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CAPÍTULO 4

CEGUEIRA, CULTURA E MUNDIVIDÊNCIA TÁTIL


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4.1 Introdução

Apresentadas as condições históricas que propiciaram o invento do

código braille, estabelecidas algumas das premissas que o caracterizam na sua

qualidade de código de tradução intersemiótica, cumpre-nos agora colocar

provisoriamente de parte nosso código de leitura e escrita, para apreciarmos com

mais vagar o espaço privilegiado onde esse alfabeto se torna signo, por meio do

qual se estabelece o diálogo entre percepção e cognição dos chamados sujeitos

táteis.

Este espaço não pode ser outro senão a cegueira, com todo o seu

entorno, ou seja, o complexo tátil ou o que aqui passaremos a chamar de

mundividência tátil ou munditactência. É tempo de nos ocuparmos das questões que

têm estado presentes no trabalho, esboçando-se das mais variadas formas, e que

indagam sobre o modo como o sujeito cingido pela condição da cegueira percebe o

mundo e, em contra-partida, o modo como as sociedades, ao longo do

desenvolvimento das culturas humanas, perceberam a cegueira e o complexo tátil.


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Temos, pois, um duplo caminho a percorrer. A princípio, havemos que

reconhecer, numa reapropriação das idéias de Morin, uma espécie de paradigma da

disjunção, o qual influenciou inúmeras práticas, crenças, costumes, modos de ser e

de pensar de boa parte das culturas humanas e, no que tange a cegueira e ao seu

entorno, encontrou um terreno propício a idéias de estranhamento, separação e

segregação dos indivíduos portadores desta condição.

Um segundo momento exige que refaçamos o caminho, estabelecendo

a necessidade de uma compreensão da cegueira não como fator de exclusão, mas

antes caracterizando o universo tátil como próprio do sujeito biológico e que, no

indivíduo cingido pela condição da cegueira, constitui-se o canal fundamental para a

sua percepção-visão de mundo, sendo capaz de gerar relações de

complementaridade nos mais variados processos da cultura.

Parece-nos, então, indispensável que desvelemos e apresentemos a

teia de relações-intersecções existentes entre esse universo específico e a cultura

mais ampla, seja nos aspectos bio-antropológicos seja nas relações socioculturais

que envolvem o ser e estar do homem no mundo.

Sobre esta idéia, argumenta Geertz (1989, p. 163-164):

[...] Na verdade, é através do seu poder de tirar proposições gerais a partir


de fenômenos particulares que uma teoria científica, aliás, a própria ciência
deve ser julgada. Se queremos descobrir quanto vale o homem, só
poderemos descobri-lo naquilo que os homens são, e o que os homens
são, acima de todas as outras coisas é variado. É na compreensão dessa
variedade, seu alcance, sua natureza, sua base, suas implicações, que
chegaremos a construir um conceito da natureza que contenha ao mesmo
tempo substância e verdade, mais do que uma sombra estatística e menos
do que o sonho de um primitivista.

Partamos, pois, para a caracterização da especificidade do ser na

cegueira, munidos da compreensão de que tal especificidade não deve somente ser

percebida na condição da cegueira em si, como um fenômeno biológico, mas antes,

na articulação de tal determinação biológica às estratégias particulares que os


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indivíduos cegos imersos na cultura puderam engendrar para dar sentido aos seus

modos de ser, estar e perceber o mundo.

Veremos, no decorrer do trabalho, que, ao lado das práticas e crenças

fundadas no estranhamento em relação à cegueira, as sociedades civilizadas

desenvolveram, tendencialmente, um modo sutil de encobrimento da especificidade

da percepção tátil, ignorando suas diferenças e/ou buscando aproximar ou

homogeneizar a realidade da cegueira aos modos de percepção visual. No entanto,

não basta tratar do lugar do indivíduo, do específico na cultura, mas, no caso

particular das coletividades cegas, parece-nos indispensável um processo da

construção da sua individualidade histórico-cultural-semiótica, a qual parece ter tido

um salto de qualificação e refinamento a partir do advento do código Braille.

É assim que para se reconhecer essa individualidade complexa e

multifacética, havemos que desenredar a realidade da cegueira de todo um entorno

sociocultural crivado de equívocos e confusões cristalizados em modos de ser,

pensar e agir que solidificaram na cultura, esse paradigma da disjunção.

4.2 O encontro com o não-ser na cegueira: breve discussão antropológica

Aqui nos permitiremos uma espécie de recuo no tempo, assumindo

todos os riscos que tal empreitada nos oferece, cientes do terreno nebuloso e

escorregadio em que estamos pisando, o qual provavelmente só poderá ser

iluminado, posto em relevo, se nos munirmos da estratégia da formulação de


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hipóteses, apoiadas, obviamente, no conjunto de descobertas que a Antropologia já

pôs à disposição do conhecimento científico sobre a hominização.

Nosso recuo nos planta no centro de uma época em que se forjava o

homo sapiens, com sua massa cerebral aumentada, aumento do newcórtex,

desenvolvimento e refinamento das suas habilidades manuais. Vejamos a descrição

desse homem, a qual nos é proposta por Edgar Morin (1988, p. 67-68):

[...] A era do cérebro grande começa com o homem de Nehandertal, já


sapiens, que dá depois lugar ao homem atual, único e último representante
da família dos hominídeos e do gênero humano sobre a terra. Quando
aparece o sapiens, o homem já é sócius, faber lókens. Portanto, a
novidade que sapiens traz ao mundo não consiste, como se julgava, na
sociedade, na técnica, na lógica, na cultura. Consiste, por contrário, naquilo
que se considerava como epifenomenal, ou que imbecilmente se saudava
como sinal de especialidade: a sepultura e a pintura.

Eis-nos, pois, diante de nós mesmos, num tempo remoto em que,

enquanto erigíamos nossas sepulturas, criávamos um conjunto particular de

preocupações com respeito à vida e à morte. Ao mesmo tempo que produzíamos

nossas pinturas em pedra e madeira, estávamos desatentos ao trabalho do nosso

cérebro, a forjar a partir dessa inter-relação com o inato e com a experiência, a

possibilidade do ser de linguagem/ser de escritura.

Eis-nos, pois, diante de antigos processos de percepção de mundo,

caracterizados por um marcado estranhamento em relação à realidade dos

indivíduos cegos e que já cavavam o profundo fosso que se estabeleceria ao longo

da evolução cultural, entre cegueira e visualidade, com proeminência na cultura

ocidental1, conforme veremos mais adiante.

1
Neste capítulo, adotamos uma abordagem mais ou menos generalizante, quando tratamos do
problema relativo à disjunção entre cegueira e visualidade no âmbito da cultura ocidental. No entanto,
pesquisas que excedem os limites deste trabalho poderiam revelar que em determinadas culturas, de
acordo com épocas e graus de desenvolvimento, essa separação nem sempre é tão pronunciada. Na
cultura brasileira, por exemplo, algumas produções artísticas contemporâneas revelam uma
preocupação com uma cultura tátil, fenômeno que também se manifesta em outros domínios da
cultura, conforme será analisado no quinto capítulo.
101

No entanto, encontrar esse indivíduo específico cingido pela condição

da cegueira, nos primórdios da hominização, é uma tarefa que somente se pode

efetivar mediante o artifício da formulação de hipóteses; hipóteses que nos dizem

que, nessas sociedades, dificilmente flagraríamos esse indivíduo cego. Isto porque

os parcos registros históricos existentes sobre essas épocas nos dizem que em

geral, as respostas culturais dessas sociedades primitivas para a realidade das

deficiências físicas e sensoriais, assim como de doenças graves eram o abandono

ou mesmo a morte.

Embora ainda não tenham sido realizados estudos que nos apontem as

razões que levavam essas sociedades a apresentarem respostas hostis a essas

problemáticas, é plausível que tais práticas de abandono ou de morte encontrem

alguma justificação na marcada divisão do trabalho e nas difíceis condições de

sobrevivência a que as mesmas achavam-se submetidas.

Tal hipótese nos encaminha a uma outra, que é fundamental: nessas

sociedades primitivas, parecia ser a determinação cultural o fator preponderante

para que se processassem as estratégias de separação entre indivíduos de uma

mesma espécie, os quais trouxessem em si a marca de um condicionamento

biológico singular, ou seja, uma doença ou uma deficiência.

Voltemos nossa atenção para o indivíduo cego dessas sociedades.

Como os outros indivíduos da espécie, ele era portador de um cérebro

potencialmente hábil, com um newcórtex desenvolvido, onde dormia, talvez, uma

série de possibilidades de conexões neuronais e sinapses aptas a decodificar uma

matriz básica para a qualificação e para o refinamento da percepção tátil. Também

era potencialmente capaz de usufruir dessa dialética evolutiva multidimensional, em


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que a mão, o cérebro, a técnica e a cultura terão um papel fundamental na

constituição do sujeito faber, lokens e, no nosso caso particular, do sujeito tátil.

Mas voltemos ainda nossa atenção para as visões e práticas que foram

produzindo a idéia de cegueira como desvio.

Embora não pretendamos aqui efetivar qualquer julgamento a respeito

das práticas de abandono ou mesmo de morte praticadas nessas sociedades, é

certo que os indivíduos cegos estavam situados nas bordas da cultura, ali onde se

fixavam os chamados grupos desviantes, mas com uma característica particular em

relação a estes: diferentemente do grupo dos jovens, por exemplo, eles nunca viriam

a ser incorporados na sociedade. Quando lhes era permitido sobreviver, estavam,


2
em geral, entregues à sua própria sorte.

Tais respostas, caracterizando o desvio e a exclusão, vão gerar todo

um entorno psicossociocultural forjado mediante idéias míticas, mágicas que vão

repercutir tanto nas práticas cotidianas dos indivíduos como, posteriormente, no

discurso religioso. Esse imaginário mítico-religioso é, aliás, o solo onde se

sedimentarão o preconceito e a discriminação contra esses indivíduos, fenômenos

que, embora tenham perdido muito da sua força, ainda se acham cristalizados em

nossos dias em formas de pensar e agir impressas nas sociedades em geral,

conforme veremos adiante.

Será interessante que apresentemos um panorama de tal imaginário,

que encontra suas manifestações mais vigorosas no Livro dos Mortos, no Alcorão,

no Talmude e na Bíblia.

2
Vemos com Morin que a adoção do desvio como prática já era incorporada nessas sociedades, em
que os jovens, por exemplo, eram tidos como grupos desviantes e não participavam das atividades de
caça com os homens adultos, nem tampouco das colheitas de frutos e das atividades domésticas
desenvolvidas pelas mulheres.
103

4.3 Cegueira e discurso: a dupla face do estigma

As apreciações forjadas sobre a cegueira ao longo das culturas

humanas, tendencialmente, organizaram-se em dois pólos principais, tendo como

compreensão fundante uma idéia patológica da cegueira. Num primeiro plano,

aparece a noção de cegueira como desgraça, castigo a ser expiado, criando-se um

entorno de clara demarcação social, no qual os indivíduos cegos são vistos como

não-pessoas, tendo como lugar social as bordas da cultura.

Num segundo plano, há representações que envolvem o portador

dessa condição, numa espécie de aura de mistério e magia. Aqui o estigma negativo

se transmuda em estigma aparentemente positivo, à medida que se associa

cegueira a saber e poder, elevando o portador dessa condição a uma qualidade de

quase divindade.3

O discurso religioso parece ser o solo privilegiado onde se

sedimentaram esses juízos de valor preconcebidos. No Alcorão, inúmeras

passagens associam cegueira a idéias de ignorância, de desgraça, que podem ser

sintetizadas em nota explicativa no final do livro:

[...] Havia várias superstições e fantasias árabes, que são combatidas e


rejeitadas aqui. Supunha-se que os cegos, ou os coxos, ou os afligidos por
sérias enfermidades, fossem alvos do desagrado divino, e, como tais, não
devessem conviver com as outras pessoas, compartilhar das suas
refeições em suas casas; não devemos alimentar tal pensamento,
porquanto não somos juizes das causas dos infortúnios dessas pessoas,
as quais merecem a nossa simpatia e benevolência. 4

Na Bíblia, a cegueira aparece associada à idéia de pecado, conforme

ilustra a seguinte passagem: “[...] E passando Jesus, viu um homem cego de


3
Tivemos a oportunidade de apresentar um relato mais abrangente de tais respostas sociais em
nossa obra Associativismo e política: a luta dos grupos estigmatizados pela cidadania plena,
sobretudo no primeiro capítulo, conforme está indicado na bibliografia.
4
Disponível em: < http://www.culturabrasil.pro.br/zip/alcorao.pdf > p.819. Acesso em: jul. 2003.
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nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este

ou seus pais, para que nascesse cego?” (JOÃO, cap.9, v.3, p. 1368).

A religião espírita justifica a ocorrência da cegueira a partir do princípio

da reencarnação, associando-a à idéia de prova, expiação ou até de uma missão a

ser cumprida na Terra.

No outro pólo, aquele que em outra obra classificáramos como

estigmatização positiva, mas, igualmente nociva a um desenvolvimento normal da

personalidade do indivíduo cego, a cegueira sempre apareceu envolvida por uma

aura de quase divinização.

De fato, foi principalmente aos cegos famosos que, ao longo da

história, eram atribuídos poderes sobrenaturais. Exemplo mais célebre é o da

legendária figura de Homero, poeta cego, a quem se atribuem, na Grécia Antiga, os

poemas épicos, a Ilíada e a Odisséia. Outros textos fazem referência a Tirésias, um

adivinho cego da cidade de Tebas "[...] que lera nos segredos dos deuses e que

possuía o dom de predizer o futuro.” (apud DIDEROT, 1988, p. 240).

Na Coréia, a crença milenar no poder de adivinhação dos indivíduos

cegos tornou essa prática muito comum por parte desses indivíduos, conforme relata

Sangyeon (1994, p. 15, livre tradução do espanhol):

A adivinhação já era muito popular na era dos 'três reinos'


(aproximadamente o período que vai do ano 37 a.C. e há motivos para se
supor que já naquela época houve adivinhos cegos. Não obstante, sua
intervenção nessa arte somente está registrada documentalmente na era
‘Koryeo’ (918 a 1392), Kwangjong. O quarto rei da era Koryeo introduziu a
realização de provas ao modo de exames as quais eram controladas pelos
serviços civis para a prática da arte, e estabeleceu o taevokgam, uma
instituição que se ocupava da observação astrológica e das cerimônias,
rituais do Estado. Ao sistematizar-se os princípios da adivinhação, os cegos
começaram a praticá-la.

No século XVI, ao formarem sua organização chamada em língua

coreana por "Mangcheong", os adivinhos cegos, segundo relata Sangyeon, parecem


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ter vivido o auge dessa prática como arte; entretanto, em fins do século XIX, ela

começou a declinar em termos de importância. Mesmo assim, o autor reconhece

que, ao lado da massagem, a adivinhação é ainda hoje uma das profissões mais

populares entre os cegos coreanos.

Separar, enclausurar. Para além do pensamento mítico-religioso acerca

da cegueira, as culturas da Era Cristã, ainda que impelidas por um sentimento de

piedade e caridade, prosseguiram com estratégias práticas de demarcação de

lugares específicos para os indivíduos cegos.

Nos primórdios da Era Cristã, notícias abundantes do internamento dos

cegos em asilos e hospitais demonstram a franca expansão dessa primeira forma de

agrupamento em torno da caridade e da filantropia, estratégias privilegiadas de

organização da mendicância como o lugar institucional possível para os indivíduos

cegos.

[...] Nessa lenta evolução das instituições para prestar assistência às


pessoas deficientes surgiu o asilo fundado por S. Basílio (Cesaréia),
Capadócia, em 369 d.C. Era uma cidade em miniatura, com acomodações
separadas para cada tipo de necessitado. No século V, S. Lineu fundou a
primeira irmandade de cegos, reunindo cegos pedintes das vizinhanças do
seu eremitério [...] (SOMBRA, 1983, p. 23).

A prática de internamento estava intimamente associada às idéias de

desgraça e castigo “[...] No ocidente, no século XI, Guilherme, ‘O conquistador’, criou

quatro hospitais para cegos a fim de expiar o pecado de se ter casado com sua

parente” (HUGONNIER et al., 1991, p. 13).

Tais iniciativas de agrupamento, se não traziam em si a preocupação

com a inclusão na cultura alfabética, visto que a própria escrita manuscrita ainda era

inacessível a muitos grupos sociais, e se, por assim dizer, achavam-se ainda

crivadas de um profundo estranhamento face à realidade da cegueira, abriam

caminho, conforme já frisamos, para a inclusão desses indivíduos em comunidades


106

de pertença de uma condição comum. Engendravam, assim, práticas e

conhecimentos específicos que redundariam numa compreensão social que os

pensava como indivíduos com direitos à instrução geral.

Ao lado das idéias de desvalorização e divinização, desenvolveu-se

nas culturas humanas um conjunto de apreciações a respeito do mundo habitado

pelos indivíduos cegos. Na Literatura, inclusive na poesia, assim como no imaginário

do senso comum, difundiu-se a metáfora da noite e da escuridão, para

caracterizarem esse universo habitado pela cegueira. No entanto, se for perguntado

a um cego de nascença ou mesmo a um indivíduo com muitos anos de cegueira, se

o seu mundo é cinzento ou se a sua limitação física lhe dá a impressão de estar

permanentemente mergulhado em uma noite escura, provavelmente ele sorrirá de

tais idéias e dirá que elas não passam de ilusão. 5

4.4 Cegueira e ciência: novos lugares de estranhamento

O que é o complexo tátil, ou por outra, como os sujeitos cingidos pela

condição da cegueira percebem e apreendem a realidade à sua volta? Quando nos

voltamos ao pensamento científico-filosófico tradicional, à busca de uma resposta

para essa inquirição, novamente nos defrontamos com uma influência do chamado

paradigma da disjunção (tratado no início do capítulo), o qual parece ter também

5
Embora seja significativo o número de pessoas cegas que têm alguma percepção luminosa, não
subsiste naqueles indivíduos privados dessa característica, sequer a experiência do escuro. Dessa
forma, somente por artifício ou por metáfora, pessoas cegas poderiam referir-se à sua limitação física
como trevas, noite permanente etc.
107

mobilizado a ciência para abordagens eminentemente visuocêntricas da cognição

humana.

[...] Platão distinguiu acentuadamente entre os sentidos ‘superiores’ da


visão e audição, e os ‘inferiores’ do olfato, paladar e tato, exaltando apenas
os primeiros como caminhos do conhecimento racional: ‘Deus imaginou o
dom da vista para nós a fim de que pudéssemos observar os movimentos
que foram descritos pela razão nos céus, e aplicá-los aos movimentos da
nossa própria mente [...]’ (apud HUMPHREY, 1994, p. 50).

Na Literatura, de um modo geral, são inúmeras as metáforas que

associam conhecer a ver e, do mesmo modo, ainda em nossos dias, persiste no

discurso científico uma fala metafórica que associa cegueira a ignorância ou falta de

conhecimento.

Obviamente, a cegueira compareceu como objeto de investigação no

pensamento científico tradicional. No entanto, o modo como a Filosofia ocupou-se

do fenômeno nos revela um dado intrigante: tendencialmente, quando a filosofia

cuidou em analisar a problemática da cegueira, não era propriamente para esta

realidade em si que direcionava seu interesse, mas antes parecia movida apenas

por uma curiosidade em analisar situações singulares e especiais, ou seja, aquelas

em que era devolvida ao sujeito cego, mediante cirurgia ou remoção de cataratas, a

visão de que ele fora privado desde tenra idade. Isso implica reconhecer que o não-

ver, como realidade genuína e intrínseca ao sujeito cego, geralmente não merecia a

atenção da ciência, uma vez que era novamente ao ver que a investigação se

voltava, ou ao como ver, após cegueira prolongada.

A Literatura filosófica e psicológica apresenta-nos uma série de casos

célebres em que sujeitos com cegueira desde a infância, inclusive cegos congênitos,

foram submetidos a cirurgias em idade adulta, recuperando parcial ou totalmente a

visão. O fato reunia em torno do indivíduo, os mais variados especialistas. E todos

eles partilhavam as seguintes indagações: Se a cirurgia obtivesse êxito, voltaria o


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indivíduo cego a enxergar imediatamente? Poderia ele fazer um uso normal e

adequado das suas capacidades visuais?

Parece que a ciência queria confirmar ou refutar idéias disseminadas

pelo senso comum, que ganharam voz nos textos religiosos e que, particularmente

na modernidade, têm sido tão caras às produções artísticas, sobretudo nos

romances, tele-novelas e criações cinematográficas, revificando assim, com uma

grande carga dramática, o tom milagroso das clássicas curas de indivíduos cegos.

O debate mais importante nesta área, por ser citado com freqüência

por filósofos, psicólogos e neurocientistas, envolveu no século XVII os filósofos

William Molyneux e John Locke. Este último, recebeu do primeiro a seguinte questão

para análise: “Suponhamos que um homem nascido cego, e agora adulto, a quem é

ensinado distinguir o cubo da esfera pelo tato, volte a ver: [será que poderia agora]

pela visão, antes de tocá-los [...] distinguir e dizer qual é o globo e qual é o cubo?”

(apud SAX, 1995).

Locke dedicou-se ao problema no seu Essay Concerning Human

Understanding, de 1690 e se decidiu pela resposta negativa.

Conforme descreve Sax (1995):

[...] Em 1709, examinando mais detalhadamente o problema e toda a


relação entre a visão e o tato, em A new theory of vision, George Berkeley
concluiu que não havia necessariamente conexão entre o mundo tátil e o
da visão - que uma conexão entre os dois só poderia ser estabelecida com
base na experiência.

Um outro caso de importância, que permitiu ser testada a prerrogativa

de Locke, apareceu nos idos de 1728, quando o cirurgião inglês William Cheselden

removeu as cataratas dos olhos de um menino de treze anos, nascido cego:

[...] A despeito de sua grande inteligência e juventude, o menino esbarrou


em profundas dificuldades com as mais simples percepções visuais. Não
tinha a menor idéia de distância. Não tinha a menor idéia de espaço ou
109

tamanho. E se confundia estranhamente com desenhos e pinturas, pela


idéia de uma representação bidimensional da realidade. (SAX, 1995).

Na verdade, comprovou-se que o menino só conseguia entender o que

estava vendo, quando conectava suas novas experiências visuais às experiências

táteis com que até então vivera. Também comprovaram que uma dificuldade básica

para uma compreensão do que estava sendo visto, dificuldade esta classificada

como lockeana, era sobretudo apresentada por cegos de nascença.

Casos semelhantes nos anos seguintes só vieram reforçar a máxima

de que os mundos tátil e visual são diferentes, mas que, em vez de serem pensados

como antagônicos, deveriam ser compreendidos como intercomplementares, pois é

certo que o tato é um coadjuvante fundamental para a visão.

Na verdade, sempre que intentou considerar o problema da percepção

humana a ciência tradicional, tendencialmente, cuidou de separar ou mesmo romper

os fios de diálogo entre os canais de percepção tátil e visual. Um alerta nesse

sentido nos é feito por Plaza:

Pela própria complexidade do mundo perceptivo, do qual o canal visual é


apenas uma parte, as experiências espaciais tornam-se tão interligadas ao
sentido tátil que os dois sentidos não podem ser separados: olho e tato se
contêm mutuamente. Tal separação é meramente cultural e corresponde a
estágios de desenvolvimento da cultura humana que fazem predominar o
sentido visual, na cultura ocidental, sobre os demais sentidos: o ‘proibido
tocar’ é ocidental. (PLAZA, p. 1987, p. 57, grifo nosso).

De fato, sobretudo no século XX, suplantando o conhecimento

científico, a arte deu um passo significativo, no sentido do estabelecimento de um

diálogo entre as linguagens perceptivas e as suas produções, explorando em suas

realizações, aspectos tátil-cinestésicos da fruição.6

Dissemos no início deste item que não foi a cegueira (a percepção tátil

em si mesma) que moveu a ciência tradicional para uma análise dessa realidade. No
6
Veja-se a este respeito o trabalho de Plaza, Tradução Intersemiótica, indicado nas referências
bibliográficas.
110

entanto, é necessário reconhecer que, embora estivesse preocupada com o modo

como enxergaria um indivíduo a quem fosse devolvida a vista, mesmo que estivesse

preocupada com o fenômeno da visão, a ciência tradicional foi surpreendida por uma

retumbante fala tátil, por uma onipresença de cérebros que sempre tinham

participado da percepção do mundo a partir de um conjunto de estratégias orais,

táteis, olfativas e cinestésicas, as quais caracterizam o que agora estamos

chamando de mundividência tátil ou munditactência.

A ciência foi surpreendida por uma fala tátil que se impunha como

forma privilegiada de percepção/interpretação do mundo, a qual se mantinha íntegra,

ainda que suprimidos os óbices físicos que impediam o fenômeno da visão,

destronando assim os mitos religiosos e os de senso comum que ainda hoje povoam

alguns sistemas culturais, sobretudo as produções artísticas, no que tange a

milagrosas curas de cegueira.

Na verdade, a ciência comprovou que, com raras exceções, indivíduos

com prolongada cegueira a quem era devolvida a visão eram confrontados com uma

realidade às vezes tão chocante para o seu mundo tátil que, em geral, nunca

conseguiam adaptar-se a contento à nova situação, recorrendo com freqüência, para

confirmar suas novas experiências, ao cabedal daquelas com que tinham aprendido

a situar-se no mundo.

Um relato ilustrativo de tal situação nos é fornecido por Oliver Sax, que

acompanhou de perto o caso de um homem que vivera cego até aos quarenta anos

e fora submetido a uma cirurgia de catarata:

[...] Ocorreu-me — talvez isso tenha ocorrido a todos nós nesse momento
— o quanto tinha sido hábil e auto-suficiente como um cego, o tanto de
naturalidade e facilidade com que havia experimentado o seu mundo com
as mãos e o quanto estávamos agora, por assim dizer, forçando-o contra o
que lhe era natural: exigindo que renunciasse a tudo o que lhe vinha com
111

facilidade, que passasse a perceber o mundo de uma maneira


inacreditavelmente difícil para ele, e estranha. (SAX, 1995).

No final do seu relato, Sax evidencia o conjunto de dificuldades que

geralmente eram enfrentadas por indivíduos cegos submetidos a essas cirurgias:

[...] Esta é, portanto, a história de Virgil, a história da recuperação


‘milagrosa’ da visão por um homem cego, uma história basicamente
semelhante à do jovem paciente de Cheselden, em 1728, e de um punhado
de outros nos últimos três séculos — mas com uma estranha e irônica
reviravolta final. O paciente de Gregory, tão bem adaptado à cegueira antes
da operação, primeiro ficou encantado com a visão, mas logo esbarrou em
esforços e dificuldades intoleráveis, vendo a ‘dádiva’ ser transformada em
maldição, ficando profundamente deprimido, para morrer pouco depois.
Quase todos os primeiros pacientes, de fato, após a euforia inicial, foram
esmagados pelas imensas dificuldades de adaptação a um novo sentido,
embora uns poucos, como salienta Valvo, tenham se adaptado e se saído
bem. (Ibidem) 7

É tempo de darmos alguma atenção a essa realidade específica, que

configura o modo como os indivíduos cegos situam-se no mundo: as estratégias das

quais lançam mão para construir sua própria visão da realidade. É tempo de darmos

voz à nossa própria experiência de como vivenciamos o mundo enquanto habitantes

desse universo tátil em que corpo, aparelho neuro-sensório-motor, mente e ambiente

constroem uma visão particular do real.

4.5 A mundividência tátil ou munditactência

7
O autor refere-se aqui, a experiências realizadas por Richard Gregory, na década de 1960,
semelhantes àquelas relatadas nos séculos XVII e XVIII. Valvo, citado por Sax, é também um
neuropsicólogo com inúmeras experiências realizadas neste campo, com prognósticos bem mais
positivos em alguns pacientes.
112

Ao investigar os problemas do ver para indivíduos que tinham sido

privados dessa condição sensorial, a Filosofia tradicional tinha, pois, flagrado um

modo particular de estar/perceber/organizar o mundo, à volta o qual envolve

condicionamentos de ordem biológica, psicológica, sociocultural, ambiental e

espacial, aliada a códigos culturais.

Mesmo não sendo sua prioridade, a Filosofia tradicional havia exposto

ao mundo um conjunto particular de percepções, sensações e apreensões, que

podiam mesmo ser pensadas como um modo diferente de visão, conforme o que

postulara Descartes em sua Dióptrica:

[...] Ele imaginou um cego descobrindo o mundo com uma vara. [...] Sem
longa prática, esse gênero de sensação é um tanto confusa e tênue, mas
se considerarmos os homens que nasceram cegos e que fizeram uso de
tais sensações durante a vida inteira verificaremos que eles sentem coisas
com uma exatidão de tal modo perfeita que poderíamos dizer que eles
vêem com as mãos. (GREGORY, 1979, p. 189).

O mesmo modo de visão particular que impressionara Diderot no

século XVIII, quando afirmara a propósito de um cego da época:

[...] O cego de Puisaux avalia a proximidade do fogo pelos graus de calor: A


plenitude dos vasos, pelo rumor que fazem ao cair dos líquidos que
transvasa; a vizinhança dos corpos, pela ação do ar sobre o seu rosto. É
tão sensível às menores vicissitudes que sucedem na atmosfera, que pode
distinguir uma rua de uma betesga. Aprecia com perfeição os pesos dos
corpos e a capacidade dos vasos; e converteu os braços em balanças tão
justas, e os dedos em compassos, tão experimentados, que, nas ocasiões
em que essa espécie de estática se realiza, eu apostaria por nosso cego
contra vinte pessoas que enxergam. (DIDEROT, 1979, p. 7).

As perguntas que então a ciência não havia formulado podem agora

ser esboçadas, alimentadas por importantes contributos das ciências cognitivas.

Podemos agora desentramar a realidade da cegueira do seu nicho específico, para

apreciá-la num contexto mais amplo, aquele que indaga das especificidades de

grupos ou indivíduos imersos numa cultura biológico-antropológica da sua própria

espécie. Não possuindo os condicionamentos biológicos que lhe permitem enxergar


113

e assim construir imagens eminentemente visuais do mundo à volta, de que

estratégias lança mão o indivíduo cego para forjar sua própria apreensão da

realidade? Quais são os ingredientes básicos da mundividência tátil ou

munditactência? Que ordens novas de problemas podem ser postuladas para o

diálogo que se estabelece entre o cérebro desse indivíduo e as suas vivências e

experiências?

Partimos inicialmente para um conhecimento prévio do complexo tátil

em seus aspectos orgânico-neurológicos, para, em seguida, analisar o modo como

este complexo conhece o mundo à sua volta.

4.5.1 Corpo, tempo e ambiente: o diálogo de uma transação

Obras inteiras, partes ou capítulos de livros dos mais variados campos

do conhecimento humano têm-se dedicado à descrição e estudo analítico do

fenômeno da visão, ao longo da história do desenvolvimento da produção científica.

O olho é, sem dúvida, um dos engenhos mais bem elaborados da evolução

biológica e os avanços da ciência já permitiram desvelar as diversas facetas do

fenômeno da visão.

Já com relação ao complexo tátil, a situação é diversa. Conforme

pudemos estabelecer no segundo capítulo, a partir de Nöth (no prelo), a

comunicação tátil ainda não pôde contar com estudos programáticos sistematizados

e com resultados importantes. Diferentemente dos sentidos da visão, da audição,

paladar e olfato, que estão localizados em órgãos específicos, o sentido tátil

espalha-se por todo o corpo, conforme explica Noth:


114

[...] podendo mesmo ser comparado a um verdadeiro exército de


receptores distribuídos tanto na parte externa, nossa pele, como
visceralmente, envolvendo assim, um conjunto muito amplo de aspectos e
situações a serem considerados em uma abordagem analítico-
programática.

Embora possamos afirmar que a aventura biológica dos seres

vertebrados, particularmente a do homem, encontre no tátil a experiência mais

primitiva e fundamental de contato com o mundo, as culturas, sobretudo as

civilizadas, cuidaram de minimizar, ao longo de seu desenvolvimento, a importância

desse canal de percepção.

Nesse sentido Nöth observa:

No mundo do tato (Katz, 1925), encontram-se os processos de semiose


humana mais primitivos do ponto de vista da história da evolução. O
significado do canal de semiose tátil diminui cada vez mais ao longo da
ontogênese, do recém-nascido ao adulto, assim como na filogênese, do
animal até o ser humano. Na perda da comunicação verbal, o canal tátil
ganha, no entanto, novamente importância e pode, por ex., na escrita em
Braile para os cegos, ser utilizado como um canal para a transmissão
lingüística.
Do ponto de vista da história cultural, a utilização deste canal diminui cada
vez mais até a sua repressão em algumas culturas ‘civilizadas’. (no prelo).

No entanto, estudos voltados a esta problemática constatam a

espantosa quantidade de informações que são constantemente veiculadas e

apreendidas por este canal. Com o apoio de Ackerman (1997, p. 96-97),

apresentamos uma breve amostra da vastidão de tal complexo:

[...] Entre a epiderme e a derme existem pequenos corpúsculos de


Meissner, ovais, que são nervos contidos em cápsulas. Parece que se
especializaram nas zonas sem pêlos do nosso corpo - as solas dos pés, as
pontas dos dedos (onde existem 3 mil por centímetro quadrado), o clítoris,
o pénis, os mamilos, as palmas das mãos e a língua, as zonas erógenas e
outros portos de escala ultra-sensíveis – e respondem com rapidez ao mais
pequeno estímulo.

Esses corpúsculos são de fato a parte mais refinada e mais

especializada do complexo tátil. Vemos como Braille compreendeu isso quando

buscou uma perfeita conformação entre a célula Braille e a polpa do dedo indicador.
115

Ackerman (1997, p. 97) prossegue a nos auxiliar em nosso mapeamento do

complexo tátil:

[...] Os corpúsculos de Pacini respondem com grande rapidez às mudanças


de pressão e têm tendência a surgir junto às articulações, em alguns
tecidos profundos, nos órgãos genitais e nas glândulas mamárias. Sendo
sensores espessos, da forma de uma cebola, indicam ao cérebro o que
está a pressioná-los, qual o movimento das articulações, ou de que forma
os órgãos alteram a sua posição quando nos movemos.

Temperatura, peso, forma, textura são alguns dos conjuntos de

informações muito concretas, transmitidas freqüentemente por esse exército de

receptores, os chamados propioceptores. Mas sigamos ainda Ackerman na sua

listagem.

[...] A nossa colecção de receptores tácteis inclui ainda os discos de Merkel,


com a forma de pires, que se encontram imediatamente abaixo da superfície
cutânea e respondem a pressões constantes (transmitem uma mensagem
sustentada, uma verificação contínua); várias terminações nervosas livres,
que não estão fechadas em cápsulas e respondem com maior lentidão ao
toque e à pressão; as terminações de Ruffini, localizadas muito abaixo da
superfície da pele, que registam pressões constantes; receptores térmicos;
sensores cilíndricos de calor e o receptor táctil que melhor conhecemos mas
também o mais estranho: o cabelo (Ibidem, p 97-98).

Essa breve incursão através dos principais conjuntos de receptores nos

sugere a idéia de que o nosso corpo é eminetemente tátil, conforme a reflexão de

Ackerman (Ibidem, p 98):

[...] Como tomamos consciência da nossa própria pessoa? Em larga


medida, isso tem a ver com o tacto, com as nossas percepções tácteis. Os
nossos ‘proprioceptores’ (do latim para ‘receptores próprios’) mantêm-nos
informados sobre a nossa localização no espaço, dizem-nos se os nossos
estômagos estão ocupados, se estamos ou não a defecar, onde estão os
nossos braços, pernas, cabeça, que movimentos estamos a fazer, como
nos sentimos a cada momento.

Esse amplo espectro de informações que podem ser veiculadas por

esse complexo levou estudiosos a pensarem no tato como envolvendo em si mesmo

cinco sentidos, conforme adianta Santaella (2001, p. 77-78):

[...] Pode-se falar que o sistema tátil é constituído, ele mesmo, de cinco
sentidos: pressão, calor, frio, dor e cinestesia, que geram o toque cutâneo
restrito à pele, o toque háptico, na junção da pele no movimento das juntas,
o toque dinâmico, envolvendo pele, juntas e músculos, o toque térmico,
116

aliado à vasodilatação ou vasoconstrição e o toque orientado, levando à


percepção dos objetos em relação à gravidade.

No que toca ao indivíduo cingido pela condição da cegueira, a

consciência desse corpo tátil, a atenção permanente para as informações que esse

conjunto de propioceptores estão a lhe transmitir, é crucial no seu ser/estar/perceber

o mundo à volta. Isto nos leva a pensar na mundividência tátil como um processo de

transação entre mente, corpo, espaço e ambiente.

Para além do complexo tátil, havemos de considerar que a

munditactência envolve potencialmente todos os outros sentidos aptos a perceber o

mundo à volta exibindo uma transação permanente do indivíduo cego com o meio

ambiente exterior, onde comparecem, intercambiam e colaboram o canal auditivo, o

canal olfativo e todo o corpo tátil desse indivíduo, forjando um modo de

estar/perceber/codificar o mundo, o qual se acha em permanente mutação,

atualização, em função das próprias mudanças ambientais/naturais/artificiais.

Uma amostra de apenas um dos aspectos de tal complexidade nos é

apresentada por Richard Dawkins, que, ao transcrever o diálogo imaginário de um

técnico, maravilhado com o sistema de ecolocalização dos morcegos, associa esse

rico sistema ao que ele chama de visão facial praticada pelos indivíduos cegos:

[...] Ora bem, os homens cegos, por vezes, parecem ter um sentido
misterioso dos obstáculos que se encontram em seu caminho. A isto foi
dada a designação de ‘visão facial’, porque os cegos referem que dá um
pouco a sensação de um toque na face. Conta-se a história de um rapaz
completamente cego que conseguia andar de trissiclo, em boa velocidade,
à volta do quarteirão próximo de sua casa, utilizando a ‘visão facial’.
(DAWKINS, 1986, p. 39).

No entanto, nenhum mistério há nesse processo de visão facial. Ele

não exibe senão o aspecto cinestésico dessa complexa teia interativa que se

estabelece entre o mundo interno do indivíduo cego e o ambiente à sua volta. Não é,

pois, uma dádiva divina, compensatória nem uma qualidade mágica especial, mas
117

antes está encarnada em seu corpo, estruturando seu modo

particular/complementar de ser, estar e perceber o mundo, ou seu modo particular

de ação incorporada no mundo.

O conceito utilizado por Thompson, Varela e Rosh serve para ilustrar o

que temos discutido como munditactência, ou ainda, essa transação permanente

entre corpo, espaço, tempo e ambiente:

[...] Vamos explicar o que queremos dizer pela expressão ação incorporada.
Usando o termo incorporada queremos chamar a atenção para dois pontos:
primeiro, que a cognição depende dos tipos de experiência decorrentes de
se ter um corpo com várias capacidades sensório-motoras, e segundo, que
essas capacidades sensório-motoras individuais estão, elas mesmas,
embutidas em um contexto biológico, psicológico e cultural mais abrangente.
Utilizando o termo ação queremos enfatizar novamente que os processos
sensoriais e motores - a percepção e a ação - são fundamentalmente
inseparáveis na cognição vivida. (VARELA; THOMPSON; ROSCH, 2003, p.
177).

Provisoriamente, poderíamos mesmo afirmar que a percepção tátil é

uma espécie de visão econômico-seletiva, uma vez que se estrutura, a partir de

recortes mínimos do ambiente, pequenas fatias de informação, arranjadas a partir de

detalhes que vão estruturando uma ação no mundo, sempre mutável e sempre

atualizada por percepções novas deste ambiente. Dessa tarefa de recolha e seleção

de informações, participa todo o corpo do indivíduo cego, em transação com o

ambiente.

Seus pés enviam permanentemente informações ao cérebro; sua

bengala funciona como uma extensão da percepção tátil das suas mãos; seus

ouvidos exercitam permanentemente o trabalho fundamental de ecolocalização; seu

olfato potencializado oferta-lhe informações preciosas sobre o ambiente à sua volta.

Em última instância, encontrões são também outras pistas informativas sobre

obstáculos que não haviam sido captados por suas outras vias de percepção, ao
118

mesmo tempo que lhe permitem atualizar constantemente percepções e imagens

anteriores desse espaço/ambiente em que se move.

Do ponto de vista de uma análise semiótica, poderíamos mesmo

afirmar que, em comunicação com o mundo, o indivíduo cego, em seu dia-a-dia,

serve-se abundantemente de signos indiciais (olfativos, sonoros, cinestésicos),

espécies de pistas variadas, portas informativas, pontos de referência que apontam

lugares, atualizam espaços, denunciam perigos, confirmam informações anteriores,

atualizam situações e espaços ambientais.

Corpo e espaço envolvem-se, pois, numa trama em que a presença, a

permanência, a duração de objetos, coisas, e/ou extratos de sons e cheiros

compõem o cotidiano do estar/ser/perceber desses indivíduos.

Muitas vezes acontece na rua uma cena, em que alguém que enxerga

deixa de lado seus afazeres imediatos para observar um indivíduo cego em sua

caminhada. Provavelmente, este observador passa momentos de pura aflição, ao

ver que o cego está quase a colidir com algum obstáculo. A aflição transmuda-se em

espanto, quando, bem no momento da colisão, o indivíduo corrige sua posição e

desvia-se do perigo. Nosso cego prossegue em seu itinerário e espanta ainda mais

nosso observador, quando se desvia de um buraco e atravessa a rua pouco

movimentada, alcançando o meio-fio do outro lado, sem qualquer vacilação,

demonstrando excelente domínio no manejo da bengala. Finalmente chega ao seu

destino, uma lanchonete, e agora com um andar mais cauteloso, consegue localizar

uma mesa vazia e senta-se à banqueta, à espera de quem o atenda.

Nessa rápida cena de rua, passou despercebido aquele observador, o

silencioso, mas permanente trabalho do cérebro, a calcular, corrigir informações, a


119

compor o texto em que se combinam cinestesia, audição e olfato, para manipular

situações concretas de movimento, atuação, cognição no mundo.

Nosso observador não viu senão um mundo cheio de ameaças, no qual

um ser desprovido do sentido da visão (único capaz de o prover de informações

integradoras do espaço e do ambiente). Um indivíduo constantemente sujeito a

situações de risco. Além disso, não se apercebeu de que pelo contato com essas

perturbações do mundo que o peturbam, esse indivíduo constrói seu próprio modo

de estar/perceber/conhecer esse mundo e intervir nele de forma mais ou menos

competente.

Esse estar/perceber o mundo envolve o que Lakoff e Johnson

classificaram como nosso inconsciente cognitivo, que, conforme Capra (2002, p. 75-

76), “[...] inclui não somente todas as nossas operações automáticas, como também

todas as nossas crenças e conhecimentos tácitos. Sem que disso tenhamos

consciência, o inconsciente molda e estrutura todo o nosso pensamento consciente.”

Nosso observador não se apercebeu de um indivíduo que, como todos

os outros de sua espécie, é um ser que aprende no vivido, na concretude de suas

percepções/ações, conforme assinala Varela (1996, p. 17):

[...] Piaget introduziu, de maneira inconfundível, o facto de que a cognição,


inclusive nas que parecem as suas expressões de nível mais elevado se
funda na actividade concreta de todo o orgamismo, isto é, na conexão
sensório-motora.
O mundo não é algo que nos é ‘dado’, mas é alguma coisa em que temos
parte graças ao modo como nos movemos, tocamos, respiramos e
comemos. Eis o que chamo cognição como enacção.8
Ora, se o senso comum não consegue compreender este saber fazer

cognitivo, senão pela via de apreciações de espanto e de estranheza, a ciência, por

8
Como uma primeira explicação para o conceito usado por Varela, recolhemos nota da tradução da
obra citada:
[...] ‘Enacção’ é um neologismo que se poderá introduzir para traduzir o
termo inglês enacion, derivado do verbo enact. Este significa literalmente
'representar', 'pôr em acto', 'promulgar' (uma lei), 'efectivar'; F. Varela
pretende com ele significar a relação estreita que existe entre acção e
agente no processo cognitivo, essencialmente performativo. (N. T.)
(MOURÃO In: VARELA, 1996, p. 17).
120

sua vez, nem sempre pôde fundar uma compreensão também adequada para tal

processo. Em geral, a cognição nem sempre contou com o recheio da experiência

cotidiana, a experiência que Peirce tão bem caracterizou como lógica do uso e que,

no caso particular do indivíduo cego, reúne particularidades e especificidades que

nem sempre estão presentes à experiência da visualidade.

Caracterizado ainda que de forma sucinta o modo como se estrutura a

percepção tátil, é tempo de apreciarmos um dos equívocos fundamentais que

tendencialmente tem povoado a produção científica mais recente, no tocante a esta

realidade. Tal equívoco diz respeito a uma tendência presente ao debate tiflológico

contemporâneo, que teve repercussão na produção científica, na defesa de

estratégias que podem ser caracterizadas como uma espécie de normalização e/ou

homogeinização da cegueira a uma cultura visuocêntrica. Estamos certos de que tal

tendência reflete um desconhecimento da percepção tátil e da sua especificidade.

4.5.2 A mundividência tátil: uma visão diferente de mundo

As tentativas de adequação das estratégias voltadas aos programas de

instrução dos indivíduos cegos, aproximando-as o mais possível a uma cultura da

visualidade, podem ter tido o seu nascedouro sob inspiração da Filosofia

humanística que florescia nos séculos XVIII e XIX e revelavam também um profundo

desconhecimento sobre a percepção tátil e sua especificidade.

Um sintoma de tais tentativas homogeinizantes fora evidenciado no

embate que se instituiu, por ocasião da descoberta do alfabeto Braille, pelo


121

reconhecimento como método natural de leitura e escrita dos cegos no âmbito dos

programas de instrução geral desses indivíduos.

Vimos, no primeiro capítulo, como os educadores daquela época e

mesmo outros mais contemporâneos, desenvolveram um discurso de refutação do

Braille como um método fechado e segregacionista, revelando assim um flagrante

desconhecimento do complexo tátil e da competente conformação desse sistema de

leitura e escrita à sua peculiaridade.

Uma produção científica mais recente, ainda sob inspiração do

Humanismo, a qual se esforçou por minimizar as diferenças, desenvolveu todo um

discurso voltado ao convencimento acerca da normalidade da cegueira. Pode-se

dizer que essa idéia de normalidade tanto invadiu os campos científicos voltados à

Educação, Assistência Social, Sociologia, Psicologia, como se disseminou no círculo

das instituições e serviços voltados ao atendimento desses indivíduos e às suas

associações reivindicatórias.

Se tal discurso de normalidade agrega um apelo importante em favor

de um acesso a direitos de cidadania e a bens culturais, é fato inegável que ele

assenta-se em uma base eminentemente falsa, porquanto não reconhece a

premissa de que a mundividência tátil ou munditactência envolve uma diferença

fundamental em relação à percepção visual.

Estudando o problema do ponto de vista do desenvolvimento da

criança com cegueira congênita ou com cegueira adquirida no primeiro ano de vida,

Sylvia Santin e Joyce Nesker Simmons (1996) advertem:

Ninguém questiona os motivos dos educadores em seus esforços para


proporcionar experiências normais às crianças excepcionais e para reduzir
os efeitos estigmatizantes da educação especial. No entanto, a teoria de
normalidade pode distorcer o entendimento da contribuição particular de
uma deficiência para o desenvolvimento total da criança. Não se pode
realisticamente assumir o compromisso de educar a criança ‘total’ enquanto
não se tiver compreendido o desenvolvimento exclusivo de cada criança.
Considerar a criança que nasceu cega como sendo uma criança normal
122

sem a visão será impor a ela um conjunto artificial de dimensões, tais como
o desenvolvimento sensorial sem a visão, ou o desenvolvimento afetivo
sem a visão. Somente pela compreensão e aceitação de um
desenvolvimento sensorial, um desenvolvimento cognitivo da linguagem, e
um desenvolvimento afetivo que lhe são peculiares, é que admitimos que a
criança cega seja uma criança ‘total’. 9

No entanto, reconhecer a diferença entre a percepção tátil e a

percepção visual não significa que tal premissa venha a servir como escopo para

práticas de disjunção, separação e enclausuramento. Reconhecer a percepção tátil

na sua qualidade de visão diferente de mundo implica validar e incluir no processo

cognitivo, um modo particular de ser/perceber/estar no mundo, o qual não pode ser

pensado como limitado e deficitário, mas antes como um modo legítimo de participar

e intervir na cultura.

A este respeito Sylvia Santin e Joyce Nesker Simmons esclarecem:

[...] Propõe-se que uma conceituação de cegueira como diferença e não


como déficit é fundamental para se compreender como uma criança que
nasceu totalmente cega conhece o mundo, obtém informações sobre ele, e
constrói a sua realidade. Neste ponto de vista fica implícita a idéia de um
sistema integrado de processamento de informações, gerado por insumos
singulares. (Ibidem)

Numa época que o governo brasileiro discute com ênfase o problema

da inclusão em seus projetos educacionais e efetiva medidas para que as escolas

recebam a demanda de alunos com deficiências sensoriais e físicas, o alerta ganha

muita relevância. Práticas que tentem minimizar a cegueira como diferença, em

favor de uma premissa de normalidade, encobrindo assim, especificidades próprias

da realidade tátil podem estar empurrando para debaixo do tapete um aspecto

fundamental, ou seja, a condição da própria cegueira, o inelutável e perene campo

tátil, em que se movem e co-participam da cultura os sujeitos cingidos por esta

condição.

9
Disponível em: < http://www.ibcnet.org.br/paginas/cegueira/Artigo_04.htm >. Acesso em: 23 dez.
2003.
123

Parece que, quanto mais aprendermos a respeito da qualidade da

percepção tátil, suas especificidades, mais aptos estaremos para incluir esse código

no rol dos vários códigos da cultura, estabelecendo assim relações de dialogicidade

entre os diferentes modos de percepção e ação no real. Para que essa fala tátil

aflore com todas as suas particularidades, parece-nos também indispensável que o

sujeito cego possa ser convenientemente estimulado com informações e

experiências que lhe permitam enriquecer o modo como percebe e se apropria da

realidade à sua volta. A idéia da cognição corporificada e, mais ainda, a idéia de que

cada organismo, submetido a um contexto biológico-histórico particular, munido dos

mecanismos sensoriais que lhe são próprios, percebe e atua no mundo também de

um modo próprio (um dos grandes achados das ciências cognitivas), precisa ser

levada às últimas conseqüências em projetos pedagógicos e de estimulação dos

indivíduos cingidos pela condição da cegueira, sobretudo quando se trata de

cegueira congênita ou adquirida ainda na infância.

Está provado que crianças ou jovens cegos que são submetidos a

práticas desportivas e de dança, por exemplo, desenvolvem um competente senso

de orientação espacial, ao mesmo tempo que melhoram muito o seu desempenho

em atividades motoras e de mobilidade. Depreende-se daí que, saídos de uma

perspectiva de uma limitada consciência de si, vestidos agora pela pele da

experiência, num mundo alargado para fora de si, esses indivíduos desenvolvem um

alargamento e refinamento da sua munditactência e renovam, constantemente, a

oportunidade para um trabalho silencioso e permanente dos seus cérebros, a

elaborarem a complexa fala tátil de decodificação de texturas, superfícies,

mecanismos de orientação espacial, formas outras fundamentais para a sua

intervenção no mundo.
124

Portanto, pensar a cegueira como diferença, não significa subjugar

seus portadores a situações de enclausuramento ou separação, nem tampouco

minimizar ou tentar subtrair-lhe, artificialmente, a condição inelutável de vida, ou

seja, a própria cegueira. Significa antes tocar num princípio bio-antropológico-

cultural, inerente à própria condição humana, envolvendo equipamentos neuro-

sensório-motores, suas configurações particulares e o modo como intervêm no real.

Por isso nos voltamos ao conceito de enação, o qual, se por um lado

tenta elucidar a experiência cognitiva do homem no mundo de um modo geral, por

outro lado, serve tão apropriadamente à ilustração da nossa análise específica.

Segundo Varela:

[...] a abordagem enactiva sublinha a importância de dois pontos entre si


ligados:
(1) A percepção é formada por acções perceptivamente guiadas;
(2) As estruturas cognitivas brotam de esquemas sensório-motores
recorrentes que capacitam a acção para ser perceptivamente guiada.
(VARELA, 1996, p. 21).

Essa postulação nos afasta de um mundo mental, abstrato, forjado a

partir de uma realidade dada a priori, mas separado desta, para envolver percepção

e ação numa dinâmica em que se envolvem o aparelho neuro-sensório-motor do

percepiente com os dados ambientais, forjando um modelo de transação

corpo/ambiente, crucialmente dependente dessa sua estrutura neurofisiológica e das

conexões que está apta a realizar.

Conforme reforça Varela (196, p.26):

[...] A preocupação central da visão enactiva contrapõe-se ao ponto de vista


comumente aceite, segundo o qual a percepção é substancialmente uma
registação de informações ambientais existentes com o fim de reconstruir
uma parte da realidade do mundo físico. Na abordagem enactiva, a
realidade não é um dado: depende do percipiente, não em virtude de se
construir por capricho, mas porque o que conta como mundo relevante é
inseparável do que a estrutura do percipiente é.
125

Para os indivíduos cingidos pela condição da cegueira, crucialmente

dependentes do que lhes pode advir de um aparelho neuro-sensório-motor

eminentemente determinado pelo complexo tátil, há todo um mundo relevante que

necessita ser considerado pelas abordagens pedagógicas, psicológicas,

neurofisiológicas e outras. Um mundo relevante que não pode ser sobreposto ao

mundo relevante da visualidade, mas antes precisa ser revelado em toda a sua

especificidade e complexidade.

Se as artes, sobretudo as plásticas, eminentemente voltadas à

visualidade, pudessem extrapolar suas criações no intento de tocar e serem

competentemente tocadas pela percepção tátil em obras particulares, por certo se

ampliariam os pontos de dialogicidade entre esse sistema de modelização

secundária (ver capítulo 3) e uma cultura tátil para a qual ainda são tão poucas as

produções no campo da fruição plástico-artística.

Há ainda um último ponto importante a ser considerado neste item. Diz

respeito às idéias de imaginação e cognição e toca de perto na problemática do

desconhecimento da ciência e do senso comum, no que tange à especificidade da

percepção tátil. Nos idos de 1740, Diderot em sua Carta sobre os cegos para os

que vêem, partindo de uma influência eminentemente visuocêntrica de percepção de

mundo postulou uma primeira idéia de que o cego de nascença não pode imaginar,

porquanto lhe falta a possibilidade de percepcionar formas visuais, assim como não

pode utilizar o ingrediente da cor em suas formas táteis imaginadas.

É certo que trinta e três anos depois da publicação da carta referida,

Diderot reviu sua posição original em um adendo: o mesmo dilema relativo à


126

imaginação dos cegos o perseguia. A transcrição do diálogo que então teve com a

Senhorita de Salignac é bem ilustrativa nesse sentido: 10

[...] Eu lhe dizia um dia: ‘Senhorita, figurai um cubo. — Eu o vejo. —


Imaginai no centro do cubo um ponto. — Está feito. — Deste ponto, tirai
linhas retas aos ângulos; pois bem, assim tereis dividido o cubo. — Em seis
pirâmides iguais, adicionou por si mesma, cada uma com as mesmas faces,
com as bases do cubo e a metade de sua altura. — Isso é verdade; mas
onde vedes isso? — Em minha cabeça, como vós’. Confesso que nunca
concebi nitidamente como ela figurava na cabeça sem colorir. Este cubo ter-
se-ia formado pela memória das sensações do tato? Seu cérebro tornara-se
uma espécie de mão, debaixo da qual as substâncias se realizavam?
Estabelecera-se com o tempo uma espécie de correspondência entre dois
sentidos diversos? Por que não existe esse comércio em mim, e nada vejo
em minha cabeça sem colorir? O que é a imaginação de um cego?
(DIDEROT, 1979, p. 37).

Contemporaneamente, outros cientistas julgaram imaginação espacial

e visual como as fontes principais do pensamento e da cognição, conforme Gardner

(1994, p. 137):

[...] Um eloqüente porta-voz desta posição é o psicólogo da arte Rudolf


Arnheim. [...] Em Visual Thinking, Arnheim afirma que as mais
importantes operações de pensamentos advêm diretamente da nossa
percepção do mundo, com a visão servindo como o sistema sensorial por
excelência que sustentou e constitui nossos processos cognitivos.

Em seus experimentos, as ciências cognitivas têm demonstrado que a

inteligência espacial, a formação de imagens, a imaginação, conforme pensava

Diderot, não são domínios fechados aos indivíduos cegos.

[...] Pesquisas com sujeitos cegos indicaram que o conhecimento espacial


não depende totalmente do sistema visual e que os indivíduos cegos
podem até mesmo apreciar determinados aspectos de quadros. Um
eminente estudioso desta questão foi John Kennedy, da Universidade de
Toronto. Kennedy e seus colegas demonstraram que sujeitos cegos (assim
como sujeitos normais vendados) puderam prontamente reconhecer formas
geométricas apresentadas via desenhos em alto relevo (Gadner, 1994,
p. 144-145).

10
Aqui reproduzimos nota explicativa de Os Pensadores (1979, p. 36), no qual está reproduzida a
carta de Diderot: “[...] Trata-se da sobrinha de Sophie Voliand, a amiga e correspondente de Diderot.
A mãe da Srta. de Salignac, após a ruína e a fuga de seu marido, assumiu o nome de Sra. de Blacy.”
127

Diversos experimentos realizados com crianças cegas, os quais

comprovaram capacidades para o desenho, para orientação e localização espacial,

permitiram que Gardner (Ibidem, p.145) chegasse à conclusão seguinte: “[...] os

sistemas de representação espacial são igualmente acessíveis à experiência visual

ou tátil; e não há necessariamente um relacionamento privilegiado entre um limite

visual e inteligência espacial.”

Essa nossa argumentação sobre percepção tátil nos recoloca diante

de nosso objeto de análise (o sistema Braille), para reavaliarmos as questões

fundamentais que têm permeado todo o nosso trabalho, as quais tratam do diálogo

estabelecido entre mente/ambiente ou, em nosso caso particular, entre o mundo tátil

e a realidade, a partir do advento da escrita em relevo. Isso nos aproxima de uma

concepção importante na área da Biologia, que tem influenciado profundamente

análises semióticas e comunicacionais. Referimo-nos à concepção de Umwelt, a

qual aparece em fins do século XIX, nos trabalhos do biólogo alemão Jakob Von

Uexküll (1899-1940). Nossa aproximação de tal concepção se deve ao fato de

sempre termos compreendido o código Braille não somente como um mecanismo

semiótico da cultura, mas sobretudo como uma ferramenta fundamental para o

refinamento e para a qualificação do complexo tátil.

O pensamento de Uexküll, exposto sucintamente por Cassirer, reforça

esta nossa idéia:

[...] Todo organismo possui seu meio ambiente [Umwelt] e seu meio interno
[innenwelt] particular (seu modo próprio de vida externa e interna. [...] A
estrutura anatômica de um ser vivo nos fornece a chave de suas
experiências externas e internas. (apud Nöth, no prelo)

Ele acrescenta:

[...] o meio ambiente de um organismo não consiste de fatos biológicos,


químicos ou físicos, objetivamente dados; antes, é marcado pela estrutura
do mundo interior de um organismo. Uexküll afirma que existem apenas
128

dois tipos de mundos interiores, o mundo perceptível subjetivamente pelo


organismo [merkewlt], e o mundo de sua interação prática ou o seu campo
operacional [wirkewlt]. Somente os fatores perceptuais e operacionais do
círculo de um organismo que importam à sua vida e sobrevivência
possuem significado e, conseqüentemente, formam o seu meio ambiente
específico. (Ibidem).

Obviamente não estamos querendo afirmar que nosso sujeito cingido

pela condição da cegueira tenha um Umwelt particular. Como qualquer indivíduo da

espécie, ele possui uma estrutura anatômica que o capacita usufruir o ambiente

seletivamente reconstituído e organizado de acordo com as necessidades e

condicionamentos neuro-sensório-motores do seu organismo individual. No entanto,

no seu mundo interno, innenwelt, em face da sua condição de cegueira, como já

frisamos, não se realizam as condições que o capacitariam a estruturar fatias desse

ambiente externo que só são perceptíveis aos outros seres da espécie pela via da

visualidade.

Conforme se tem observado, o Umwelt humano, diferentemente do

Umwelt de outras espécies vivas, segundo Deely (1990, p.81):

[...] é um Umwelt maleável de um modo ímpar, aberto de maneiras tais que


nenhum outro Umwelt nesse planeta está aberto para a reconstituição ao
longo de linhas alternativas de objetivação, tanto dentro de si mesmo
quanto em suas relações com o ambiente físico externo como tal.

No decorrer dos seus estudos, Uexküll reconhece que essa

característica parece mesmo ser própria de todos os organismos vivos, de modo que

ele afirmou:

[...] Não importa que sujeito, dentre as espécies animais, seja escolhido,
sempre encontraremos um outro meio ambiente construído ao seu redor,
que apresenta os seus traços em todos os pontos; cada sujeito é o
construtor do seu meio ambiente. [...] logo, o organismo não conhece os
objetos do seu mundo como ‘coisa em si’; antes, processa seletivamente
certos signos desses objetos. Tais signos são criados por um programa
geneticamente [como se diria contemporaneamente] e são interpretados a
partir de modelos mentais do organismo [...]. Na medida em que o
organismo não é capaz de reconhecer seu meio ambiente sem referência a
seu mundo interior, pode-se dizer que a relação entre meio ambiente e
mundo interno aponta para a característica semiótica da auto-
referencialidade. (apud NÖTH, no prelo).
129

Mais apropriado seria dizer que, com o advento do Braille, os

indivíduos cegos submetidos a competentes programas de alfabetização tiveram seu

Umwelt dilatado de forma ímpar e ainda pouco conhecida. A idéia de dilatação nos é

sugerida por Vieira, que afirma:

O que o conhecimento científico tem feito até agora é dilatar os nossos


domínios perceptuais, acessando níveis da realidade que nossos
transdutores orgânicos não atingem e desenvolver, criar signos de grande
complexidade para desvendar, desvelar, burilar reflexos do real nos ‘dados’
captados através dessa dilatação. Assim, o que fazemos em ciência e
tecnologia mas também em arte e filosofia, é dilatar nosso ‘Umwelt’ além
dos apelos diretos, materiais imediatos do mundo. É claro que o fazemos
para preservar algo e este é a nossa qualidade enquanto humanidade [...]
(VIEIRA, 1994, p.127).

Quando dizemos que o código Braille refinou a mundividência tátil e

que, esse código em relevo, propiciou o alastramento do Umwelt desses indivíduos,

estamo-nos referindo a duas ordens de fenômenos que esse invento pôs em marcha

nas vidas dos grupos humanos cingidos pela condição da cegueira. Em primeiro

lugar, referimo-nos a um conjunto de fenômenos que por falta de melhor termo,

diremos que fazem parte do mundo semiósico desses indivíduos e do seu acesso a

uma gama muito variada de textos da cultura científico-comunicativo-intelectual,

conforme foi tratado no terceiro capítulo.

Uma segunda ordem de fenômenos, que pode ter sido suscitada com o

surgimento e com a utilização do código Braille, diz respeito ao mundo interno

innenwelt dos indivíduos cegos, os quais por sua vez, requerem o auxílio dos

contributos da Neurobiologia e das ciências cognitivas, a fim de que possam melhor

ser elucidados. Por enquanto, desejaríamos reunir tais fenômenos nas indagações

seguintes: Em que medida a decodificação do relevo Braille, no ato da leitura e da

escrita, propiciou aos cérebros dos seus usuários possibilidades de sinapses e

conexões neuronais que porventura estivessem adormecidas por falta do manejo

dessa competente linguagem tátil? Tatear uma interface mapeada por linhas em
130

relevo, depreendendo-se dali um arranjo lógico-matemático de associação e

combinação, que por sua vez desdobra-se em textos outros, é uma tarefa que exige

trabalho semelhante do cérebro, através do córtex inicial somato-sensitivo, àquele

gasto nos gestos corriqueiros de apalpar, tatear e investigar de maneira mecânica,

outras superfícies tangíveis ao tato? Com a conquista do uso do Braille, teria o

cérebro do indivíduo cego reaprendido a ativar conexões do córtex visual para a

associação de imagens e palavras? Nos indivíduos cegos congênitos, a conquista

do código teria significado também um reaproveitamento de conexões neuronais do

locus cerebral responsável pela linguagem?

Estudos recentes levam a crer que nossa resposta a tais questões só

pode ser afirmativa, ao mesmo tempo que parecem demonstrar que a misteriosa

aliança entre os córtex cerebrais iniciais, parafraseando Damásio, é, no caso do

nosso sujeito particular, ainda mais misteriosa, por nos apresentar a hipótese do

reaprendizado cerebral.

Um artigo recente, transcrito a seguir quase que na íntegra, dada a

singularidade da investigação, publicado no jornal português Expresso11 dá conta de

algumas pesquisas nesse sentido:

[...] Já em 1996 um cientista japonês, N. Sagato, dos Institutos Nacionais


de Saúde dos Estados Unidos, captou imagens obtidas por fotografia de
emissão de positrons (pet, da sigla em inglês), de cérebros de diversos
indivíduos cegos, que mostravam atividades em zonas do córtex cerebral,
enquanto liam Braille. Contudo, não se conseguiu perceber que
percentagem dessa atividade podia representar ativação de memórias do
córtex visual que os indivíduos tinham adquirido antes de terem cegado;
por outro lado, uma readaptação de ‘áreas visuais’ do cérebro que
aprenderam a lidar com informação tátil. Para tentar responder a essa
questão, a equipa de Peter Meezer e Ford Ebner, ambos professores de
psicologia, com o apoio do Departamento de Radiologia de Vanderbilt
usaram imagens obtidas por ressonância magnética funcional (Fri), uma
técnica que identifica as áreas do cérebro que são ativadas medindo as
alterações induzidas no fluxo sanguíneo.
Foram recrutados cinco homens e cinco mulheres, metade dos quais cegos
de nascimento, enquanto os restantes perderam a visão precocemente.
11
Disponível em: < http://www.lerparaver.com >.Acesso em set. 2002.
131

Foi-lhes pedido que lessem e descansassem, de modo a que os


investigadores pudessem perceber que áreas eram ativadas em resposta
ao estímulo inicial (leitura), e outras áreas que eram ativadas por uma
espécie de nível superior de processamento. ‘Surpreendentemente, não
encontramos grandes diferenças na ativação do córtex. É espantoso que
áreas similares sejam ativadas durante a leitura de Braille
independentemente de as pessoas terem ou não experiência de visão’,
afirmou Meezer. Mas encontraram diferenças intrigantes no comportamento
ativador, ou seja, na relação entre a duração da ativação de áreas visuais
específicas e a tarefa. No grupo de cegos congênitos, a ativação de uma
região no lobo temporal posterior, que está envolvida no processamento
verbal fonológico, - que ajuda a manter os padrões fonéticos e as regras de
pronunciação do discurso – estava mais fortemente relacionada com a
leitura do que estava no grupo com alguma experiência visual.
Por outro lado, no grupo com alguma experiência visual foi observada uma
maior correlação entre uma região adjacente, associada com a análise
semântica – permite avaliar o significado das palavras – e a tarefa pedida.

A conquista do Braille e o seu uso cotidiano pelos grupos humanos

cingidos pela condição da cegueira, para além de uma revolução sociocultural que

marcou a vida desses grupos, modificando profundamente o seu lugar na cultura,

promoveu outra revolução invisível, silenciosa e ainda muito pouco conhecida do

mundo científico; revolução que fala de reabilitação, de aprendizado ou

reaprendizado cerebral e que, portanto, nos leva a concluir que de fato o uso do

Braille qualificou e refinou o Umwelt desses grupos.

Aquele filete delgado de seis pontos justapostos em relevo não

sintetizava apenas uma matriz representacional do alfabeto convencional; aquele

delgado filete de seis pontos justapostos punha em marcha mais um mecanismo

semiótico da cultura, criando um texto novo a se desdobrar em uma multiplicidade

de textos outros, com possibilidades novas de codificação e decodificação das

vagas de informações que envolvem e dão sentido ao mundo da cultura.

Para além de uma matriz representacional do alfabeto, para além da

corporificação dessa grande variedade de textos culturais, a pequena matriz dos

seis pontos justapostos sintetizou um novo diálogo entre mão e cérebro, convocando

a percepção tátil ao exercício intelectual de criar o novo indivíduo cego


132

leitor/produtor de escrita, uma individualidade semiótica singular, munida da mais

competente ferramenta capaz de falar à percepção tátil, conforme almejara Diderot.

Os cegos da era pós-braille tinham-se distanciado, pois, a grandes

passadas, dos homens cegos de Descartes. Homens que viam o mundo com suas

varas, para experimentarem lenta e gradualmente uma revolução que aos poucos ia

abrindo uma profunda brecha na cultura, onde pouco a pouco iam se diluindo

valores tradicionais de desvalorização e depreciação, para se instaurar um outro

lugar, onde se plantava um indivíduo capaz de tocar numa infinidade de coisas e

fenômenos tão ampla que nos permitem pensar de forma mais nítida na metáfora da

cegueira como uma forma de visão.

Esta revolução, no nosso entender, merece estar aliada à descrição

perceana do movimento das espécies vivas rumo ao seu crescimento:

[...] Examine qualquer ciência que lida com o curso do tempo. Considere a
vida individual de um animal, de uma planta ou de uma mente. Olhe para a
história dos estados das instituições, da linguagem, das idéias. Examine a
sucessão de formas evidenciadas pela Paleontologia, a história de nosso
planeta narrada pela Geologia e o que o astrônomo é capaz de dizer no
que concerne às mudanças do sistema solar. Por toda parte o ato
primordial é o crescimento e a crescente complexidade. (CP 6, 57-58).
(apud VIEIRA, 1994, p. 128)

Mapear a história do desenvolvimento cultural das coletividades cegas

dentro da história da cultura, tentando-se compreender a teia semiósica que o

complexo tátil pôde criar para se fazer visível dentro desta cultura, é encontrar um

milenar caminho trilhado por uma longa tradição oral, em que um intervalo

pontográfico se fixa, como pequena chave dentada, marca singular de uma

realidade que cresce em complexidade. Eis que o limiar do século XXI parece estar

a exibir um novo ponto de passagem, uma espécie de síntese das antigas formas de

semiotização do real em uma nova forma que recupera o código verbal como
133

estratégia privilegiada, mas onde o lugar da pontografia parece estar plenamente

fixado.

É para esse novo ponto de passagem e suas implicações na história

desse desenvolvimento particular que voltaremos nossa atenção no próximo

capítulo.

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