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CÁTAROS - ALGUNS CONCEITOS E RITUAIS

Compilação de textos baseados na obra de Hermínio C Miranda

Os Cátaros I

A partir do mais autêntico perfil do cristianismo, aquele que predominou nos primeiros
tempos, ainda pulsante da vida que Jesus injetara nas suas artérias, o catarismo, como
no Evangelho de João, fala o Cristo vivo e presente, ainda que, paradoxalmente,
póstumo. Não o crucificado que teria surgido de volta aos céus no seu corpo
ressuscitado. Para os cátaros, Jesus não havia tido, sequer, corpo físico; era um
cristianismo sem a cruz e sem a missa.
Embora os sacramentos tenham sido considerados pela Igreja católica como instituídos
pelo Cristo, a doutrina cátara mudou praticamente tudo, uma vez que nada encontrou
nos textos primitivos que os justificasse. Até mesmo o conceito de salvação foi
substancialmente reformulado.
A releitura ideológica contestou, rejeitou ou modificou-os, desde o batismo até o da
extrema-unção. Mais do que isso, mudou radicalmente a filosofia das práticas
religiosas: ninguém era obrigado a frequentar o único sacramento, os cultos e a missa,
que não celebravam.
Pela convenenza, por exemplo - termo occitano que significava acordo, pacto - o crente
pactuava com a Igreja catara o direito de receber o consolamentum na hora da morte,
ainda que inconsciente e incapaz de recitar em voz alta o Pai Nosso - a prece maior dos
cátaros. Esse ritual começou a ser praticado nos meados do século 13, durante a luta
armada e a perseguição inquisitorial, quando era maior o risco de vida a que todos se
expunham.
O melhoramento - amelioration, na língua occitana - constituía a única obrigação
ritualística dos crentes. Resumia-se em simples, mas formal e solene saudação dirigida
aos perfeitos, sempre que se encontravam com eles. Consistia em três reverências ou
genuflexões e um pedido de bênção. No primeiro melhoramento que praticasse, o crente
pedia que fosse assistido pelo resto da vida, supondo-se que a convenenza estivesse
implícita no ato, ou que fosse feita logo a seguir.
Esse singelo rito caracteriza com clareza a posição do crente, que não está ainda em
condições de viver uma vida de santidade, mas revela-se disposto a trabalhar pela sua
libertação espiritual. Trabalho pessoal, aliás, de renovação moral, não tarefa a ser feita
por intermediação de quem quer que fosse ou por meio de rituais e sacramentos
salvadores. Com o melhoramento e a convenenza, o crente dava testemunho de seu
firme propósito de progredir moralmente para se tornar merecedor de ser "amado por
Deus".
A doutrina catara não reconhece o livre-arbítrio. E, neste caso, o rito combinado -
melhoramento/convenenza - seria, talvez, interpretado como declarada predisposição do
crente, uma formalização de seu propósito de se colocar à disposição da misericórdia e
do amor divinos para dar início ao seu processo evolutivo rumo à perfeição.
A endura - termo occitano para privação, jejum - constitui prática sobre a qual pairam
ainda controvérsias e desentendimentos entre os especialistas. Nelli informa em Les
cathares (p. 148), que se tratava de uma "espécie de suicídio místico, nada condenável".
O objetivo era o mesmo que, segundo o autor, sempre foi, da parte dos seres mais
espiritualizados de todas as religiões, o de abreviar a vida terrena em troca da que -
presumivelmente melhor, sem dores, doença? ou velhice - aguarda o ser na dimensão
espiritual.
A endura seria usualmente praticada depois que o moribundo recebia o consolamentum,
que, por sua vez, lhe proporcionava a esperança - não a certeza -de que ele estaria salvo,
por terem sido perdoados os seus pecados. De alguma forma, pois, o conceito da
salvação da alma, prevalecia no catarismo. Ora, os cátaros rejeitavam a ideia do inferno,
embora aceitassem a existência do demônio.
Anne Brenon utiliza, neste passo, a expressão "inferno transitório".
Os cátaros sabem que o estado de espírito em que se vive atormentado por suplícios que
parecem não ter fim, chega, um dia, ao seu termo, dado que nenhum ser humano foi
criado para sofrer por toda a eternidade, como também sabiam os cátaros, todos se
salvam, entendendo-se a salvação como elevação aos patamares superiores da paz, da
harmonia, da felicidade, nos estágios mais altos da perfeição possível à condição
humana.
Depois de consolados os crentes não morriam, ficavam obrigados às severas regras de
seu novo estado, ou seja, tinham de recitar o Pai Nosso antes de cada refeição, vivendo
sob o temor de recair em pecado, com a perda consequente "da santificação relativa e
provisória que havia recebido, sem grandes méritos, de Deus e das circunstâncias", uma
vez que não eram parfaits ou parfaites, mas simples croyants beneficiados por uma
espécie de extrema-unção cátara.
Em muitos casos, pessoas nessas condições preferiam a morte provocada pela fome ou,
mais raramente, pelo frio. Prática, aliás, que os parfaits jamais encorajavam e, menos
ainda, recomendavam ou impunham.
A endura tornou-se mais difundida aí pelo fim do século 13, sobretudo no condado de
Foix, sob a influência de Pierre Authier, o mais influente parfait do renascimento cátaro.
Os tempos eram ásperos dado que "a Inquisição se incumbia de tornar impossível a vida
dos crentes".
Os suicídios estoicos nalguns casos isolados de perseguição pela Inquisição foram
muito raros.

* Cátaros II

Paulo e alguns autores cristãos surpreenderam-se com a identificação dada à ceia


eucarística com rituais dos mistérios primitivos."
No cristianismo nascente, a partilha do pão nada tinha de tais conotações litúrgicas ou
metafísicas. Tratava-se de simples refeição em comum, na qual se falava de Jesus e de
seus ensinamentos, relembrando-o com saudade e reverência.
Não acreditavam os cátaros, portanto, pela atenta leitura do texto evangélico, que Jesus
houvesse realmente instituído o sacramento da eucaristia tal como o considera a Igreja
católica, até hoje.
O consolament (em occitano, latinizado para consolamentum] é o "Batismo espiritual,
oposto ao de água de João e ministrado por imposição de mãos conforme ritos que
lembram os da Igreja primitiva (sem os elementos materiais como a água e o óleo)." Tal
"cerimônia, essencial ao catarismo, conferia a 'consolação' do Paracleto segundo a
tradição apostólica". É único sacramento reconhecido pela Igreja catara e o culminar-
Clef de voûte- da sua mensagem de Revelação e Salvação, totalmente fundamentado
nas Escrituras..."
Os católicos - acrescenta Brenon - utilizam-no na "ordenação31 dos bispos", ao passo
que o valdismo considerava-o um segundo batismo, semelhante, talvez, à confirmação
ou ao crisma dos católicos.
Clef de voûte, literalmente, chave ou fecho de abóbada, é uma antiga expressão para
indicar a importância de um conceito, idéia ou procedimento. Na arquitetura medieval,
notadamente ainda muito dependente da pedra, foi relevante o papel dessa peça no
acabamento de abóbadas, arcos e portais. Pedras e tijolos são dispostos de maneira a
suportar não apenas seu próprio peso, mas o daquilo que se assentar na arcada, cabendo
à chave ou fecho o papel estabilizado" do sistema.
Para os cátaros, o batismo da imposição de mãos era o único verdadeiro, Brenon
transcreve expressivo trecho do depoimento de um croyant por nome Guillaume
Escaunier, de Ax, perante o inquisidor Jacques Fournier: "O herético disse ele,
referindo-se à pessoa que estava sendo investigada - disse que o batismo nada vale se
não for recebido voluntária e espontaneamente; ele me disse que o Batismo na água de
nada vale. Ele dizia que no sacramento do altar (eucaristia) não estava (presente) o
corpo do Senhor..."
O Ritual cátaro de Dublin - também transcrito em parte por Anne Brennon, é
suficientemente explícito ao citar os pontos evangélicos nos quais se apoia para
evidenciar sua autenticidade. O que valia para "esta Igreja" - a dos cátaros, naturalmente
- era o batismo espiritual, pela imposição de mãos, pelo qual era referido o Santo
Espírito". Realmente, João Batista explica (Mateus 3,11) que batizava "com a água para
a conversão, mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. De fato, eu não
sou digno nem ao menos de tirar-lhe as sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo
e com fogo".
Dentro da mais sólida lógica, o texto do Ritual prosseguia com um comentário
irretorquível:"... Se pudéssemos ser salvos pelo batismo pela água temporal ou seja,
material, o Cristo teria vindo morrer por nada, dado que já tínhamos o batismo da
água..."

Curiosamente, a Bíblia de Jerusalém oferece sobre esta passagem, em nota no rodapé,


um comentário que os cátaros certamente subscreveriam, ao dizer que "O fogo,
instrumento de purificação menos material e mais eficaz do que a água, simboliza já no
AT (Antigo Testamento) (...) a intervenção soberana de Deus e do seu espírito, que
purifica as consciências."
Os bons chrétiens - lê-se mais adiante - praticam esse batismo santo tal como o
receberam eles próprios da santa Igreja (primitiva): dado que a Igreja o manteve sem
interrupção e o manterá até o fim, como o Cristo lhe disse: "Batizai-os em nome do Pai,
do Filho e do Santo-Espírito, ensinando-as (a todas as nações) a observar tudo quanto
vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!".
Estavam, pois, os cátaros, rigorosamente dentro da melhor tradição cristã dos tempos
primitivos, ligados em linha direta com as práticas, as ordenações os ensinamentos do
Cristo, tal como documentados nos textos evangélicos.
A Igreja catara era, no sentido paleocristão (antigo, primitivo), a comunidade de
cristãos, dos batizados, mas dos batizados pelo Espírito Santo, dos ‘revestidos do
Espírito'. Os que haviam recebido esse batismo, homens ou mulheres tinham o direito e
o dever, por sua vez, de o transmitir. Desse modo, pouco a pouco, o sacramento
salvador de Deus se propagaria através do tempo a todas as almas aprisionadas neste
mundo.
Somente uma pureza real e uma perfeição definitiva deveriam assegurar a salvação dos
croyants; eles deviam, portanto, renascer para reparar suas faltas e seguir o caminho
cristão dos bonshommes. A doutrina das reencarnações proporcionava-lhes a explicação
da evolução da individualidade humana e, ao mesmo tempo, a da necessidade das
famílias de que as almas pudessem retomar corpos [físicos] sobre a terra.
Roche, aliás, identificava no consolamentum ministrado pela imposição das mãos aos
moribundos conteúdo ainda mais sutil. Para ele, "esse rito era o sinal da reunião da
Alma com seu Espírito ao deixar o corpo físico", ele expõe em seu livro o conceito de
que alma e espírito não são sinônimos, mas diferentes no psiquismo humano.
O consolamento no seu tríplice papel é o sacramento da liberação do mal, ou seja,
batismo espiritual de Jesus Cristo
Na Igreja cátara, portanto, o consolamentum era batismo, naturalmente, mas também
ordenação e extrema-unção, como vimos há pouco, muito embora cátaro não deva ser
confundido com o católico.
Pelo texto evangélico, concluíram os formuladores da doutrina cátara que o Batismo
recebido pelo Cristo provém diretamente de Deus, ainda que ministrado por João
Batista. Jesus era já adulto ao recebê-lo e o teria conferido aos apóstolos adultos, não a
infantes ainda incapazes de manifestar sua vontade e ter plena consciência do
verdadeiro sentido e conteúdo da cerimônia.
Jean Maury, um croyant de Montaillou, declarou o seguinte a Jacques Fournier, bispo
inquisidor de Pamiers: "Não creio que as crianças tenham pecado a remir pelo batismo;
não creio, além disso, que ele tenha sido ministrado aos adultos pela remissão de seus
pecados, mas que o batismo era somente ministrado para que as pessoas se tornassem
cristãs..."
Era, portanto, um mero ritual de admissão do neófito à comunidade cristã. O
consolamento era o verdadeiro batismo, tornava as pessoas adultas cristãs conscientes,
em contraste com o batismo ministrado a crianças que não têm, ainda, consciência do
bem e do mal. Os que recebiam o consolamentos conhecidos como 'amigos de Deus',
'bons homens', 'boas damas', 'bons pos', 'boas cristãs' ou, simplesmente, 'cristãos' e
'cristãs'.
De qualquer modo, conhecidas ou não como parfaits e parjaites, as pessoas distinguidas
com o aspecto 'ordenador' do consolamento - no sentido da ordenação sacerdotal do
catolicismo - passavam por profundas modificações de status e procedimento.

* Os Cátaros III
(...)

Segundo a doutrina cátara, bem como a gnóstica, as almas são criadas por as suas
"túnicas de pele" - o corpo físico - constituem prisões nas quais elas adormecem,
esquecidas de suas origens e de seus compromissos com o produtivo pessoal.
É assim que cada alma, adormecida na matéria que a retém cativa, esquece-se de sua
origem celestial. E para fazê-las lembrarem-se e como que para despertá-las que Deus
enviou Jesus Cristo, portador da mensagem reveladora indicada para arrancar as almas
de suas prisões terrenas...
A imposição de mãos seria o instrumento utilizado para essa finalidade por tradição que
remonta aos apóstolos, mas que, obviamente, perdera pelos caminhos sua verdadeira
razão de ser e sentido.
Na concepção cátara, o procedimento, recuperado das suas realidades primitivas,
suscitava a "infusão do Espírito Santo consolador - daí o termo occitan consolament" -
esclarece Roquebert.
Aquele que for consolado no momento da morte deixará o corpo físico em melhores
condições não propriamente de ganhar o paraíso, mas com maior perfeição espiritual na
próxima reencarnação. Para os católicos, incumbe à alma ganhar o paraíso, ao passo que
para os cátaros, ela retorna ao 'local' de onde veio.
O paraíso, que, tanto quanto o inferno, são estados de espírito, como ficou dito há
pouco, e não locais onde se vive a eterna ociosidade do repouso ou o sofrimento
igualmente sem fim.
E' preciso reconhecer que tais conceitos se arraigaram de tal forma no imaginário
humano que passaram para a linguagem corrente. Ao dirigir-se à sua falecida amada,
escreve Camões:
Alma minha gentil que te partiste, Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu
eternamente, E viva eu cá na Terra sempre triste.
O segundo aspecto é o do Espírito Santo consolador e isto precisa de um pouco mais de
espaço.
A expressão Espírito Santo está habitualmente sob forte suspeita de ter sido
influenciada pelo dogma da Trindade Divina, que não havia sido formulada quando os
textos evangélicos foram escritos originariamente. A ideia primitiva portanto, é a de que
a imposição de mãos conferia ao discípulo os dons do espírito - pura e simplesmente -
não os do Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade, como temos visto reiteradamente,
neste livro.
Em várias passagens, especialmente em Atos, às vezes, a expressão deixou receber a
devida 'correção' - para conformar-se com dogma da Trindade - e ficara simplesmente
como espírito. "... o espírito me disse que os acompanhasse.." (Atos 11,12); "... o anjo
(angellos [grego] = mensageiro espiritual) tocou o lado de Pedro..." (Atos 12:7); "... e os
espíritos maus se retiraram... (atos 19,12). Em Atos 16,9, Paulo tem a visão de uma
entidade que provavelmente se identificou como macedônio a pedir-lhe que fosse à sua
terra; em Atos 19,12, o texto é explícito sobre a manifestação do próprio Cristo
póstumo, ao dizer: "... mas o espírito de Jesus não lho permitiu..."
O que dizem, portanto, esses exemplos e certamente outros nos quais o texto foi
'adaptado' para acomodar o dogma da Trindade é que os espíritos participavam
ativamente do movimento cristão nascente, desde o episódio do Pentecostes, aliás, a
mais importante comemoração dos cátaros.
A infusão do Espírito Santo era o despertar da alma nos que se submetiam ao
consolamento cátaro por imposição de mãos de companheiros mais experimentados.
E' o que atestam os textos evangélicos. Os conselhos que Paulo transmite a Timóteo nas
duas epístolas são os que um bispo cátaro daria ao seu discípulo já consolado'. Trata-se,
ali, de uma austera programação de vida com suas renúncias às coisas do mundo,
pureza, devotamento e paciência ante o sofrimento e a incompreensão.
O apóstolo refere-se a instruções de origem mediúnica dirigidas a Timóteo tão
caracterizadas como 'profecias', enquanto o ato mesmo de transmiti-las era conhecido
como o de 'profetizar' - e lembra a solene cerimônia quando passou a seu discípulo "o
dom de Deus que há em ti pela imposição de minhas mãos. (II Tim. 1,6)
Lê-se na tradução que Déodat Roché fez do Ritual cátaro (L'église romai--s cathares
albigeois, p. 175 e seg.), módulo sobre o "Batismo espiritual ou ação", uma referência
ao curioso diálogo de Paulo com alguns joanitas (discípulo de João) em Corinto, ao
tempo em que lá estava Apolo.
A cena está narrada em Atos 19,1 -7. Paulo perguntou-lhes se haviam recebido o
Espirito Santo ao abraçarem a fé. Mas eles revelaram desconhecer completamente essa
modalidade de batismo do Espírito. Haviam recebido - disseram -batismo de João. E
Paulo, sempre enfático, declarou que esse era o batismo da penitência, ministrado por
João, mas que, após ele, viria outro, isto é, Jesus.
Os joanitas concordaram, pois, em receber o batismo do espírito e "quando Paulo lhes
impôs as mãos, o Espírito Santo veio sobre eles (manifestou-se). Eles se puseram a falar
em línguas e a profetizar".
Para os cátaros é o dom do Espírito Santo consolador que revela 'o sentido profundo e a
verdadeira dignidade das Escrituras.
Vamos considerar, porém, a prática específica da imposição de mãos, que em diferentes
passagens dos evangelhos figura como procedimento de cura, tanto quanto está ligada
ao que Paulo caracterizou, em sua carta a Timóteo, como "dom de Deus".
Lemos em Johannes Weiss (Earliest christíanity, p. 251), na sua longa dissertação sobre
a relevante tarefa de Paulo no cristianismo nascente, a importância do que hoje se
caracteriza como vocação para a vida religiosa, no sentido chamamento (vocare, latim
para chamar [com a voz], cali, idem, no inglês), mais do que mero convite formal. Com
o correr do tempo, Paulo teria chegado à conclusão de que a adesão correspondia a uma
completa conversão e que não era mais os apóstolos, mas o próprio Deus que 'chamava'
ou convocava (outro termo em que aparece o mesmo radical ligado ao conceito de voz),
os cristãos.
(...)

Os Cátaros IV

(...)

O aspecto marcante desse chamamento, no entanto [prossegue Weiss], era não a


confissão de uma nova fé, mas a posse do espírito. De qualquer modo, Paulo entendia
que a conversão somente estaria completa quando as operações do Espírito ocorressem
entre os novos convertidos; isso pode ter sido aquela generalizada e difícil de definir
"alegria no Espírito Santo", (I Tess. 1,6), ou, os fenômenos perfeitamente definidos e
distintos como a extática exclamação 'Abba, Pai' durante a prece. (Gal. 4,6; Rom. 8,15).

Goguel - outro autor particularmente interessado na questão da imposição de mãos -


refere-se, em The birth of christianity (pp. 179-180), à visita de Pedro e João à Samaria
como delegados da Igreja-máter de Jerusalém, após o trabalho de conversão ali
realizado por Filipe. "Os dois apóstolos - prossegue Goguel - promoveram o que seria
verdadeira jornada de confirmação junto aos samaritanos que Filipe havia convertido e
batizado e que só receberam o espírito santo - esta palavra em minúscula no original da
tradução inglesa - quando os dois apóstolos impuseram-lhes as mãos".
Ou seja, "a posse do Espírito", só se manifestou nos convertidos já batizados por Filipe
depois que os apóstolos lhes impuseram as mãos.
Goguel chama a atenção em nota de rodapé para o fato de que o autor do texto dos Atos
(Lucas, como se sabe) acreditava que "o privilégio de conferir o Espírito Santo pela
imposição de mãos era privativo dos apóstolos". E isso, no dizer de Goguel, fica
confirmado pelo fato de Simão, o Mago, haver proposto a Pedro propiciar-lhe os
mesmos poderes - os dons do espírito, por imposição de mãos - a troco de dinheiro.
Anda mais explícito e até em mais nítida conexão com a visão cátara do rolamento,
Goguel chama a atenção para o fato de Lucas, sem dúvida por causa de sua estreita
ligação com a tradição de Paulo, destacar muito mais as manifestações do espírito" do
que Mateus e Marcos.
E acrescenta esta relevante informação: "Não há dúvida de que devemos acordar com
Harnack em que (atenção!) o texto original de Lucas para a Prece Senhor (o Pai Nosso)
não era "Venha a nós o vosso Reino", mas "Possa o Espírito Santo vir a nós e nos
purificar.” O termo "santo" levanta suspeitas de manipulação posterior para introduzir
nos textos evangélicos ' apoios' - mesmo que falsos - para a doutrina da trindade divina.
Carlos Torres Pastorino - professor de grego, linguista emérito, um dos mais eruditos
estudiosos desses textos e autor de uma tradução dos evangelhos " diretamente do grego
- insiste [Sabedoria do Evangelho) em que os originais falam de um "espírito
santificado", ou seja, de elevada condição evolutiva - melhor ainda um espírito, pura e
simplesmente - e não "Espírito Santo", terceira pessoa da Trindade.
Os cátaros, sempre muito atentos às minúcias textuais e interessados em resgatar
práticas e conteúdos doutrinários dos antigos escritos, podem ter-se inspirado em
passagens como essa para adotar o conceito de que a mais importante cerimônia
religiosa do culto que professavam seria mesmo a do consolamento. Era por meio desse
ritual, ministrado pela imposição de mãos, que se tornavam dotados de sensibilidades
especiais à perceção das realidades espirituais, os carismas a que se refere Paulo.
A presença de entidades de elevado porte evolutivo junto ao psiquismo dos 'consolados'
cátaros, tanto quanto junto dos antigos cristãos da primeira hora, ambos 'despertados'
pela imposição de mãos, suscitava na intimidade da pessoa intenso desejo de pureza e
uma ânsia maior pela perfeição. Por outro lado, a reverência do melhoramento que os
simples croyants faziam não se dirigia à figura humana dos parfaits e das parfaites, mas
às entidades espirituais que os assistiam. Eles (os cátaros) haviam, em suma, conservado
os ritos dos primeiros cristãos. Consideravam-nos como símbolos de realidades
espirituais; respondiam assim, àqueles que lhes perguntavam porque empregavam o rito
exterior da imposição de mãos para ministrar a consolação, a tradição que vinha dos
apóstolos. Viam nisso, um conteúdo esotérico que era para eles o símbolo da ajuda do
Mestre espiritual com o qual se punham em contato graças ao estado de pureza, às
meditações e às preces. Esse Mestre guiava-os do próprio interior de suas almas,
ajudava-os a retomar a consciência do Espírito do qual eles recebiam as mais seguras
consolações e ao qual chamavam, por causa disso, pelo nome de Espírito consolador, ou
Paracleto. O essencial para eles era, portanto, a pureza, a meditação e a prece,
particularmente a do Pater [Pai Nosso],mantinham as práticas dos apóstolos, mas
explicavam a imposição de mãos pela ação de um mestre invisível perfeitamente puro
que os ajudava a tomar consciência de seus Espíritos e, por isso, não tinham
necessidade de suntuosos edifícios, é e corpo humano purificado que devia ser o templo
de Deus.
Pela mesma razão, não aceitavam o pão da eucaristia senão como rememoração da cena
descrita nos evangelhos e símbolo da união espiritual com o Cristo, sem notação
sacramental. Quanto à missa, os primeiros cristãos nem a conheceram dado que foi
estabelecida pelo papa Silvestre, no quarto século.
Reiterando, ainda mais adiante a convicção dos cátaros a respeito do espírito
Consolador e o importante papel que desempenhava na vida deles o do consolamento
pela imposição de mãos, Roche (pai) menciona aspectos esotéricos do catarismo que os
inquisidores colheram nos depoimentos dos crentes, que de outra forma, não teriam
chegado ao nosso conhecimento…
Para o Apóstolo dos gentios (Paulo), a alma - ou melhor, espírito sobrevivente - precisa,
evidentemente, de um corpo através do qual agir, pensar, manifestar-se, mas não o
físico e sim o espiritual. Fazer o que com o corpo material na dimensão póstuma? Como
fazê-lo imortal? O que diz Paulo nessa mesma epístola, capítulo 15, é que o corpo físico
vai para a sepultura e lá se transforma [decompõe], como a semente, precisamente para
que o corpo espiritual possa desprender-se, desligar-se dele e dar continuidade à vida,
em outra dimensão da realidade. Estava, pois, de pleno acordo com a opinião atribuía
aos coríntios e não em oposição a eles.
(...)
Cátaros V

(...)

Pela meticulosa atenção que os estudiosos cátaros dedicaram aos textos primitivos,
escritos quando o cristianismo vivia toda a pureza infantil e a inocência de seus
primeiros passos, não lhes poderia ter escapado o relevante papel da realidade espiritual.
São inúmeras, convincentes e legítimas as evidências de ativo intercâmbio entre 'vivos'
e 'mortos', no crítico período da implantação da doutrina do Cristo. Estabeleceu-se vivo
diálogo entre os que ficaram na terra depôs que ele partiu e os que, da dimensão
póstuma invisível, aconselhavam, protegiam, instruíam e dirigiam os passos dos
trabalhadores incumbidos de dar prosseguimento à tarefa iniciada pelo Cristo, Paulo
principalmente. Não raras vezes, • próprio Cristo póstumo se manifesta para orientar,
aconselhar e consolar. E' o que se vê, especialmente em Atos e nas Epístolas de Paulo,
mas também nas demais, bem como no Evangelho de João.
... as primeiras comunidades [escreve Guignebert, in Jesus] vivem na familiaridade do
espírito santo [santificado, segundo Pastorino]; é quem as guia, esclarece e
complementa a fé, por uma influência constante. Esse pneumatismo prático irá
prolongar-se, tanto que não será possível constituir-se um clero com atribuições bem
determinadas e hostil às fantasias dos inspirados. Como recusar autoridade às revelações
que favoreciam os santos, e que vêm da mesma fonte das comunicações autênticas do
Cristo aos seus discípulos durante a vida terrestre?
Mais adiante, nesse mesmo livro, Guignebert caracteriza como "lenda apostólica" a
notícia de que a comunidade cristã primitiva fora governada desde princípio pelo
Colégio dos Doze, sob a presidência de Pedro. Não foi nada disso. O que regula a vida
cristã primitiva é aquilo a que o autor francês chama de inspiração.
Déodat Roché fala da presença de um "mestre invisível" em cada um de nós, o que
seria, pelo que depreendo, algo parecido com o "daimon" de Sócrates ou o eu superior.
Não teriam igualmente escapado aos cátaros o tom e o conteúdo esotérico do Evangelho
de João, o da preferência dos formuladores da doutrina cátara e de importantes aspectos
do movimento correspondente, ou seja, as práticas ritualísticas - aliás reduzidas a um
mínimo possível - e o comportamento primeiramente cristão, no seu melhor sentido, de
todos os participantes da singela hierarquia 'sacerdotal' do catarismo.

De acordo com Belibaste, tido como o último parfait cátaro, "o casamento (sacramental)
era preferível ao desregramento moral, mas superado pela renúncia e pela união da alma
ao seu Espírito". Com isto, destacava-se essa verdade espiritual ao ritualismo limitado.
E conclui: "A alma pura que tivesse o mérito de receber a consolação, mas não pudesse
recebê-la de um ministro cátaro, a receberia de um mestre espiritual e de um anjo
(mensageiro divino, espírito) no momento da morte. Portanto, o grande mérito e
objetivo maior do consolamento estava em promover a união da alma com o Espírito.
Na verdade o problema fundamental do ser encarnado é a gestão adequada da sua
múltipla e complexa interação com o dia-a-dia da existência terrena, as exigências e
solicitações da matéria e a conciliação dos interesses maiores e permanentes do espírito
individualidade = eu superior) em sua ligação com o cosmos e os apelos, as pressões e
ilusões que a alma personalidade) experimenta adormecida na carne, sufocada e
esquecida de suas origens e de seus compromissos espirituais na transitoriedade da
imersão na matéria densa.
Sabe-se o quanto os cátaros se preocupavam em não se deixar dominar pela matéria, em
prejuízo de suas mais elevadas aspirações evolutivas. Deviam entender, contudo, que o
mal não estava na matéria em si, mas em como cada um de nós lida com suas pressões e
chamamentos e o quanto depende o nosso futuro espiritual da maneira pela qual
administramos nosso envolvimento - e aprendizado! - com ela. Mesmo porque na
inevitável equação - dualista, aliás - espírito/matéria figuram atrativos e mordomias de
difícil rejeição como poder, glória, riqueza, beleza, posição social e coisas desse tipo,
que pouco ou nada valem na contexto da eternidade, mas se nos afiguram de vital
importância enquanto estamos por aqui.

Os termos consolador ou consolamento, portanto, seriam possivelmente indicativos de


uma presença espiritual invisível - do próprio eu superior e/ou are entidades altamente
qualificadas - que consolava o ser encarnado por estar aparentemente em desvio,
entregando-se a renúncias, sacrifícios, austeridades, ascetismos em busca de um futuro
de felicidade e paz.
Experimentemos, em primeiro lugar, uma leitura mais atenta do Evangelho a de João,
de onde provêm as referências originárias, surgidas, aliás, no contexto da última ceia, ou
seja, na reunião de despedida do Cristo, de vez que se aproximava a hora de seus
tormentos finais.
O momento é dramático e melancólico. Após anunciar sua partida dentro em breve para
lugar ignorado e inacessível aos apóstolos - "... por pouco tempo ainda estou
convosco..." e ".. para onde vou vós não podeis ir..." -, Jesus percebeu inquietação dos
seus amigos. Pedro quer saber que lugar é esse, aonde ninguém poderá segui-lo.

Já a partir da interpelação de Pedro, Jesus inicia o discurso da consolação. Que


acreditassem em Deus e nele o próprio, Jesus. Havia por lá lugar para todos, pois são
muitas as moradas do Pai e ele iria à frente. Assegurou que voltaria para levá-los
consigo para que ficassem com ele e, acrescentou, enigmático: "E para onde vou,
conheceis o caminho."
Tomé, que tudo queria explicado e entendido, retrucou, com toda lógica, aliás, como
iriam conhecer o caminho se não sabiam para onde ele ia?
Filipe, ainda mais objetivo e prático, ponderou que bastava mostrar logo o mais nada
seria necessário.
A conversa ocorre, pois, em clima metafórico; é um jogo de imagens e símbolos com os
quais Jesus fala de coisas que, como de outras vezes, os apóstolos demonstram não
entender. Sua expectativa, no entanto, era a de que eles já estivem em condições de
compreender tais aspectos, porque comenta o pedido de Filipe com uma pergunta algo
desalentada: "Há tanto tempo estou convosco e tu não me conheces, Filipe?"
E' certo, porém, que o consolo constitui a tônica da conversa, que prossegue, quando ele
anuncia que vai, mas recomenda a prática do amor fraterno e observância de seus
ensinamentos. "Se me amais - continua -, observareis os meus mandamentos e rogarei
ao Pai e ele vos dará outro Paráclito para que convosco permaneça para sempre, o
Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê e não o conhece.
Vós o conheceis porque permanece convosco."
E continua o tom consolador: "Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós."
(...)

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