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VOLUME III
(1893-1899)
JEAN-MARTIN CHARCOT
Fig. 1
Talvez não deixe de haver um interesse intrínseco em se poder perscrutar a
história de um evento psíquico desse tipo, que está entre os mais triviais distúrbios
que podem afetar o controle do aparelho psíquico, e que é compatível com um
estado de saúde psíquica sem outras perturbações. Mas o exemplo aqui elucidado
ganha um enorme interesse adicional ao sabermos que ele pode servir como nada
menos do que um modelo dos processos patológicos a que devem sua origem os
sintomas psíquicos das psiconeuroses — histeria, obsessões e paranóia. Em
ambos os casos, encontramos os mesmos elementos e a mesma interação de
forças entre esses elementos. Do mesmo modo que aqui e por meio de
associações superficiais similares, um fluxo de representações recalcado se
apodera, na neurose, de uma ingênua impressão recente e a faz imergir com ele
no recalque. O mesmo mecanismo que faz os nomes substitutos “Botticelli” e
“Boltraffio” emergirem de “Signorelli” (uma substituição por meio de representações
intermediárias ou conciliatórias) rege também a formação das representações
obsessivas e das paramnésias paranóicas. Além disso, vimos que esses casos de
esquecimento têm a característica de liberar um desprazer contínuo até o
momento em que o problema é resolvido — uma característica que seria
ininteligível a não ser por isso, e algo que |no exemplo que mencionei| foi de fato
ininteligível para a pessoa com quem eu estava falando |ver em [1]|; mas há uma
completa analogia com isso no modo pelo qual os conjuntos de representações
recalcadas ligam sua capacidade de gerar afeto a algum sintoma cujo conteúdo
psíquico parece, em nosso julgamento, inteiramente inadequado a tal liberação de
afeto. Finalmente, a dissolução de toda a tensão pela comunicação do nome
correto por uma fonte externa é, em si mesma, um bom exemplo da eficácia da
terapia psicanalítica, que visa a corrigir os recalques e deslocamentos e que
elimina os sintomas pela reinstalação do verdadeiro objeto psíquico.
Portanto, entre os vários fatores que contribuem para o fracasso de uma
recordação ou para uma perda de memória, não se deve menosprezar o papel
desempenhado pelo recalcamento, e isso pode ser demonstrado não só nos
neuróticos, mas também (de modo qualitativamente idêntico) nas pessoas
normais. Pode-se afirmar, muito genericamente, que a facilidade (e em última
instância, também a fidelidade) com que dada impressão é despertada na memória
depende não só da constituição psíquica do indivíduo, da força da impressão
quando recente, do interesse voltado para ela nessa ocasião, da constelação
psíquica no momento atual, do interesse agora voltado para sua emergência, das
ligações para as quais a impressão foi arrastada etc. — não só de coisas como
essas, mas também da atitude favorável ou desfavorável de um dado fator
psíquico que se recusa a reproduzir qualquer coisa que possa liberar desprazer, ou
que possa subseqüentemente levar à liberação de desprazer. Assim, a função da
memória, que gostamos de encarar como um arquivo aberto a qualquer um que
sinta curiosidade, fica desse modo sujeita a restrições por uma tendência da
vontade, exatamente como qualquer parte de nossa atividade dirigida para o
mundo externo. Metade do segredo da amnésia histérica é desvendado ao
dizermos que as pessoas histéricas não sabem o que não querem saber; e o
tratamento psicanalítico, que se esforça por preencher tais lacunas da memória no
decorrer de seu trabalho, leva-nos à descoberta de que a tarefa de resgatar essas
lembranças perdidas enfrenta certa resistência, que tem de ser contrabalançada
por um trabalho proporcional a sua magnitude. No caso de processos psíquicos
que são basicamente normais, não se pode, naturalmente, alegar que a influência
desse fator tendencioso na revivescência das lembranças de algum modo supere,
regularmente, todos os outros fatores que devem ser levados em conta.
Como respeito à natureza tendenciosa de nosso recordar e esquecer, vivi, não faz
muito tempo, um exemplo instrutivo — instrutivo pelo que traiu —, do qual gostaria
de acrescentar um relato. Eu tencionava fazer uma visita de vinte e quatro horas a
um amigo que, lamentavelmente, mora muito longe, e estava repleto de coisas
para lhe contar. Antes disso, porém, senti-me na obrigação de visitar uma família
conhecida em Viena, da qual um dos membros se mudara para a cidade em
questão, de modo a levar comigo seus cumprimentos e recados para o parente
ausente. Eles me disseram o nome da pension onde ele morava, assim como o
nome da rua e o número da casa, e, em vista de minha memória precária,
escreveram o endereço num cartão, que coloquei em minha carteira. No dia
seguinte, ao chegar à casa de meu amigo, anunciei: “Só tenho um dever a cumprir
que pode atrapalhar minha estada com você; é uma visita, e será a primeira coisa
que vou fazer. O endereço está em minha carteira”. Para meu espanto, contudo,
não o achei lá. Assim, no final das contas, eu tinha que recorrer a minha memória.
Minha memória para nomes não é particularmente boa, mas é incomparavelmente
melhor do que para números e algarismos. Posso fazer visitas médicas a uma
casa por um ano inteiro e, ainda assim, se tiver que ser levado até lá por um
cocheiro, terei dificuldade em recordar o número da casa. Nesse caso, porém, eu o
gravara especialmente; ele estava ultranítido, como que para zombar de mim —
pois nenhum traço do nome da pension ou da rua ficara em minha lembrança. Eu
havia esquecido todos os dados do endereço que poderiam servir como ponto de
partida para descobrir a pension; e, contrariando muito meu hábito, retivera o
número da casa, que era inútil para esse fim. Por conseguinte, não pude fazer a
visita. Consolei-me com notável rapidez e dediquei-me inteiramente a meu amigo.
Ao retornar a Viena e me postar diante da minha escrivaninha, eu soube, sem um
momento de hesitação, o lugar em que, em minha “distração”, eu pusera o cartão
com o endereço. O fator atuante em minha ocultação inconsciente da coisa fora a
mesma intenção que atuara em meu ato curiosamente modificado de
esquecimento.