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ESTUDOS PARA UMA 2 muito de telegrafista,

BAILADORA ANDALUZA Subida ao dorso da dança atento para não perder


(vai carregada ou a carrega?) a mensagem transmitida.
João Cabral de Melo Neto é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua. Mas o que faz duvidar
1 possa ser telegrafia
Dir-se-ia, quando aparece Ela tem na sua dança aquelas respostas que
dançando por siguiriyas, toda a energia retesa suas pernas pronunciam
que com a imagem do fogo e todo o nervo de quando
inteira se identifica. algum cavalo se encrespa. é que a mensagem de quem
lá do outro lado da linha
Todos os gestos do fogo Isto é: tanto a tensão ela responde tão séria
que então possui dir-se-ia: de quem vai montado em sela, nos passa despercebida.
gestos das folhas do fogo, de quem monta um animal
de seu cabelo, sua língua; e só a custo o debela, Mas depois já não há dúvida:
é mesmo telegrafia:
gestos do corpo do fogo, como a tensão do animal mesmo que não se perceba
de sua carne em agonia, dominado sob a rédea, a mensagem recebida,
carne de fogo, só nervos, que ressente ser mandado
carne toda em carne viva. e obedecendo protesta. se vem de um ponto no fundo
do tablado ou de sua vida,
Então, o caráter do fogo Então, como declarar se a linguagem do diálogo
nela também se adivinha: se ela é égua ou cavaleira: é em código ou ostensiva,
mesmo gosto dos extremos, há uma tal conformidade
de natureza faminta, entre o que é animal e é ela, já não cabe duvidar:
deve ser telegrafia:
gosto de chegar ao fim entre a parte que domina basta escutar a dicção
do que dele se aproxima, e a parte que se rebela, tão morse e tão desflorida,
gosto de chegar-se ao fim, entre o que nela cavalga
de atingir a própria cinza. e o que é cavalgado nela, linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
Porém a imagem do fogo que o melhor será dizer a dicção em preto e branco
é num ponto desmentida: de ambas, cavaleira e égua, de sua perna polida.
que o fogo não é capaz que são de uma mesma coisa
como ela é, nas siguiriyas, e que um só nervo as inerva,
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de arrancar-se de si mesmo e que é impossível traçar Ela não pisa na terra
numa primeira faísca, nenhuma linha fronteira como quem a propicia
nessa que, quando ela quer, entre ela e a montaria: para que lhe seja leve
vem e acende-a fibra a fibra, ela é a égua e a cavaleira. quando se enterre, num dia.

que somente ela é capaz Ela a trata com a dura


de acender-se estando fria, 3 e muscular energia
de incendiar-se com nada, Quando está taconeando do camponês que cavando
de incendiar-se sozinha. a cabeça, atenta, inclina, sabe que a terra amacia.
como se buscasse ouvir
alguma voz indistinta. Do camponês de quem tem
sotaque andaluz caipira
Há nessa atenção curvada e o tornozelo robusto
que mais se planta que pisa. desafiante, à espera. madura, quase despida.

Assim, em vez dessa ave Mas se essas duas estátuas Parece que sua dança
assexuada e mofina, mesma atitude observam, ao ser dançada, à medida
coisa a que parece sempre aquilo que desafiam que avança, a vai despojando
aspirar a bailarina, parece coisas diversas. da folhagem que a vestia.

esta se quer uma árvore A primeira das estátuas Não só da vegetação


firme na terra, nativa, que ela é, quando começa, de que ela dança vestida
que não quer negar a terra parece desafiar (saias folhudas e crespas
nem, como ave, fugi-la. alguma presença interna, do que no Brasil é chita)

Árvore que estima a terra que no fundo dela própria, mas também dessa outra flora
de que se sabe família fluindo, informe e sem regra, a que seus braços dão vida,
e por isso trata a terra por sua vez a desafia densa floresta de gestos
com tanta dureza íntima. a ver quem é que a modela. a que dão vida a agonia.

Mais: que ao se saber da terra Enquanto a estátua final, Na verdade, embora tudo
não só na terra se afinca por igual que ela pareça, aquilo que ela leva em cima,
pelos troncos dessas pernas que ela é, quando um estilo embora, de fato, sempre,
fortes, terrenas, maciças, já impôs à íntima presa, continue nela a vesti-la,

mas se orgulha de ser terra parece mais desafio parece que vai perdendo
e dela se reafirma, a quem está na assistência, a opacidade que tinha
batendo-a enquanto dança, como para indagar quem e, como a palha que seca,
para vencer quem duvida. a mesma façanha tenta. vai aos poucos entreabrindo-a.

O livro de sua dança Ou então é que essa folhagem


5 capas iguais o encerram: vai ficando impercebida:
Sua dança sempre acaba com a figura desafiante porque terminada a dança
igual como começa, de suas estátuas acesas. embora a roupa persista,
tal esses livros de iguais
coberta e contra-coberta: a imagem que a memória
6 conservará em sua vista
com a mesma posição Na sua dança se assiste é a espiga, nua e espigada,
como que talhada em pedra: como ao processo da espiga: rompente e esbelta, em espiga.
um momento está estátua, verde, envolvida de palha;

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