!

DOUTOR - Agora é tarde. Muita gente já sabe.

PREFEITO - Quem? Essa gente do Jornal?

DOUTOR - Eles também.

PREFEITO (Depois de uma pausa) - Realmente, Thomas, você é um imprudente. Isso


pode trazer graves consequências pra você.

DOUTOR - Para mim?

PREFEITO - Sim, para você e sua família! Faça imediatamente um desmentido público.

DOUTOR - Desmentido?

PREFEITO - Você pode dizer que, depois de conhecer o resultado de novas análises,
chegou à conclusão de que o caso não é tão grave. Como empregado do Parque das Águas,
você não tem direito a uma opinião individual e solitária.

DOUTOR - Não tenho o direito de...?

PREFEITO (interrompendo) - Como cidadão, você pode pensar o que quiser. Como
funcionário do Parque, você não tem o direito de sair divulgando por aí uma opinião que
não esteja de acordo com a dos seus superiores.

DOUTOR - Mas isso já é demais! Eu, médico, homem de ciência, não tenho o direito
de...!

PREFEITO - Eu sou seu chefe e quando proíbo uma coisa, você nada mais tem a fazer
do que obedecer.

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR (Contido) - Tô besta ó!

Cena 6

FILHA (Abrindo a porta abruptamente) - Pai, você não pode aceitar isso.

MULHER (Atrás dela) - FILHA, FILHA!

PREFEITO - Parece que estavam escutando atrás da porta.

MULHER - Vocês falavam tão alto que não se podia evitar de...

FILHA - Sim, eu estava escutando.

PREFEITO - Ah!

DOUTOR (Aproximando-se do prefeito) Você exige que eu me desminta publicamente?

PREFEITO - Nós achamos indispensável.

DOUTOR - Ah! E se eu me recusar?

PREFEITO - Aí, então, não vou poder evitar que você seja demitido.

DOUTOR - O quê?

FILHA - O pai... Demitido?

MULHER - Demitido!

PREFEITO - Sim, demitido.

DOUTOR - Vocês fariam isso?

FILHA - Meu tio, isso é uma forma revoltante de tratar um homem como meu pai!

MULHER - FILHA, cala a boca!

PREFEITO (Olhando FILHA) - Olha só! A filha já começa também a botar as


manguinhas de fora. Claro! (Para a MULHER) Cunhada, você, que parece ser a pessoa
mais sensata da casa, devia tentar fazer seu marido compreender as consequências que
tudo isso pode trazer a ele e à sua família.

DOUTOR - Ninguém tem nada a ver com a minha família.

PREFEITO - ...à sua família, repito, e também à sua cidade.

DOUTOR - Quem se preocupa com o bem-estar da cidade sou eu! Vou denunciar vocês
e cedo ou tarde todo mundo vai saber! É minha obrigação, por amor à cidade!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

PREFEITO - Amor? Você quer destruir sua principal fonte de riqueza! O homem que age
contra a sua própria cidade é um inimigo do povo.

DOUTOR (Indo na direção do prefeito) - O que???

MULHER (Colocando-se entre os dois) - Thomas!

FILHA (Segurando o pai) - Calma, papai!

PREFEITO - Você está avisado. Pense na sua família. Adeus. (Sai)

Cena 7

DOUTOR (Caminhando de um lado para outro) - Não tenho que tolerar essas ofensas na
minha própria casa! Isso não vai ficar assim!

MULHER - Mas Thomas, teu irmão tem poder na cidade, você nada pode fazer.

DOUTOR - Eu tenho o apoio do jornal e da maioria dos cidadãos…

MULHER - Isso tudo só vai servir para que você seja demitido.

DOUTOR - Pois bem. Pelo menos terei cumprido meu dever.

MULHER - E sua família, Thomas? E nós?

FILHA - Oh, mãe! Não pense somente em nós.

MULHER - Para você é fácil falar, FILHA. Você é jovem, em último caso você pode se
manter. Mas e nós? Vamos ficar outra vez sem dinheiro, sem futuro. A VIDA é assim,
Thomas! Você não vai conseguir corrigir a injustiça do mundo.

DOUTOR - Quero poder me olhar no espelho de cabeça erguida.

FILHA - Papai é um homem de verdade! Um homem de bem!

Terceiro ato

Cena 1

EDITOR, SUB-EDITOR E DONO DA GRÁFICA NA REDAÇÃO DO JORNAL

DONO DA GRÁFICA (entrando, assustado) - Não consegui dormir depois que li o


artigo do doutor. Orei, Orei, Orei e nada! É um acontecimento!

SUB-EDITOR - Pura dinamite!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DONO DA GRÁFICA - Temos que manobrar com cautela, pois não adianta tirar os que
estão na gestão e não chegarmos ao lugar deles depois. Seria o caos!

SUB-EDITOR - O senhor é cauteloso demais, DONO DA GRÁFICA. Tem que lembrar


que o povo oprimido não pode esperar mais. E jamais será vencido, claro! O povo unido
jamais será vencido!

DONO DA GRÁFICA - Os senhores não são cautelosos como eu porque não têm nada a
perder. Depois que nos tornamos proprietários temos que ser responsáveis com essas
coisas. Qualquer passo em falso pode ser terrível para os negócios. Quando temos bens,
o importante é protegê-los.

EDITOR - Então eu torço para nunca me tornar proprietário.

SUB-EDITOR - Proletários do mundo, uni-vos!

DONO DA GRÁFICA - Hum! Antes de você o jornal tinha um outro editor... que depois
chegou a um alto cargo na Prefeitura...

SUB-EDITOR (Cuspindo) - Aquele oportunista!

EDITOR - Mas eu não sou uma maria-vai-com-as-outras e jamais o serei.

DONO DA GRÁFICA - Um político nunca deve dizer: desta água não beberei, Sr.
EDITOR.

EDITOR - Mas eu não sou político, sou jornalista!

DONO DA GRÁFICA - (com desdém) Sei, jornalista… (para SUB-EDITOR) E o senhor,


Sr. SUB-EDITOR, procure se conter; todo mundo sabe que quer ser secretário na
Prefeitura!

SUB-EDITOR - Eu?!...

EDITOR - É verdade, SUB-EDITOR?

SUB-EDITOR - Sim... é... É verdade. Vocês devem compreender: é só para irritar os


nossos poderosos…

Cena 2

(DOUTOR entra)

DOUTOR - Pode publicar tudo, Sr. EDITOR!

EDITOR - Esta é a decisão?

SUB-EDITOR - Maravilha!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR - Pode publicar, já lhe disse. Eles vão ter o que desejam. Teremos guerra, Sr.
SUB-EDITOR.

SUB-EDITOR - Demorô! Partiu pra guerra!!

DOUTOR - Esse artigo é apenas o começo.

SUB-EDITOR - Toda a cidade estará com o senhor.

EDITOR - Sai no jornal de amanhã.

SUB-EDITOR - Isso vai ser uma bomba.

DONO DA GRÁFICA - Temos que ter serenidade e moderação.

DOUTOR - Se vocês soubessem o que passei hoje! Foi horrível! Eles queriam que eu
mentisse, queriam que eu participasse de uma palhaçada sem tamanho!

SUB-EDITOR - Mas isso é demais!

EDITOR - O que eles acham? Que estamos num circo?

DOUTOR (Sem se deixar perturbar) - Mas eles vão ver ao lerem meu artigo! Agora não
se trata só de encanamentos e de esgotos, entendem? É toda a sociedade que é preciso
limpar, desinfetar.

SUB-EDITOR - O senhor fala como um libertador!

DONO DA GRÁFICA - Desde que atuemos com moderação, não corremos nenhum
risco. Deus vai estar do nosso lado.

EDITOR - O senhor merece o nosso apoio, doutor.

DONO DA GRÁFICA - Sim, sem dúvida. O doutor é o melhor amigo dessa cidade.

SUB-EDITOR - O DOUTOR é um verdadeiro amigo do povo!

DOUTOR (Emocionado) - Obrigado, obrigado, meus caros, meus fiéis amigos. É muito
bom ouvir estas palavras! O meu irmão me tratou de modo bem diferente. Mas ele vai
pagar! Cuide bem do meu artigo, Sr. EDITOR. Até a vista, meus amigos, até a vista!

(SAI)

Cena 3

EDITOR - Este homem pode nos ser muito útil.

DONO DA GRÁFICA - Sim, enquanto ele se limitar ao assunto das águas. Mas se quiser
ir além, não será prudente segui-lo.

17
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

EDITOR - Ora, isso depende...

SUB-EDITOR - Vamos deixar que publique seu artigo e aí vemos as oportunidades que
aparecem.

DONO DA GRÁFICA - Isso! Como sempre. (SAI)

DONO DA GRÁFICA sai

SUB-EDITOR - (para o editor) - Por que não nos livramos dele?

EDITOR - Você conhece alguém disposto a nos adiantar o papel e os gastos da gráfica?

SUB-EDITOR - É... É uma pena não termos o capital necessário!

EDITOR (Sentando-se) - Ah, se tivéssemos dinheiro…

Cena 4

DONO DA GRÁFICA (voltando) - O prefeito está aí.

EDITOR - O prefeito?

DONO DA GRÁFICA - Sim, quer falar com a gente na surdina. Não quer ser visto.

(entra Prefeito)

SUB-EDITOR - (Pega o boné do prefeito) A casa é sua, Sr. Prefeito.

PREFEITO - O senhores já devem saber do relatório do Doutor...

EDITOR - Relatório? Ah, sim, ele menciona o relatório no artigo que escreveu.

PREFEITO - Ah, então os senhores já estão BEM a par do assunto. E mesmo assim vão
publicar?

SUB-EDITOR - Isso o deixa preocupado, senhor Prefeito?

PREFEITO - Naturalmente. Mas vejo que os senhores têm o espírito de sacrifício


necessário para fazer as reformas que o Doutor propõe...

DONO DA GRÁFICA (assustado, interrompendo) - Espírito de sacrifício?

PREFEITO - E não serão poucos os sacrifícios que a cidade vai ter de suportar.

SUB-EDITOR - A cidade?

DONO DA GRÁFICA - Mas não compreendo... São os acionistas do Parque das Águas...

18
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

PREFEITO (interrompendo) - As modificações exigidas pelo doutor vão a quinhentas


mil coroas, ou mais.

DONO DA GRÁFICA - É muito dinheiro, mas...

PREFEITO - Teremos, naturalmente, de recorrer a um aumento no IPTU.

EDITOR (Erguendo-se com vivacidade) - Sim, mas não há de ser a cidade que...

DONO DA GRÁFICA - Tirar o dinheiro do magro bolso dos pequenos proprietários?

SUB-EDITOR - Isso é um problema dos acionistas da Estação.

PREFEITO - O MERCADO não aceita isso. Os acionistas não estão em condições de


desembolsar mais nada. Se for decidido levar em frente o plano de reformas proposto
pelo doutor, quem deverá pagar é a cidade. Tá no contrato de concessão.

DONO DA GRÁFICA - Humm...Aos poucos vemos que as coisas tomam um rumo bem
diferente...

SUB-EDITOR - É... De fato.

PREFEITO - E o pior é que a Estação Balneária ficará fechada durante pelo menos uns
três anos.

EDITOR - Fechada? O senhor disse fechada?

DONO DA GRÁFICA - Três anos?

PREFEITO - Sim, no mínimo. É o tempo para reforma e reparo.

DONO DA GRÁFICA - Não poderemos aguentar isso, Sr. Prefeito!

PREFEITO - Imaginem os senhores se, depois de tudo, virá alguém procurar nossa
Estação e nossas águas? Depois de sair no jornal que nossas águas estão poluídas, que
vivemos num terreno podre, que toda a cidade está...

SUB-EDITOR - Será que tudo isso não passa de uma simples fantasia do doutor?

PREFEITO - Eu acredito que sim.

DONO DA GRÁFICA - Neste caso, o DOUTOR cometeu um erro realmente


indesculpável...

PREFEITO - Meu irmão sempre foi um desmiolado.

EDITOR - Quem poderia esperar…

SUB-EDITOR - É mesmo um desmiolado.

19
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

PREFEITO - Eu redigi uma breve exposição sobre o caso, analisando de um ponto de


vista imparcial. A prefeitura vai pagar a publicação, generosamente.

EDITOR - Tem aí o artigo, Sr. Prefeito?

DONO DA GRÁFICA (Excitado, olhando para a porta) - Sangue de Jesus! O DOUTOR!

PREFEITO - Meu irmão? Onde, onde? Onde ele está? Ele não pode me ver aqui. E eu
ainda preciso falar várias coisas com vocês...

EDITOR (Indicando um barril) - Entre aí e espere um pouco.

PREFEITO - Mas...?

DONO DA GRÁFICA - Depressa, depressa, Senhor Prefeito. Ele vem vindo!

PREFEITO - Está bem. Mas vejam se ele não fica muito tempo.

(entra no barril)

EDITOR - Vamos fingir que estamos trabalhando.

(Disfarçam, como se estivessem trabalhando)

Cena 5

DOUTOR - Estou de volta!

EDITOR - Já de volta, doutor?

DOUTOR - Acho que vocês compreendem a minha impaciência. Só vou descansar


quando vir o texto impresso.

DONO DA GRÁFICA (Pigarreando) - É possível que demore muito tempo.

SUB-EDITOR - Ihhh! Demora, ó!

DOUTOR - Está bem, está bem, meus amigos. Voltarei daqui a pouco. Voltarei duas, três
vezes se for preciso. Uma causa tão grande! Não se pode ficar parado quando o que está
em jogo é a salvação da cidade!

(Entra MULHER)

MULHER (Para o doutor) - Tinha certeza de que o encontraria aqui!

DOUTOR - Que diabo você veio fazer aqui, MULHER?

MULHER - Não me levem a mal: venho buscar o meu marido. Sou uma mãe de família!

20
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR - Eu aqui resolvendo o assunto mais importante da cidade e você veio aqui
fazer o quê? Tá de TPM?

MULHER - Sr. EDITOR, quero que saiba que está nos causando um mal gravíssimo,
arrastando o meu marido para as lutas políticas, tirando-o da família.

EDITOR - Mas eu não estou arrastando ninguém...

DOUTOR - Me arrastar? Acha então que eu me deixo arrastar?

MULHER - Certamente que sim! Sei perfeitamente que você é o homem mais inteligente
da cidade, mas, por outro lado, Thomas, é o que se deixa enganar com mais facilidade...
(à equipe do jornal) O senhores sabem que ele será demitido se este artigo for publicado?

DONO DA GRÁFICA - Que está dizendo?

EDITOR - Francamente, doutor…

SUB - EDITOR - Caraca!

DOUTOR (Rindo) - Ha, ha, ha! Que experimentem! Pode ficar tranquila, MULHER,
porque eu tenho a meu favor a opinião pública. Catarina, volta para casa, cuida dos teus
afazeres e deixe-me tratar dos problemas. (Pára diante do chapéu do Prefeito) Mas... Mas
o que é isto?

DONO DA GRÁFICA (Olhando, sem graça) - Oh! É que...

EDITOR (Igualmente) - Hum...

DOUTOR - Vejam só, temos aqui um emblema da autoridade. (Segura com precaução o
boné do prefeito)

MULHER - O boné do prefeito!

DOUTOR - Com todos os diabos, o que significa isto?

SUB- EDITOR - Tudo tem uma boa explicação...

DOUTOR - Ah! Compreendo, ele veio oferecer um suborno! Ha, ha, ha! Mas é claro que
inutilmente! E, ao me ver chegar... (Desata a rir) Escapuliu-se, Sr. DONO DA GRÁFICA?

DONO DA GRÁFICA (Com vivacidade) - Pois é, doutor, escapuliu-se.

DOUTOR - Escapuliu-se deixando o boné e… Peraí! Peter não é de fugir. Mas o que
fizeram dele, afinal? Ah. Já sei, deve estar aí dentro. (DOUTOR põe na cabeça o boné do
prefeito e aproxima-se do barril onde desapareceu o Prefeito, dá algumas batidinhas e
em seguida o abre)

(Aparece o Prefeito, muito irritado)

21
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

Cena 6

PREFEITO - O que significa esta farsa?

DOUTOR - Você deve me respeitar, meu caro Peter. Agora sou eu a autoridade.

(Caminha de um lado para outro)

MULHER (Prestes a chorar) - Que é isso, Thomas?!

PREFEITO (Seguindo-o) - Devolva o meu boné!

DOUTOR (Sem mudar de tom) - Eu sou o prefeito, a autoridade máxima!

PREFEITO - Tire o boné, já disse. Você vai se complicar! Não se esqueça de que é um
boné oficial, protegido pelos regulamentos.

DOUTOR - Eu sou o chefe da cidade, entende? Você veio lutar contra mim às escondidas.
Mas não vai conseguir nada! Amanhã vamos fazer a revolução! Tenho ao meu lado todas
as forças populares. Somos invencíveis! EDITOR e SUB-EDITOR farão da Voz do Povo
a nossa voz, e o DONO DA GRÁFICA marchará à frente da Associação dos Pequenos
Proprietários de Imóveis.

DONO DA GRÁFICA - Mas doutor, eu...

DOUTOR - Marchará, sim, marchará.

PREFEITO - Sr. EDITOR, o senhor é capaz de ficar ao lado dos agitadores?

EDITOR - Não, Sr. Prefeito.

DONO DA GRÁFICA - Não, o Sr. EDITOR não é tão louco para arruinar seu próprio
jornal só por causa de uma fantasia...

DOUTOR (Assombrado) - O que você quer dizer com isso?

EDITOR - O senhor apresentou a questão de maneira falsa, doutor, e nestas condições eu


não posso apoiar o senhor.

SUB-EDITOR - Nem eu, depois que o Sr. Prefeito teve a gentileza de dar amplas
explicações sobre o problema...

EDITOR - Não nos atrevemos a publicá-lo.

DOUTOR - Não se atrevem? Que conversa é essa? Não é o senhor que manda no jornal?

DONO DA GRÁFICA - Não, senhor doutor, são os anunciantes.

PREFEITO - A verdadeira opinião pública, o Mercado!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DONO DA GRÁFICA - Isso, a opinião pública: as pessoas esclarecidas, os proprietários,


a classe média… são eles que dirigem os jornais.

DOUTOR (Perplexo) - Ô lôko! E agora estão todos contra mim?

DONO DA GRÁFICA - Sim, senhor. Se seu artigo fosse publicado seria uma verdadeira
ruína para a nosso povo.

DOUTOR - Tô passado!

PREFEITO - Meu boné! (DOUTOR coloca o boné em cima da mesa. Prefeito recolhe
com vigor)

PREFEITO - Não durou muito a sua autoridade… (Tirando do bolso um papel) Publique
esta nota oficial. Isso bastará para a população. Este sim é um artigo de verdade.

EDITOR (Tomando o papel) - Será publicado. Obrigado, Sr. Prefeito.

DOUTOR - E o meu artigo, não? Acreditam que podem me calar, afogar a verdade? Não
é tão fácil como pensam. Sr. DONO DA GRÁFICA, por favor, mande imprimir
imediatamente. Eu pago! Faça uma tiragem de quatrocentos... não, quinhentos
exemplares.

DONO DA GRÁFICA - Nem por todo o ouro do mundo permitirei que minhas máquinas
imprimam seu artigo, Doutor. Não podemos ir contra a opinião pública. Deus me livre!

DOUTOR (muito revoltado) - Então eu vou convocar uma grande assembleia popular. É
preciso que todos ouçam a voz da verdade.

MULHER - Por que estão todos contra você, Thomas?

DOUTOR (Furioso) - Eu vou dizer por que: é porque nesta cidade não há homens; há
somente pessoas que, como você, só pensam nas suas famílias e nem um pouco na
comunidade.

MULHER (Pegando-o pelo braço) - Nesse caso, eu vou lhes mostrar que uma... Uma
pobre mulher pode, às vezes, valer tanto ou mais do que vale um homem. Agora, Thomas,
estou contigo!

DOUTOR - Bravo! Catarina! É muito importante que as pessoas conheçam o meu artigo.
Nem que eu tenha que percorrer a cidade com um tambor e lendo em todas as esquinas.

PREFEITO - Você não é louco a esse ponto!

DOUTOR - Você vai ver como sou!

MULHER – Vamos fazer um escândalo nas redes sociais!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR (Abraça-a e beija-a) - Obrigado, Catarina! Senhores, começou a batalha. Ah!


Vamos ver se os covardes conseguirão fechar a boca de um patriota que luta pelo bem
comum! (Sai com a mulher)

SUB-EDITOR (Abanando a cabeça com preocupação) - Acabô de lascá tudo!

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A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

Quarto Ato

Cena única

(Grande assembleia)

PRIMEIRO CIDADÃO - Ah, que bom que você veio!

SEGUNDO CIDADÃO - Eu sempre venho nessas ocasiões!

UM VIZINHO - Tem panela aí?!

TERCEIRO CIDADÃO - Vamo batê panela!!

QUARTO CIDADÃO (Aproximando-se deles) - O que vai acontecer esta noite?

SEGUNDO CIDADÃO - Ainda não sabe? O DOUTOR vai fazer uma conferência contra
o prefeito.

RECÉM-CHEGADO - Mas não é o irmão dele?

TERCEIRO CIDADÃO - Agora tão de pinimba. Mas o doutor é que tá errado. O jornal
falou!

SEGUNDO CIDADÃO - É verdade.

HOMEM (Em outro grupo) - De que lado a gente deve estar, nesta história toda?

IDOSA (segurando uma Bíblia) - Escutem sempre o DONO DA GRÁFICA me disseram


que ele é um homem de Deus.

(Todos vão chegando por diferentes lados)

DOUTOR, MULHER, FILHA, FILHO 1 E FILHO 2 - (trocam gestos, tentam acalmar o


DOUTOR)

MULHER - THOMAS se acalme, respire!

DOUTOR - Estou bem, CATARINA

MULHER (Comovida e nervosa) - Eu sei, eu sei... Por favor, Thomas, não se exalte!!

DOUTOR - Fique tranquila! Sei me controlar. (Consulta o relógio e fala para a


audiência) Senhores! Já passa das 4:20, vou começar. (toma fôlego para falar mas é
interrompido)

DONO DA GRÁFICA - Acho que deveríamos começar elegendo um presidente.


DOUTOR - Não! Não precisa!.

ALGUNS SENHORES - Sim, sim! Vamos eleger um presidente!

25
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

NUMEROSAS VOZES - Um presidente! Um presidente!

EDITOR - A vontade de todos parece exigir um presidente.

DOUTOR (Contendo-se) - Façam o que quiserem.

NUMEROSAS VOZES - Vamos escolher o DONO DA GRÁFICA! O DONO DA


GRÁFICA para presidente! Ele é homem de Deus!

DONO DA GRÁFICA - Chamado pela confiança dos aqui presentes, aceito esta
importante tarefa. (é aclamado)

DONO DA GRÁFICA - Senhores! Alguém quer usar da palavra?

PREFEITO - Sr. Presidente!

DONO DA GRÁFICA - Tem a palavra o Sr. Prefeito.

PREFEITO - Sugiro, para o bem da Estação Balneária e para o bem da cidade, que a
assembléia não autorize o cidadão que a convocou a ler o seu relatório ou mesmo emitir
sua opinião.

DOUTOR (Indignado) - Me proibir de falar...? Você ficou louco?

NUMEROSAS VOZES - É verdade! Isso mesmo! Apoiado! (BATEM PANELAS)

PREFEITO - No jornal Voz do Povo, já informei a população sobre os fatos essenciais.


De modo que todos sabem que para realizarmos grandes obras seríamos obrigados a
aumentar um pouquinho os impostos, (TODOS reagem negativamente) e privatizar o
sistema de saúde, (TODOS reagem negativamente) a água, o esgoto e claro, também a
educação. (reação negativa em coro: Ahhh!!)

VELHINHO - Às panelas!!!

(Gritos e bateção de panelas)

DONO DA GRÁFICA (Fazendo soar a campainha) - Silêncio, senhores. Aprovo a


sugestão do prefeito. Creio que o DOUTOR esteja abusando da nossa boa fé com dados
falsos!

DOUTOR - Falsos?!...

EDITOR - No mínimo inexatos. Assim demonstrou o artigo do Prefeito.

(todos gritam e batem panelas)

DOUTOR - Então a assembleia não me autoriza a falar sobre o Parque das Águas?

TODOS - (em coro) Não!

26
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DOUTOR - E eu poderia falar sobre outro assunto?

PREFEITO - Sobre o quê?

BÊBADO - Isso mesmo! Vamos falar sobre outro assunto. Eu sou um contribuinte! E por
isso tenho também o direito de dizer a minha opinião! E estou plenamente, perfeitamente,
incrivelmente convencido que…

NUMEROSAS VOZES - Silêncio!

OUTRAS VOZES - Está bêbado! Fora com ele!

(Expulsam o bêbado)

DOUTOR - Existem questões mais graves sobre as quais gostaria de falar. É uma grande
descoberta que fiz nestes últimos dias: O povo é apenas massa de manobra dos poderosos!

DONO DA GRÁFICA - Olhe lá como fala da sagrada vontade de nosso povo!

DOUTOR - O povo é manipulado pelos jornais e pelos políticos inescrupulosos,


exatamente como o meu irmão Peter: este homem preconceituoso, que jamais reconhece
os seus erros...

BÊBADO - Estão falando comigo? Porque eu também me chamo Peter...

VOZES FURIOSAS - Rua com o bêbado! Rua! Rua!

DOUTOR - Os que governam este lugar nos envenenam mais a cada dia! O que eles
querem é que vocês permaneçam ignorantes, não conseguem ver isso? Um povo
contaminado e iludido é mais fácil de controlar!!!!

(Grande alvoroço. A maioria dos assistentes grita e bate panela. Muitos se divertem com
a situação. DONO DA GRÁFICA faz soar a campainha e pede silêncio. EDITOR e SUB-
EDITOR falam, ambos, mas não se ouve o que dizem. Momentos depois o silêncio se
restabelece)

DONO DA GRÁFICA - O presidente exige que o orador retire as expressões impróprias


e ditas impensadamente!

DOUTOR - Não retiro coisa nenhuma.

PREFEITO - Protesto contra os ataques ao povo de nossa cidade!

(novo tumulto)

UM CIDADÃO - Rapaz! O doutor enlouqueceu? Tá virando um agitador!

SEGUNDO CIDADÃO - O Doutor? um Revolucionário?

27
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

VELHINHO - Ihhh!! Tá Goiaba!

DOUTOR (Explodindo) - Ninguém pode impedir que eu diga a verdade! Vou procurar
os jornais das outras cidades! Todo o país ficará sabendo o que se passa por aqui!

EDITOR - O DOUTOR quer arruinar a nossa cidade.

DOUTOR - Amo tanto minha cidade que não posso aceitar que estejamos todos vendendo
veneno como se fosse remédio.

EDITOR (Berrando mais alto que os outros) - A pessoa que ataca desta forma o bem
comum é um inimigo do povo!

TODA A ASSISTÊNCIA (Clamando) - Inimigo do Povo! Inimigo do Povo!I Inimigo do


povo! Odeia a própria pátria! Odeia o seu povo… Vai para Cuba! Inimigo do povo!
Inimigo do Povo!

DOUTOR - Vamos, MULHER! Venham, crianças! (Sai protegendo a família, aos


berros) E que me importa quem vive e protege mentiras? Nossos governantes são
corruptos porque nosso povo é corrupto!

MULTIDÃO (Berrando atrás dele e jogando bolinhas de papel no DOUTOR e em sua


família) - Inimigo do povo! Inimigo do povo! Inimigo do povo!

Quinto ato

Cena 1

(Gabinete do DOUTOR. Bolinhas de papel por todo lado. o DOUTOR pega uma delas)

DOUTOR - Olha, Catarina, achei outra.

MULHER - Pois vai encontrar um monte! Quebraram todas as vidraças da casa! Ah,
chegou uma carta para ti, Thomas.

DOUTOR - Deixa ver. (Abre a carta e lê) Ah! Muito bem...

MULHER - De quem é?

DOUTOR - Do proprietário. Ele está nos despejando.

MULHER - Está vendo, Thomas?

DOUTOR - São todos uns covardes. Todo mundo controlado pelos ricos, que mandam
nos políticos e na imprensa.

MULHER - Isso é uma loucura... (Entra FILHA) Como? Já voltou da escola?

CENA 1 A

28
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

FILHA - Fui demitida.

MULHER - Demitida!

FILHA - A Diretora disse que não podia fazer nada. Que depois que o papai foi
considerado inimigo do povo ele se tornou um fora-da-lei...

MULHER - Ouçam! Estão batendo na porta.

FILHA - Deve ser o tio Peter.

DOUTOR (Gritando) - Entre.

MULHER - Por favor, meu querido Thomas, prometa-me... (Entra o PREFEITO)

DOUTOR - Não se preocupem… (FILHA E MULHER SAEM)

PREFEITO (Tirando do bolso um documento) - Tenho aqui uma carta da direção da


Estação Balneária.

DOUTOR - Estou demitido?

PREFEITO - Você tem alguma dúvida? E a partir de hoje não terá um cliente sequer nesta
cidade!

DOUTOR - É eu sei. E o que mais?

PREFEITO - Acho que você deve sair da cidade por uns tempos. Se, mais tarde, depois
de uns seis meses de reflexão, tendo pensado tudo muito bem, você escrever um artigo
no jornal reconhecendo que estava errado… Talvez o Conselho o reintegre ao seu posto.

DOUTOR - Mas e a opinião pública? Vocês se atreveriam a afrontá-la?

PREFEITO - A opinião pública, meu caro Thomas, é uma coisa muito relativa, varia
muito, compreende? E, além disso, para falar com franqueza, o que importa é o seu
desmentido mas compreendo que você não esteja assim, tão preocupado com o futuro de
sua família, não é mesmo?

DOUTOR - Que quer dizer?

PREFEITO - Vai me dizer que não conhece o testamento do velho LEITÃO?

DOUTOR - Não tenho a menor ideia... E não me importa.

PREFEITO - Então o velho nunca lhe disse que sua fortuna será destinada a sua mulher
e à sua filha? E que você teria todo esse dinheiro em usufruto?

DOUTOR - Não! Ao contrário. Ele vive reclamando de barriga cheia! Tens certeza do
que está dizendo, Peter?

29
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

PREFEITO - (rindo) O velho LEITÃO é um homem muito, muito rico! E eu vi o


testamento

DOUTOR - Santo Deus! Neste caso está assegurado o sustento e o futuro de Catarina e
de minha filha! Como esta notícia me deixa feliz!

PREFEITO - Calma, Thomas. Ainda não está seguro! O Leitão pode muito bem anular o
testamento...

DOUTOR - Não, Peter, ele não fará isso. Ele esteve aqui e eu percebi que ele estava muito
contente vendo que eu enfrentava a você e seus amigos.

PREFEITO - Ah! Então foi esse o preço que cobrou para figurar no testamento do
rancoroso LEITÃO?

DOUTOR (Quase sem voz) - Peter, como pode pensar isso, você é o ser mais execrável
que jamais encontrei na vida.

PREFEITO - Não há mais nada para conversar, Thomas. Sua demissão é irrevogável.
Temos agora uma arma muito poderosa contra você. (Sai)

Cena 2

FILHA (Na porta) - Papai, o vovô está aqui e quer falar contigo.

DOUTOR - Claro. (Vai até a porta) Entre, meu sogro. (Entra LEITÃO)

LEITÃO - Sabes o que eu tenho aqui?

DOUTOR - Espero que, como eu, a consciência limpa.

LEITÃO - Coisa muito melhor! (Saca um volumoso envelope, abre e mostra um maço de
documentos) ações da Estação Balneária! Comprei tudo o que consegui, enquanto tive
dinheiro.

DOUTOR - Mas meu sogro, o senhor se esquece do meu relatório sobre as águas da
Estação Balneária?

LEITÃO (Sorrindo) - Se você souber proceder com prudência e ponderação, em pouco


tempo tudo será resolvido.

DOUTOR - Eu faço o que posso, meu sogro. Mas todos enlouqueceram nesta cidade.

LEITÃO - Ontem você disse que as piores imundícies que infectam as águas vinham do
meu matadouro. Se isso fosse verdade, meu avô, meu pai e eu seríamos há quase cem
anos a grande praga da cidade. Você acha que posso tolerar semelhante desonra sobre o
meu nome?

DOUTOR - Acho que vai ter que se conformar.

30
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

LEITÃO - Absolutamente! Eu prezo muito o meu nome e minha reputação. Será você,
meu genro, quem vai limpar o meu nome.

DOUTOR - Eu?

LEITÃO - Sim, você! Sabe você com que dinheiro eu comprei estas ações? Não, você
não pode saber. Pois bem! Foi com o dinheiro que Catarina, Petra e os rapazes deveriam
herdar, um dia, quando eu morresse.

DOUTOR (Com violência) - Como! É a herança de Catarina que o senhor emprega dessa
forma?

LEITÃO - Sim, todo esse dinheiro está investido na Estação Balneária. E agora eu quero
ver se você é realmente tão louco assim... Se vai continuar espalhando por aí que o lixo
que infecta as águas vem do meu matadouro. Pois divulgar estas mentiras significa
prejudicar os interesses diretos de Catarina, e sua filha também. Se você insistir nessa
loucura, esses papéis vão virar pó!

DOUTOR - Mas, maldição! A ciência deve nos dar uma saída… Pode até ser que eu
esteja errado. Pode ser até que tenham razão! É pura fantasia. Se isso lhes convém... Não
disseram que eu sou o inimigo do povo?

LEITÃO - E as vidraças todas!

DOUTOR - O que o senhor quer? Que eu minta sobre o laudo?

LEITÃO - Se é mentira ou verdade, isso é contigo. O que interessa é meu nome estar fora
disso.

DOUTOR - E se eu disser que não? O que o Senhor vai deixar para CATARINA?

LEITÃO - Nem um vintém. Você tem duas horas para me responder SIM ou NÂO.

Cena 3

(Aparecem EDITOR, SUB-EDITOR e DONO DA GRÁFICA)

DOUTOR (Olhando-os) - Como se atrevem a vir à minha casa?

DONO DA GRÁFICA - É que temos algo para dizer-lhe.

DOUTOR - Pois bem, sejam breves!

EDITOR - Nós compreendemos que depois da nossa atitude de ontem, o senhor deva
estar chateado conosco.

DOUTOR (Faz cara de nojo) - Atitude! Vocês foram um bando de fí de uma égua!

31
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

DONO DA GRÁFICA - Mas por que o senhor não nos disse nada? Bastava uma palavra
ao EDITOR ou a mim.

SUB-EDITOR - Ou a mim.

EDITOR - O senhor deve compreender que preferiríamos apoiá-lo desinteressadamente.


Infelizmente o nosso jornal não anda bem, estamos com graves problemas financeiros...

DOUTOR (Exaltando-se) - Não acredito que estou ouvindo isso!

SUB-EDITOR - O senhor não pensa em se recusar a dividir o lucro de tamanha compra


das ações do Balneário não é mesmo?

DOUTOR - O que aconteceria se eu me recusasse a dar a vocês um vintém do lucro das


minhas ações? Lembrem-se de que de nós, os ricos, não se tira o dinheiro tão facilmente.

EDITOR - O senhor tem que entender que há duas maneiras de explicar publicamente
este negócio.

DOUTOR - Claro! Se eu não der dinheiro, o jornal vai denunciar o negócio de forma
terrível, desonesta!

SUB-EDITOR - É a lei da natureza. A luta pela vida!

DONO DA GRÁFICA - É, doutor, a gente busca a comida onde ela está.

DOUTOR - Pois, então, vão procurar a sua no esgoto. (Corre pelo gabinete atrás dos
dois) Ah! Vamos ver qual de nós é o animal mais forte.

EDITOR e DONO DA GRÁFICA - Socorro! O senhor está louco! Socorro! Socorro!

(Entram MULHER e FILHA)

FILHA - Meu Deus! Papai, que é isto?

MULHER - Vamos, Thomas, acalme-se! (saem os 3)

Cena 4

DOUTOR – Diabo! Afinal se foram!

MULHER – Mas o que eles queriam contigo?

DOUTOR – Eu conto mais tarde. Agora tenho outra coisa a fazer. FILHA, mande essa
menina ir procurar o seu avô, agora mesmo. O recado é bem simples: Não, não e não!
(FILHA sai) Pode limpar o fiofó com os papeis.

MULHER – Papeis?

32
A Farra dos Inimigos do Povo – Versão final

FILHA – (voltando) Está feito.

DOUTOR – (para MULHER) Depois eu te conto isso também.

MULHER – E o que vamos fazer? Não temos mais casa, nem fonte de renda!

FILHA – É, pai, o que vamos fazer agora?

DOUTOR – Não se preocupem. Eu sei exatamente o que vamos fazer.

FILHA e MULHER – Sabe?

DOUTOR – (Tirando o nariz de palhaço e assumindo uma postura ereta, o que todos
os atores da peça imitam, subindo ao palco) Vamos fazer teatro! A gente junta um
bando de gente fudida e desajustada, uns malucos, uns deprimidos, uns esquisitos, gente
criativa... E aí quem sabe um dia a gente apresenta no (diz o lugar onde a peça está
sendo apresentada nesse exato momento)... A gente passa o chapéu no final, vai que
entra algum dinheiro... É uma maneira de desalienar nosso trabalho. A gente vai mandar
no próprio tempo, e poder trabalhar com criatividade e arte, já pensou? (vai saindo)

PETRA vai à frente do palco e puxa uma música. O público é chamado a cantar
junto

Oiê Muié rendeira


Oiê muié rendá
Tu me ensina a fazê renda
Que eu te ensino a namorá

FIM

33

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