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CAPÍTULO 4
4.1 Introdução
mais vagar o espaço privilegiado onde esse alfabeto se torna signo, por meio do
táteis.
Este espaço não pode ser outro senão a cegueira, com todo o seu
têm estado presentes no trabalho, esboçando-se das mais variadas formas, e que
indagam sobre o modo como o sujeito cingido pela condição da cegueira percebe o
de pensar de boa parte das culturas humanas e, no que tange a cegueira e ao seu
mais ampla, seja nos aspectos bio-antropológicos seja nas relações socioculturais
cegueira, munidos da compreensão de que tal especificidade não deve somente ser
indivíduos cegos imersos na cultura puderam engendrar para dar sentido aos seus
todos os riscos que tal empreitada nos oferece, cientes do terreno nebuloso e
desse homem, a qual nos é proposta por Edgar Morin (1988, p. 67-68):
1
Neste capítulo, adotamos uma abordagem mais ou menos generalizante, quando tratamos do
problema relativo à disjunção entre cegueira e visualidade no âmbito da cultura ocidental. No entanto,
pesquisas que excedem os limites deste trabalho poderiam revelar que em determinadas culturas, de
acordo com épocas e graus de desenvolvimento, essa separação nem sempre é tão pronunciada. Na
cultura brasileira, por exemplo, algumas produções artísticas contemporâneas revelam uma
preocupação com uma cultura tátil, fenômeno que também se manifesta em outros domínios da
cultura, conforme será analisado no quinto capítulo.
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que, nessas sociedades, dificilmente flagraríamos esse indivíduo cego. Isto porque
os parcos registros históricos existentes sobre essas épocas nos dizem que em
ou mesmo a morte.
Embora ainda não tenham sido realizados estudos que nos apontem as
Mas voltemos ainda nossa atenção para as visões e práticas que foram
certo que os indivíduos cegos estavam situados nas bordas da cultura, ali onde se
relação a estes: diferentemente do grupo dos jovens, por exemplo, eles nunca viriam
que, embora tenham perdido muito da sua força, ainda se acham cristalizados em
que encontra suas manifestações mais vigorosas no Livro dos Mortos, no Alcorão,
no Talmude e na Bíblia.
2
Vemos com Morin que a adoção do desvio como prática já era incorporada nessas sociedades, em
que os jovens, por exemplo, eram tidos como grupos desviantes e não participavam das atividades de
caça com os homens adultos, nem tampouco das colheitas de frutos e das atividades domésticas
desenvolvidas pelas mulheres.
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entorno de clara demarcação social, no qual os indivíduos cegos são vistos como
dessa condição, numa espécie de aura de mistério e magia. Aqui o estigma negativo
quase divindade.3
nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este
ou seus pais, para que nascesse cego?” (JOÃO, cap.9, v.3, p. 1368).
adivinho cego da cidade de Tebas "[...] que lera nos segredos dos deuses e que
cegos tornou essa prática muito comum por parte desses indivíduos, conforme relata
ter vivido o auge dessa prática como arte; entretanto, em fins do século XIX, ela
que, ao lado da massagem, a adivinhação é ainda hoje uma das profissões mais
cegos.
quatro hospitais para cegos a fim de expiar o pecado de se ter casado com sua
com a inclusão na cultura alfabética, visto que a própria escrita manuscrita ainda era
inacessível a muitos grupos sociais, e se, por assim dizer, achavam-se ainda
para essa inquirição, novamente nos defrontamos com uma influência do chamado
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Embora seja significativo o número de pessoas cegas que têm alguma percepção luminosa, não
subsiste naqueles indivíduos privados dessa característica, sequer a experiência do escuro. Dessa
forma, somente por artifício ou por metáfora, pessoas cegas poderiam referir-se à sua limitação física
como trevas, noite permanente etc.
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humana.
discurso científico uma fala metafórica que associa cegueira a ignorância ou falta de
conhecimento.
realidade em si que direcionava seu interesse, mas antes parecia movida apenas
visão de que ele fora privado desde tenra idade. Isso implica reconhecer que o não-
ver, como realidade genuína e intrínseca ao sujeito cego, geralmente não merecia a
atenção da ciência, uma vez que era novamente ao ver que a investigação se
célebres em que sujeitos com cegueira desde a infância, inclusive cegos congênitos,
pelo senso comum, que ganharam voz nos textos religiosos e que, particularmente
grande carga dramática, o tom milagroso das clássicas curas de indivíduos cegos.
O debate mais importante nesta área, por ser citado com freqüência
William Molyneux e John Locke. Este último, recebeu do primeiro a seguinte questão
para análise: “Suponhamos que um homem nascido cego, e agora adulto, a quem é
ensinado distinguir o cubo da esfera pelo tato, volte a ver: [será que poderia agora]
pela visão, antes de tocá-los [...] distinguir e dizer qual é o globo e qual é o cubo?”
de Locke, apareceu nos idos de 1728, quando o cirurgião inglês William Cheselden
táteis com que até então vivera. Também comprovaram que uma dificuldade básica
para uma compreensão do que estava sendo visto, dificuldade esta classificada
de que os mundos tátil e visual são diferentes, mas que, em vez de serem pensados
Dissemos no início deste item que não foi a cegueira (a percepção tátil
em si mesma) que moveu a ciência tradicional para uma análise dessa realidade. No
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Veja-se a este respeito o trabalho de Plaza, Tradução Intersemiótica, indicado nas referências
bibliográficas.
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como enxergaria um indivíduo a quem fosse devolvida a vista, mesmo que estivesse
preocupada com o fenômeno da visão, a ciência tradicional foi surpreendida por uma
retumbante fala tátil, por uma onipresença de cérebros que sempre tinham
A ciência foi surpreendida por uma fala tátil que se impunha como
destronando assim os mitos religiosos e os de senso comum que ainda hoje povoam
com prolongada cegueira a quem era devolvida a visão eram confrontados com uma
realidade às vezes tão chocante para o seu mundo tátil que, em geral, nunca
confirmar suas novas experiências, ao cabedal daquelas com que tinham aprendido
a situar-se no mundo.
Um relato ilustrativo de tal situação nos é fornecido por Oliver Sax, que
acompanhou de perto o caso de um homem que vivera cego até aos quarenta anos
[...] Ocorreu-me — talvez isso tenha ocorrido a todos nós nesse momento
— o quanto tinha sido hábil e auto-suficiente como um cego, o tanto de
naturalidade e facilidade com que havia experimentado o seu mundo com
as mãos e o quanto estávamos agora, por assim dizer, forçando-o contra o
que lhe era natural: exigindo que renunciasse a tudo o que lhe vinha com
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quais lançam mão para construir sua própria visão da realidade. É tempo de darmos
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O autor refere-se aqui, a experiências realizadas por Richard Gregory, na década de 1960,
semelhantes àquelas relatadas nos séculos XVII e XVIII. Valvo, citado por Sax, é também um
neuropsicólogo com inúmeras experiências realizadas neste campo, com prognósticos bem mais
positivos em alguns pacientes.
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podiam mesmo ser pensadas como um modo diferente de visão, conforme o que
[...] Ele imaginou um cego descobrindo o mundo com uma vara. [...] Sem
longa prática, esse gênero de sensação é um tanto confusa e tênue, mas
se considerarmos os homens que nasceram cegos e que fizeram uso de
tais sensações durante a vida inteira verificaremos que eles sentem coisas
com uma exatidão de tal modo perfeita que poderíamos dizer que eles
vêem com as mãos. (GREGORY, 1979, p. 189).
apreciá-la num contexto mais amplo, aquele que indaga das especificidades de
estratégias lança mão o indivíduo cego para forjar sua própria apreensão da
experiências?
fenômeno da visão.
comunicação tátil ainda não pôde contar com estudos programáticos sistematizados
buscou uma perfeita conformação entre a célula Braille e a polpa do dedo indicador.
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complexo tátil:
listagem.
[...] Pode-se falar que o sistema tátil é constituído, ele mesmo, de cinco
sentidos: pressão, calor, frio, dor e cinestesia, que geram o toque cutâneo
restrito à pele, o toque háptico, na junção da pele no movimento das juntas,
o toque dinâmico, envolvendo pele, juntas e músculos, o toque térmico,
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consciência desse corpo tátil, a atenção permanente para as informações que esse
o mundo à volta. Isto nos leva a pensar na mundividência tátil como um processo de
mundo à volta exibindo uma transação permanente do indivíduo cego com o meio
rico sistema ao que ele chama de visão facial praticada pelos indivíduos cegos:
[...] Ora bem, os homens cegos, por vezes, parecem ter um sentido
misterioso dos obstáculos que se encontram em seu caminho. A isto foi
dada a designação de ‘visão facial’, porque os cegos referem que dá um
pouco a sensação de um toque na face. Conta-se a história de um rapaz
completamente cego que conseguia andar de trissiclo, em boa velocidade,
à volta do quarteirão próximo de sua casa, utilizando a ‘visão facial’.
(DAWKINS, 1986, p. 39).
não exibe senão o aspecto cinestésico dessa complexa teia interativa que se
estabelece entre o mundo interno do indivíduo cego e o ambiente à sua volta. Não é,
pois, uma dádiva divina, compensatória nem uma qualidade mágica especial, mas
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[...] Vamos explicar o que queremos dizer pela expressão ação incorporada.
Usando o termo incorporada queremos chamar a atenção para dois pontos:
primeiro, que a cognição depende dos tipos de experiência decorrentes de
se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras, e segundo, que
essas capacidades sensório-motoras individuais estão, elas mesmas,
embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente.
Utilizando o termo ação queremos enfatizar novamente que os processos
sensoriais e motores - a percepção e a ação - são fundamentalmente
inseparáveis na cognição vivida. (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p.
177).
detalhes que vão estruturando uma ação no mundo, sempre mutável e sempre
atualizada por percepções novas deste ambiente. Dessa tarefa de recolha e seleção
ambiente.
bengala funciona como uma extensão da percepção tátil das suas mãos; seus
obstáculos que não haviam sido captados por suas outras vias de percepção, ao
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Muitas vezes acontece na rua uma cena, em que alguém que enxerga
deixa de lado seus afazeres imediatos para observar um indivíduo cego em sua
ver que o cego está quase a colidir com algum obstáculo. A aflição transmuda-se em
desvia-se do perigo. Nosso cego prossegue em seu itinerário e espanta ainda mais
destino, uma lanchonete, e agora com um andar mais cauteloso, consegue localizar
situações de risco. Além disso, não se apercebeu de que pelo contato com essas
perturbações do mundo que o peturbam, esse indivíduo constrói seu próprio modo
competente.
classificaram como nosso inconsciente cognitivo, que, conforme Capra (2002, p. 75-
76), “[...] inclui não somente todas as nossas operações automáticas, como também
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Como uma primeira explicação para o conceito usado por Varela, recolhemos nota da tradução da
obra citada:
[...] ‘Enacção’ é um neologismo que se poderá introduzir para traduzir o
termo inglês enacion, derivado do verbo enact. Este significa literalmente
'representar', 'pôr em acto', 'promulgar' (uma lei), 'efectivar'; F. Varela
pretende com ele significar a relação estreita que existe entre acção e
agente no processo cognitivo, essencialmente performativo. (N. T.)
(MOURÃO In: VARELA, 1996, p. 17).
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sua vez, nem sempre pôde fundar uma compreensão também adequada para tal
cotidiana, a experiência que Peirce tão bem caracterizou como lógica do uso e que,
realidade. Tal equívoco diz respeito a uma tendência presente ao debate tiflológico
estratégias que podem ser caracterizadas como uma espécie de normalização e/ou
humanística que florescia nos séculos XVIII e XIX e revelavam também um profundo
reconhecimento como método natural de leitura e escrita dos cegos no âmbito dos
dizer que essa idéia de normalidade tanto invadiu os campos científicos voltados à
associações reivindicatórias.
criança com cegueira congênita ou com cegueira adquirida no primeiro ano de vida,
sem a visão será impor a ela um conjunto artificial de dimensões, tais como
o desenvolvimento sensorial sem a visão, ou o desenvolvimento afetivo
sem a visão. Somente pela compreensão e aceitação de um
desenvolvimento sensorial, um desenvolvimento cognitivo da linguagem, e
um desenvolvimento afetivo que lhe são peculiares, é que admitimos que a
criança cega seja uma criança ‘total’. 9
percepção visual não significa que tal premissa venha a servir como escopo para
pensado como limitado e deficitário, mas antes como um modo legítimo de participar
e intervir na cultura.
condição.
9
Disponível em: < http://www.ibcnet.org.br/paginas/cegueira/Artigo_04.htm >. Acesso em: 23 dez.
2003.
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percepção tátil, suas especificidades, mais aptos estaremos para incluir esse código
entre os diferentes modos de percepção e ação no real. Para que essa fala tátil
realidade à sua volta. A idéia da cognição corporificada e, mais ainda, a idéia de que
mecanismos sensoriais que lhe são próprios, percebe e atua no mundo também de
um modo próprio (um dos grandes achados das ciências cognitivas), precisa ser
experiência, num mundo alargado para fora de si, esses indivíduos desenvolvem um
intervenção no mundo.
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Segundo Varela:
partir de uma realidade dada a priori, mas separado desta, para envolver percepção
mundo relevante da visualidade, mas antes precisa ser revelado em toda a sua
especificidade e complexidade.
secundária (ver capítulo 3) e uma cultura tátil para a qual ainda são tão poucas as
percepção tátil. Nos idos de 1740, Diderot em sua Carta sobre os cegos para os
mundo postulou uma primeira idéia de que o cego de nascença não pode imaginar,
porquanto lhe falta a possibilidade de percepcionar formas visuais, assim como não
imaginação dos cegos o perseguia. A transcrição do diálogo que então teve com a
(1994, p. 137):
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Aqui reproduzimos nota explicativa de Os Pensadores (1979, p. 36), no qual está reproduzida a
carta de Diderot: “[...] Trata-se da sobrinha de Sophie Voliand, a amiga e correspondente de Diderot.
A mãe da Srta. de Salignac, após a ruína e a fuga de seu marido, assumiu o nome de Sra. de Blacy.”
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fundamentais que têm permeado todo o nosso trabalho, as quais tratam do diálogo
estabelecido entre mente/ambiente ou, em nosso caso particular, entre o mundo tátil
qual aparece em fins do século XIX, nos trabalhos do biólogo alemão Jakob Von
[...] Todo organismo possui seu meio ambiente [Umwelt] e seu meio interno
[innenwelt] particular (seu modo próprio de vida externa e interna. [...] A
estrutura anatômica de um ser vivo nos fornece a chave de suas
experiências externas e internas. (apud Nöth, no prelo)
Ele acrescenta:
espécie, ele possui uma estrutura anatômica que o capacita usufruir o ambiente
ambiente externo que só são perceptíveis aos outros seres da espécie pela via da
visualidade.
característica parece mesmo ser própria de todos os organismos vivos, de modo que
ele afirmou:
[...] Não importa que sujeito, dentre as espécies animais, seja escolhido,
sempre encontraremos um outro meio ambiente construído ao seu redor,
que apresenta os seus traços em todos os pontos; cada sujeito é o
construtor do seu meio ambiente. [...] logo, o organismo não conhece os
objetos do seu mundo como ‘coisa em si’; antes, processa seletivamente
certos signos desses objetos. Tais signos são criados por um programa
geneticamente [como se diria contemporaneamente] e são interpretados a
partir de modelos mentais do organismo [...]. Na medida em que o
organismo não é capaz de reconhecer seu meio ambiente sem referência a
seu mundo interior, pode-se dizer que a relação entre meio ambiente e
mundo interno aponta para a característica semiótica da auto-
referencialidade. (apud NÖTH, no prelo).
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Umwelt dilatado de forma ímpar e ainda pouco conhecida. A idéia de dilatação nos é
estamo-nos referindo a duas ordens de fenômenos que esse invento pôs em marcha
nas vidas dos grupos humanos cingidos pela condição da cegueira. Em primeiro
diremos que fazem parte do mundo semiósico desses indivíduos e do seu acesso a
Uma segunda ordem de fenômenos, que pode ter sido suscitada com o
innenwelt dos indivíduos cegos, os quais por sua vez, requerem o auxílio dos
ser elucidados. Por enquanto, desejaríamos reunir tais fenômenos nas indagações
dessa competente linguagem tátil? Tatear uma interface mapeada por linhas em
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combinação, que por sua vez desdobra-se em textos outros, é uma tarefa que exige
pode ser afirmativa, ao mesmo tempo que parecem demonstrar que a misteriosa
nosso sujeito particular, ainda mais misteriosa, por nos apresentar a hipótese do
reaprendizado cerebral.
cingidos pela condição da cegueira, para além de uma revolução sociocultural que
reaprendizado cerebral e que, portanto, nos leva a concluir que de fato o uso do
seis pontos justapostos sintetizou um novo diálogo entre mão e cérebro, convocando
passadas, dos homens cegos de Descartes. Homens que viam o mundo com suas
varas, para experimentarem lenta e gradualmente uma revolução que aos poucos ia
abrindo uma profunda brecha na cultura, onde pouco a pouco iam se diluindo
fenômenos tão ampla que nos permitem pensar de forma mais nítida na metáfora da
[...] Examine qualquer ciência que lida com o curso do tempo. Considere a
vida individual de um animal, de uma planta ou de uma mente. Olhe para a
história dos estados das instituições, da linguagem, das idéias. Examine a
sucessão de formas evidenciadas pela Paleontologia, a história de nosso
planeta narrada pela Geologia e o que o astrônomo é capaz de dizer no
que concerne às mudanças do sistema solar. Por toda parte o ato
primordial é o crescimento e a crescente complexidade. (CP 6, 57-58).
(apud VIEIRA, 1994, p. 128)
complexo tátil pôde criar para se fazer visível dentro desta cultura, é encontrar um
milenar caminho trilhado por uma longa tradição oral, em que um intervalo
realidade que cresce em complexidade. Eis que o limiar do século XXI parece estar
a exibir um novo ponto de passagem, uma espécie de síntese das antigas formas de
semiotização do real em uma nova forma que recupera o código verbal como
133
fixado.
capítulo.