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Os Cátaros I
A partir do mais autêntico perfil do cristianismo, aquele que predominou nos primeiros
tempos, ainda pulsante da vida que Jesus injetara nas suas artérias, o catarismo, como
no Evangelho de João, fala o Cristo vivo e presente, ainda que, paradoxalmente,
póstumo. Não o crucificado que teria surgido de volta aos céus no seu corpo
ressuscitado. Para os cátaros, Jesus não havia tido, sequer, corpo físico; era um
cristianismo sem a cruz e sem a missa.
Embora os sacramentos tenham sido considerados pela Igreja católica como instituídos
pelo Cristo, a doutrina cátara mudou praticamente tudo, uma vez que nada encontrou
nos textos primitivos que os justificasse. Até mesmo o conceito de salvação foi
substancialmente reformulado.
A releitura ideológica contestou, rejeitou ou modificou-os, desde o batismo até o da
extrema-unção. Mais do que isso, mudou radicalmente a filosofia das práticas
religiosas: ninguém era obrigado a frequentar o único sacramento, os cultos e a missa,
que não celebravam.
Pela convenenza, por exemplo - termo occitano que significava acordo, pacto - o crente
pactuava com a Igreja catara o direito de receber o consolamentum na hora da morte,
ainda que inconsciente e incapaz de recitar em voz alta o Pai Nosso - a prece maior dos
cátaros. Esse ritual começou a ser praticado nos meados do século 13, durante a luta
armada e a perseguição inquisitorial, quando era maior o risco de vida a que todos se
expunham.
O melhoramento - amelioration, na língua occitana - constituía a única obrigação
ritualística dos crentes. Resumia-se em simples, mas formal e solene saudação dirigida
aos perfeitos, sempre que se encontravam com eles. Consistia em três reverências ou
genuflexões e um pedido de bênção. No primeiro melhoramento que praticasse, o crente
pedia que fosse assistido pelo resto da vida, supondo-se que a convenenza estivesse
implícita no ato, ou que fosse feita logo a seguir.
Esse singelo rito caracteriza com clareza a posição do crente, que não está ainda em
condições de viver uma vida de santidade, mas revela-se disposto a trabalhar pela sua
libertação espiritual. Trabalho pessoal, aliás, de renovação moral, não tarefa a ser feita
por intermediação de quem quer que fosse ou por meio de rituais e sacramentos
salvadores. Com o melhoramento e a convenenza, o crente dava testemunho de seu
firme propósito de progredir moralmente para se tornar merecedor de ser "amado por
Deus".
A doutrina catara não reconhece o livre-arbítrio. E, neste caso, o rito combinado -
melhoramento/convenenza - seria, talvez, interpretado como declarada predisposição do
crente, uma formalização de seu propósito de se colocar à disposição da misericórdia e
do amor divinos para dar início ao seu processo evolutivo rumo à perfeição.
A endura - termo occitano para privação, jejum - constitui prática sobre a qual pairam
ainda controvérsias e desentendimentos entre os especialistas. Nelli informa em Les
cathares (p. 148), que se tratava de uma "espécie de suicídio místico, nada condenável".
O objetivo era o mesmo que, segundo o autor, sempre foi, da parte dos seres mais
espiritualizados de todas as religiões, o de abreviar a vida terrena em troca da que -
presumivelmente melhor, sem dores, doença? ou velhice - aguarda o ser na dimensão
espiritual.
A endura seria usualmente praticada depois que o moribundo recebia o consolamentum,
que, por sua vez, lhe proporcionava a esperança - não a certeza -de que ele estaria salvo,
por terem sido perdoados os seus pecados. De alguma forma, pois, o conceito da
salvação da alma, prevalecia no catarismo. Ora, os cátaros rejeitavam a ideia do inferno,
embora aceitassem a existência do demônio.
Anne Brenon utiliza, neste passo, a expressão "inferno transitório".
Os cátaros sabem que o estado de espírito em que se vive atormentado por suplícios que
parecem não ter fim, chega, um dia, ao seu termo, dado que nenhum ser humano foi
criado para sofrer por toda a eternidade, como também sabiam os cátaros, todos se
salvam, entendendo-se a salvação como elevação aos patamares superiores da paz, da
harmonia, da felicidade, nos estágios mais altos da perfeição possível à condição
humana.
Depois de consolados os crentes não morriam, ficavam obrigados às severas regras de
seu novo estado, ou seja, tinham de recitar o Pai Nosso antes de cada refeição, vivendo
sob o temor de recair em pecado, com a perda consequente "da santificação relativa e
provisória que havia recebido, sem grandes méritos, de Deus e das circunstâncias", uma
vez que não eram parfaits ou parfaites, mas simples croyants beneficiados por uma
espécie de extrema-unção cátara.
Em muitos casos, pessoas nessas condições preferiam a morte provocada pela fome ou,
mais raramente, pelo frio. Prática, aliás, que os parfaits jamais encorajavam e, menos
ainda, recomendavam ou impunham.
A endura tornou-se mais difundida aí pelo fim do século 13, sobretudo no condado de
Foix, sob a influência de Pierre Authier, o mais influente parfait do renascimento cátaro.
Os tempos eram ásperos dado que "a Inquisição se incumbia de tornar impossível a vida
dos crentes".
Os suicídios estoicos nalguns casos isolados de perseguição pela Inquisição foram
muito raros.
* Cátaros II
* Os Cátaros III
(...)
Segundo a doutrina cátara, bem como a gnóstica, as almas são criadas por as suas
"túnicas de pele" - o corpo físico - constituem prisões nas quais elas adormecem,
esquecidas de suas origens e de seus compromissos com o produtivo pessoal.
É assim que cada alma, adormecida na matéria que a retém cativa, esquece-se de sua
origem celestial. E para fazê-las lembrarem-se e como que para despertá-las que Deus
enviou Jesus Cristo, portador da mensagem reveladora indicada para arrancar as almas
de suas prisões terrenas...
A imposição de mãos seria o instrumento utilizado para essa finalidade por tradição que
remonta aos apóstolos, mas que, obviamente, perdera pelos caminhos sua verdadeira
razão de ser e sentido.
Na concepção cátara, o procedimento, recuperado das suas realidades primitivas,
suscitava a "infusão do Espírito Santo consolador - daí o termo occitan consolament" -
esclarece Roquebert.
Aquele que for consolado no momento da morte deixará o corpo físico em melhores
condições não propriamente de ganhar o paraíso, mas com maior perfeição espiritual na
próxima reencarnação. Para os católicos, incumbe à alma ganhar o paraíso, ao passo que
para os cátaros, ela retorna ao 'local' de onde veio.
O paraíso, que, tanto quanto o inferno, são estados de espírito, como ficou dito há
pouco, e não locais onde se vive a eterna ociosidade do repouso ou o sofrimento
igualmente sem fim.
E' preciso reconhecer que tais conceitos se arraigaram de tal forma no imaginário
humano que passaram para a linguagem corrente. Ao dirigir-se à sua falecida amada,
escreve Camões:
Alma minha gentil que te partiste, Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu
eternamente, E viva eu cá na Terra sempre triste.
O segundo aspecto é o do Espírito Santo consolador e isto precisa de um pouco mais de
espaço.
A expressão Espírito Santo está habitualmente sob forte suspeita de ter sido
influenciada pelo dogma da Trindade Divina, que não havia sido formulada quando os
textos evangélicos foram escritos originariamente. A ideia primitiva portanto, é a de que
a imposição de mãos conferia ao discípulo os dons do espírito - pura e simplesmente -
não os do Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade, como temos visto reiteradamente,
neste livro.
Em várias passagens, especialmente em Atos, às vezes, a expressão deixou receber a
devida 'correção' - para conformar-se com dogma da Trindade - e ficara simplesmente
como espírito. "... o espírito me disse que os acompanhasse.." (Atos 11,12); "... o anjo
(angellos [grego] = mensageiro espiritual) tocou o lado de Pedro..." (Atos 12:7); "... e os
espíritos maus se retiraram... (atos 19,12). Em Atos 16,9, Paulo tem a visão de uma
entidade que provavelmente se identificou como macedônio a pedir-lhe que fosse à sua
terra; em Atos 19,12, o texto é explícito sobre a manifestação do próprio Cristo
póstumo, ao dizer: "... mas o espírito de Jesus não lho permitiu..."
O que dizem, portanto, esses exemplos e certamente outros nos quais o texto foi
'adaptado' para acomodar o dogma da Trindade é que os espíritos participavam
ativamente do movimento cristão nascente, desde o episódio do Pentecostes, aliás, a
mais importante comemoração dos cátaros.
A infusão do Espírito Santo era o despertar da alma nos que se submetiam ao
consolamento cátaro por imposição de mãos de companheiros mais experimentados.
E' o que atestam os textos evangélicos. Os conselhos que Paulo transmite a Timóteo nas
duas epístolas são os que um bispo cátaro daria ao seu discípulo já consolado'. Trata-se,
ali, de uma austera programação de vida com suas renúncias às coisas do mundo,
pureza, devotamento e paciência ante o sofrimento e a incompreensão.
O apóstolo refere-se a instruções de origem mediúnica dirigidas a Timóteo tão
caracterizadas como 'profecias', enquanto o ato mesmo de transmiti-las era conhecido
como o de 'profetizar' - e lembra a solene cerimônia quando passou a seu discípulo "o
dom de Deus que há em ti pela imposição de minhas mãos. (II Tim. 1,6)
Lê-se na tradução que Déodat Roché fez do Ritual cátaro (L'église romai--s cathares
albigeois, p. 175 e seg.), módulo sobre o "Batismo espiritual ou ação", uma referência
ao curioso diálogo de Paulo com alguns joanitas (discípulo de João) em Corinto, ao
tempo em que lá estava Apolo.
A cena está narrada em Atos 19,1 -7. Paulo perguntou-lhes se haviam recebido o
Espirito Santo ao abraçarem a fé. Mas eles revelaram desconhecer completamente essa
modalidade de batismo do Espírito. Haviam recebido - disseram -batismo de João. E
Paulo, sempre enfático, declarou que esse era o batismo da penitência, ministrado por
João, mas que, após ele, viria outro, isto é, Jesus.
Os joanitas concordaram, pois, em receber o batismo do espírito e "quando Paulo lhes
impôs as mãos, o Espírito Santo veio sobre eles (manifestou-se). Eles se puseram a falar
em línguas e a profetizar".
Para os cátaros é o dom do Espírito Santo consolador que revela 'o sentido profundo e a
verdadeira dignidade das Escrituras.
Vamos considerar, porém, a prática específica da imposição de mãos, que em diferentes
passagens dos evangelhos figura como procedimento de cura, tanto quanto está ligada
ao que Paulo caracterizou, em sua carta a Timóteo, como "dom de Deus".
Lemos em Johannes Weiss (Earliest christíanity, p. 251), na sua longa dissertação sobre
a relevante tarefa de Paulo no cristianismo nascente, a importância do que hoje se
caracteriza como vocação para a vida religiosa, no sentido chamamento (vocare, latim
para chamar [com a voz], cali, idem, no inglês), mais do que mero convite formal. Com
o correr do tempo, Paulo teria chegado à conclusão de que a adesão correspondia a uma
completa conversão e que não era mais os apóstolos, mas o próprio Deus que 'chamava'
ou convocava (outro termo em que aparece o mesmo radical ligado ao conceito de voz),
os cristãos.
(...)
Os Cátaros IV
(...)
(...)
Pela meticulosa atenção que os estudiosos cátaros dedicaram aos textos primitivos,
escritos quando o cristianismo vivia toda a pureza infantil e a inocência de seus
primeiros passos, não lhes poderia ter escapado o relevante papel da realidade espiritual.
São inúmeras, convincentes e legítimas as evidências de ativo intercâmbio entre 'vivos'
e 'mortos', no crítico período da implantação da doutrina do Cristo. Estabeleceu-se vivo
diálogo entre os que ficaram na terra depôs que ele partiu e os que, da dimensão
póstuma invisível, aconselhavam, protegiam, instruíam e dirigiam os passos dos
trabalhadores incumbidos de dar prosseguimento à tarefa iniciada pelo Cristo, Paulo
principalmente. Não raras vezes, • próprio Cristo póstumo se manifesta para orientar,
aconselhar e consolar. E' o que se vê, especialmente em Atos e nas Epístolas de Paulo,
mas também nas demais, bem como no Evangelho de João.
... as primeiras comunidades [escreve Guignebert, in Jesus] vivem na familiaridade do
espírito santo [santificado, segundo Pastorino]; é quem as guia, esclarece e
complementa a fé, por uma influência constante. Esse pneumatismo prático irá
prolongar-se, tanto que não será possível constituir-se um clero com atribuições bem
determinadas e hostil às fantasias dos inspirados. Como recusar autoridade às revelações
que favoreciam os santos, e que vêm da mesma fonte das comunicações autênticas do
Cristo aos seus discípulos durante a vida terrestre?
Mais adiante, nesse mesmo livro, Guignebert caracteriza como "lenda apostólica" a
notícia de que a comunidade cristã primitiva fora governada desde princípio pelo
Colégio dos Doze, sob a presidência de Pedro. Não foi nada disso. O que regula a vida
cristã primitiva é aquilo a que o autor francês chama de inspiração.
Déodat Roché fala da presença de um "mestre invisível" em cada um de nós, o que
seria, pelo que depreendo, algo parecido com o "daimon" de Sócrates ou o eu superior.
Não teriam igualmente escapado aos cátaros o tom e o conteúdo esotérico do Evangelho
de João, o da preferência dos formuladores da doutrina cátara e de importantes aspectos
do movimento correspondente, ou seja, as práticas ritualísticas - aliás reduzidas a um
mínimo possível - e o comportamento primeiramente cristão, no seu melhor sentido, de
todos os participantes da singela hierarquia 'sacerdotal' do catarismo.
De acordo com Belibaste, tido como o último parfait cátaro, "o casamento (sacramental)
era preferível ao desregramento moral, mas superado pela renúncia e pela união da alma
ao seu Espírito". Com isto, destacava-se essa verdade espiritual ao ritualismo limitado.
E conclui: "A alma pura que tivesse o mérito de receber a consolação, mas não pudesse
recebê-la de um ministro cátaro, a receberia de um mestre espiritual e de um anjo
(mensageiro divino, espírito) no momento da morte. Portanto, o grande mérito e
objetivo maior do consolamento estava em promover a união da alma com o Espírito.
Na verdade o problema fundamental do ser encarnado é a gestão adequada da sua
múltipla e complexa interação com o dia-a-dia da existência terrena, as exigências e
solicitações da matéria e a conciliação dos interesses maiores e permanentes do espírito
individualidade = eu superior) em sua ligação com o cosmos e os apelos, as pressões e
ilusões que a alma personalidade) experimenta adormecida na carne, sufocada e
esquecida de suas origens e de seus compromissos espirituais na transitoriedade da
imersão na matéria densa.
Sabe-se o quanto os cátaros se preocupavam em não se deixar dominar pela matéria, em
prejuízo de suas mais elevadas aspirações evolutivas. Deviam entender, contudo, que o
mal não estava na matéria em si, mas em como cada um de nós lida com suas pressões e
chamamentos e o quanto depende o nosso futuro espiritual da maneira pela qual
administramos nosso envolvimento - e aprendizado! - com ela. Mesmo porque na
inevitável equação - dualista, aliás - espírito/matéria figuram atrativos e mordomias de
difícil rejeição como poder, glória, riqueza, beleza, posição social e coisas desse tipo,
que pouco ou nada valem na contexto da eternidade, mas se nos afiguram de vital
importância enquanto estamos por aqui.